Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01051/19.7BELRA-S1
Data do Acordão:04/04/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:CPTA
PRAZO
MINISTÉRIO PÚBLICO
RÉU
Sumário:O co-Réu não pode beneficiar da prorrogação do prazo concedido ao MP nos termos do artigo 82.º, n.º 4 do CPTA, uma vez que as razões que sustentam aquela prorrogação – e que são atinentes à organização hierárquica e ao modo como legalmente o Ministério Público exerce as suas funções – não são aplicáveis ao co-Réu.
Nº Convencional:JSTA000P32068
Nº do Documento:SA12024040401051/19
Recorrente:ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:AA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo

I. RELATÓRIO

1. O MINISTÉRIO PÚBLICO - em representação do ESTADO PORTUGUÊS, réu nesta acção administrativa «comum» juntamente com BB - vem, invocando o artigo 150.º do CPTA, interpor «recurso de revista» do acórdão do TCAS - de 26.10.2023 - que, concedendo provimento à «apelação» interposta pelo co-réu BB - apelação que subiu em separado -, decidiu, com um «voto de vencido», revogar a decisão do TAF de Leiria - de 19.12.2019 -, admitir nos autos a contestação apresentada pelo aí apelante e determinar a «baixa dos autos» ao tribunal de primeira instância para prosseguir a sua pertinente tramitação.

2. Inconformado, o recorrente formulou alegações, que rematou com o seguinte quadro conclusivo:

1. Por douto despacho proferido em 19 de dezembro de 2019 pelo TAF de Leiria foi ordenado o desentranhamento da contestação que BB apresentou. Inconformado com a decisão, este co-réu interpôs recurso jurisdicional para este Venerando TCA Sul, o qual, em acórdão proferido em 26 de outubro de 2023, cuja Revista se pretende seja admitida e apreciada pelo Venerando Supremo Tribunal Administrativo, concedeu provimento ao Recurso do Demandado, revogou a decisão recorrida e admitiu a contestação por si apresentada.

2. A intervenção do STA é de se considerar justificada in casu, em que a questão em apreço é de assinalável relevância e de enorme utilidade prática, pois a decisão recorrida constitui um erro na aplicação do direito, fazendo uma errada aplicação das normas citadas ao admitir a contestação do Recorrido, devendo o douto Acórdão ser sindicado por esse Supremo Tribunal.

3. O preenchimento deste conceito indeterminado da relevância jurídica fundamental, verifica-se, quando se está perante questão jurídica cujo tratamento suscite dúvidas sérias, ao nível da jurisprudência, ou ao nível da doutrina, tendo inclusivamente, no caso sub judice, sido proferidas duas decisões em sentido oposto.

4. A intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa portuguesa, face ao evidente erro de julgamento do Venerando Tribunal recorrido na aplicação do direito tem plena justificação, razão por que, deverá ser admitido o presente recurso de revista, face à clara necessidade de uma melhor aplicação do direito em causa, pois só assim se fará boa administração da justiça, em sentido amplo e objetivo, sendo necessária orientação jurídica esclarecedora que possa surgir do entendimento desse Supremo Tribunal, face às dúvidas suscitadas – art.º 150.º, n.ºs 1, 2 e 4, do CPTA.

5. O n.º 2 do artigo 569.º do CPC refere “o prazo que começou correr em último lugar” e este prazo só pode ser o peremptório previsto referido no nº 1 com ou sem dilação, consoante o caso. Logo, aquela norma não se aplica quando o prazo de algum dos réus seja prorrogado, nos termos do n.º 4 ou do n.º 5.

6. A circunstância prevista no nº 5 do mesmo preceito não corresponde a um prazo que começa a correr, é antes uma prorrogação concedida pelo juiz em vista da justificação apresentada para essa prorrogação, a qual tem de constituir motivo ponderoso.

7. Assim esta prorrogação acontece num circunstancialismo intuitu personae, o qual, por ser próprio do Réu que a requer, não pode alargar-se ipso facto aos demais co-Réus.

8. Esta prerrogativa legal, extensível a qualquer réu ou demandado, por aplicação do art. 569.º, n.º 5 do CPC, depende de uma decisão judicial que recaia sobre um requerimento atempado e fundamentado, para tanto, ficando, dessa forma, salvaguardado o princípio da igualdade substancial da igualdade de armas entre as partes, no que respeita ao exercício da defesa e do contraditório.

9. Até porque, a extensão da beneficiação excepcional contemplada na lei a quem a não pediu viola o princípio do pedido (art.º 3.º, n.º 1, do CPC).

10. Denota-se na submissão do incidente ao princípio do pedido e no afastamento da oficiosidade na prorrogação do prazo da contestação, o racional de autorresponsabilização do titular do direito na gestão da defesa dos seus interesses processuais.

11. A concessão do sobredito direito, mediante uma tal omissão, como sucede na vertente situação, isso, sim, acarretaria uma desigualdade no sobredito aspeto, em desfavor de quem cumpriu a lei.

12. Ao julgar como julgou, o douto Acórdão o Tribunal Central Administrativo Sul enferma de erro de direito ou de julgamento e violou, desta forma, o disposto no artigo 569.º n.ºs 2, 4 e 5 do CPC, incorretamente aplicados no caso concreto. Impõe-se, assim, o provimento do presente recurso de revista excecional e a revogação do douto acórdão recorrido com todas as legais consequências, em conformidade com o exposto.

Assim, conhecendo e decidindo no sentido propugnado, farão Vossas Excelências a costumada, JUSTIÇA.

3. Não foram apresentadas contra-alegações.

4. A Revista foi admitida por Acórdão de 29.02.2024.

Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. De facto

Na decisão recorrida foi dada como assente a seguinte matéria de facto:

1. O Ministério Público, em representação do Estado Português, foi citado no dia 06.09.2019.

2. O R., ora Recorrente, foi citado no dia 10.09.2019.

3. Em 25.09.2019 o Ministério Público requereu, nos temos o art.º 569.º, n.º 4 do CPC, a prorrogação do prazo para contestar, por mais trinta dias.

4. Por despacho de 25.09.2019 foi deferida a prorrogação de prazo para contestar requerida pelo Ministério Público, nos termos do art.º 82.º, n.º 4 do CPTA.

5. Em 19.10.2019, o R. Recorrente apresentou contestação.

6. Em 24.10.2019 foram os autos conclusos com a informação de que a apresentação da contestação seria extemporânea.

7. Em 08.11.2019 veio o R. Recorrente requerer “a admissão da contestação pelo facto de nos termos do art.º 569.º, n.º 2 do CPC, pelo facto de o Co-Réu Estado ter pedido a prorrogação do mesmo”.

8. Por despacho de 19.12.2019 foi indeferido o requerimento que antecede e ordenado o desentranhamento da contestação.

2. De Direito

2.1. A questão que vem suscitada nos autos prende-se com a existência ou não de um erro de julgamento do acórdão recorrido na interpretação e aplicação das normas a respeito da determinação do prazo limite para a apresentação da contestação pelo co-Réu. Vejamos.

2.2. Da matéria de facto resulta que a contestação do co-Réu foi apresentada em 19.10.2019, tendo o mesmo sido citado em 10.09.2019, em pessoa diversa, o que significa que dispunha do prazo de dilação de 5 dias [artigo 245.º, n.º 1, al. a) do CPC], acrescido do prazo peremptório de 30 dias (artigo 82.º, n.º 1 do CPTA) para apresentar a respectiva contestação – ou seja – até 15.10.2019 -, admitindo-se, ainda, que o pudesse fazer, mediante o pagamento de multa processual, até ao terceiro dia útil seguinte, ou seja, até 18.10.2019. Ora, tendo a contestação sido apresentada apenas em 19.10.2019, a mesma era extemporânea.

Veio então o co-Réu alegar que a contestação que apresentara se tinha de considerar em prazo ex vi do disposto no artigo 569.º, n.º 2 do CPC – [Q]uando termine em dias diferentes o prazo para a defesa por parte dos vários réus, a contestação de todos ou de cada um deles pode ser oferecida até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar –, aqui aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA, uma vez que o outro Réu, o Estado representado pelo Ministério Público, havia solicitado a prorrogação do prazo para contestar nos termos do artigo 82.º, n.º 4 do CPTA, essa prorrogação havia sido concedida e a contestação do Ministério Público tinha dado entrada em data posterior a 19.10.2019.

2.2.1. Por despacho de 19.12.2019, o TAF de Leiria considerou inaplicável ao caso o disposto no artigo 569.º, n.º 2 do CPC, sustentando essa tese na argumentação expendida no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 15.05.2013 (no Proc. n.º 293/12-2TVLSB.L1-6), segundo o qual a prorrogação de prazo para contestação solicitada e deferida ao abrigo do disposto no artigo 486.º, n.º 5 do antigo CPC (hoje artigo 569.º, n.º 5 do CPC) “acontece num circunstancialismo intuitu personae”, o qual, por ser próprio do Réu que a requer, não pode alargar-se aos demais Réus e, nessa medida, não podia o co-Réu valer-se daquele prazo para considerar em tempo a apresentação da sua contestação.

2.2.2. Inconformado, o co-Réu recorreu daquela decisão para o TCA Sul, que, por acórdão de 26.10.2023, concedeu provimento ao recurso, revogou o despacho do TAF de Leiria e admitiu a contestação, considerando-a apresentada em prazo. A tese sustentada na decisão recorrida é a de que «o carácter “intuitu personae” que esteve na origem de uma dada prorrogação de prazo a um réu não pode pôr em causa o interesse processualmente superior que impõe fazer coincidir na mesma data o prazo de contestação de todos os réus», reconduzindo esse “interesse processualmente superior à letra do artigo 569.º, n.º 2 do CPC”. Sustentando esta tese no acórdão da Relação de Coimbra de 12.09.2017 (Proc. 4632/16.7T8VIS-A.C1), em que se permitiu que todos os Réus aproveitassem do prazo de contestação mais amplo, cuja prorrogação havia sido expressamente requerida nos termos do artigo 569.º, n.º 5 do CPC.

É desta decisão que vem interporto recurso, questionando-se o seu acerto jurídico, atento o facto de a doutrina e parte da jurisprudência não acompanhar a tese de que o disposto no artigo 569.º, n.º 2 do CPC possa valer para as situações dos n.ºs 4 e 5 do mesmo artigo 569.º do CPC, como expressamente se defende na declaração de voto que acompanha o acórdão recorrido.

E tem razão o Recorrente.

3. O que está em causa, para sermos rigorosos, é saber se a regra do artigo 569.º, n.º 2 do CPC se pode aplicar às situações em que tenha havido prorrogação do prazo nos termos do disposto no artigo 82.º, n.º 4 do CPTA (que tem como paralelo o artigo 569.º, n.º 4 do CPC), ou seja, se os co-réus podem beneficiar da prorrogação do prazo que venha a ser concedida ao Ministério Público, quando este requeira aquele benefício, mostrando em requerimento fundamentado que estão preenchidas as condições legais para a sua obtenção, ou seja, “quando careça de informações que não possa obter dentro dele [dos serviços] ou quando tenha de aguardar resposta a consulta feita a instância superior”.

Ora, sobre esta questão pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 20.10.1994 (Proc. 087062), com uma argumentação que ainda se nos afigura actual. Com efeito, na fundamentação expendida no aresto em referência explica-se que esta aparente “diferença de tratamento processual do Ministério Público”, que há muito tem consagração legal expressa, encontra a sua justificação na “organização hierárquica do Ministério Público, a sua funcionalidade e diversas dificuldades que encontra em obter informações ou autorizações”. Como resulta claro do texto deste aresto do STJ e das referências nele contidas, desde sempre se vem questionando a diferença de tratamento processual entre o Ministério Público e as partes que com ele litigam, e desde sempre também se tem sustentado a adequação jurídica desta diferença na circunstância de o Representante do Ministério Público, a quem é incumbida (entre outras) a tarefa de apresentar os articulados, quase sempre não dispor dos elementos necessários para o efeito, precisando de os pedir às entidades públicas. É este facto que explica o “normal” pedido de prorrogação do prazo para a apresentação da contestação à luz do artigo 82.º, n.º 4 do CPTA (e do artigo 569.º, n.º 4 do CPC) e a razão pela qual um co-réu não pode beneficiar deste prazo alargado à luz da referida disposição normativa. Por outras palavras, como o mesmo aresto do STJ determina, a prorrogação do prazo do MP para apresentar uma contestação à luz do artigo 569.º, n.º 4 do CPC, distingue-se do regime previsto no artigo 569.º, n.º 2 do CPC, que não tem aplicação nestes casos.

Mais, no aresto que temos vindo a acompanhar esclarece-se ainda que esta diferença de tratamento em termos de prazo, precisamente porque foi instituída como resposta a uma diferença de condições fácticas (o mandatário da parte conhece os factos que suportam a pretensão do seu constituinte o que não sucede com o representante do Ministério Público que terá, quase sempre, que os solicitar às entidades públicas cuja posição irá processualmente representar) é, em si, uma medida legal de promoção e efectivação do princípio da igualdade (assegura um tratamento diferente a situações factualmente distintas, na medida dessa diferença) e, por consequência, é irrazoável e infundado pretender imputar-lhe uma violação daquele princípio fundamental.

4. Assim, o acórdão recorrido não se pode manter e tem de ser revogado, não porque esteja em causa um prazo intuito personae como sustentou a sentença do TAF, mas sim porque o co-Réu não pode beneficiar da prorrogação do prazo concedido ao MP nos termos do artigo 82.º, n.º 4 do CPTA, uma vez que as razões que sustentam aquela prorrogação não são aplicáveis ao co-Réu. E contrariamente ao que concluiu o acórdão recorrido, esta prorrogação de prazo não se confunde com a factualidade subjacente à previsão do artigo 569.º, n.º 2 do CPC, pelo que, a solução vertida naquela norma não tem aplicação neste caso.

III – DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e manter, nesta parte, o decidido pelo TAF de Leiria com a fundamentação aqui expendida.
Custas pelos Recorridos.

Lisboa, 4 de Abril de 2024. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) – José Francisco Fonseca da Paz – José Augusto Araújo Veloso.