Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02526/10.9BEPRT
Data do Acordão:06/09/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:DISCIPLINAR
FACTO NOVO
Sumário:Não ocorre violação do direito de audiência e defesa da arguida quando o facto, não constante da acusação, que é considerado provado no relatório final que fundamentou a aplicação de pena disciplinar resultou de matéria por ela invocada na sua resposta.
Nº Convencional:JSTA00071177
Nº do Documento:SA12021060902526/10
Data de Entrada:04/20/2021
Recorrente:MUNICÍPIO DO PORTO
Recorrido 1:A……………..
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:ARTS. 37.º, N.º 1 e 55.º, N.º 5, LEI N.º 58/2008
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:

1. MUNICÍPIO DO PORTO, inconformado com o acórdão do TCA-Norte, que negou provimento ao recurso que interpusera da sentença do TAF do Porto que julgara procedente a acção administrativa especial contra si intentada por A……….., dele recorreu, para este STA, formulando, na respectiva alegação, as seguintes conclusões:

A. A presente Revista é admissível, nos termos do artigo 150.º do CPTA, por ser necessária para a melhor aplicação do direito;

B. O Acórdão ora posto em crise, proferido pelo Tribunal Central Administrativo do Norte, opondo-se, claramente, à jurisprudência já unânime do próprio Tribunal Central Administrativo e, conforme se viu, deste Supremo Tribunal Administrativo, sobre a mesma questão jurídica – e inclusivamente sobre o mesmo procedimento disciplinar – gera incerteza e instabilidade, colocando em causa a certeza e segurança jurídicas, revelando-se, pois, imprescindível a intervenção do “órgão de cúpula da justiça administrativa”.

C. Esta oposição à jurisprudência administrativa, operada pelo Tribunal a quo, é tanto mais preocupante quando está em causa o julgamento da mesma questão de Direito, imperando, portanto, conforme se vê, a necessidade de uma melhor aplicação do Direito, nos termos do disposto no artigo 150.º, n.º 1, do CPTA.

D. Não existe nulidade insuprível da acusação quando os factos que vêm a ser dados como provados pelo instrutor disciplinar no relatório final foram invocados pelo próprio trabalhador na fase da defesa;

E. Quando o trabalhador arguido, na fase de defesa, alega factos que têm suporte documental para serem dados como provados, o instrutor disciplinar não os pode ignorar – mais a mais quando, como era aqui o caso, os referidos factos militavam a favor do trabalhador arguido – devendo assim dar esses factos como provados e, assim, contribuindo para a descoberta da verdade material;

F. O facto de a Recorrida efetivamente ter utilizado o dinheiro que recebia das comparticipações dos SMAS para pagar os tratamentos que efetuava na Clínica serviu para atenuar a sua culpa, o que foi devidamente valorado pelo instrutor disciplinar, pois que isso revelava, como revelou, que o enriquecimento que a Recorrida teve com a sua conduta já não era de € 1.852,27 (como vinha inicialmente acusada), mas apenas de € 905,94 (face aos € 946,33 que a mesma conseguiu demonstrar ter pago à Clínica dentária);

G. O instrutor disciplinar e a entidade decisória não puderam ser indiferentes a estes factos no único plano em que os mesmos podiam ser valorados (no plano da culpa do agente), pelo que, nessa medida, o facto 45), alegados pela Recorrida, contribuíram para a diminuição da sua responsabilidade;

H. No acórdão ora posto em crise o Tribunal a quo parece confundir, com a devida vénia, uma atenuação da culpa, com uma eliminação da culpa, sendo que no caso em concreto, os factos trazidos pela Recorrida na sua defesa serviram para atenuar a sua culpa, mas evidentemente não chegavam para a eliminar, uma vez que continuava a estar em causa uma infração disciplinar gravíssima, e em que houve um enriquecimento da Recorrida, ainda assim, significativo, com o comportamento adotado;

I. Com o acórdão ora posto em crise o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 37.º, 49.º, 53.º e 54.º do ED.”

A recorrida não contra-alegou.

Pela formação de apreciação preliminar a que alude o art.º 150.º, do CPTA, foi proferido acórdão a admitir a revista, dado que “a questão suscitada pelo Município na revista e acima enunciada justifica a admissão da revista, por ter relevância jurídica substancial (saber se se verifica nulidade insuprível ao ter-se em conta no relatório final do processo disciplinar factos alegados na defesa do arguido e que, aparentemente, podem atenuar a sua culpa, apesar da gravidade da conduta). Igualmente é de considerar que há relevância social no caso, já que nesta situação estiveram envolvidos muitos outros funcionários com comportamentos semelhantes (cf. acórdão desta Formação de 03.02.2015, proc. n.º 046/15)”.

A Exmª. Srª. Procuradora-Geral Adjunto junto deste STA emitiu parecer, onde concluiu que deveria ser concedido provimento ao recurso.

2. O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:

“1 - Entre 18 de dezembro de 1985 e 24 de outubro de 2006, a Autora foi funcionária dos SMAS - Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento – Cfr. fls. 183 do Processo Administrativo, Anexo A;

2 - Por deliberação da Câmara Municipal do Porto, datada de 30 de maio de 2006, os Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, foram transformados na Empresa de Águas do Município do Porto, EM – Cfr. fls. 544 e 545 do Processo Administrativo, 1/09, Vol. III;

3 - Por deliberação da Câmara Municipal do Porto, datada de 30 de maio de 2006, foi aprovado o Protocolo entre o Município do Porto, e a Empresa de Águas do Município do Porto, EM – Cfr. fls. 546 a 550 do Processo Administrativo, 1/09, Vol. III;

4 - Por deliberação da Câmara Municipal do Porto, datada de 30 de Maio de 2006, a partir de 26 de Outubro de 2006, a Autora foi integrada no quadro de pessoal do Município do Porto – Facto não controvertido;

5 - A Autora era beneficiária do subsistema de saúde da ADSE – Facto não controvertido;

6 - Por volta de setembro de 2005, a então Chefe de Divisão dos Recursos Humanos dos SMAS, tomou conhecimento que nos meses imediatamente anteriores surgiu um excessivo volume de despesas com dentistas, para comparticipação pela ADSE – Cfr. fls. 571 a 575 do Processo Administrativo, 1/09, Vol. III;

7 - A referida Chefe de Divisão, no exercício das suas funções, consultou as pastas mensais, as quais continham recibos de despesas médicas dos trabalhadores e seus familiares - Cfr. fls. 571 a 575 do Processo Administrativo, 1/09, Vol. III;

8 - Como resultado dessa consulta, constatou de imediato que, das centenas de recibos que a pasta continha, uma percentagem muito significativa era de serviços prestados pela Clínica ……………- Cfr. fls. 571 a 575 do Processo Administrativo, 1/09, Vol. III;

9 - Mais constatou que tais recibos, na sua maior parte, se encontravam rasurados com tinta corretora - Cfr. fls. 571 a 575 do Processo Administrativo, 1/09, Vol. III;

10 - A referida Chefe de Divisão dos Recursos Humanos comunicou à sua superior hierárquica, Diretora do Departamento dos Serviços Centrais e Jurídicos dos SMAS, os factos constatados - Cfr. fls. 553 a 556, e 571 a 575 do Processo Administrativo, 1/09, Vol. III;

11 - Esta, por sua vez, deu conhecimento ao Diretor Delegado de então dos SMAS das suspeitas que se haviam levantado - Cfr. fls. 553 a 556 do Processo Administrativo, 1/09, Vol. III;

12 - Em 02 de Dezembro de 2005, o Diretor Delegado dos SMAS efetuou participação à Polícia Judiciária do Porto – Cfr. fls. 3 a 5 do Processo Administrativo, Anexo B, Vol. I -, que por facilidade, para aqui se extrai como segue:

“... Os Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento do Município do Porto, contribuinte n.º (...), com sede na Rua (...) vêm participar os seguintes factos: 1.º Em sede de análise das comparticipações pagas em matéria de despesas de saúde aos funcionários destes Serviços abrangidos pelo sistema de proteção social da ADSE, verificámos a existência de factos que indiciam a prática de ilícitos criminais, designadamente, de falsificação de documentos e burla. 2.º Analisando todas as comparticipações pagas aos funcionários em despesas de saúde na especialidade de Estomatologia, por atos médicos efetuados no ano de 2004, até esta data, na Clínica ………….., Lda., contribuinte n.º (…), com sede na Rua (….), Porto, detetámos: existência de rasuras grosseiras em alguns recibos; Omissão de data em alguns recibos; Discrepância entre o número sequencial dos recibos e as datas constantes dos mesmos; Existência de número anormal de atos médicos, por sessão e por funcionário; Atos médicos temporalmente próximos e que, julgamos, de natureza incompatível; Processamento de comparticipações para além dos limites legalmente estabelecidos para cada tipo de intervenção; Aceitação e processamento de comparticipações com base em recibos que não cumprem os requisitos legais; Em inúmeras situações, verifica-se que os valores lançados no sistema informático relativos aos pagos pelos funcionários, são superiores aos constantes dos recibos apresentados. Esclarecemos que esta participação se baseou na análise apenas no período acima indicado e exclusivamente no tocante àquele prestador de serviços de saúde, pelo que desconhecemos a extensão e os contornos exatos do problema, designadamente, anos anteriores, outras especialidades médicas, ou a mesma especialidade (estomatologia) noutros prestadores de serviços. Igualmente, não temos meios para avaliar outros benefícios obtidos pelos funcionários relativamente aos valores não comparticipados, nomeadamente em sede de IRS e complementos de comparticipação efetuados pela Casa do Trabalhador existente nos SMAS do Porto. Anexamos cópias dos recibos em causa e listagens que sistematizam informação por nós recolhida. Destes factos e nesta data será dado conhecimento à Direção Geral de Proteção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública (ADSE) ...”

13 - Na mesma data, o Diretor Delegado dos SMAS participou os factos supra referidos, à Direção-Geral de Proteção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública – Cfr. fls. 103 a 105 dos autos;

14 - Com data de 28 de Junho de 2006, lia-se no site da Câmara Municipal do Porto – Facto não controvertido -, o que por facilidade, para aqui se extrai como segue:

“… A prioridade geral definida por RR(…) de combate à fraude e à corrupção, designadamente no que concerne à articulação com o Conselho de Administração dos SMAS nomeado após as eleições de outubro e presidido por SC(…), tem já um primeiro resultado em condições de divulgação pública. (...) Em face da gravidade do que foi descoberto e da prioridade definida de permanente e redobrada atenção no que toca ao combate à fraude e à corrupção, o Presidente da Câmara solicitou ao Conselho de Administração dos SMAS a participação detalhada de todos os factos apurados. (...) nesse sentido foi, em 2 de dezembro de 2005, feita participação oficial à Polícia Judiciária …”.

15 - Em 30 de Setembro de 2008, pelo Departamento de Investigação e Ação Penal do Porto, no processo de inquérito n.º ........./05.7JAPRT, foi deduzida acusação criminal contra, entre outros, a aqui Autora – Cfr. fls. 1873 a 2110 do Processo Administrativo, Anexo B, Vol. 8; em particular, cfr. fls. 1881, e 1926 a 1931];

16 - Em 10 de Dezembro de 2008, foi elaborada proposta pelo Presidente do Conselho de Administração das Águas do Porto, E.M., de instauração de processos disciplinares, visando, entre outros, a ora Autora – Cfr. fls. 1 a 4 do Processo Administrativo, n.º 1/09, Vol. I];

17 - Por despacho datado de 11 de dezembro de 2008, da autoria do Presidente da Câmara Municipal do Porto, proferido sobre a proposta enunciado no ponto 16 supra, foi determinada a instauração de processo disciplinar contra, entre outros, a aqui Autora, sendo que, por despacho datado de 12 de dezembro de 2008, o mesmo remeteu o expediente ao Departamento Jurídico e Contencioso, para os devidos efeitos – Cfr. fls. 1 do Processo Administrativo, n.º 1/09, Vol. I];

18 - Pela Ordem de serviço n.º 13/05, de 28 de março de 2005, o Presidente da Câmara Municipal do Porto determinou que os procedimentos disciplinares passem a obedecer às regras de tramitação anexas a essa Ordem de serviço – Cfr. fls. 244 a 247 dos autos;

19 - Por despacho de 06 de janeiro de 2009, da autoria da Diretora de Departamento de Contencioso e Serviços Jurídicos da Câmara Municipal do Porto, foi nomeado como instrutor do processo disciplinar, o Técnico superior jurista, ………… – Cfr. fls. 1 – verso do Processo Administrativo, n.º 1/09, Vol. I];

20 - No referido processo disciplinar instaurado à Autora, foi deduzida Acusação contra si – Cfr. fls. 760 a 774 do Processo Administrativo 1/09, Vol. IV];

21 - A Autora apresentou defesa escrita – Cfr. fls. 91 a 99 dos autos;

22 - No âmbito da instrução do processo disciplinar, a Diretora dos Serviços Centrais e Jurídicos, ………., prestou o depoimento – Cfr. fls. 553 a 556 do Processo Administrativo, 1/09, Vol. III -, que, por facilidade, para aqui se extrai como segue:

“… Em finais de 2005 exercia nos então SMAS do Porto o cargo de Diretora dos Serviços Centrais e Jurídicos, tendo a seu cargo a gestão dos Recursos Humanos. (…) Nessa altura detetou, através das contas, que os valores das comparticipações da ADSE abonadas pelos SMAS aos seus funcionários eram muito elevados face ao número de funcionários. (...) Os recibos eram entregues na Divisão de Recursos Humanos, eram processados por esses serviços (...). (...) Dirigiu-se aos Serviços dos Recursos Humanos e foi buscar os recibos de 2005 que estavam arquivados por meses. (…) Face aos recibos detetou a existência de recibos rasurados, de recibos com números não compatíveis com as datas apostas nos mesmos, atos médicos incompatíveis e praticados relativamente aos mesmos dentes, bem como às próteses. (…) a referida discrepância era entre as datas e os números de série dos recibos o que levava à existência de recibos com números posteriores relativos a atos médicos praticados em datas anteriores, constantes de outros passados em datas posteriores e vice-versa. (...) Face à constatação dos factos atrás mencionados, comunicou ao Senhor Diretor Delegado de então (...). (…) Comunicou, também, que face aos indícios era necessário proceder à verificação dos recibos da ADSE relativos a anos anteriores, tendo ficado decidido que o trabalho de investigação seria sobre os anos de 2001 a 2005. (…) Começou a investigar com a colaboração da Chefe de Divisão e com o apoio dos funcionários MMG(...) e JN(...). (...) Concluída a investigação, e face à constatação de indícios da prática de ilícitos disciplinares, compilou todos os dados que anexou a uma participação, por si elaborada, à Polícia Judiciária. (…) Seguidamente, apresentou este documento ao Diretor Delegado e ao Presidente do Conselho de Administração (...) tendo o mesmo sido assinado e por si entregue à Diretoria Geral da Polícia Judiciária do Porto. (...) Quando a existência do Inquérito se tornou pública, o impacto da notícia foi brutal nos Serviços, tendo havido consequências, mesmo através da prática de ilícitos criminais, contra a sua pessoa. (...) Esclarece ainda que o esquema existente era do conhecimento de grande parte dos funcionários dos SMAS. (...) À data, os SMAS tinham cerca de 600 trabalhadores, e os 90% que não beneficiavam do esquema montado consideraram a atuação da declarante da mais elementar …”.

23 - A Chefe de Divisão de Recursos Humanos dos ex-SMAS, ………….., prestou o depoimento – Cfr. fls. 571 a 575 do Processo Administrativo, 1/09, Vol. III -, que, por facilidade, para aqui se extrai como segue:

“… a deponente e a Dr.ª ………… passaram uma semana a analisar todas as pastas de recibos do ano de 2005 passando toda a informação para uma base de Excel donde constava o nome dos funcionários, os números e os valores dos recibos que diziam respeito aos mesmos e a familiares. (…) um dos objetivos (...) era ter uma ideia do número de funcionários em questão bem como os respetivos valores que cada funcionário alegadamente teria pago à clínica de ………….. (...) (...) resumidamente o movimento do processamento das remunerações e abonos processava-se da seguinte forma: a informação era transmitida em papel e portanto sujeita a controlo da depoente à Divisão de Informática pela Divisão de Recursos Humanos (...) e outras informações respeitantes a despesas médicas eram transmitidas por via de ficheiros informáticos sem que a depoente tivesse qualquer controlo sobre esta informação, carregado na secção de salários e transferido para a Divisão de Informática ...”.

24 - No âmbito da instrução do processo disciplinar, ……………., antigo administrador dos SMAS prestou o depoimento – Cfr. fls. 507 e 508 do Processo Administrativo, 1/09, Vol. III -, que, por facilidade, para aqui se extrai como segue:

“ … Na altura em que foi feita a participação à polícia judiciária era Presidente do Conselho de Administração dos SMAS; (…)Num determinado dia, a Dr.ª ……….., Directora do Departamento Central e Jurídico dos SMAS, informou-o verbalmente que tinham de tratar de um conjunto de irregularidades relacionadas com o processamento dos abonos da ADSE, visto que se tratava de uma situação grave e passível de comunicação à Polícia Judiciária, não se conhecendo a dimensão das situações envolvidas, embora prevendo-se que envolveria muita gente. (…) De imediato comunicou estes factos ao Presidente da Câmara Municipal do Porto, Dr. ………, no sentido de o informar da situação e que iria participar os factos à Polícia Judiciária. O processo desenvolveu-se com a entrega do dossier na Polícia Judiciária, processo esse que formalmente foi conduzido pelo Eng.º ………., à data, Director Delegado do SMAS e pela Dr.ª ………….., que conduziu todo o processo indadede recolha e articulação com a Polícia Judiciária, coadjuvada pela Dr.ª ……………… De acordo com uma conversa que teve com a Dr.ª ……………… sobre este assunto, foi acordado que a recolha documental deveria ser célere e recatada. Na altura, também instruiu os Serviços para que fosse participado o ocorrido à ADSE e à DGCI, o que, de facto aconteceu.(…)”

25 - Em março de 2010 foi elaborado o relatório final de procedimento disciplinar – Cfr. fls. 3009 a 3732, do Processo Administrativo, Vol. XVI, XVII e XVIII, em particular, fls. 3109 a 3120 -, do qual, por facilidade, para aqui se extrai o que segue:

1) A arguida, com o n.º mecanográfico ………, entre Janeiro de 2001 e 24 de Outubro de 2006 foi funcionária dos então SMAS, que depois deram origem à AdP, aí exercendo as funções de assistente administrativo;

2) A arguida iniciou funções nos ex-SMAS em 18 de Dezembro de 1985;

3) A arguida, ao ser funcionária dos SMAS deste Município, era funcionária pública (artigo 237.º e seguintes, 243.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, artigo 5.º do D.L. n.º 116/84, de 6 de Abril., artigos 1.º, 3.º e 4.º, n.º 5 do D.L. n.º 427/89, de 7 de Dezembro e artigos 1.º, 5.º A e seguintes e 8.º do D.L. n.º 409/91, de 17 de Outubro, então em vigor);

4) Os SMAS, não tendo personalidade jurídica, mas apenas autonomia administrativa e financeira, estavam integrados na pessoa colectiva – Município do Porto (alínea l) do n.º 2 do artigo 53.º e alínea i) do n.º 1 do artigo 64.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, deliberações, da Assembleia Municipal, da macroestrutura dos referidos Serviços – Avisos n.º s 4634/99 e 1952/2004, Diário da República, II Série, respectivamente de 3 de Julho de 1999 e 19 de Março de 2004);

5) A partir de 26 de Outubro de 2006, por deliberação camarária de 30 de Maio de 2006, nos termos do protocolo celebrado entre o Município do Porto e a AdP, ao abrigo do n.º 6 do artigo 37.º da Lei n.º 58/98, de 18 de Agosto, a arguida foi integrada nos quadros deste Município, pelo que ficou sua funcionária;

6) Por ser funcionária, a arguida era beneficiária, da ADSE, gozando dos benefícios por esta concedidos, nos termos da alínea b) do artigo 3.º e do artigo 5.º, do D.L. n.º 118/83, de 25 de Fevereiro, actual redacção;

7) A ADSE é um organismo público, tutelado por lei, que tem por objectivo a protecção social, entre outros, em cuidados de saúde aos funcionários públicos, inclusive os das autarquias locais;

8) Através da ADSE, a arguida podia receber comparticipação em despesas com a saúde, no que aqui interessa, com cuidados de medicina dentária, ou com meios de correcção estomatológicos;

9) Nos termos da lei, a arguida podia deslocar-se a um médico ou Clínica para se tratar;

10) Relativamente às despesas incorridas, vários cenários eram possíveis, sendo que entre os mais habituais deve destacar-se, desde logo, aquele em que, no caso de assistência em médico ou Clínica, ao funcionário era logo descontada a comparticipação legal, pagando este apenas a parte não comparticipada, bem como aquele em que o funcionário pagava a totalidade do preço e apresentava o respectivo recibo, emitido por médico ou Clínica na Secção de Salários da Divisão dos Recursos Humanos dos SMAS, deixando-os numa caixa, lá colocada para o efeito;

11) Nesta última hipótese, – apresentação do recibo nos SMAS – estes Serviços suportando a parte comparticipada pela ADSE, creditavam tal quantia ao funcionário num dos meses seguintes, da mesma forma em que se creditava o respectivo vencimento, ou seja, na conta bancária do funcionário/beneficiário titular;

12) A funcionária da Secção de salários, encarregada do movimento dos recibos deixados pelos trabalhadores para posterior processamento, verificava se o nome do beneficiário ou do familiar estava correcto, bem como se os mesmos correspondiam aos respectivos números de beneficiários;

13) Por volta de Setembro de 2005, a então Chefe de Divisão dos Recursos Humanos dos SMAS tomou conhecimento que, nos meses imediatamente anteriores, surgiu um excessivo volume de despesas com dentistas, para comparticipação da ADSE;

14) Nesse sentido e no exercício das suas funções, consultou as pastas mensais, as quais continham recibos de despesas médicas dos trabalhadores e seus familiares;

15) A referida Chefe de Divisão constatou de imediato que, das centenas de recibos que a pasta continha, uma percentagem muito significativa era de serviços prestados pela Clínica ………….., sita na rua de ………, n.º …., ……., na cidade do Porto, cujo objecto social consistia na prestação de serviços clínicos de boca e dentes e próteses dentárias;

16) Mais constatou a Chefe de Divisão que tais recibos, na sua maior parte, se encontravam rasurados com tinta correctora;

17) Na Clínica, a cada um dos actos médicos praticados, correspondia um determinado código, para fins de comparticipação (o Código das Tabelas da ADSE) e, mediante o tratamento efectuado, a Clínica cobrava um determinado preço;

18) Entre 2001 e 2005, os Códigos ali existentes, constam do Anexo 1 da acusação formulada contra a arguida;

19) Na sequência desses tratamentos e serviços, cada um dos funcionários dos SMAS tinha direito às respectivas comparticipações da ADSE que, entre 2001 e 2005, vigoraram através das Tabelas de Comparticipação da ADSE de cuidados de saúde, regime livre, que resultaram da publicação dos Avisos números:

- 12433/2000 (de 1 de Setembro de 2000 a 1 de Outubro de 2001);

- 11730/2001 (de 1 de Outubro de 2001 a 31 de Dezembro de 2002);

- 12737/2002 (de 1 de Janeiro de 2003 a 31 de Maio de 2004); e

- Despacho n.º 8738/2004 (a partir de 1 de Junho de 2004),

publicados no Diário da República, II Série, respectivamente n.º 187, de 14 de Agosto de 2000, n.º 224, de 26 de Setembro de 2001, n.º 279, de 3 de Dezembro de 2002 e n.º 103, de 3 de Maio de 2004;

20) Para a utilização das referidas Tabelas, os cuidados, actos e apoios em relação aos quais os funcionários beneficiam de comparticipação da ADSE são identificados através de um código a que, por seu turno, corresponde uma designação;

21) A Clínica possuía, para fins de gestão, de uma “Tabela” de Honorários (média de preços) à qual correspondiam determinados códigos, consoante os tratamentos efectuados, sendo que a cada tratamento correspondia um código que, uma vez finalizada a consulta – existindo esta – era inscrito na ficha individual de cada paciente;

22) Também todos os tratamentos e actos médicos eram inscritos nas fichas individuais dos clientes, mediante a menção dos códigos, e, quando a ficha se mostrasse completa, era agrafada à mesma uma nova ficha para prosseguimento das anotações;

23) De acordo com os preços médios facturados pela Clínica, entre 2001 e 2005, os serviços e tratamentos médicos aos funcionários/beneficiários dos SMAS deveriam ter sido cobrados nos termos, constantes do Anexo 2 da acusação formulada contra a arguida;

24) Entre 3 de Setembro de 2001 e 29 de Novembro de 2005, a arguida recebeu os tratamentos e serviços na Clínica, constantes do Anexo 3 da sua acusação, os quais, atentos os preços médios praticados pela Clínica correspondiam aos preços constantes do mesmo Anexo;

25) Tendo em conta os tratamentos enunciados no Anexo 3 da acusação, a arguida deveria ter recebido a título de comparticipações dos SMAS/ADSE, apenas o valor de 633,46 €;

26) Na sequência de combinação entre a arguida e os sócios e gerentes da Clínica –………………, odontologista e sua mulher ………….., gerente, àquela foram emitidos e entregues os recibos com as descrições, datas e valores, também constantes do mesmo Anexo;

27) Entretanto, na sequência da entrega desses recibos pelos alegados tratamentos estomatológicos nos serviços da secção de salários dos SMAS, a arguida recebeu, a título de comparticipações da ADSE, em Setembro de 2001, Fevereiro, Março, Junho, Setembro e Outubro do ano de 2002, Novembro e Dezembro do ano de 2003, Janeiro, Abril, e Novembro do ano de 2004, Março, Abril e Novembro de 2005, os valores, respectivamente de 59,31 €, 96,96 €, 38,16 €, 41,20 €, 103,21 €, 45,19 €, 57,97€, 139,72 €, 43,65 €, 523,00 €, 132,00 €, 55,60 €, 96,00 € e 420,00 €, no valor total de 1.852,27 €;

28) A arguida recebeu indevidamente, a título de comparticipação da ADSE, o montante total de 1.852,27 €, em vez dos mencionados 633,46 €; ficando os serviços, consequentemente, desembolsados da respectiva diferença, quantia que se considera dinheiro público;

29) Todos os recibos emitidos pela Clínica abrangiam actos médicos não totalmente realizados de forma a inflacionar o valor a receber de comparticipações da ADSE/SMAS;

30) A arguida quis e conseguiu receber aquele montante, no total de 1.218,81 €, correspondente à dita diferença, à custa daquela entidade, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia, era dinheiro público;

31) Mais sabendo que estava a prejudicar, dessa maneira o erário público, pois que recebeu quantias que não lhe pertenciam, e que sabia não lhe pertencerem, através do estratagema descrito;

32) Sabia a arguida que, com o seu comportamento, ao ter recebido o aludido montante, se aproveitava ilícita e abusivamente do facto de ser funcionária dos SMAS, e dos direitos que a ADSE legalmente lhe concedeu, para à custa da qualidade de funcionária e daqueles direitos se enriquecer, com o consequente empobrecimento dos SMAS e do erário público;

33) Conseguiu a arguida ter vantagens patrimoniais a que não tinha direito, enganando conscientemente os SMAS, a sua entidade patronal que sempre cumprira as suas obrigações que sobre si impendiam no contexto do vínculo público que a ligava àquela;

34) Se a arguida não prosseguiu mais a sua actividade ilícita, tal se deveu não a qualquer inversão consciente do seu comportamento, mas tão só à circunstância de o seu comportamento e de o estratagema em que aquele se inseriu ter sido descoberto e denunciado criminalmente;

35) Com o seu comportamento, a arguida contribuiu para envergonhar os SMAS e o Município do Porto, porquanto a sua conduta foi idêntica à de muitos colegas, co-arguidos no presente processo;

36) Aquando da denúncia criminal, e da dedução da acusação em processo-crime, em Outubro de 2008, tais factos vieram amplamente noticiados na comunicação social, aparecendo os SMAS e a edilidade no papel de entes enganados anos a fio por dezenas e dezenas de funcionários e entidades e pessoas terceiras, o que em muito manchou em especial a imagem dos SMAS que se viu “nas bocas” do mundo pelos piores motivos;

37) E com grave ameaça do bom-nome dos funcionários não envolvidos no esquema em causa nos autos;

38) Na verdade o vergonhoso esquema subjacente aos autos levou a que a comunidade tomasse naturalmente “a parte pelo todo”, no que concerne à seriedade dos trabalhadores dos SMAS, que entre 2001 e 2005 rondavam os 600 funcionários;

39) Com o comportamento da arguida, os trabalhadores dos ex-SMAS, não arguidos, ficaram envergonhados e consternados pela sua ligação àquela entidade, situação agravada quando começaram a ser publicadas notícias do caso na comunicação social;

40) A arguida praticou os factos aqui descritos e dados como provados sempre voluntária, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;

41) A arguida tem instrução, formação e experiência profissional mais do que bastantes para configurar e representar tudo o que fez, bem como o esquema de que foi peça integrante, o qual abrangeu, quase sem excepção, quadros administrativos, superiores e/ou funções de responsabilidade da AdP, antes SMAS;

42) O ambiente de trabalho dos SMAS foi gravemente comprometido, pois que os trabalhadores com menor categoria profissional ficaram com a inaceitável sensação que os serviços administrativos e alguns dos seus dirigentes estavam envolvidos em actos ilícitos;

43) Com o comportamento descrito, a arguida, como funcionária, faltou ao respeito aos SMAS, ao serviço público, ao Município e aos colegas, sendo desleal para com os mesmos e atentou contra os deveres funcionais, que lhe são exigidos como trabalhadora da administração pública;

44) A arguida sabia que estava ao serviço público e com o seu comportamento prestou-lhe um péssimo serviço, degradando a confiança do público – que ao invés deveria sempre salvaguardar e promover, ofendendo e violando, desse modo, a imparcialidade, a legalidade e a transparência da administração publica e, consequentemente, o bom andamento da administração dos ex-SMAS e do Município do Porto e os fins de ordem pública que este deve satisfazer;

45) A arguida emitiu, nas seguintes datas, os seguintes cheques, à ordem da Clínica de ………….., sacados sob a sua conta na Caixa Geral de Depósitos n.º 0160/044992/900, no montante total de € 946,33, a saber:

- A 03/09/2001, o montante de € 72,33, titulado pelo cheque n.º 5129219713;

- A 22/05/2002, o montante de € 40,00, titulado pelo cheque n.º 4424827572;

- A 28/08/2002, o montante de € 45,00, titulado pelo cheque n.º 4349642360;

- A 25/09/2002, o montante de € 45,00, titulado pelo cheque n.º 1649642363;

- A 4/11/2003, o montante de € 58,00, titulado pelo cheque n.º 8634995269;

- A 18/11/2003, o montante de € 65,00, titulado pelo cheque n.º 6834995271;

- A 12/12/2003, o montante de € 45,00, titulado pelo cheque n.º 6149516064;

- A 19/03/2004, o montante de € 46,00, titulado pelo cheque n.º 8649516072;

- A 29/10/2004, o montante de € 50,00, titulado pelo cheque n.º 3876585447;

- A 8/04/2005, o montante de € 60,00, titulado pelo cheque n.º 3335557142;

- A 30/09/2005, o cheque de € 420,00, titulado pelo cheque n.º 7452609274.

4.7.2 Tipificação da Infracção Disciplinar e Eventuais Circunstâncias Agravantes e Atenuantes

Os factos descritos constituem a prática, pela arguida, de uma infracção disciplinar, pois violou alguns dos deveres gerais inerentes à função que exercia e exerce (artigo 3.º, n.º 1 do E.D.).

Com efeito, a arguida, com o comportamento descrito, incorreu na violação dos deveres de isenção e zelo, previstos nas alíneas b) e e) do n.º 2, n.º 4 e n.º 7 do citado artigo 3.º do E.D.

Face à factologia dada como provada, a violação:

a) Do dever de isenção está sancionada com a pena de demissão, como previsto no artigo 9.º, n.º 1, alínea d) e artigo 18.º, n.º 1, alínea m);

b) Do dever de zelo está sancionada com a pena de suspensão, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, alínea c) e do artigo 17.º (corpo da norma: “trabalhadores que actuem com grave negligência ou com grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres funcionais e àqueles cujos comportamentos atentem gravemente contra a dignidade e o prestígio da função”), mas a censurar numa única medida disciplinar, nos termos do n.º 3 do artigo 9.º, tudo do ED.

As referidas penas estão previstas nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 9.º, a sua caracterização e efeitos estão estatuídos nos artigos 10.º e 11.º do E.D.

A responsabilidade disciplinar da arguida é agravada pela circunstância prevista na alínea d) do artigo 24.º do E.D., nomeadamente por haver «comparticipação com outros indivíduos para a sua prática».

A arguida tem mais de 10 anos de serviço como funcionária pública, no entanto, não ficou provado que tenha desempenhado as suas funções, ao longo desses anos, «com exemplar comportamento e zelo».

Veja-se, a este propósito, o acórdão do STA de 14 de Março de 2001 (processo n.º 38664), onde se pode ler que «Para que exista atenuante especial derivada de exemplar comportamento e zelo, prevista na alínea d) do art. 29.º, do E.D. [que corresponde, ipsis verbis, à actual alínea a) do artigo 22.º do novo ED] é necessário não só que esse comportamento e zelo se prolonguem por mais de 10 anos, mas também que possam ser considerados um modelo para os restantes funcionários, o que supõe que sejam qualitativamente superiores aos deveres gerais destes» (sublinhado nosso).

No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STA de 9 de Dezembro de 1998 (processo n.º 38100), o qual nos indica que “a circunstância atenuante especial prevista no artigo 29.º, alínea a), do citado diploma (…) exige mais do que a simples ausência de anteriores punições disciplinares, postula antes que o currículo anterior do arguido denote elementos que permitam qualifica-lo como modelar” (sublinhado nosso).

Por tal facto, não se aplica ao caso a circunstância atenuante prevista na alínea a) do artigo 22.º, bem como qualquer outra.

4.7.3 Gravidade, Culpa e Personalidade da Arguida

Com a conduta infraccional atrás descrita e dada como provada, os SMAS empobreceram-se indevidamente em € 1.218,81, valor que corresponde à diferença entre as comparticipações que deveriam ter sido atribuídas à arguida (tendo em conta os tratamentos por esta efectivamente realizados) e as comparticipações que acabaram por lhe ser atribuídas, em resultado da emissão de recibos com valores inflacionados.

Perante a factologia provada, entende-se que o presente esquema representava uma dupla vantagem para ambas as partes, com o necessário empobrecimento dos SMAS: a clínica garantia o pagamento do preço dos tratamentos realizados num valor superior ao tabelado, e a arguida pagava esses tratamentos exclusivamente com dinheiro recebido de comparticipações, não desembolsando qualquer montante do seu bolso e ainda se tendo enriquecido em cerca de € 900 com o referido esquema.

De facto, a arguida alegou e demonstrou a existência de pagamentos feitos à clínica de ………………. No entanto, do cruzamento dos valores por esta recebidos com os valores por esta entregues à clínica resulta que, a mesma pagou à clínica € 946,33, mas recebeu dos SMAS € 1.852,27, ou seja, cerca do dobro daquilo que pagou.

Assim sendo, a gravidade da conduta da arguida é muito elevada, pois ganhou e deu a ganhar a terceiros valores à custa de um uso fraudulento dos direitos que tinha enquanto beneficiária da ADSE.

Por outro lado, deve sublinhar-se que todos os factos aqui descritos são absolutamente contrários às normas legais vigentes, bem como às regras internas dos SMAS e aos próprios objectivos daquela entidade – regras essas conhecidas da arguida mas que, mesmo assim, aquela aplicou de forma fraudulenta, para se enriquecer.

A culpa da arguida traduz-se na existência de dolo directo, uma vez que a arguida estava plenamente consciente da ilicitude do seu comportamento e das consequências que o mesmo teria para os SMAS, sua entidade empregadora, e para o próprio interesse público. Ora, consciente de tudo isto, a arguida consumou o seu comportamento, obtendo o resultado previamente desejado.

A arguida representou correctamente todos os elementos de facto da situação descrita, visando, deliberada, voluntária e conscientemente, produzir o resultado desvalioso, o que consequentemente se traduziu no seu enriquecimento ilegítimo à custa dos SMAS e do erário público.

Além do mais, neste âmbito deve ainda ser valorado o facto de a arguida ter provocado conscientemente um empobrecimento dos SMAS, com o objectivo de um seu enriquecimento pessoal.

Importa, também, referir que a arguida trabalha nos SMAS como assistente administrativa, cujas funções lhe permitiam saber de perto quais os seus deveres funcionais.

De facto é notório o alto grau de censurabilidade da sua conduta, desprezando os seus deveres laborais e legais, mormente quando estão em causa funções de interesse público.

A arguida trabalha nos SMAS, agora AdP, desde 1985, pelo que conta com uma longa careira ao serviço desta entidade. Por tal facto, a gravidade do seu comportamento e a culpa revelada assumem um alto relevo.

Com efeito, face à sua antiguidade, a conduta da arguida enquanto funcionária pública deveria constituir um exemplo para os seus restantes colegas de trabalho – o que, como se viu, está longe de corresponder à verdade dos factos.

Por outro lado, a sua antiguidade implicava também que os serviços depositassem uma confiança acrescida sobre a arguida – confiança essa que, com o presente comportamento, a arguida defraudou.

Fazendo retroagir a missão dos SMAS à data da prática dos factos, como consta dos factos provados, tal entidade visava prestar serviços de águas e saneamento aos cidadãos, pelo que a sua missão se relacionava com a defesa e prossecução do interesse público.

Por tal facto, a arguida estava vinculada a deveres profissionais, não só para com a sua dignidade pessoal e profissional, mas também para com um ente público e para com os cidadãos.

Pena Proposta

Orientado pelos princípios da justiça e da proporcionalidade, conforme exige o n.º 2 do artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa, tendo em conta a gravidade objectiva, grau de culpa, a personalidade do arguido e a sua categoria profissional, e bem assim, os acima especificados contornos concretos da infracção e sua expressão, há que ponderar a pena adequada. Propõe-se a aplicação da pena de suspensão por 90 (noventa dias) à arguida A…………...”

26 - A Câmara Municipal do Porto, em reunião datada de 04 de maio de 2010, deliberou, em escrutínio secreto, aplicar à Autora a pena disciplinar proposta – Cfr. fls. 3749 a 3770 do Processo Administrativo, 1709, Vol. XIX;

27 - A Senhora mandatária da Autora foi notificada da deliberação, por ofício datado de 12 de maio de 2010 – Cfr. fls. 3782 e 3783, do Processo Administrativo 1/09, Vol. XIX;

28 - Com a participação referida em 12 supra, e que deu origem ao processo comum coletivo sob o n.º ......../05.7JAPRT, na 2.ª Vara Criminal do Porto, não seguiu, nem foi entregue qualquer documentação - Cfr. informação inserta a fls. 2967/2978, do Processo Administrativo 1/09, Vol. XV;

29 - A Petição inicial que motiva os presentes autos, foi remetido a este Tribunal [ao site SITAF], em 02 de Setembro de 2010 – Cfr. fls. 2 dos autos.

30 - O Réu foi citado para os termos dos autos, em 15 de Setembro de 2010 – Cfr. fls. 156 dos autos.”

3. A sentença do TAF julgou procedente a acção administrativa especial intentada pela ora recorrida, tendo anulado a deliberação, de 4/5/2010, da Câmara Municipal do Porto, que lhe aplicara a pena disciplinar de suspensão pelo período de 30 dias e condenado a entidade demandada “a reconstituir a situação que existiria se não fosse a prática do acto anulado, designadamente, a pagar à Autora a correspondente remuneração base que não lhe pagou durante o período da decidida suspensão, assim como juros de mora à taxa legal sobre a quantia legalmente devida desde a sua citação até integral e efectivo pagamento”.

A A. e a entidade demandada interpuseram recursos desta sentença, aos quais veio a ser negado provimento pelo acórdão recorrido que confirmou, assim, tal decisão.

Na parte em que confirmou o entendimento da sentença no que concerne à verificação de uma nulidade insuprível resultante da falta de audiência da arguida quanto à factualidade dada por provada no ponto 45 do Relatório Final, o acórdão referiu:

“(…).

2.2.3 Resulta nos autos que o processo disciplinar instaurado à autora veio a culminar na aplicação da pena disciplinar de suspensão pelo período de 90 (noventa) dias, nos termos da proposta contida no respetivo Relatório Final que mereceu acolhimento na deliberação de 04/05/2010 da Câmara Municipal do Porto (vide pontos 25. e 26. do probatório).

Sendo que do confronto entre a acusação e o relatório final em que se suportou a decisão punitiva resulta, como foi constatado pela sentença recorrida, que foi dada como provada no âmbito da instrução disciplinar factualidade que não integrava a acusação e que veio a justificar (conjugada com a demais) a aplicação daquela pena disciplinar.

2.2.4 O recorrente Município do Porto não põe em causa que assim seja. O que defende é que à luz do disposto no artigo 55º nº 5 do Estatuto Disciplinar é de admitir a consideração da factualidade elencada no ponto 45) do Relatório Final, a que o instrutor e a entidade decisória não puderam ser indiferentes, por ter sido alegada pela trabalhadora arguida e a mesma ter servido para atenuar a sua culpa, tendo contribuído para a diminuição da sua responsabilidade.

2.2.5 Mas esta argumentação não colhe, já que se atentarmos no Relatório Final do processo disciplinar o que nele se refere a respeito da apreciação da culpa da trabalhadora arguida é o seguinte:

«4.7.3 Gravidade, Culpa e Personalidade da Arguida

Com a conduta infraccional atrás descrita e dada como provada, os SMAS empobreceram-se indevidamente em € 1.218,81, valor que corresponde à diferença entre as comparticipações que deveriam ter sido atribuídas à arguida (tendo em conta os tratamentos por esta efectivamente realizados) e as comparticipações que acabaram por lhe ser atribuídas, em resultado da emissão de recibos com valores inflacionados.

Perante a factologia provada, entende-se que o presente esquema representava uma dupla vantagem para ambas as partes, com o necessário empobrecimento dos SMAS: a clínica garantia o pagamento do preço dos tratamentos realizados num valor superior ao tabelado, e a arguida pagava esses tratamentos exclusivamente com dinheiro recebido de comparticipações, não desembolsando qualquer montante do seu bolso e ainda se tendo enriquecido em cerca de € 900 com o referido esquema.

De facto, a arguida alegou e demonstrou a existência de pagamentos feitos à clínica de …………….. No entanto, do cruzamento dos valores por esta recebidos com os valores por esta entregues à clínica resulta que, a mesma pagou à clínica € 946,33, mas recebeu dos SMAS € 1.852,27, ou seja, cerca do dobro daquilo que pagou.

Assim sendo, a gravidade da conduta da arguida é muito elevada, pois ganhou e deu a ganhar a terceiros valores à custa de um uso fraudulento dos direitos que tinha enquanto beneficiária da ADSE.

Por outro lado, deve sublinhar-se que todos os factos aqui descritos são absolutamente contrários às normas legais vigentes, bem como às regras internas dos SMAS e aos próprios objectivos daquela entidade – regras essas conhecidas da arguida mas que, mesmo assim, aquela aplicou de forma fraudulenta, para se enriquecer.

A culpa da arguida traduz-se na existência de dolo directo, uma vez que a arguida estava plenamente consciente da ilicitude do seu comportamento e das consequências que o mesmo teria para os SMAS, sua entidade empregadora, e para o próprio interesse público. Ora, consciente de tudo isto, a arguida consumou o seu comportamento, obtendo o resultado previamente desejado.

A arguida representou correctamente todos os elementos de facto da situação descrita, visando, deliberada, voluntária e conscientemente, produzir o resultado desvalioso, o que consequentemente se traduziu no seu enriquecimento ilegítimo à custa dos SMAS e do erário público.

Além do mais, neste âmbito deve ainda ser valorado o facto de a arguida ter provocado conscientemente um empobrecimento dos SMAS, com o objectivo de um seu enriquecimento pessoal.

Importa, também, referir que a arguida trabalha nos SMAS como assistente administrativa, cujas funções lhe permitiam saber de perto quais os seus deveres funcionais.

De facto é notório o alto grau de censurabilidade da sua conduta, desprezando os seus deveres laborais e legais, mormente quando estão em causa funções de interesse público.

A arguida trabalha nos SMAS, agora AdP, desde 1985, pelo que conta com uma longa careira ao serviço desta entidade. Por tal facto, a gravidade do seu comportamento e a culpa revelada assumem um alto relevo.

Com efeito, face à sua antiguidade, a conduta da arguida enquanto funcionária pública deveria constituir um exemplo para os seus restantes colegas de trabalho – o que, como se viu, está longe de corresponder à verdade dos factos.

Por outro lado, a sua antiguidade implicava também que os serviços depositassem uma confiança acrescida sobre a arguida – confiança essa que, com o presente comportamento, a arguida defraudou.

Fazendo retroagir a missão dos SMAS à data da prática dos factos, como consta dos factos provados, tal entidade visava prestar serviços de águas e saneamento aos cidadãos, pelo que a sua missão se relacionava com a defesa e prossecução do interesse público.

Por tal facto, a arguida estava vinculada a deveres profissionais, não só para com a sua dignidade pessoal e profissional, mas também para com um ente público e para com os cidadãos.»

2.2.6 Se a decisão disciplinar punitiva assentou em factos que foram dados como provados no respetivo Relatório Final mas que não constavam da acusação, e se estes não serviram para excluir, dirimir ou atenuar a responsabilidade disciplinar da trabalhadora arguida, antes tendo justificado, nos termos da fundamentação externada no Relatório Final, o juízo de muito elevada gravidade da conduta da trabalhadora arguida, traduzido no seu enriquecimento ilegítimo à custa do erário público no quantitativo que ali foi apurado, não se mostra assegurado, quanto a eles, o direito de defesa da trabalhadora arguida, consubstanciando nulidade insuprível do processo disciplinar, a qual contamina a decisão final punitiva.

2.2.7 Atenha-se que é constitucionalmente garantida aos trabalhadores da Administração Pública pelo artigo 269º nº 3 da Constituição da República Portuguesa, em processo disciplinar, o direito à sua audiência e defesa.

O que decorre também do disposto no artigo 32º nº do da Constituição da República Portuguesa, preceito que muito embora se referindo às garantias em processo penal, assegura também aos arguidos “… em quaisquer processos sancionatórios (…) os direitos de audiência e defesa”. Garantias que gozam de tutela direta (cfr. artigo 18º da CRP).

2.2.8 O direito de audiência no âmbito de procedimento disciplinar é, pois, um direito fundamental e compreende não só o direito do trabalhador arguido a ser ouvido, como o direito a defender-se da acusação (vide, entre outros, o acórdão do STA de 17/10/2006, Rec. nº 0548/06, votado com unanimidade pelo pleno da secção do Contencioso Administrativo daquele Supremo Tribunal em sede de processo de oposição de julgados; o acórdão do STA de 18/06/2008, Proc. nº 0145/08; o acórdão do STA de 10/10/2013, Proc. nº 01489/12, todos disponíveis, in, www.dgsi.pt/jsta).

O que significa que esse direito de defesa deve ser assegurado relativamente à factualidade que consubstanciará a infração pela qual o trabalhador arguido venha a ser disciplinarmente punido.

2.2.9 Deste modo, se no Relatório Final, a elaborar pelo instrutor, deve constar “…a existência material das faltas, sua qualificação e gravidade, importâncias que porventura haja a repor e seu destino, e bem assim a pena que entender justa ou a proposta para que os autos se arquivem por ser insubsistente a acusação” (cfr. artigo 65º nº 1 do Estatuto Disciplinar aprovado pelo DL. nº 24/84, de 16 de janeiro e artigo 54º nº 1 do Estatuto Disciplinar aprovado DL. nº 58/2008, de 9 de setembro), deve ser assegurada no processo disciplinar o direito de defesa quanto à materialidade dos factos integrantes da infração, os quais haverão de constar da acusação (cfr. artigo 59º nº 4 do Estatuto Disciplinar aprovado pelo DL. nº 24/84 e artigo 48º nº 3 do Estatuto Disciplinar aprovado DL. nº 58/2008).

2.2.10 Não sendo assegurada essa defesa ocorre nulidade insuprível do processo disciplinar nos termos do disposto no artigo 42º nº 1 do Estatuto Disciplinar aprovado pelo DL. nº 24/84. E isso mesmo foi considerado, e bem, na sentença recorrida.

Nulidade que sempre se verificaria, também, nos termos do disposto no artigo 37º nº 1 do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo DL. nº 58/2008, de 9 de setembro, a que a sentença recorrida também aludiu. Não servindo o disposto no artigo 55º nº 5 deste Estatuto Disciplinar, nos termos do qual na decisão disciplinar “…não podem ser invocados factos não constantes da acusação nem referidos na resposta do arguido, exceto quando excluam, dirimam ou atenuem a sua responsabilidade disciplina” o ensejo pretendido pelo recorrente MUNICÍPIO na exata medida em que os factos que não constavam da acusação vieram a ser dados como provados no Relatório Final do processo disciplinar não serviram para excluir, dirimir ou atenuar a responsabilidade disciplinar da trabalhadora arguida, antes tendo justificado, nos termos da fundamentação externada naquele Relatório Final, o juízo de muito elevada gravidade da sua conduta.

2.2.11 Pelo que, não se mostrando assegurado, quanto a eles, o direito de defesa da trabalhadora arguida, ocorre nulidade insuprível do processo disciplinar, a qual fere de invalidade a decisão final punitiva.

2.2.12 Não, colhe, pois, o recurso do Município do Porto nesta parte”.

Deste acórdão apenas a entidade demandada interpôs recurso de revista, restrito à parte em que se manteve o entendimento sobre a verificação da nulidade insuprível por falta de audiência da arguida quanto à factualidade que foi dada por provada no ponto 45 do Relatório Final, tendo alegado que ela não ocorrera em virtude de se tratar de matéria que havia sido invocada por esta na fase da defesa, como, aliás, este STA já decidira no acórdão proferido em 12/7/2018 – Proc. n.º 046/15, onde estava em causa uma questão idêntica.

Vejamos se lhe assiste razão.

Conforme resulta da matéria fáctica provada, da acusação constava que, entre 3/9/2001 e 29/11/2005, a A. recebeu, na Clínica ……………., os tratamentos e serviços referidos no anexo 3, pelos quais lhe foram pagas comparticipações no valor total de € 1.852,27, quando deveria ter recebido apenas o montante de € 633,46, sendo a diferença entre estes valores – de € 1.218,81 – aquele em que os serviços ficaram desembolsados. Esta matéria veio a ser integralmente dada por provada no relatório final, ao qual se aditou, porém, a factualidade constante do ponto 45, onde se identificaram os vários cheques através dos quais a A. procedera ao pagamento de determinadas quantias à aludida Clínica.

Entre a acusação e o relatório final não houve qualquer discrepância entre os valores que estavam em causa, não se vendo que a matéria que foi aditada assumisse alguma relevância autónoma para efeitos de agravar ou atenuar a culpa da arguida ou para de alguma forma se projectar sobre o desvalor da sua conduta.

É, porém, verdade que, de acordo com o disposto no n.º 5 do art.º 55.º do Estatuto Disciplinar aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9/9, não se podem invocar factos na decisão que não constem da acusação nem tenham sido referidos na resposta do arguido, salvo se excluírem, dirimirem ou atenuarem a sua responsabilidade disciplinar.

Assim, há que averiguar se, como alega o recorrente, se pode considerar que o facto aditado resultou de matéria invocada pela arguida na sua defesa.

Cremos que a resposta a esta questão terá de ser afirmativa.

Efectivamente, foi a arguida que invocou ter efectuado pagamentos à clínica sobre os tratamentos que recebeu, tendo o instrutor, mediante a prova constante dos autos, se limitado a discriminá-los no relatório final.

Não houve, pois, violação do seu direito de audiência e defesa, nem, consequentemente, foi cometida a nulidade insuprível prevista no art.º 37.º, n.º 1, do referido Estatuto Disciplinar.

Nestes termos, merece provimento a presente revista, devendo o acórdão recorrido ser revogado na parte em que foi impugnado, mantendo-se na parte restante.

4. Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido na parte em que julgou verificada a referida nulidade insuprível.

Custas do recurso pela recorrida.

Lisboa, 9 de Junho de 2021.

O Relator consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A, do DL n.º 10 – A/2020, de 13-03, aditado pelo art.º 3.º, do DL n.º 20/2020, de 1-05, têm voto de conformidade com o presente acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, Conselheira Maria do Céu Neves e Conselheiro Cláudio Ramos Monteiro.

José Francisco Fonseca da Paz