Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0299/14
Data do Acordão:06/23/2016
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:LICENÇA DE CONSTRUÇÃO
EDIFICAÇÃO DISPERSA
RAZÕES PONDEROSAS
Sumário:I – Refere o n.º 2 do artigo 26.º do PROT-Algarve que, “Por razões ponderosas demonstradas pelo interessado, designadamente as que digam respeito à organização de explorações agrícolas, podem, excepcionalmente, ser autorizadas edificações isoladas, desde que daí não resultem derrogações ao estabelecido no presente diploma”.
II – (i) As “razões ponderosas” podem reportar-se a interesses pessoais, designadamente, a organização de uma exploração agrícola por um particular; (ii) o legislador deu relevo a uma razão ponderosa que associa as razões pessoais à utilização agrícola dos solos; (iii) a razão ponderosa exemplificada, porque assim o é, não é de molde a excluir outras razões, designadamente de natureza pessoal – ou seja, a referência às explorações agrícolas não aboliu totalmente a indeterminação do conceito utilizado; (iv) não é qualquer razão que deve ser aceite como razão ponderosa.
Nº Convencional:JSTA00069771
Nº do Documento:SA1201606230299
Data de Entrada:06/20/2014
Recorrente:MUNICÍPIO DE LOULÉ
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAS
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR URB - INSTR GESTÃO TERRITORIAL.
Legislação Nacional:CPTA02 ART140.
CPC13 ART608 N2 ART635.
PROT ALGARVE APROVADO PELA RCM N102/2007 IN DR DE 2007/08/03 ART26 N2.
RPDM LOULÉ ART83 N3 A.
RJUE ART68 A.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC01172/12 DE 2016/01/28.; AC TCAS PROC09981 DE 2013/10/10.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


1. O Ministério Público intentou no TAF de Loulé acção administrativa especial em defesa da legalidade, do urbanismo e do ordenamento do território contra o Município de Loulé e os contra-interessados A…………… e B…………., S.A. (B….., SA). Visava com esta acção, em concreto, a impugnação dos despachos do Presidente da Câmara Municipal de Loulé de 08.06.06 e de 25.08.06, que licenciaram construção de moradia em prédio rústico propriedade do primeiro contra-interessado (inscrito na matriz como terra de amendoeiras e alfarrobeiras), bem assim como a impugnação de “despachos consequentes de futuras alterações à mesma construção” (fl. 2).

Por despacho saneador de 17.04.12 foram julgadas improcedentes as excepções de falta de legitimidade activa do MP e de ineptidão da p.i. deduzidas pelo R. Município de Loulé.

O TAF de Loulé, por sentença de 16.07.12, julgou a acção improcedente e absolveu a entidade demandada do pedido.

O Autor recorreu para o TCAS que, por acórdão de 07.11.13, acordou em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, e, julgando a acção procedente, declarar nula a licença de construção aqui impugnada.

2. O R, ora recorrente, apresentou alegações, concluindo, no essencial, do seguinte modo:

“I - O Acórdão recorrido equipara a questão a decidir no presente processo à questão decidida no Ac. TCA Sul de 10-10-2013, P. nº 09981, onde teria sido perfilhado o mesmo entendimento, porém, com o devido respeito, importa ter presente que no Acórdão referido, estávamos perante «(...) licenciamento de construção de uma moradia unifamiliar, implantada num prédio classificado nas cartas de ordenamento e condicionantes do PDM de Silves como ‘espaço agrícola não prioritário’ e fora da Reserva Agrícola Nacional.(...)

II - In casu, estamos perante o licenciamento de construção de uma moradia implantada em área de habitação dispersa a conter (cfr. Ponto 4. dos factos provados) ficando sem se perceber as razões de facto e de direito da equiparação efectuada.

III - Dos factos provados não resultam as características da moradia objecto dos presentes autos, e ainda que se admitisse a composição vertida no douto acórdão recorrido, importaria trazer à colação as características do terreno, e ainda, se estamos perante 3 pisos acima ou abaixo da cota de soleira, acrescendo que, mantendo-se a área de implantação, o facto da moradia ter um, dois ou três pisos é irrelevante em termos de inutilização e impermeabilização do solo.

IV - In casu, o Requerente do licenciamento, Contra-interessado A…………., invocou razões ponderosas, que se enquadravam no carácter social, económico e humanitário, prescrito no artigo 88º, nº 3, al. a) do RPDM. (cfr. ponto 5 dos factos provados).

V - Como é sabido, além das questões urbanísticas, constitui preocupação e atribuição do Município de Loulé em particular, e dos Municípios em geral, a criação de condições que permitam a fixação de pessoas, o que pressupõe a possibilidade efectiva de construção de residência permanente, tendo em vista aliás a articulação entre o direito à habitação e urbanismo consagrados no artigo 65º da CRP.

VI - Em convergência com a posição defendida pelo ora Recorrente, veja-se o Ac. do TCASul de 19.04.2012, in www.dgsi.pt, que confirmou Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, assim como o recente Acórdão do TCAS proferido no processo 09911/13, no âmbito de recurso interposto pelo Ministério Publico, referente a uma sentença do TAFL, proferida no Proc. 821/11.BELLE, em que o Município de Loulé era parte.

VII - Em abono da posição perfilhada no Ac. do TCASul de 19.04.2012, in www.dgsi.pt consta da sua fundamentação que, «(...) como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 09.04.2003, P. 0116/03 "A interpretação defendida pela PGR baseia-se num argumento literal que não se nos afigura definitivo; o facto de o artigo 26º nº 3 do PROT-Algarve apenas referir, a título de exemplo ‘de razões ponderosas’, as que digam respeito a organizações agrícolas». Ora, tal menção tem apenas, como se afirma, carácter meramente exemplificativo, o que não lhe confere a susceptibilidade de indicar uma necessária conexão funcional entre a edificação e dos usos a que o solo se encontra vinculado. (...) Sendo embora certo que em geral o intuitu personae não releva no Direito do Urbanismo, já pode relevar quando se refira ao afastamento de uma proibição objectiva de construir, que contudo admite excepções e resulta da verificação de determinadas circunstâncias particulares estritamente ligadas à pessoa do requerente, neste caso a autorização de construção de uma moradia unifamiliar (cfr. ainda o citado acórdão do STA de 9.04.2003, P. 0116/03, Relator Conselheiro Vítor Gomes).

TERMOS EM QUE, NOS MELHORES DE DIREITO DOUTAMENTE SUPRIDOS POR V. EXCIA., REQUER-SE, ATENTAS AS CONCLUSÕES SUPRA, A REVOGAÇÃO DO DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO E A SUA SUBSTITUIÇÃO POR OUTRO QUE MANTENHA A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA NA 1ª INSTÂNCIA.
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA”

3. O recorrido MP contra-alegou, oferecendo as seguintes conclusões:

“1. A questão tratada nos autos, nomeadamente no que à demolição da habitação do contra-interessado se refere, não assume qualquer relevância social ou jurídica, na medida em que, a situação de facto aqui em causa, é única e distinta de outras situações que existiram ou venham a existir, determinando uma interpretação do direito aplicável, também distinto, como aliás denotam as decisões divergentes já proferidas sobre o mesmo direito aplicável.

2. Como também não existe erro clamoroso na decisão inserta no acórdão recorrido, não nos parece que se possam dar como verificados os pressupostos contidos no nº 1 do artº 150º do CPTA, de molde a justificarem a admissão deste recurso de revista.

3. Nos termos do nº 1 e 2 do artº 269 do PROT Algarve, aprovado pelo DL 211/91, de 21-3, bem como do nº 1, 2 e 3 do artº 88º do RPDM de Loulé, publicado no DR, I SÉRIE-B, de 26-5-04, é proibida a construção de novas edificações em espaços agrícolas de habitação dispersa, salvo casos excepcionais, devidamente justificados, e por "razões ponderosas" que não ponham em causa o fim a que destinam os solos.

4. O PROT Algarve determina que as "razões ponderosas" que podem eventualmente justificar a edificação isolada em espaço agrícola, dizem sobretudo respeito à organização de explorações com finalidade, maioritariamente, agrícolas, como denota o exemplo referido no art. 26° 2 do Dec. Reg. 11/9 (no mesmo sentido, o parecer 1/96, de 9-07-1997, da Procuradoria-Geral da República, publicado no DR, II série, 288, de 15-12-2007).

5. No caso concreto, o Município recorrente baseou-se em motivos exclusivamente subjectivos, relacionados com a pessoa do interessado, sem qualquer "conexão funcional entre a edificação e o uso planificado do solo", conforme, aliás, foi reconhecido na informação técnica de 28-10-2005.

6. Tudo leva a crer que o legislador pretendeu estabelecer a conexão entre a edificação isolada e a finalidade agrícola do terreno, pois só assim se justifica a permissão de construção em terreno destinado a fins agrícolas (cfr. artºs 10º nº 1, alínea g) e 11º alínea b), 1. E 1.3 do RPDM).

7. O contra-interessado, não invocou qualquer razão ponderosa que, excepcionalmente, permitisse o licenciamento da construção em análise, nomeadamente relacionada com a exploração do terreno agrícola.

8. No terreno em causa, constituindo solo rural ou "terra de cultura com árvores" como vem referenciado no registo do prédio da Conservatória do Registo Predial, foi pedida a construção inicial de uma casa térrea, com área de 180 m2, mas passou, posteriormente, para casa de três pisos, com área de 259 m2, acrescida da piscina, muros, havendo ainda terreno a ceder para alargamento da via pública, e tudo indica que as alterações à construção continuaram, por estar dependente licenciamento para novas autorizações.

9. As normas do PROT-Algarve prevalecem sobre as normas do PDM de Loulé, devendo ser prioritariamente acatadas pelos Municípios (cfr artº 5º e 69º do PROTAL).

10. O caso em apreciação tem que ser visto, essencialmente, à luz dos n°s 1 e 2 do artº 26 do PROTAL, já que o PDM de Loulé, enquanto permite, ainda que excepcionalmente, a construção para habitação própria e permanente, supostamente sem que o seu proprietário seja agricultor e com as características da dos autos, não respeita os princípios de preservação dos terrenos rurais e proibição de construções novas consignados no PROT Algarve.

11. Mas ainda que se considerasse que o advérbio ‘designadamente’ abre a permissão de construção para outros fins, no caso vertente, mesmo aplicando o art. 88º do RPDM, não poderia o pedido de licenciamento ser deferido.

12. A construção em análise destina-se à habitação própria e permanente do contra- interessado só podendo, excepcionalmente, ter sido permitida, se a Câmara reconhecesse, expressamente, que a construção é de interesse para os segmentos da população local que não disponham de alternativa do ponto de vista humanitário, social e económico, o que não aconteceu (cfr nº 3, alínea a), do artº 88º).

13. A lei ao impor uma justificação expressa de que "a construção é de interesse para os segmentos da população local que não disponham de alternativa do ponto de vista humanitário, social ou económico", está a afastar a hipótese de estar implícita tal justificação no deferimento em análise.

14. A justificação que o contra-interessado apresentou para que fosse permitida excepcionalmente a referida construção, foi «não ter casa própria, nem imóveis em seu nome» a qual não constitui só por si, qualquer razão ponderosa.

15. Estas razões não foram consideradas "razões ponderosas" nem enquadráveis na alínea a) do nº 3 do citado artº 88º do RPDM pelos serviços técnicos camarários que, em 17-12-2003 e 28-10-2005, emitiram parecer negativo acerca do pedido de construção.

16. A não ser assim, todos os terrenos agrícolas, ou solos rurais, poderiam servir à construção de habitações próprias para uso permanente que são a maioria transformando o carácter excepcional previsto na lei, em prática corrente.

17. E tudo se passaria como não houvesse distinção entre solo rural e solo urbano, desvirtuando e violando a razão de ser da distinção e regulação específica, de cada uma destas zonas, nos instrumentos de planeamento urbanístico.

18. Ainda que se verifique a necessidade de preenchimento do conceito indeterminado contido na asserção "razões ponderosas", não se pode desvirtuar o conceito de tal maneira que aí caibam todas as razões, mesmo sem serem ponderosas.

19. Os despachos do Senhor presidente da Câmara, que licenciaram a construção, são nulos, nos termos do art. 68° a) do DL 555/99, 16/12, na redacção do DL 177/2001, de 4/06, por violação do nº 2 do artº 26º do PROT Algarve e nº 3 a) e nº 4 do art. 88º do Regulamento PDM.

20. Nestes termos, o douto acórdão que assim considerou não violou qualquer dispositivo legal ou constitucional, tendo feito correcta aplicação da lei aos factos dados como provados, pelo que, caso o recurso seja admitido, deverá ser considerado improcedente, mantendo-se o acórdão recorrido.

Assim decidindo, farão Vossas Excelências a costumada, JUSTIÇA!”.

4. Os contra-interessados não apresentaram contra-alegações.

5. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 29.05.14, veio a ser admitida a revista (fls. 215-8), nos seguintes termos:

“2.3. O recorrente sustenta a admissão da revista pois o acórdão recorrido pode levar à demolição de moradia do contra-interessado, o que poderá contender com o seu direito à habitação, e porque o acórdão perfilha uma posição jurídica formal baseada na literalidade, abstraindo de corrente jurisprudencial maioritária.

Em causa está a aplicação das normas do Regulamento do Plano Director Municipal de Loulé (RPDML), tendo sido ratificada parcialmente a sua alteração pela RCM n.º 66/2004, em D.R., I Série-B, de 26/05/2004. Esse Regulamento, bem como o Plano Regional de Ordenamento do Território para o Algarve (PROT-Algarve), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/91, de 21/03, artigo 26.º, estabelecem, como regra a proibição de «novas edificações que provoquem ou aumentem a edificação dispersa» (artigo 26.º, n.º 1 do PROT, e artigo 88.º, n.º 1 do RPDML).

Contudo, essa interdição pode ser afastada, excepcionalmente, «por razões ponderosas demonstradas pelo interessado» (artigo 26.º, n.º 2 do PROT e artigo 88.º, n.º 2, do RPDML).
É a integração do conceito de razões ponderosas que está na base do dissídio.

2.4. A hipótese de demolição da moradia e afectação do direito de habitação não está directamente em questão nos autos. Por isso, essa não pode ser razão de relevância para o efeito de admissão de revista.

No caso vertente, o recorrente alega que o requerente do licenciamento, ora contra- interessado, «invocou razões ponderosas, que se enquadravam no carácter social, económico e humanitário, prescrito no artigo 88º, nº 31 al. a), do RPDM (cfr. ponto 5 dos factos provados)» (em IV das conclusões das alegações) e que o acórdão recorrido seguindo uma interpretação literal não atendeu aos motivos de ordem pessoal do requerente da construção.

Como se viu, foi divergente a decisão das instâncias.
O acórdão recorrido considerou que a «interpretação feita pelo município e pela Sra. Juíza a quo é um erro de direito manifesto que viola as cits. normas do Prot e do PDM».
Indica o recorrente que existem outros casos análogos em litígio.
E na verdade há indícios de reiterada conflitualidade com base na mesma problemática, como manifesta o recorrente e de que são expressão nesta Formação, a título meramente exemplificativo, o processo 135/13, com acórdão de 15.5.2013, e o processo 132/14, com acórdão de 06.03.2014; sendo que, então, se entendeu não haver lugar a admissão de revista. Se bem que, como se disse nesse último acórdão, se esteja perante questão jurídica intrinsecamente dependente das circunstâncias de cada caso, pode concluir-se, pela reiteração dos conflitos, que se está perante problema a assumir importância fundamental, destacando-se a utilidade que a revista pode vir a ter, principalmente para os municípios, através alguma orientação jurídica esclarecedora que possa surgir do entendimento deste Supremo.
Assim, e apesar da solução do presente caso ser confrontada com as limitações de poder cognoscitivo inerente ao recurso de revista, justifica-se a sua admissão.

3. Pelo exposto, admite-se a revista”.

6. Devidamente notificado para se pronunciar, querendo, sobre o mérito do recurso, o Digno Magistrado do MP não emitiu qualquer parecer ou pronúncia.

7. Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para decidir.

II – Fundamentação

1. De facto:

O acórdão recorrido manteve os factos provados em 1.ª instância, nos seguintes termos (fls. 177-8):

“1. O contra-interessado A………… pediu de informação prévia sobre construção de moradia, no referido terreno, e para o justificar, disse não ter casa própria, nem imóveis em seu nome (DOC 1).

2. Por informação técnica de 17-12-2003, é dito que o pedido não é viável, atendendo ao disposto no art. 88º 1 RPDM.

3. No entanto, poderá reformular o pedido, se assim o entender, face ao nº 2 do mesmo artigo, de acordo com o Parecer 1/96 da PGR, no sentido de se verificarem eventuais ‘razões ponderosas’.

4. O prédio do contra-interessado insere-se face ao PDM de Loulé, em área de habitação dispersa a conter – facto admitido.

5. Para justificar o pedido, a requerente juntou atestado de residência da Junta de Freguesia; certidão emitida pela Repartição de Finanças de Loulé (Quarteira), de acordo com a qual em nome do requerente inexistem bem imóveis, e declaração da entidade patronal (DOC 2 e 3).

6. Por deliberação da Câmara Municipal de Loulé, de 28-07-2004 foi aprovado o pedido de informação acima referido.

7. Em 8/06/2006 foi aprovado o licenciamento da construção.

8. Por despacho de 25/08/2006 foi aprovado o projecto de especialidade, tendo sido emitido o alvará de obras a 27/04/2007 – processo administrativo e facto admitido”.

2. De direito:

2.1. Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem – sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts 635.º e 608.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi do art. 140.º do CPTA).
Ora, do teor das conclusões das alegações do recorrente resulta que o mesmo invoca como fundamento recursivo a violação, por errada interpretação, do disposto nos artigos 26.º, n.º 2, do PROT Algarve, e 88.º, n.º 3, al. a), e n.º 4, do RPDM de Loulé. Cumpre apreciar.

Invocando o ora recorrente erro de julgamento derivado da pretensa errada interpretação e consequente errada aplicação dos artigos 26.º, n.º 2, do PROT-Algarve, e 88.º, n.º 3, al. a), e n.º 4, do RPDM de Loulé (entretanto, alterado), atentemos, desde já, no seu teor.

Artigo 26.º (Proibição de edificação dispersa)

“1 – Sem prejuízo do disposto nos artigos 23.º, 24.º e 25.º, fora das zonas de ocupação urbanística, a que se referem os artigos 9.º e 11.º, não podem ser autorizadas operações de loteamento nem novas edificações que provoquem ou aumentem a edificação dispersa.
2 – Por razões ponderosas demonstradas pelo interessado, designadamente as que digam respeito à organização de explorações agrícolas, podem, excepcionalmente, ser autorizadas edificações isoladas, desde que daí não resultem derrogações ao estabelecido no presente diploma”.
Artigo 88.º (Edificação dispersa)

“1 – Em solo rural é interdito o loteamento urbano e não são autorizadas novas edificações que provoquem ou aumentem a edificação dispersa, sem prejuízo do disposto nos artigos 34.º, 46.º e 51.º.
2 – Por razões ponderosas demonstradas pelo interessado, podem, excepcionalmente, ser autorizadas edificações isoladas, desde que daí não resultem derrogações ao presente Regulamento.
3 – Nos casos previstos no número anterior, as autorizações só poderão ter lugar desde que:
a) A Câmara reconheça expressamente que a construção é de interesse para os segmentos da população local que não disponham de alternativa do ponto de vista humanitário, social ou económico;
(…).
4 – As principais áreas de edificação dispersa a conter são as delimitadas na planta de ordenamento. Nestas áreas poderão ser autorizadas edificações para habitação própria e permanente e edificações com uso misto, integrando pequenas unidades de comércio, serviços ou estabelecimentos de restauração e bebidas, nos termos das alíneas a) a f) do n.º 3 do presente artigo”.

Em função da leitura que faz dos preceitos que convoca, o recorrente, no fundo, discorda da interpretação do conceito de ‘razões ponderosas’ que, excepcionalmente, podem ser invocadas para justificar a construção de habitação isolada em zona de contenção habitacional, e bem assim da interpretação do conceito de “alternativa do ponto de vista humanitário, social ou económico” –, além de não compreender o paralelismo que o acórdão recorrido faz entre a questão decidida nesse acórdão e a questão tratada no acórdão do TCAS, de 10.10.13, Proc. n.º 09981. Vejamos.

2.1. Em acórdão recente deste STA (Acórdão de 28.01.16, Proc. n.º 1171/12), que igualmente tratou da questão da mencionada excepção ao regime restritivo da construção dispersa em zona de contenção habitacional, foi dito o seguinte:

“Em face de todo o exposto, facilmente se intui, está aqui em causa o preenchimento do conceito indeterminado “razões ponderosas”. Como é sabido, a utilização de conceitos indeterminados não significa necessariamente a atribuição de poderes discricionários, mas, em todo o caso, implica a existência de uma apreciável margem de apreciação, in casu, para o licenciador das obras de construção, a Câmara Municipal de Vila do Bispo. No n.º 2 do artigo 26.º do PROT Algarve, o legislador entendeu exemplificar uma situação configurável como razão ponderosa, referindo a organização de explorações agrícolas. Além disso, neste mesmo dispositivo chama a atenção para a necessidade de que, da autorização excepcional de licenciamento de edificações dispersas “não resultem derrogações ao estabelecido no presente diploma”. Daqui se podem extrair várias ilações:

(i) as “razões ponderosas” podem reportar-se a interesses pessoais, designadamente, a organização de uma exploração agrícola por um particular;
(ii) o legislador deu relevo a uma razão ponderosa que associa as razões pessoais à utilização agrícola dos solos;
(iii) a razão ponderosa exemplificada, porque assim o é, não é de molde a excluir outras razões, designadamente de natureza pessoal – ou seja, a referência às explorações agrícolas não aboliu a indeterminação do conceito utilizado;
(iv) não é qualquer razão que deve ser aceite como razão ponderosa.

Centrando-nos, agora, nesta última ilação, diga-se que, não obstante a margem de livre apreciação que cabe ao órgão administrativo competente para integrar o conceito indeterminado, o necessário carácter ponderoso das razões invocadas, a inclinação do legislador por razões que ainda tenham que ver o aproveitamento agrícola dos solos e a obrigação de não derrogar o estabelecido no diploma em causa (como se menciona no parecer do Conselho Consultivo da PGR, um aspecto claramente vinculado do acto) estabelecem alguns condicionamentos em termos de decisão de licenciamento. Assim, por exemplo, a invocação de razões estritamente individuais e claramente não excepcionais, como aquelas que foram apresentadas pelos então contra-interessados e que foram aceites pela Câmara Municipal de Vila do Bispo, não devem ser consideradas adequadas para preencher o conceito de “razões ponderosas”. Pela simples razão de que a excepcionalidade da autorização prevista no n.º 2 do artigo 26.º do PROT Algarve não se compagina bem com a motivação comum, que per se não justifica essa excepcionalidade e a consequente derrogação do regime protector dos bens que se pretendem tutelar com a proibição de edificação dispersa em zonas não urbanizáveis e integradas na RAN. Se assim não for, e se motivos idênticos aos invocados pelos então contra-interessados forem suficientes para fundar a excepção à proibição contida no n.º 1 do artigo 26.º do PROT Algarve, a excepcionalidade rapidamente redundará em normalidade.
Ainda no âmbito da apreciação em curso, cumpre realçar que a decisão licenciadora deverá apresentar uma fundamentação suficiente e adequada, antes de mais, porque, como se viu, a margem de livre apreciação de que gozam as câmaras municipais neste domínio não é total e ilimitada. Além de que, o dever de boa administração que sempre impende sobre a Administração obriga-a a encontrar a melhor solução possível para o interesse público. Mas, como resulta dos autos, a Câmara Municipal de Vila do Bispo limitou-se a aderir aos motivos invocados pelos então contra-interessados, fazendo sua essa motivação, nada acrescentando no sentido de fundamentar melhor o despacho atacado. Ora, além do carácter comum dos motivos apresentados, há que referir que, como salientou em devido tempo o MP, foram emitidas duas informações técnicas pelo arquitecto da Câmara Municipal de Vila do Bispo, no sentido de que não estavam reunidas as condições de deferimento dos contra-interessados. Motivos mais do que suficientes para justificar uma actuação mais criteriosa e rigorosa daquele órgão municipal, e para lhe impor uma decisão bem fundamentada, que permitisse ao julgador avaliar se, por exemplo, não houve desvio de poder”.

Reportando-nos, agora, ao teor da al. a), do n.º 3, do artigo 88.º (“a) A Câmara reconheça expressamente que a construção é de interesse para os segmentos da população local que não disponham de alternativa do ponto de vista humanitário, social ou económico” – negrito nosso), parece-nos óbvio que não basta invocar-se, como no caso dos autos, a circunstância de não se possuir habitação e de não se ser proprietário de outros bens imóveis (além do prédio rústico em zona de contenção habitacional) para preencher esta condição. Antes é necessário que a única hipótese que uma determinada pessoa tenha de ter habitação própria seja a de construir no único terreno que possui, uma vez que, v.g., não tem posses para a construir/adquirir habitação de outra forma, só assim se justificando abrir uma brecha à protecção do interesse público. Ora, dificilmente se poderá aceitar que determinada pessoa que tem posses para construir moradia com piscina, independentemente do número de pisos [o recorrente sustenta que não consta da matéria de facto provada a existência dos três pisos] não tivesse alternativa viável à construção de habitação própria num terreno de contenção habitacional, e, acrescente-se agora, sendo certo que a sua opção se baseou em motivos puramente pessoais/subjectivos e não certamente excepcionais (à luz do que atrás foi dito quanto ao preenchimento do conceito de ‘razões ponderosas’).

Com isto, o que se pretende afirmar é que, ainda que disponha de algum espaço de discricionariedade neste domínio, andou mal a Câmara Municipal de Loulé ao licenciar a construção de habitação isolada em área de contenção habitacional quando de forma evidente o seu proprietário apenas invocava interesses pessoais/subjectivos para justificar a sua construção – sendo de realçar a informação técnica emitida em que se afirmava não ser viável a construção em causa, atendendo ao disposto no artigo 88.º do RPDM –, e sem que se possam vislumbrar razões económicas, sociais e humanitárias que impedissem o contra-interessado A…………. de encontrar uma alternativa que não pusesse em causa o interesse público.

Por conseguinte, há que concluir que a decisão recorrida, ao declarar nula a licença de construção aqui impugnada por violação do artigo 68.º, al. a), do RJUE, fez correcta aplicação deste dispositivo e, de igual modo, dos artigos 26.º, n.º 2, do PROT-Algarve, e 88.º n.os 2 e 3, al. a), do RPDM de Loulé, não incorrendo em erro de apreciação do direito aplicável.
Improcede, assim, a respectiva alegação.

2.2. Quanto à objecção do recorrente segundo a qual não se compreende por que motivo o acórdão recorrido traz à colação o Acórdão do TCAS de 10.10.13, Proc. n.º 09981, ela afigura-se-nos infundada, uma vez que o excerto transcrito praticamente se cinge a explicar como devem ser concretizados os conceitos indeterminados, e, em particular, o de ‘razões ponderosas’, pelo que tem todo o sentido a sua utilização num outro caso em que esse preenchimento também estava em causa.


III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em negar provimento ao presente recurso de revista, com todas as legais consequências, e, em conformidade, em manter o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 23 de Junho de 2016. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – Vítor Manuel Gonçalves Gomes.