Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0176/17
Data do Acordão:05/23/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:IVA
MÉTODO DA AFECTAÇÃO REAL
Sumário:I - Nos termos do n.º 2 do artigo 23.º do CIVA, na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.º 323/98 de 30 de Outubro, a dedução do IVA segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados podia ser efectuada pelo sujeito passivo desde que previamente comunicasse o facto à Direcção Geral das Contribuições e Impostos.
II - A falta de comunicação prévia à Autoridade Tributária da utilização do método da afectação real não faz precludir o direito substantivo à dedução do IVA suportado pela Recorrente, atento o aspecto meramente formal da falta de cumprimento daquela obrigação acessória (que não impede a AT de, detectada a utilização do método de afectação real, vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificarem distorções significativas na tributação) e considerando que o método de afectação real é o método mais rigoroso na determinação do montante real que o sujeito passivo tem direito a deduzir, de acordo com os princípios do IVA.
Nº Convencional:JSTA000P23312
Nº do Documento:SA2201805230176
Data de Entrada:02/17/2017
Recorrente:A............, SA
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

- Relatório-

1 – A………… – Sociedade de Promoção e Desenvolvimento do Parque de Ciência e Tecnologia da Área de Lisboa, S.A., com os sinais dos autos, interpôs recurso de revista excepcional, ao abrigo do disposto no artigo 150º do CPTA, do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido a 15 de Dezembro de 2016 no âmbito do processo n.º 08415/15 que, concedendo provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública, revogou a sentença do TAF de Sintra e julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra actos de liquidação de IVA respeitantes aos anos de 1996 e 1997, no valor total de € 302.237,29, apresentando para tal as seguintes conclusões:


1. O presente Recurso de Revista vem interposto do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul que, revogando a Sentença de primeira instância, julgou improcedente a Impugnação Judicial deduzida pela Recorrente contra as liquidações de IVA de 1996 e 1997.

2. Considerou o Acórdão existir “um erro originário da sociedade recorrida no preenchimento da declaração de início de actividade para efeitos de I.V.A., ao ter-se inscrito no regime normal, mensal e não se lhe aplicando o regime de isenção do imposto, com estes pressupostos tendo preenchido as declarações de I.V.A., dos anos de 1996 e 1997, apesar de ser um sujeito passivo misto (efectuando operações que conferem direito a dedução do imposto suportado a montante, e transmissões isentas, que não contemplam esse direito), nos termos do regime do art. 23º do C.I.V.A.” (cf. 1º parágrafo da página 13).

3. Mercê desse erro, confirmou o Acórdão a correcção do cálculo da percentagem prorata para efeitos de dedução do IVA suportado, nos termos do artigo 23º, nº 4 do Código do IVA, considerando “cessada a presunção de veracidade das declarações da sociedade recorrida, visto que tais declarações padecem do erro originário mencionado supra (preenchimento da declaração de início de actividade para efeitos de I.V.A., ao ter-se inscrito no regime normal, mensal e não se lhe aplicando o regime de isenção de imposto, com estes pressupostos tendo preenchido os declarações de I.V.A., dos anos de 1996 e 1997, apesar de ser um sujeito passivo misto), tudo ao abrigo do art. 75º, nº 2, al. a), da L.G.T. (declarações de I.V.A. da sociedade recorrida revelam inexactidões que impedem o conhecimento do real montante de I.V.A. dedutível nos anos de 1996 e 1997).” (cf. último parágrafo da página 13).

4. Neste contexto, considera a Recorrente resultar a necessidade de admissão desta Revista como verdadeira “válvula de escape do sistema”, atenta a subversão cometida pelo Acórdão recorrido ao sustentar que o mero incumprimento de obrigações acessórias, i.e., a inscrição no regime normal mensal, apesar de a Recorrente ser um sujeito passivo misto e a falta de comunicação prévia à Autoridade Tributária da dedução segundo o método da afectação real, faz precludir o direito substantivo à dedução do IVA, abalando a presunção de veracidade de que goza a contabilidade da Recorrente (artigo 75º, nº 1 da LGT).

5. A Recorrente discorda, portanto, do sufragado no Acórdão, e entende que o presente Recurso de Revista é absolutamente necessário por estar em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental e, bem assim, porque a admissão do Recurso é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

6. É o preenchimento de um destes dois requisitos que se exige para a admissão do Recurso de Revista, nos termos do artigo 150º, nº 1 do CPTA, os quais são aliás conceitos indeterminados e qualitativos, que têm sido jurisprudencialmente delimitados pelo Supremo Tribunal Administrativo (a título exemplificativo, vide o Acórdão deste Tribunal de 25.11.2015, proferido no processo nº 01116/15).

7. Assim, é evidente que a questão de saber se o incumprimento de uma obrigação declarativa (requisito formal) pode determinar a perda do direito à dedução do IVA (direito substantivo consagrado na Sexta Directiva e no Código do IVA) é uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental.

8. Desde logo quanto à relevância jurídica fundamental a questão decidenda é de elevada complexidade jurídica, atenta a necessidade de compatibilizar o quadro jurídico-tributário português com o da União Europeia, para mais sendo este último que estabelece as directrizes para a regulamentação do primeiro.

9. Acresce ainda que a solução dada à questão pelo Acórdão recorrido suscitará problemas de harmonização da própria Jurisprudência, pois vingando o entendimento daquele aresto, contrariar-se-á Jurisprudência já proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo e pelo Tribunal de Justiça, que sufragam precisamente a prevalência da substância sobre a forma.

10. Também é evidente a relevância social fundamental da questão, pois a posição sustentada no Acórdão a quo poderá ser catapultada para outros casos semelhantes, rectius, os sujeitos passivos que, desrespeitando obrigações meramente formais verão negado o direito à dedução do IVA por si suportado, não obstante a sua contabilidade estar organizada em função da utilização do método da afectação real.

11. Em concreto, a eventual consolidação do entendimento emanado do Acórdão sindicado permitiria a fundamentação de múltiplas liquidações adicionais de IVA sustentadas em violação de meras regras formais, assentes precisamente nas correcções que a Autoridade Tributária poderia fazer em decorrência da utilização do método da dedução prorata, ao invés do método da afectação real, permitindo ainda que essa omissão formal, mesmo não sendo causadora de prejuízo à Autoridade Tributária, determine não uma contra-ordenação, mas outrossim a castração do direito à dedução do IVA (violador dos princípios da segurança e certeza jurídicas e da proporcionalidade - cf. artigo 18º da CRP).

12. Tal decisão abriria ainda inúmeras discussões fundadas por Jurisprudência de um Tribunal Superior, pese embora totalmente contrária ao regime legal nacional e europeu.

13. Quanto ao segundo requisito alternativo – clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito – o Acórdão recorrido consolidaria na Ordem Jurídica Portuguesa o argumento obtuso de que qualquer incumprimento formal teria como sanção irrenunciável a eliminação do direito à dedução do IVA, podendo sempre a Autoridade Tributária invocar tal Acórdão como argumento para proceder a cobranças fiscais.

14. Assim, podendo a solução adoptada pelo Acórdão a quo ter repercussão em todo o universo dos contribuintes que incumpram uma obrigação acessória, está verificada a “possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros”, conforme exige o citado Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25.11.2015, processo nº 01116/15.

15. E como se viu, assumindo o Acórdão em crise verdadeira contrariedade com a forma como as instâncias (nacionais e europeias) vêm tratando a questão concreta do incumprimento de meras obrigações declarativas, a manutenção deste Acórdão conduzirá à consagração de uma Jurisprudência em que a Autoridade Tributária poderá coarctar o direito à dedução do IVA suportado por um contribuinte que tenha incorrido num mero incumprimento de obrigação acessória, independentemente da correcção da sua contabilidade.

16. Deste modo, a intervenção deste Tribunal será também necessário para “garantir a uniformização do direito em matérias importantes”, pois estas seriam “tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória” (cf. novamente o citado Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25.11.2015, processo nº 01116/15).

17. Destarte, tendo-se gerado incertezas quanto à resolução desta questão, a intervenção deste Tribunal Superior é imprescindível para dissipar dúvidas, designadamente para esclarecer o método a aplicar em caso de mero incumprimento de formalismo legal pelo sujeito passivo, quando a Autoridade Tributária não demonstre qualquer incorrecção na sua contabilidade.

18. Acresce que a questão foi tratada pelo Acórdão a quo “de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável” (cf. o referido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25.11.2015, ob. cit.), sendo por isso útil a intervenção deste Venerando Tribunal.

19. De facto, o Acórdão recorrido revela-se manifestamente desconforme com o ordenamento jurídico nacional (cf. artigos 19º e 23º, nº 2 do Código do IVA e artigos 8º e 18º da CRP) e da União Europeia (cf. artigo 17º, nº 2, alínea a), nº 3 e nº 5, alínea c) da Sexta Directiva), com a doutrina da Autoridade Tributária (cf. Ofício-Circulado nº 119951/1998 da Direcção de Serviços do IVA) e com a Jurisprudência (cf. a título de exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2009, processo nº 0795/09, e os acórdãos do Tribunal de Justiça (Terceira Secção), de 21.10.2010, no processo nº C-385/09, e de 22.12.2010, no processo nº C-438/09), sendo assim desacertado e insustentável.

20. Com efeito, é ponto assente que a Recorrente é uma sociedade anónima cujo objecto social consiste na instalação, desenvolvimento, promoção e gestão do A……….. – Parque de Ciência e Tecnologia, bem como na prestação de serviços de apoio necessários à actividade dos respectivos utentes, estando enquadrada para efeitos de IVA no regime normal mensal.

21. A Recorrente não controverte também que não comunicou previamente à Autoridade Tributária a utilização do método da afectação real, como imposto no artigo 23º, nºs 1 e 2 do Código do IVA então em vigor.

22. Mas contrariamente ao sufragado pelo Acórdão recorrido, o não cumprimento desta obrigação declarativa não extingue o direito à dedução do IVA suportado pela Recorrente.

23. Na verdade, não se questiona que o nº 2 do artigo 23º do Código do IVA na redacção em vigor à data dos factos impunha uma comunicação prévia à Autoridade Tributária quando o sujeito passivo utilizasse o método da afectação real e que a Recorrente não procedeu a tal comunicação.

24. Contudo, essa omissão formal não poderá determinar, por si só, a perda do direito à dedução, como foi reconhecido pelo próprio legislador, mormente no preâmbulo do Decreto-Lei nº 323/98, de 30/10, o qual, “Considerando que o método da afectação real é aquele que efectivamente corresponde ao montante real que, de acordo com os princípios do IVA, o sujeito passivo tem direito a deduzir”, procedeu à alteração do nº 2 do artigo 23º do Código do IVA “de modo a permitir a respectiva utilização nos casos em que não tenha ocorrido a necessária comunicação prévia.”.

25. Este é também o entendimento da própria Autoridade Tributária que, através do Ofício-Circulado nº 119951 de 10.11.1998 da Direcção de Serviços do IVA, veio reconhecer a possibilidade de utilização do método de afectação real não condicionada a comunicação prévia à Autoridade Tributária: ainda que não tenha sido cumprido o formalismo da comunicação da utilização do método de afectação real, passa a ser possível aceitar-se a posteriori essa utilização, caso o sujeito passivo concretize, de facto, tal afectação real, ou seja, o aspecto meramente formal da falta de comunicação pode ceder face à real utilização do método.

26. Neste conspecto, atenta a regulação do direito à dedução do imposto constante na Sexta Directiva do IVA, as progressivas alterações legislativas introduzidas no Código do IVA no sentido da eliminação da necessidade de comunicação prévia da utilização do método da afectação real, mormente pelo Decreto-Lei nº 323/98, de 30/10 já referido, têm de ser havidas como tendo carácter meramente interpretativo, i.e., a redacção alterada do artigo 23º, nº 2 do Código do IVA corresponde ao entendimento que deveria ter sido sustentado pela Autoridade Tributária desde a entrada em vigor do Código do IVA, para assegurar a sua conformidade com a Sexta Directiva.

27. Ademais, como bem assinalado pela Sentença de primeira instância, “a comunicação prévia pelo sujeito passivo à DGCI da dedução do IVA segundo este método não é pressuposto da sua aplicação, antes se traduzindo no cumprimento de uma obrigação acessória prevista na lei, com vista a permitir àquela a fiscalização da aplicação do método no sentido de evitar distorções significativas na tributação, pelo que a sua falta não tem como “sanção” a retirada ou limitação do direito de dedução com a consequente liquidação adicional de imposto.” (cf. último parágrafo da página 6 da Sentença).

28. Essa é também a orientação da nossa Jurisprudência mais elevada, de que é exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2009, processo nº 0795/09, que foi chamado a decidir o recurso interposto pela Fazenda Pública da Decisão que julgou procedente a Impugnação Judicial deduzida por um sujeito passivo contra a liquidação adicional de IVA resultante das correcções operadas pela Autoridade Tributária, por esta entender que deveria ter sido usado o método prorata e não o método de afectação real, face à falta de comunicação prévia prevista no então nº 2 do artigo 23º do Código do IVA.

29. Assim, considerou o citado Acórdão, tal como a Sentença de primeiro instância, que “a comunicação prévia pelo sujeito passivo à DGCI da dedução do IVA segundo este método não é pressuposto da sua aplicação, antes se traduzindo no cumprimento de uma obrigação acessória previsto na lei, com vista a permitir àquela a fiscalização da aplicação do método no sentido de evitar distorções significativas na tributação, pelo que a sua falta não tem como ‘sanção a retirada ou limitação do direito de dedução com a consequente liquidação adicional de imposto. […] E tanto assim é que, como se acentua na decisão recorrida, o legislador veio a suprimir esse procedimento através do DL 323/98, de 30/10 […] E a própria AT veio a alterar também a sua posição relativamente a esta matéria, como se vê do conteúdo do ofício circulado nº 119951, de 10/11/1998 da Direcção de Serviços do IVA […]. Assim, atento o aspecto meramente formal da falta de tal comunicação, […] e sendo o método de afectação real o mais rigoroso na determinação do montante real que o sujeito passivo tem direito a deduzir, de acordo com os princípios do IVA, não se justificava, de facto, a liquidação adicional efectuada pela AT, ainda que referente a operações tributáveis efectuadas antes da alteração introduzida pelo DL 323/98 […]”.

30. Nesta conformidade, tendo a obrigação de comunicação prévia em caso de utilização do método da afectação real sido expressamente abandonada pelo legislador e até pela própria Autoridade Tributária, por um lado, e não tendo resultado in casu qualquer prejuízo da utilização do referido método por parte da Recorrente, por outro, impunha-se, como bem determinou a Sentença de primeira instância, a anulação das liquidações adicionais de imposto e de juros compensatórios impugnadas.

31. Não tendo assim decidido o Acórdão recorrido, incorreu o mesmo num erro grosseiro, violando princípios basilares do ordenamento jurídico nacional (artigos 19º e 23º do Código do IVA) e comunitário (artigo 17º, nº 2, alínea a), nº 3 e nº 5, alínea c) da Sexta Directiva), para cuja correcção, imperiosamente necessária, se invoca a intervenção deste douto Supremo Tribunal Administrativo.

32. Adicionalmente, e sem prejuízo do exposto, a Recorrente concordou, como alegado pelo Tribunal a quo, com a percentagem de dedução prorata de 19% apurada pela Autoridade Tributária para os anos de 1996 e 1997, mas apenas e só quando aplicável: ou seja, não aceita a sua aplicação exclusiva como forma de legitimação da recuperação do IVA por si suportado, como pretendido pela Autoridade Tributária, agora com respaldo do Tribunal recorrido, o qual permitiu assim a manutenção de liquidações adicionais de IVA e juros compensatórias decorrentes da aplicação indiscriminada, pela Autoridade Tributária, do prorata de dedução ao IVA por si incorrido na aquisição dos bens e serviços necessários à prossecução da sua actividade (independentemente de os mesmos terem ou não sido afectos à realização de operações tributadas ou à realização de operações isentas sem direito à dedução).

33. Nunca se conformou pois a Recorrente com a qualificação da generalidade dos recursos por si adquiridos como sendo de utilização comum, ergo, como não sendo susceptíveis de alocação aos sectores de actividade tributado e isento, espoletando assim a aplicação de uma percentagem de dedução prorata como único método possível para efeitos de apuramento do montante de imposto susceptível de recuperação.

34. Esta concordância da Recorrente foi aliás bem compreendida pela Sentença que o Tribunal a quo pretende revogar: “A Impugnante concorda com a percentagem de dedução (prorata) de 19%, não aceitando a sua utilização exclusiva e indiscriminada) independentemente de terem sido afectos à realização de operações tributadas ou à realização de operações isentas) como efectuou a ATA. Considerando que a aplicação exclusiva do método do prorata, como entendeu e considerou a ATA, é uma inadmissível obliteração do direito à dedução do sujeito passivo.” - cf. 5° parágrafo da página 7 da Sentença.

35. Reitera-se portanto que não se refuta o cálculo de 19% de percentagem de dedução apurado pela Autoridade Tributária sempre que haja lugar ao método prorata, tendo porém obviamente tal percentagem de aplicar-se apenas quando justificável, não podendo transversalmente impor-se de forma única e exclusiva para efeitos de recuperação do IVA suportado pela Recorrente (outrossim, deverá prevalecer em todas os procedimentos a aplicação da método da afectação real sobre o método do prorata).

36. Acresce que, como alegado pela Recorrente ab initio, todas as operações por si desenvolvidas, i.e., as que conferem direito à dedução e as que não conferem esse direito, são distintas e os recursos adquiridos são facilmente imputáveis a essas actividades isentas / não isentas.

37. Aliás, precisamente face à natureza distinta das operações desenvolvidas – tributadas e isentas que não conferem o direito à dedução do IVA – a Recorrente descreveu pormenorizadamente os procedimentos por si adoptados (cf. artigos 71º a 102º da Impugnação Judicial, que se dão por integralmente reproduzidos).

38. Daqui resulta que, sendo exequível a individualização das actividades desenvolvidas pela Recorrente e dos recursos por si adquiridos e correspondente imposto incorrido, possibilitando assim em múltiplos casos a utilização do método da afectação real em detrimento do prorata de dedução, o recurso à afectação real deve ser o método de eleição como forma de recuperação do imposto incorrido na aquisição dos seus inputs.

39. E certo é que foi amplamente demonstrado pela Recorrente os procedimentos adoptados para efeitos de dedução do IVA, identificando, com exactidão e rigor, onde foram utilizados, em concreto, os métodos do prorata e da afectação real.

40. Efectivamente, a Recorrente procedeu a uma análise exaustiva e crítica dos recursos adquiridos cujo IVA incorrido foi objecto de correcção por parte da Autoridade Tributária, tendo procedido igualmente à sua alocação operação a operação - vide neste sentido o Documento nº 6 junto à Impugnação Judicial.

41. Tal análise aos recursos adquiridos, imprescindível à legitimação da utilização da afectação real como método de recuperação do imposto que os onerou, não terá sido contudo efectuada pela Administração Tributária aquando da acção inspectiva levada a cabo à contabilidade da Recorrente, tendo optado antes (não obstante a possibilidade prática da afectação real) por aplicar o método do prorata à totalidade do IVA suportado, tendo esta actuação encontrado guarida no Acórdão recorrido.

42. Isto, sem prejuízo de caber à Autoridade Tributária demonstrar que os bens e serviços que elenca no Relatório de Inspecção Tributária são de facto “comuns” à actividade tributária e isenta da Recorrente, ilidindo destarte a presunção de veracidade de que gozam os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita (artigo 75º, nº 1 da LGT).

43. Ora, foi como decidido em primeira instância, “não tendo o ATA demonstrado como lhe competia que os bens e serviços das listagens juntas como Anexos II a VI do RIT são efectivamente «comuns» à actividade tributada e isenta da Impugnante não se apresenta habilitada a fazer as liquidações adicionais”. – cf. 4º parágrafo do página 8 do Sentença.

44. Logo, “Não tendo o ATA feito tal prova, não ilidindo, assim, a presunção da veracidade de que goza a contabilidade da Impugnante (cfr. nº 1 do artigo 75º do LGT) desnecessário se torna analisar se a Impugnante logrou ou não provar, em tribunal, a existência dos factos tributários que estão subjacentes às deduções de imposto efectuadas.” – cf. 5º parágrafo da página 8 da Sentença.

45. Sucede que o aresto sindicado, fundando-se no incumprimento de obrigações formais por parte da Recorrente, entendeu confirmar a perda do direito à dedução integral do IVA, impondo a utilização do método prorata.

46. Roga-se portanto a este Venerando Tribunal que ponha cobro a tal entendimento através deste Recurso, porquanto os incumprimentos de obrigações meramente formais nunca poderiam constituir fundamento, por si só, para a perda do direito à dedução do IVA através do método da afectação real (sobretudo não demonstrando a Autoridade Tributária, como era seu ónus, que a contabilidade da Recorrente padecia de erros e incongruências que impossibilitariam o uso deste método).

47. In limine, o incumprimento de uma obrigação acessória implicaria a prática de uma infracção tributária, originando nos termos legais responsabilidade contra-ordenacional mas nunca, reforça-se, a eliminação do direito à dedução do imposto suportado.

48. Interpretação diversa, no sentido de permitir que um formalismo se sobreponha a um direito substantivo, acarretando o seu incumprimento a perda do direito à dedução seria inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade (cf. artigo 18º da CRP) e, havendo violação grosseira das regras do direito à dedução do IVA ínsitas na Sexta Directiva [artigo 17º, nº 2, alínea a), nº 3 e nº 5, alínea c)], essa interpretação que faça prevalecer a forma sobre a substância será também inconstitucional, por desrespeito do artigo 8º da CRP.

49. Adicionalmente, tal interpretação é também contrária à corrente jurisprudencial que tem sido adoptada pelo Tribunal de Justiça, para quem o direito à dedução é um elemento fundamental do funcionamento do próprio IVA.

50. Com efeito, o Tribunal de Justiça tem entendido que a Sexta Directiva deve ser interpretada no sentido de impedir que um sujeito passivo de IVA que preenche os requisitos para poder deduzir este imposto possa ser privado de o deduzir por causa de uma legislação nacional que proíbe a dedução do IVA pago aquando da aquisição de bens, fundando-se tal proibição no facto de tal sujeito passivo não estar devidamente registado como tal antes de utilizar aqueles bens ou serviços para efeitos da sua actividade tributada.

51. Neste conspecto, vide o doutíssimo Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção), de 21.10.2010, no processo nº C-385/09, segundo o qual o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução do IVA pago a montante seja concedida se os requisitos substanciais tiverem sido cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais, não podendo impor-se, no que diz respeito ao direito à dedução, condições adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito.

52. No mesmo sentido, vide ainda o Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção), de 22.12.2010, no processo nº C-438/09, nos termos do qual o direito à dedução previsto na Sexta Directiva faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado, exercendo-se esse direito imediatamente em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efectuadas a montante, sendo certo que um incumprimento formal não pode colocar em causa o direito à dedução do imposto suportado por um sujeito passivo.

53. Determinou assim este Acórdão que, desde que a Administração Fiscal competente disponha dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo é, enquanto destinatário das operações em causa, devedor de IVA, não poderá impor, no que diz respeito ao direito deste de deduzir o imposto pago a montante, condições suplementares que possam ter por efeito tornar completamente inútil o exercício desse direito.

54. Está bom de ver portanto que esta questão já se encontra resolvida quer a nível nacional, como demonstrado pelo Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2009, processo nº 0795/09, quer a nível europeu, como resulta dos dois arestos citados.

55. Assim, não obstante ser clara a desconformidade deste Acórdão recorrido com o Direito Europeu (artigo 8º da CRP), para o caso de soçobrarem dúvidas quanto à existência de “acto claro”, a Recorrente requer o seu reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234º do TCE.

56. Ante todo o alegado supra, mormente a coberto da Lei Fundamental (artigos 8º e 18º da CRP) e da legislação comunitária (artigo 17º, nº 2, alínea a), nº 3 e nº 5, alínea c) da Sexta Directiva), da doutrina da própria Autoridade Tributária (Ofício-Circulado nº 119951/1998 da Direcção de Serviços do IVA) e, bem assim, da jurisprudência nacional e comunitária sobejamente citada acima, rejeita a Recorrente as consequências que o Acórdão recorrido pretende extrair do incumprimento de obrigações formais (não inscrição como sujeito passivo misto na declaração de início da actividade e falta de comunicação prévia à Autoridade Tributária da utilização do método da afectação real), para mais, num quadro em que a sua contabilidade segregava efectivamente as operações tributadas das isentas, mas a Autoridade Tributária fez disso tábua rasa.

57. Impõe-se pois a manutenção do direito à dedução do IVA, com a consequente anulação das liquidações de IVA e respectivos juros compensatórios.

58. Entendimento diverso, fazendo prevalecer uma obrigação declarativa acessória sobre o direito substantivo de dedução do IVA suportado pelo sujeito passivo, cujo cômputo é facilmente perceptível pela análise da sua contabilidade, será assim inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso previsto no artigo 18º da CRP, bem como do princípio do primado do Direito Europeu sobre o Direito Interno estabelecido no artigo 8º da CRP.

59. Destarte, requer-se a V. Exas. a admissão desta Revista, bem como a revogação do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul e a sua substituição por outro, que decida a questão controvertida conforme peticionado no presente Recurso e, como tal, mantenha a douta Decisão de primeira instância, com a consequente procedência da Impugnação Judicial deduzida contra as liquidações adicionais de IVA e correspectivos juros compensatórios.

Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente Recurso de Revista ser julgado procedente e, consequentemente, o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que mantenha a douto Decisão de primeira instância, com a consequente anulação das liquidações adicionais de IVA e correspectivos juros compensatórios, com o que se fará a devida e costumeira JUSTIÇA!

2 – A Recorrida não apresentou contra-alegações.

3 – Por acórdão desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (de fls. 507 a 518), proferido pela formação a que alude o n.º 5 do art. 150.º do CPTA, foi admitida a revista.

4 – O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste STA emitiu o parecer de fls. 525 a 527 dos autos, pronunciando-se pelo provimento do recurso e propondo, consequentemente, a revogação do acórdão recorrido e a manutenção na ordem jurídica a decisão de 1.ª instância, que anulou as liquidações sindicadas.

5 – Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


- Fundamentação -

6 – Questão a decidir


O presente recurso de revista foi admitido por Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo, datado de 3 de Maio de 2017, onde se identificaram as questões a resolver do seguinte modo: “No caso vertente, a questão que se coloca consiste, essencialmente, em saber se o incumprimento, ou incorrecto cumprimento, de uma obrigação declarativa e obrigações acessórias (requisito formal) pode determinar a perda do direito (substantivo) de dedução do IVA, tendo em conta o direito consagrado na legislação comunitária [art.º 17º, nº 2, al. a), nº 3 e nº 5, al. c) da Sexta Directiva], na legislação nacional (Código do IVA) e, bem assim, a jurisprudência nacional e comunitária sobre a matéria.//Ou, por outras palavras, se a inscrição da recorrente no regime normal mensal, apesar de se tratar de um sujeito passivo misto, bem como a falta de comunicação prévia à Autoridade Tributária da utilização do método da afectação real, faz precludir o direito substantivo à dedução do IVA suportado pela recorrente”.

7 – Matéria de facto

No Acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos:


A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr. fls. 332 a 335 dos autos - numeração nossa):

1. A impugnante, "A………… – Sociedade de Promoção e Desenvolvimento do Parque de Ciência e Tecnologia da Área de Lisboa, S.A.”, com o n.i.p.c. …………, é uma sociedade anónima cujo objecto social consiste na instalação, desenvolvimento, promoção e gestão do A………… – Parque de Ciência e Tecnologia bem como na prestação de serviços de apoio necessários à actividade dos respectivos utentes, CAE 74872 (cfr. documento junto a fls. 113 do processo de recurso hierárquico apenso; informação constante de fls. 103 a 112 do processo de recurso hierárquico apenso);

2. Em 1996 e 1997 a sociedade impugnante estava enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal, mensal e não sujeito ao regime de isenção de imposto, tudo conforme declaração de início de actividade que apresentou em 1/1/1996 (cfr. documento junto a fls. 245 do processo administrativo apenso; informação constante de fls. 103 a 112 do processo de recurso hierárquico apenso);

3. A impugnante foi objecto de acção de inspecção externa reportada aos exercícios de 1996 e 1997, no âmbito da qual foi elaborado o Relatório de Inspecção Tributária (RTI), do qual se destaca:

"(...)
C - OUTRAS SITUAÇÕES

O objecto social do sujeito passivo atrás identificado, abrange dois sectores perfeitamente definidos:

1 - Aquisição de terrenos urbanização, construção de edifícios e locação, (arrendamento, no caso de se tratar de bens Imóveis).

A "A…………", constituiu a sociedade "B…………", pessoa colectiva ………, (código CAE 70200 - arrendamento de bens Imobiliários), por ela detida na totalidade, a quem factura as rendas dos seguintes edifícios:

Núcleo Central (Centro de Inovação), Incubadora (Tecnologia e Inovação), PME's 2ª fase (Tecnologia e Inovação), PME's 3ª fase (Tecnologia e Inovação) e Coberturas.

Esta última firma, presta o serviço de locação de bens imóveis, facturando às entidades entretanto instaladas e que concretizaram os necessários contratos de arrendamento.

Neste caso, as sociedades mencionadas nesta alínea não liquidam IVA, nos termos do artigo 9°, nº 30 do código respectivo nem deduzem esse imposto que suportam a montante.


2 - Promoção e gestão do Parque de Ciência e Tecnologia, bem como a prestação de serviços de apoio necessários à sua actividade, nomeadamente os constantes dos mapas em anexo III e V, coluna - "outros bens e serviços".

Neste caso, a sociedade liquida o IVA às taxas em vigor, e deduz o suportado a montante.

Verifica-se que o enquadramento da sociedade não foi feito correctamente, pois declarou que apenas efectuava transmissões de bens e prestações que conferem direito a dedução, quando efectivamente também efectua operações isentas que não concedem esse direito. Trata-se assim de um sujeito passivo misto, nos termos do disposto no artigo 23° do CIVA.

III - DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORRECÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS

Nos dois exercícios objecto de análise, foram detectadas várias situações de irregularidade a seguir expostas, as quais terão implicação tanto em Imposto sobre o Valor Acrescentado como em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas.

A - IMPOSTO SOBRE O VALOR ACRESCENTADO

Como foi referido no parágrafo anterior, o objecto social da "A…………" abrange dois sectores bens definidos, cuja actividade tem repercussão em termos de IVA, dado que, efectuando operações que conferem direito a dedução do imposto suportado a montante, e transmissões isentas, que não contemplam esse direito, apenas poderia ter procedido a essa dedução, na percentagem correspondente ao montante anual das operações que a ela dêem lugar. Assim, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 23º do CIVA, ter-se-á de calcular a percentagem estimada, (pro-rata), utilizada para efectuar a dedução do imposto suportado.

Através dos cálculos ilustrados no anexo I, determinaram-se os pro-rata relevantes para os períodos em análise: 5 %, provisório para as deduções de 1996, 19 %, definitivo para o ano atrás indicado e provisório para 1997, o qual toma o mesmo valor, em termos definitivos.

De acordo com a metodologia exposta nos anexos II, III, IV, V e VI apurou-se o montante de IMPOSTO em falta, o qual situou-se em 21.513.156$00 (vinte e um milhões. quinhentos e treze mil, cento e cinquenta e seis escudos), em 1996, e 19.891.349$00 (dezanove milhões, oitocentos e noventa e um mil, trezentos e quarenta e nove escudos), em 1997, (apenas no espaço de 01-01 a 31-08, dado que, a parte restante, já havia sido objecto de correcção em anterior Acção Inspectiva), distribuído pelos diversos períodos de acordo com o descrito no mapa VII.

(...)

(cfr. cópia de relatório de inspecção e respectivos anexos junta a fls.190 a 221 do processo administrativo apenso);

4. Em 30/11/2000, a impugnante foi notificada das liquidações adicionais de IVA n.º 318109 (exercício de 1996) no montante de Esc.21.513.156$00 e n.º 318147 (exercício de 1997) no montante de Esc.19.891.350$00, tudo no valor global de € 206.524,81/Esc. 41.404.506$00 (cfr. documentos juntos a fls. 87 e 88 dos presentes autos);

5. Em 30/11/2000, a impugnante foi notificada das liquidações de juros compensatórios, que infra se identificam:

Liquidação n.º
Período
Montante Esc.
318097
01/96
872.086
318098
02/96
2.064.966
318099
03/96
885.678
318100
04/96
869.593
318101
05/96
738.052
318102
06/96
2.106.048
318103
07/06
590.119
318104
08/06
557.162
318105
09/06
368.141
318106
10/06
1.053.355
318107
11/06
1.065.882
318108
12/06
520.641
318139
01/07
781.264
318140
02/07
1.414.176
318141
03/07
720.769
318142
04/07
872.760
318143
05/07
540.274
318144
06/07
1.738.857
318145
07/07
671.557
318146
08/07
757.250

(cfr. documentos juntos a fls. 90 a 109 dos presentes autos);

6. A impugnante viu deferido, ao abrigo do DL n.º124/96, de 10 de Agosto, o pedido de dispensa de pagamento de 80% dos juros compensatórios dos períodos de Janeiro a Maio de 1996, no montante de € 19.144,76/Esc.3.838.180$00 (cfr. documento junto a fls. 122 a 125 do processo de reclamação graciosa apenso; informação exarada a fls.165 e 166 do processo de reclamação graciosa apenso);

7. Em 31/01/2001, a impugnante pagou o valor de € 227.586,69/Esc.45.627.035$00, correspondente a € 159.620,45/Esc.32.001.028$00 do IVA liquidado adicionalmente e a € 67.966,24/Esc.13.626.007$00 dos respectivos juros compensatórios, tudo por remissão para as liquidações identificadas nos nºs. 4 e 5 supra (cfr. documentos juntos a fls. 133 a 154 do processo de reclamação graciosa apenso);

8. Em 27/04/2001, a impugnante apresentou reclamação graciosa, requerendo a anulação parcial das liquidações adicionais de IVA, no valor de € 46.904.35, e juros compensatórios, no valor de € 1.724.443 (cfr. articulado inicial junto a fls. 2 a 39 do processo de reclamação graciosa apenso);

9. Em 17/08/2004, a impugnante foi notificada pelo ofício n.º 32192 do despacho de indeferimento da reclamação graciosa a que alude o nº. 8 do probatório (cfr. documentos juntos a fls. 188 e 189 do processo de reclamação graciosa apenso);

10. A impugnante interpôs recurso hierárquico do despacho de indeferimento a que alude o nº. 9 do probatório (cfr. articulado inicial junto a fls. 2 a 28 do processo de recurso hierárquico apenso).

(…)


X

Levando em consideração que a decisão da matéria de facto em 1ª. Instância se baseou, além do mais, em prova documental constante dos presentes autos e apenso, este Tribunal julga provada a seguinte factualidade que se reputa igualmente relevante para a decisão do recurso e aditando-se, por isso, ao probatório nos termos do artº. 662, nº. 1, do C.P.Civil (“ex vi” do artº. 281, do C.P.P.Tributário):

11. A sociedade impugnante/recorrida concordou com a percentagem estimada pela A. Fiscal de 19% (pro-rata), utilizada para efectuar a dedução do imposto suportado face aos anos de 1996 e 1997 e constante do relatório de inspecção identificado no nº. 3 supra do probatório (cfr. artº. 37 do articulado inicial do processo de reclamação graciosa apenso; artº. 15 do articulado inicial do procedimento de recurso hierárquico junto a fls. 2 a 28 do processo de recurso hierárquico apenso; artº. 28 da p.i. que originou o presente processo junta a fls.3 a 41 dos autos).

8 – Apreciando

8.1. Do alegado erro de julgamento do Acórdão recorrido

O Acórdão recorrido, a fls. 389 a 401 dos autos, concedeu provimento ao recurso da sentença do TAF de Sintra interposto pela Fazenda Pública, revogando a sentença recorrida e julgando improcedente a impugnação judicial deduzida pela Recorrente contra os actos de liquidação de IVA respeitantes aos anos de 1996 e 1997, no valor total de € 302.237,29.

Para assim decidir, o Acórdão considerou existir “um erro originário da sociedade recorrida no preenchimento da declaração de início de actividade para efeitos de I.V.A., ao ter-se inscrito no regime normal, mensal e não se lhe aplicando o regime de isenção do imposto, com estes pressupostos tendo preenchido as declarações de I.V.A., dos anos de 1996 e 1997, apesar de ser um sujeito passivo misto” cessando, em virtude desse erro, “a presunção de veracidade das declarações da sociedade recorrida (…) tudo ao abrigo do art. 75º, nº 2, al. a), da L.G.T. (declarações de I.V.A. da sociedade recorrida revelam inexactidões que impedem o conhecimento do real montante de I.V.A. dedutível nos anos de 1996 e 1997).” Apesar de considerar que “a destruição da força probatória das declarações do contribuinte por via do incumprimento de deveres de colaboração não é legalmente suportada, se e enquanto, esse incumprimento não obstar ao apuramento da matéria tributável, precisamente, com base nas declarações e contabilidade/documentação de suporte”, o TCA concluiu que, no caso sub judice, a “A. Fiscal produziu prova dos pressupostos de destruição da força probatória das declarações apresentadas pela sociedade recorrida, mais se revelando legais as correcções, em sede de I.V.A., por si efectuadas e que deram origem às liquidações adicionais de I.V.A. parcialmente impugnadas (cfr. artº. 74, nº. 1, da L.G.T.)”.

Discorda do decidido a Recorrente, alegando que o incumprimento de obrigações formais (in casu, a não inscrição como sujeito passivo misto na declaração de início da actividade e a falta de comunicação prévia à Autoridade Tributária da utilização do método da afectação real) não pode determinar a perda do direito à dedução do IVA, designadamente porque o cômputo dos valores de dedução era facilmente perceptível pela análise da contabilidade da Recorrente (que segregava efectivamente as operações tributadas das operações isentas) e porque não resultou para a AT qualquer prejuízo decorrente da utilização do método de afectação real. Não tendo assim decidido o Acórdão recorrido, incorreu o mesmo num erro grosseiro, sendo manifestamente desconforme com o ordenamento jurídico nacional e da União Europeia, com a doutrina da Autoridade Tributária e com a Jurisprudência nacional e comunitária.


Ademais, e ao abrigo do disposto no artigo 75.º n.º 1 da LGT, a AT não demonstrou, “como era seu ónus, que a contabilidade da Recorrente padecia de erros e incongruências que impossibilitariam o uso do método de afectação real” nem “que os bens e serviços que elenca no Relatório de Inspecção Tributária são de facto “comuns” à actividade tributária e isenta da Recorrente”, sendo que a Recorrente concordou com a aplicação da “percentagem de dedução prorata de 19% apurada pela Autoridade Tributária para os anos de 1996 e 1997” apenas e só quando aplicável, nunca se tendo conformado “com a qualificação da generalidade dos recursos por si adquiridos como sendo de utilização comum, ergo, como não sendo susceptíveis de alocação aos sectores de actividade tributado e isento”.

A Fazenda Pública não apresentou contra-alegações e o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste STA, no seu parecer junto aos autos, pronuncia-se pelo provimento do recurso.

Vejamos.

À data dos factos em causa no presente aresto, dispunha o n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA que “quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectue transmissões de bens e prestações de serviços, parte dos quais não confira direito à dedução, o imposto suportado nas aquisições é dedutível apenas na percentagem correspondente ao montante de operações que dêem lugar a dedução (…)”, acrescentando-se no n.º 2 do mesmo normativo que “Não obstante o disposto no número anterior, poderá o sujeito passivo efectuar a dedução, segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, desde que previamente comunique o facto à Direcção Geral das Contribuições e Impostos, sem prejuízo da possibilidade de esta lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificarem distorções significativas na tributação”.

Ora, como já se decidiu neste Supremo Tribunal - Acórdão de 14 de Outubro de 2009, rec. n.º 0795/09, a comunicação prévia da intenção de deduzir o IVA segundo o método de afectação real “não é pressuposto da sua aplicação, antes se traduzindo no cumprimento de uma obrigação acessória prevista na lei, com vista a permitir à [AT] a fiscalização da aplicação do método no sentido de evitar distorções significativas na tributação, pelo que a sua falta não tem como “sanção” a retirada ou limitação do direito de dedução com a consequente liquidação adicional de imposto. // E tanto assim é que (…) o legislador veio a suprimir esse procedimento através do DL 323/98, de 30/10, no preâmbulo do qual se escreve «Considerando que o método da afectação real é aquele que efectivamente corresponde ao montante real que, de acordo com os princípios do IVA, o sujeito passivo tem direito a deduzir, altera-se o disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA, de modo a permitir a respectiva utilização nos casos em que não tenha ocorrido a necessária comunicação prévia». // E a própria AT veio a alterar também a sua posição relativamente a esta matéria, como se vê do conteúdo do ofício circulado n.º 119951, de 10/11/1998, da Direcção de Serviços do IVA, onde se diz expressamente “Assim sendo, ainda que não tenha sido cumprido o formalismo da comunicação da utilização do método de afectação real, passa a ser possível aceitar-se a posteriori essa utilização, caso o sujeito passivo concretize, de facto, tal afectação real, ou seja, o aspecto meramente formal da falta de comunicação pode ceder face à real utilização do método””.

Segundo cremos, não existem motivos para alterar o entendimento sufragado neste aresto, por ser este o entendimento que se revela mais curial.

Com efeito, o incumprimento formal da obrigação de comunicação prévia do método de dedução do IVA não pode colocar em causa o exercício dessa mesma dedução pelos montantes efectivamente registados na contabilidade do sujeito passivo.

Compulsada a matéria de facto dada como assente no presente caso, verificamos que o afastamento da possibilidade de aplicação do método de afectação real não resultou das limitações substantivas impostas no corpo do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA, isto é, de uma eventual falta de clareza da contabilidade da Recorrente (impeditiva da distinção entre as operações tributadas das operações isentas) ou da existência de uma eventual distorção significativa na tributação originada pela aplicação daquele método, com prejuízo para a AT.

O afastamento do método de afectação real ficou a dever-se, tão-somente, à falta de opção pretérita por esse mesmo método, sem que essa omissão traduzisse ou implicasse a possibilidade de conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo.

Em rigor, e como bem se reconhece no aresto recorrido, a presunção da veracidade das declarações e dos registos contabilísticos dos contribuintes apenas pode ficar inquinada quando tais documentos apresentem inexactidões, erros ou omissões que “impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo” (alínea a), do n.º 2 do artigo 75.º da LGT). No entanto, e ao contrário do que se concluiu nesse mesmo aresto, a falta de opção prévia pelo método de afectação real não impede, por si só, o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo, uma vez que se trata de uma “declaração de intenção”, através da qual o sujeito passivo não calcula nem liquida o montante de imposto a pagar.

Nesta medida, mantendo-se a presunção de veracidade das declarações e da contabilidade do sujeito passivo, cabia à AT demonstrar que os registos contabilísticos do sujeito passivo não apresentavam a correcção e a clareza necessárias à aplicação do método de afectação real nos termos do artigo 74.º n.º 1 da LGT, provando, designadamente, que a contabilidade do sujeito passivo não distinguia claramente as aquisições de bens e as prestações de serviços sujeitas a IVA das aquisições de bens e prestações de serviços isentas de imposto.


Como explica Rui Duarte Morais no seu Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2016, pp. 259 e 260, “apesar da posição que no processo ocupa cada uma das partes, caberá à administração a prova do seu direito ao imposto (tal como afirmada na fundamentação do acto impugnado). (…) De outro modo, teríamos uma presunção quase absoluta de legalidade do acto administrativo, pois a administração ficaria dispensada de mostrar que atuou em conformidade com a lei e caberia ao impugnante a prova dos factos constitutivos da sua pretensão anulatória, a prova de que a administração não atuou em conformidade com a lei”.

Ora, compulsada a matéria de facto dada como provada no presente caso, a AT não logrou realizar esta prova.

Em particular, e como bem se compreendeu na sentença do TAF de Leiria, revogada pelo Acórdão recorrido, o facto de a Recorrente ter concordado com a percentagem de 19% estimada pela AT para efectuar a dedução pro-rata por referência aos anos de 1996 e 1997 (cfr. ponto 11 da matéria de facto provada) nada comprova a este respeito, pois que da concordância com a percentagem não resulta a respectiva aceitação exclusiva e indiscriminada, ao arrepio da utilização do método de afectação real sempre que o mesmo se revela possível (em consonância com o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 323/98, de 30 de Outubro, nos termos do qual “o método da afectação real é aquele que efectivamente corresponde ao montante real que, de acordo com os princípios do IVA, o sujeito passivo tem direito a deduzir”).

Não pode, pois, manter-se o acórdão do TCA recorrido, que assim não entendeu.

No provimento do recurso, impõe-se revogar o acórdão recorrido e, em substituição, confirmar a sentença do TAF de Sintra que bem julgou procedente a impugnação judicial deduzida, anulando os actos de liquidação sindicados.

- Decisão -


9 - Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar o Acórdão recorrido e, em substituição, julgar procedente a impugnação judicial deduzida, anulando os actos de liquidação sindicados.

Custas pela recorrida, nas instâncias e neste STA, aqui salvo quanto à taxa de justiça devida pelo presente recurso, pois não contra-alegou.

Lisboa, 23 de Maio de 2018. – Isabel Marques da Silva (relatora) - Dulce Neto - Pedro Delgado.