Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:058/08
Data do Acordão:03/06/2008
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:BRANDÃO DE PINHO
Descritores:RECLAMAÇÃO DE ACTO PRATICADO PELO ÓRGÃO DA EXECUÇÃO FISCAL
RECURSO JURISDICIONAL
GARANTIA
SUBIDA IMEDIATA
Sumário:I – Mau grado o carácter taxativo do disposto no artigo 278.º, n.º 3, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, deve ter subida imediata, sob pena de inconstitucionalidade material do preceito – princípio da tutela judicial efectiva (artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa) – a reclamação de qualquer acto do órgão da execução fiscal que cause prejuízo irreparável ao executado ou em que, com a subida diferida, a reclamação perca toda a utilidade.
II – Só é completamente inútil a reclamação com subida diferida quando o prejuízo eventualmente decorrente daquela decisão não possa ser reparado.
III – Preenche tal condicionalismo a reclamação do acto de indeferimento do pedido de dispensa/isenção de garantia.
Nº Convencional:JSTA00064884
Nº do Documento:SA220080306058
Data de Entrada:01/18/2008
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF BRAGA PER SALTUM.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART103 N4 ART169 N1 N3 ART195 ART199 ART277 N3 ART278.
LGT98 ART50 N1 ART52.
CONST97 ART268 N4.
CPC96 ART724 N2.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC21028 DE 1997/01/29.; AC STA PROC689/06 DE 2006/08/16.; AC STA PROC10/05 DE 2005/03/02.; AC STA PROC738/07 DE 2008/01/09.
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO ANOTADO 4ED PAG1049 NOTA5.
LEBRE DE FREITAS CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO V3 PAG115 PAG116.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
A…, vem recorrer da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que se decidiu pela subida diferida de reclamação que aquela sociedade apresentara, nos termos do artigo 276.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, do despacho do Chefe de Serviço de Finanças de Braga 2, de 11 de Junho de 2007, que lhe indeferiu o pedido de dispensa/isenção da prestação de garantia.
Fundamentou-se a decisão em que, embora a reclamante alegasse o prejuízo irreparável a que se refere o n.º 3 do artigo 278.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, “analisando o conteúdo da petição, conclui-se que os fundamentos invocados não são enquadráveis em nenhuma das alíneas do n.º 3 do já citado preceito legal”.
A recorrente formulou as seguintes conclusões:
1) Na execução fiscal em causa a Recorrente apresentou um pedido de isenção/dispensa de prestação de garantia que foi indeferido pelo órgão de execução fiscal.
2) Só com a subida imediata da Reclamação é que se obtém utilidade para a Recorrente, de nada lhe valendo a sua procedência após a venda de todos os bens penhorados, pois o eventual deferimento do pedido de isenção/dispensa de garantia impediria precisamente a prática daqueles actos lesivos do seu património.
3) A recorrente alegou factos suficientes demonstrativos da inutilidade da Reclamação caso a sua subida não seja imediata.
4) A douta sentença recorrida violou os artigos 278.º do CPPT e 734.º, n.º 2, do CPC, devendo conhecer do mérito da reclamação.
Não houve contra-alegações.
O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, uma vez que, “estando em causa decisão sobre um pedido de dispensa de garantia a reclamação deverá subir imediatamente, sob pena de a sua retenção tornar posteriormente inútil a sua apreciação”.
Vejamos, pois:
A questão dos autos é a da subida imediata (ao Tribunal Administrativo e Fiscal) da reclamação, para efeitos da sua decisão, também imediata, que não apenas após a penhora ou a venda – cfr. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29 de Janeiro de 1997 – recurso n.º 21.028.
Sendo que “a executada deduziu impugnação judicial, a qual se encontra a correr seus termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga”, tendo, entretanto, sido “penhorados diversos bens, nomeadamente um prédio urbano, créditos de clientes e várias viaturas, cujos valores são manifestamente insuficientes para garantia da execução” – cfr. 2.º e 7.º parágrafo do despacho reclamado, a fls. 13.
Ora, a impugnação judicial apenas tem efeito suspensivo quando é prestada garantia adequada – artigo 103.º, n.º 4, do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
E é, pois, para suspender a execução que a recorrente pretende ser isenta/dispensada da prestação da garantia, no montante remanescente ao das penhoras já efectuadas.
Nos termos do artigo 169.º, n.º 1, do CPPT, “a execução ficará suspensa até à decisão do pleito em caso de reclamação graciosa, impugnação judicial ou recurso judicial que tenham por objecto a legalidade da dívida exequenda desde que tenha sido constituída garantia nos termos do artigo 195.º ou prestada nos termos do artigo 199.º ou a penhora garanta a totalidade da quantia exequenda e do acrescido, o que será informado no processo pelo funcionário competente”.
Isto é, sempre que o contribuinte conteste a legalidade da liquidação (ou, latu sensu, a exigibilidade da dívida – cfr. n.º 5 do mesmo artigo) e apresente bens que garantam a quantia exequenda ou a administração tributária constitua garantia ou proceda à penhora, a cobrança da prestação tributária fica suspensa até à solução do litígio – cfr. artigo 52.º da Lei Geral Tributária.
O que bem se compreende: uma vez que “o património do devedor constitui a garantia geral dos créditos tributários” – artigo 50.º, n.º 1, da LGT –, a existência de uma garantia especial que responda pela quantia exequenda afasta o motivo que justifica, na pendência da discussão da legalidade da liquidação e/ou exigibilidade da dívida, a continuação do processo de cobrança. É que se os pedidos do contribuinte obtivessem provimento (se a liquidação fosse considerada (total ou parcialmente) ilegal ou, nomeadamente, a dívida se encontrasse prescrita), tal cobrança seria desnecessária e teria que ficar sem efeito.
Assim, se a garantia for constituída (hipoteca legal ou penhor – artigo 195.º do CPPT) ou prestada (garantia bancária, caução, seguro-caução ou qualquer meio susceptível de assegurar os créditos do exequente – artigo 199.º do mesmo diploma), já não haverá lugar à penhora, fruto da dita suspensão do processo de execução.
Mas “se não houver garantia constituída ou prestada, nem penhora, ou os bens penhorados não garantirem a dívida exequenda e acrescido, será ordenada a notificação do executado para prestar a garantia referida no número anterior dentro do prazo de 15 dias” – n.º 2 do mesmo artigo 169.º -, pois que, à míngua de garantia especial, não há motivo para o processo de execução ser suspenso.
E “se a garantia não for prestada [neste prazo], proceder-se-á de imediato à penhora” – n.º 3 do mesmo artigo 169.º.
Da interpretação combinada destes dois números retira-se que, no caso de a garantia ser apenas parcial (i.e., “não garantir a dívida exequenda e o acrescido” mas apenas parte), o processo de execução também se suspende, ainda que com efeitos limitados à garantia prestada, pois que não havendo reforço no sentido de garantir a totalidade da dívida e acrescido, “proceder-se-á de imediato à penhora” de novos bens, que não à liquidação da garantia parcial.
Em suma: o processo de execução suspende-se quanto à garantia prestada (ainda que parcial), só podendo esta ser executada se a decisão final do pleito for no sentido da improcedência, ou improcedência parcial (aqui na medida desta), dos pedidos do contribuinte, em sede de reclamação, recurso, impugnação judicial ou oposição à execução que tenham por objecto a ilegaliade ou inexigibilidade da dívida exequenda.
Ou seja, no caso dos autos, o indeferimento do pedido de isenção/dispensa de garantia reclamado consequenciou a não suspensão da execução quanto à cobrança do montante da dívida tributária não garantido.
A dispensa em causa equaciona-se, pois, à prestação de garantia referente à parte do crédito ainda não garantido.
E, como se disse, a questão dos autos é a da subida imediata (ao Tribunal Administrativo e Fiscal) da reclamação para efeitos da sua decisão, também imediata, que não apenas após a penhora.
Ora, o artigo 278.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário apenas a autoriza, taxativamente, quando esteja em causa “prejuízo irreparável” derivado das vicissitudes da penhora e da prestação da garantia, nele elencados.
Todavia, tal interpretação literal seria inconstitucional por violação do princípio da tutela judicial efectiva constitucionalmente previsto – artigo 268.º, n.º 4 da Constituição da República.
Por modo que há que procurar uma interpretação do preceito conforme à Constituição.
“O alcance da tutela judicial efectiva, não se limita à possibilidade de reparação dos prejuízos provocados por uma actuação ilegal, comissiva ou omissiva, da Administração, exigindo antes que sejam evitados os próprios prejuízos, sempre que possível.
Por isso, em todos os casos em que o diferimento da apreciação jurisdicional da legalidade de uma acto lesivo praticado pela administração puder provocar para os interessados um prejuízo irreparável, não pode deixar de se admitir a possibilidade de impugnação contenciosa imediata, pois é essa a única forma de assegurar tal tutela.
Assim, a restrição aos casos previstos deste n.º 3 do artigo 277.º da possibilidade de subida imediata das reclamações que se retira do seu texto, será materialmente inconstitucional, devendo admitir-se a subida imediata sempre que, sem ela, o interessado sofra prejuízo irreparável”.
Cfr. Jorge de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado, 4.ª ed., p. 1049, nota 5.
Como assinala o mesmo autor, estando em causa a cobrança de dívidas, não haverá, em princípio, grave lesão do interesse público dada a possibilidade de a Administração Fiscal promover arresto de bens, com «o mesmo efeito da penhora a nível da eficácia em relação ao processo de execução fiscal dos actos do executado (artigos 622.º e 819.º do Código de Processo Civil)».
«Parece mesmo dever ir-se mais longe e assegurar-se a subida imediata das reclamações sempre que, sem ela, elas percam toda a utilidade».
Pois «nos casos em que a subida diferida faz perder qualquer utilidade à reclamação, a imposição desse regime de subida reconduz-se à denegação da possibilidade de reclamação, pois ela não terá qualquer efeito prático, o que seria incompatível com a Lei Geral Tributária e o referido sentido da lei de autorização legislativa» (Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro), devendo, então, aceitar-se, em tais casos, a subida imediata”.
Dando-se aí, como exemplos, segundo o mesmo autor, a “decisão que recuse suspender o processo de execução” e “a fixação do valor base para a venda”.
Cfr. os acórdãos do STA de 16 de Agosto de 2006 – recurso n.º 0689/06 e de 2 de Março de 2005 – recurso n.º 010/05.
A recorrente invoca que a subida diferida fará com que a reclamação perca toda a sua utilidade: “o interesse da reclamante é que a prestação da garantia lhe seja dispensada agora (…) sabendo-se ainda da ameaça de futuras penhoras” – pontos 43 e 44 da petição de reclamação, reproduzidos nas alegações do presente recurso.
Como acima se referiu, deve admitir-se a subida imediata das reclamações sempre que, sem ela, elas percam toda a utilidade.
Trata-se de fórmula equivalente à da regra consagrada no artigo 724.º, n.º 2, do Código de Processo Civil para os agravos: sobem imediatamente aqueles “cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis”.
A predita inutilidade não pode todavia deixar de relacionar-se com a irreparabilidade do prejuízo.
Como refere o acórdão deste tribunal de 9 de Agosto de 2006 – recurso n.º 0229/06, “a inutilidade resultante da subida diferida da reclamação é noção a definir em presença da de prejuízo irreparável de que fala a lei. É seguro que o legislador não quis impor a subida imediata de todas as reclamações cuja retenção pode originar prejuízos.
Não está em causa, pois, poupar o interessado a todo o prejuízo. Por isso se estabelece que as reclamações sobem imediatamente só quando a sua retenção seja susceptível de provocar um prejuízo irreparável.
Em súmula, a reclamação que não suba logo não perde todo o seu efeito útil, mesmo que não evite o prejuízo que se quer impedir, desde que seja possível repará-lo.”
Ora, a jurisprudência tem interpretado de forma exigente o requisito da absoluta ou total inutilidade do recurso (reclamação), entendendo-se que a sua eventual retenção deverá ter um resultado irreversível, não bastando a mera inutilização de actos processuais, ainda que contrária ao princípio da economia processual, sem que aí se possa vislumbrar qualquer ofensa constitucional.
Cfr. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, vol. 3, pp. 115/116, e jurisprudência aí citada.
No caso sub judice, o pedido de isenção/dispensa respeita, como se disse, unicamente à quantia exequenda não garantida pela penhora já efectuada, pretendendo a recorrente suspender a execução e, assim, evitar novas penhoras previstas no citado artigo 169.º, n.º 3.
Contudo, o pedido foi indeferido pelo Chefe do Serviço de Finanças e o tribunal a quo decidiu que a reclamação era de subida diferida.
Todavia, subindo a final, a decisão da reclamação seria absolutamente despicienda, pois sendo tomada após a penhora, o eventual deferimento seria inócuo, já que o efeito produzido pela dispensa da garantia – a suspensão da execução - esgota-se antes da penhora, pois que visa
evitá-la.
De outro modo: ao requerer a isenção/dispensa da prestação de garantia, a contribuinte pretendeu suspender a execução, ou seja, pretendeu evitar nova penhora. Tendo tal requerimento sido indeferido, se a reclamação apresentada não for imediatamente apreciada, a consequência é o prosseguimento da execução; e, subindo a final, já não pode produzir efeito útil, pois a subida diferida implica, pela sua natureza, que a execução (que se pretendia ver suspensa) prosseguiu até à concretização da penhora.
Pelo que a reclamação deve ser imediatamente apreciada.
Cfr. o recente acórdão do STA de 9 de Janeiro de 2008, recurso n.º 738/07.
Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, devendo os autos baixar ao tribunal a quo para que a reclamação seja apreciada de imediato, se a tal nada mais obstar.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Março de 2008. – Brandão de Pinho (relator) – Pimenta do Vale – Miranda de Pacheco.