Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0228/18
Data do Acordão:03/15/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Descritores:REVISTA
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
PENA EXPULSIVA
Sumário:É de admitir a revista quando está em causa a aplicação de uma pena expulsiva visto esta determinar a imediata extinção do vínculo laboral e, consequentemente, a colocação do atingido numa situação de desemprego, a qual é particularmente gravosa por a sua relevância extravasar os limites do litígio já que se repercute em todo o conjunto de pessoas que se relacionam com o sancionado, maxime com os seus familiares mais directos.
Nº Convencional:JSTA000P23082
Nº do Documento:SA1201803150228
Data de Entrada:03/02/2018
Recorrente:A............
Recorrido 1:HOSPITAIS DA UNIVERSIDADE DE ............, EPE
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Formação de Apreciação Preliminar da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I. RELATÓRIO.

A............ intentou, no TAF de Coimbra, contra os Hospitais da Universidade de ........., EPE - actualmente Centro Hospitalar e Universitário de ......... - acção administrativa especial pedindo: a) a anulação, do acto que lhe aplicou a pena de demissão e b) a condenação do Réu a (1) pagar-lhe uma indemnização de € 34.468,75, acrescida dos danos que vierem a ser liquidados em execução de sentença e (2) a reconstituir-lhe a sua situação jurídico-funcional, a qual inclui a sua reintegração no órgão ou serviço onde exercia funções à data da pena aplicada.

O TAF anulou o acto impugnado mas julgou improcedentes os restantes pedidos.
E o TCA Norte, para onde o Réu apelou, concedeu provimento ao recurso e julgou a acção improcedente.

É desse acórdão que vem a presente revista (artigo 150.º do CPTA).

II.MATÉRIA DE FACTO
Os factos provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III.O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. A Autora intentou, no TAF de Coimbra, acção administrativa especial pedindo a anulação do acto que lhe aplicou a pena de demissão e a condenação do Réu não só a pagar-lhe uma indemnização pelos danos decorrentes desse acto sancionatório como a reconstituir-lhe a carreira profissional.
Alegou não só que o procedimento disciplinar estava inquinado por diversos vícios, desde logo ter sido instaurado quando se verificava a sua prescrição, como o erro nos pressupostos de facto, a falta de audiência do arguido, a falta de fundamentação da pena e a recolha de prova através de meios vedados em processo disciplinar.

O TAF julgou a acção parcialmente procedente, o que o levou a anular o acto impugnado e absolver o Réu dos restantes pedidos.
Para assim decidir considerou:
“…..
I - Sustenta a Autora, em primeiro lugar, que há prescrição do procedimento disciplinar, uma vez que a entidade requerida teria tido conhecimento dos factos em Setembro de 2010, e o procedimento disciplinar apenas foi instaurado em Março de 2011. … Ora, não há dúvidas que os factos em causa nos autos também constituem infracção penal, pelo que os prazos prescricionais não são os constantes dos nºs 1 e 2 mas sim os constantes dos artigos 118º e seg.s do Código Penal. Os prazos em causa são manifestamente superiores, pelo que, sem necessidade de mais considerações conclui-se que não procede este vício invocado.
II - No que se refere à invocada nulidade procedimental por não ter sido suspenso o presente processo disciplinar até à decisão em processo penal, é de referir que em nenhum normativo do Estatuto Disciplinar vem referida a obrigatoriedade dessa suspensão. … Na verdade, nada impõe que o procedimento disciplinar, quando esteja a decorrer processo-crime, tenha de ser suspenso. … .
III- Quanto à ilegalidade do procedimento disciplinar a Autora vem invocar vários vícios que cumpre analisar.
Refere que os factos que lhe foram imputados são vagos e genéricos o que não permitiu que efectuasse uma eficaz defesa. Sustenta ainda que não cometeu as infracções constantes do libelo acusatório e que teriam sido utilizados meios de provas que não seriam admissíveis em procedimento disciplinar.
Quanto à não admissibilidade de provas não vemos como se possa defender que as provas admitidas em procedimento criminal não possam ser utilizadas no procedimento disciplinar. Nada na lei obsta a tal solução. Aliás dos artigos 36º e 46º do ED retira-se precisamente o contrário.

No presente procedimento disciplinar apenas foi utilizada a prova testemunhal. No entanto, no auto de notícia vêm referidos outros meios de prova, mas essa é uma questão lateral ao procedimento disciplinar, e que se encontra ultrapassada com o disposto no artigo 7º do ED, já anteriormente citado. Na verdade, se o despacho de pronúncia, e/ou a decisão no âmbito de processo-crime, têm de ser remetidos aos serviços onde o funcionário desempenha funções, nestes casos, não se coloca a questão da obtenção dos meios de prova. … .
Ou seja, quanto à obtenção dos meios de prova não procede o vício invocado.

Refere ainda a Autora que não se pode concluir que a mesma tenha cometido os factos descritos e que a sua confissão feita no procedimento de inquérito não pode ser utilizada contra si.
Quanto à prática dos factos verifica-se, apesar do relatório final ser algo confuso, que foi dado como provado, sem quaisquer dúvidas, que a Autora se apoderou de cloridrato de cocaína e medicamentos de natureza opiácea (ponto 2.1 do relatório final), e concretamente, que furtou mais de 500g de cloridrato de cocaína (ponto 2.4 do relatório final).
….
Ora, apoiando-se no auto de inquérito, como o mesmo tem em vista averiguar a prática de determinados factos, não se pode concluir que tais factos já tenham sido dados como provados, com trânsito em julgado. Ou seja, teria o Sr. Instrutor de efectuar as diligências instrutórias necessárias à averiguação da verdade, aliás o que levou a cabo com a audição de testemunhas. No entanto, os factos em causa no procedimento disciplinar e no procedimento criminal são os mesmos. Estamos perante um processo complexo, em que os meios utilizados no procedimento criminal são necessariamente diferentes dos utilizados no procedimento disciplinar. …. Como verificamos da matéria de facto dada como provada, no procedimento criminal, ainda que não transitado em julgado, foi dado como provado que a Autora teria furtado entre 41,6 e 42,96 gramas de cloridrato de cocaína, enquanto que no procedimento disciplinar foi dado como provado que teria furtado mais de 500 gramas. Ora, para que não se chegasse a esta discrepância era mais avisado que se tivesse suspendido o procedimento disciplinar até ao trânsito em julgado da decisão penal.
Por seu lado, e quanto ao ter-se dado como provado que a Autora furtou mais de 500 gramas de cloridrato de cocaína, não vemos como das declarações das testemunhas, no âmbito do procedimento disciplinar se possa chegar a tal conclusão... Dos depoimentos destas testemunhas não restam dúvidas que fica provado que a Autora se apropriou de determinada quantia do estupefaciente em causa, e de determinados comprimidos, nomeadamente de morfina. No entanto não se pode concluir que tenha furtado mais de 500 gramas de cloridrato de cocaína.
….
No entanto o Conselho de Administração fundamentou a sua decisão, quando da aplicação da pena disciplinar, tendo como pressuposto que a Autora tinha furtado mais de 500 gramas de cloridrato de cocaína. Como já concluímos, não se pode dar como provado que a Autora tenha furtado tal quantidade. Assim sendo, a decisão do Conselho de Administração dos HUC fundamentou-se em pressupostos errados, pelo que tem de proceder a acção neste aspecto.

Refere ainda a Autora que a entidade demandada não se pode fundamentar nas suas declarações prestadas em sede de inquérito, para lhe aplicar uma sanção disciplinar. …… .
Ou seja, as declarações prestadas por arguido em sede de inquérito não podem servir de prova em julgamento. O arguido quando presta declarações, nessa sede, sabe que estas apenas valem para o inquérito. Se houver acusação, e se assim o pretender, tem direito ao silêncio, e essas mesmas declarações não podem fundamentar a condenação em julgamento.
Assim, se a Autora prestou determinadas declarações em processo de inquérito e se estas não podem ser utilizadas contra si em julgamento criminal para fundamentar uma condenação, não é legítimo que essas mesmas declarações venham a fundamentar uma condenação num outro processo, o procedimento disciplinar, quando neste se remeteu ao silêncio (n.º 9 do probatório). A entidade demandada não podia assim fundamentar a sua condenação nessas mesmas declarações, como o fez (ponto 2. 1 da acusação e do relatório final).
Assim, também por este motivo tem que se anular o acto impugnado.
Anulando-se o acto, pelos motivos expostos, fica prejudicado o conhecimento dos restantes vícios nomeadamente quanto à falta de fundamentação do acto, que aliás tem a ver com o referido, e quanto à falta de audiência do arguido por o libelo acusatório conter imputações vagas e genéricas.
A Autora vem no final solicitar o pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos por força deste acto ilícito. Apesar do tribunal proceder à anulação do acto em causa, como se pode ver do exposto não estamos perante a prática de um acto ilícito que leve a que a Autora tenha qualquer direito de indemnização.

O TCAN revogou essa decisão e julgou a acção improcedente.
Com efeito, depois referir que “não vemos como se possa defender que as provas admitidas em processo criminal não possam ser utilizadas em processo disciplinar. Nada na lei obsta a tal solução. …... Mas mesmo que assim se não entendesse, o certo é que as imputações que são feitas à Autora na acusação não tiveram por base de sustentação apenas as declarações por ela prestadas em sede de Inquérito; pelo contrário, a convicção da Senhora Instrutora formou-se/alicerçou-se também nos dados colhidos a partir da análise conjunta e global dos elementos produzidos em sede de processo disciplinar …... a pena aplicada não teve por base a quantidade furtada, qual regra de três simples, sendo que, tivesse a Autora furtado 500 gramas ou 50 gramas, a inviabilização da relação funcional sempre se verificaria pelo que, por força da Lei 58/2008, de 09/09, a pena a aplicar sempre seria a DEMISSÃO ….”. Formulou as seguintes conclusões:
“- contrariamente ao decidido, não se vislumbra que no caso em concreto tenha ocorrido qualquer erro de julgamento e, muito menos, grosseiro ou palmar, incidente sobre a factualidade apurada que imponha a alteração do juízo firmado pelo Ente Administrativo;
- como já foi assinalado supra, a Entidade Administrativa detém um amplo grau de discricionariedade na avaliação da prova e na aferição da medida da pena, pelo que o Tribunal só deve intervir se se verificar um erro grosseiro;
- sucede que os autos fornecem prova cabal e convincente da prática pela Recorrida dos factos que lhe são imputados, seja qual for a quantidade total de cocaína por ela subtraída, os quais consubstanciam violações sucessivas dos deveres de isenção, zelo, lealdade e correcção, a que a mesma se encontrava subordinada e constituem infracções disciplinares muito graves e reiteradas;
- pelo que … não acompanhamos o Tribunal a quo no julgamento que fez da matéria de facto, não se descortinando razões para repudiar a convicção que a Senhora Instrutora formou sobre o material probatório coligido no âmbito do procedimento disciplinar;
- não pode ignorar-se a autonomia da jurisdição penal em relação à jurisdição administrativa, ditada pelos diferentes interesses que lhes estão subjacentes;
- e, nesta perspectiva, bem se compreende que a lei processual penal seja mais rígida e garantística, quando em confronto com o direito disciplinar, e que a confissão do arguido aí não possa ser valorada, a não ser que seja efectuada na audiência de julgamento e, outrossim, que seja livre, integral e sem reservas - artigo 344º do CPP;
- rejeitar e desvalorizar, in limine, declarações prestadas pela arguida perante o senhor juiz de Instrução, é lançar um anátema sobre um acto processual por ele presidido, na presença do defensor da arguida, como se aquele magistrado judicial legitimasse e/ou validasse uma confissão que não fosse livre, espontânea e fora de qualquer coacção;
- de todo o modo, da conjugação de todos os elementos de prova, é lícito concluir que, pese embora o visionamento das imagens captadas pela Polícia Judiciária aponte tão-somente para as quantidades de cocaína constantes do acórdão penal condenatório, a ponderação efectuada pela aqui Recorrente, no domínio disciplinar, não poderia deixar de tomar em consideração a falta comprovada, no respectivo cofre, de cerca de 500g da referida substância;
- na verdade, se os registos das saídas do cofre efectuados pelos Serviços dos HUC, são fidedignos - e nada nos autos nos permite concluir que não o sejam - foi efectivamente esta a quantidade subtraída pela Recorrida, ao longo do tempo, facto que só não foi possível comprovar in loco, por a sua actuação (criminosa) ter sido detectada muito tempo depois e, de resto, ter beneficiado de uma avaria nas câmaras de captação de imagens ….
- tanto basta para se concluir que as presunções naturais e as deduções realizadas pela entidade administrativa se apresentam legítimas;
- quanto à suscitada questão da sanção disciplinar aplicada à aqui Recorrida, mormente a influência determinante da quantidade de cocaína subtraída no doseamento da pena, remete-se para o que acima se deixou dito, ou seja, mais importante do que a quantidade de produto subtraído foi o acto (de subtracção) em si que inviabilizou a manutenção da relação funcional;
- acresce que o princípio da proporcionalidade impõe que, tendo em consideração os fins a atingir, a sanção disciplinar aplicada ao arguido deva ser, simultaneamente, a menos gravosa e a mais adequada à gravidade dos factos;
- sucede que, in casu, não se descortina que o juízo de rompimento da relação laboral, que constitui o pressuposto das medidas expulsivas disciplinares, fosse alterado consoante a quantidade de cocaína subtraída;
- na verdade cura-se aqui da aplicação da pena disciplinar de demissão a uma farmacêutica que, no desempenho das funções de Assistente Principal da carreira técnica superior de farmácia nos HUC, se apropriou indevidamente, ao longo de um lapso temporal indeterminado, de uma quantidade de cocaína não concretamente apurada, a que apenas tinha acesso por força e no exercício das funções que exercia nos referidos HUC;
- tal sanção revela-se necessária e adequada, nomeadamente, face aos fins de prevenção geral próprios do poder disciplinar, como também para a salvaguarda e restauração da imagem do serviço público em apreço;
- o acto punitivo está fundamentado desde que faz suas as razões do relatório final do instrutor, as quais se mostram aptas a revelar a um destinatário normal a motivação do decidido …
- nesta conformidade o acto impugnado não nos suscita quaisquer reparos quanto à sua legalidade, razão porque se atendem as conclusões da alegação.
Tal conduz à revogação do acórdão sob escrutínio.”

3. Como se vê do antecedente relato, está em causa, a decisão do TCAN que julgou improcedente a acção que visava não só a anulação do acto que demitiu a Autora como a condenação do Réu não só a reconstituir-lhe a carreira mas a indemnizá-la dos danos que tal sanção lhe causou.
Esta Formação tem entendido que, em regra, a aplicação de uma pena expulsiva justifica a admissão da revista por à mesma estar associado um particular impacto social porque, por um lado, determina a imediata extinção do vínculo laboral e a consequente colocação do arguido na situação de desemprego e, por outro, por se estar perante uma situação cuja relevância extravasa os limites do litígio, uma vez que se repercute em todo o conjunto de pessoas que se relacionam com o sancionado, maxime com os seus familiares mais directos. (vd. os Acórdãos de 24.02.2011, Proc. 0103/11 e de 10.07.2013, Proc. 01097/13).
Acresce que, no caso, se suscitam duas questões de significativa relevância jurídica; por um lado, a de saber se os factos obtidos no processo penal podem servir de fundamento à decisão proferida no processo disciplinar e, por outro, havendo desajustamento entre as factualidades obtidas naqueles processos, maxime no tocante à quantidade de cocaína subtraída pela Autora, a de saber qual delas prevalecerá.
Havendo, ainda, que ponderar se a decisão punitiva deve, ou não, ser influenciada pela quantidade do produto furtado.

DECISÃO.

Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.
Lisboa, 15 de Março de 2018. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.