Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01561/13
Data do Acordão:07/09/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
PRINCÍPIO DA PROTECÇÃO DA CONFIANÇA
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
ACTO NULO
SANAÇÃO
Sumário:I – A atuação correta, leal e de boa fé dos intervenientes no procedimento, ignorando a violação de qualquer disposição legal, não convalidará ou não fará desaparecer ilegalidade invalidante de que enferme o ato administrativo impugnado.
II – Os princípios da boa fé, da proteção da confiança e da segurança jurídica não possuem efeitos convalidatórios ou sanatórios, não se destinando a preservar ou manter na ordem jurídica um ato administrativo ilegal sancionado com o desvalor da nulidade, e, assim, impedir que o mesmo seja declarado em processo judicial deduzido com tal objetivo.
Nº Convencional:JSTA00068855
Nº do Documento:SA12014070901561
Data de Entrada:11/25/2013
Recorrente:A... LDA
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAS
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - REC REVISTA EXCEPC
Legislação Nacional:CPC96 ART668 N1 D ART660 N2 ART264 N1 ART664 N2.
CPA91 ART134 N3 ART6 A.
CONST76 ART266
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC01007/06 DE 2007/10/31.; AC STA PROC0774/13 DE 2013/10/10.; AC STA PROC0553/11 DE 2012/10/31.; AC STA PROC0203/09 DE 2009/07/09.
Referência a Doutrina:ANTUNES VARELA - RLJ ANO122 PAG112.
ALBERTO DOS REIS - CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO VOLV PAG143.
TEIXEIRA DE SOUSA - ESTUDOS SOBRE O NOVO PROCESSO CIVIL LEX 1997 PAG223.
ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO GONÇALVES E PACHECO DE AMORIM - CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADIMINISTRATIVO 2ED PAG108. MARCELO REBELO DE SOUSA - DIREITO ADMINISTRATIVO GERAL VOLI PAG216.
FREITAS DO AMARAL CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOLII 2ED PAG149-50.
Aditamento:
Texto Integral:

Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1. RELATÓRIO
1.1. “A……………, LDA.”, devidamente identificada nos autos, foi demandada como contrainteressada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé [doravante TAFL] na presente ação administrativa especial deduzida pelo “MINISTÉRIO PÚBLICO” contra “MINISTÉRIO DA DEFESA NACIONAL” [abreviadamente MDN] e na qual foi peticionado, pela motivação inserta na petição inicial de fls. 03/12, que fosse declarada nula ou anulada a deliberação de 02.07.2009 da Comissão de Análise das propostas no concurso para a atribuição do uso privativo no domínio público hídrico na área de intervenção do Plano de Ordenamento da Orla Costeira de Burgau-Vilamoura e que atribuiu àquela contrainteressada, aqui recorrente, a licença de ocupação do domínio público hídrico para o apoio balnear da unidade balnear n.º 06 (UB06) da Praia da Rocha, Portimão.

1.2. O TAFL, por sentença de 21.01.2011, julgou a ação procedente, considerando totalmente procedente a pretensão dada a verificação das ilegalidades consubstanciadas na violação dos arts. 12.º, n.º 3 e 21.º, n.ºs 3, als. a) e c) e 4 do DL n.º 226-A/07, de 31.05, do n.º 3 da Portaria n.º 1450/07, de 12.11, arts. 67.º do CCP, 24.º, n.º 4 e 44.º, n.º 1, al. d), 51.º do CPA.

1.3. Aquela contrainteressada, inconformada, recorreu para o TCA Sul o qual, por acórdão de 21.02.2013, declarando nula a decisão daquele TAF, negou, ainda assim, provimento ao recurso jurisdicional e declarou nulo o ato administrativo impugnado, não aceitando a convalidação das ilegalidades pretendida pela recorrente com apelo ao princípio da boa fé.

1.4. Invocando o disposto no art. 150.º do CPTA a mesma contrainteressada, inconformada com o acórdão proferido pelo TCA Sul, interpôs, então, o presente recurso jurisdicional de revista apresentando o seguinte quadro conclusivo que se reproduz [cfr. fls. 320 e segs. - paginação processo suporte físico tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário]:
...
1. A boa fé, enquanto princípio constitucional concretizador da ideia de Estado de Direito, protege a confiança na atuação dos poderes públicos, exigindo um mínimo de certeza e de segurança quanto aos direitos e expectativas legítimas de cada um em face das autoridades públicas, que, pelo próprio poder que podem exercer, tem de assegurar um mínimo de continuidade nas respetivas posições em face dos particulares;
2. Pelo que a Administração viola a boa fé quando falta à confiança que despertou num particular ao atuar em desconformidade com aquilo que fazia antever o seu comportamento anterior;
3. A exigência da proteção da confiança é também uma decorrência do princípio da segurança jurídica, imanente ao Estado de Direito, dado que este garante seguramente um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica;
4. «In casu», a Recorrente tinha sérias razões para acreditar na validade dos atos ou condutas anteriores da Administração aos quais ajustou a sua atuação;
5. Pelo que a Administração criou uma expectativa juridicamente tutelada de que a atribuição da licença por 10 anos era definitiva e inabalável, na medida em que se verifica uma clara previsibilidade da decisão administrativa, de molde a que a Recorrente visse garantida e assegurada a continuidade nas relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos atos que pratica, assistindo à Recorrente o direito de poder confiar nas decisões administrativas, claramente violado pelo douto Acórdão «a quo»;
6. Pelo que a situação de facto em análise é merecedora da melhor tutela jurídica, por aplicação conjugada do n.º 3 do art. 134.º e do art. 6.º-A CPA …”.
Termina peticionando a revogação da decisão judicial recorrida com procedência do recurso e manutenção na ordem jurídica do ato administrativo impugnado.

1.5. Devidamente notificado o MP, aqui ora recorrido, veio produzir contra-alegações [cfr. fls. 341 e segs.], formulando o seguinte quadro conclusivo:
...
1. O magistrado do MP junto do TAF de Loulé propôs a presente ação administrativa especial, pedindo a nulidade da deliberação de 2.7.2009, da Comissão de Análise das propostas do concurso para a atribuição do uso privativo no domínio público hídrico, na área de intervenção do Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) de Burgau-Vila Moura, que concedeu à contrainteressada a licença de ocupação do domínio público hídrico para o apoio balnear da unidade balnear n.º 6 (UB06) da Praia da Rocha -Portimão.
2. Por saneador/sentença de 21.1.2011, foi a referida ação julgada procedente, deferindo o pedido de declaração de nulidade do ato impugnado, vindo a contrainteressada, bem como a entidade demandada, da mesma interpor recurso jurisdicional para este TCAS, o qual, por acórdão de 21.2.2013 manteve, no essencial, a sentença da primeira instância.
3. O presente recurso de revista vem interposto pela contrainteressada, A……………, Lda., do douto acórdão deste TCAS na parte em que negou provimento aos recursos interpostos pela contrainteressada e pela entidade demandada, Ministério da Defesa Nacional, e declarou nulo o ato impugnado pelo MP.
4. Não existe «necessidade de melhor aplicação do direito», sendo as questões jurídica suscitadas de grande simplicidade, nomeadamente porque a recorrente não impugnou, neste recurso jurisdicional, qualquer dos fundamentos que levaram à declaração de nulidade do ato impugnado pelo acórdão recorrido, e o mais que vem por si alegado não cabe no âmbito da atuação da entidade demandada.
5. As questões suscitadas, não têm qualquer relevância jurídica ou social que lhes confira importância fundamental, pelo que não se verificando qualquer dos requisitos contidos no n.º 1 do art. 150.º não deverá, salvo melhor opinião, o presente recurso ser recebido.
6. Da sentença, proferida na ação cujo valor é de 30.001,00 euros, ao abrigo da alínea i) do n.º 2 do art. 27.º do CPTA, por juiz singular, cabia reclamação para a conferência e não imediatamente recurso jurisdicional, nos termos do n.º 2 do art. 27.º do CPT A.
7. O douto acórdão recorrido, ao pronunciar-se sobre recurso jurisdicional para apreciação do qual não tinha competência imediata, e que assim deveria ter rejeitado, apreciou matéria de que não deveria conhecer, pelo que é nulo por excesso de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 668.º do CPC.
8. A competência dos tribunais administrativos em qualquer das suas espécies é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, pelo que deverá a apreciação desta questão fugir à regra da subsidiariedade contida no art. 685.º-A do CPC.
9. Em nenhuma parte do processo foi invocado o n.º 3 do art. 134.º do CPA como aplicável ao caso vertente, pelo que o acórdão recorrido, ao apreciar a questão da sua aplicabilidade, sem que nenhuma das partes processuais tenha sequer referido o citado preceito legal, é nulo por excesso de pronúncia, nulidade que deverá ser declarada ao abrigo do n.º 2 do art. 685.º-A do CPC.
10. Está em causa, no presente recurso de revista, apenas a invocada violação, pela entidade que praticou o ato impugnado, do princípio da boa fé, da confiança e da certeza e segurança jurídicas, por terem sido goradas as expectativas da recorrente de ser a detentora, durante 10 anos, da atribuição da licença para instalação do apoio de praia.
11. A entidade demandada não violou tais princípios pois não foi ela quem determinou a nulidade do ato de autorização, sendo que, com a prática deste, satisfez plenamente os interesses da recorrente.
12. A lei, ao culminar com a nulidade o vício da incompetência em razão da matéria do autor do ato, teve em vista, pela sua gravidade, evitar a consolidação deste pelo decurso do tempo permitindo a sua impugnação a todo o tempo.
13. Assim, o interesse privado da recorrente bem como os eventuais princípios gerais de direito que o sustenta, sempre teriam que ceder em face do interesse público que exige que o ato seja praticado pela entidade competente sob pena de nulidade.
14. Os princípios gerais de direito apenas são postulados ou normas de atuação aplicáveis no exercício do poder discricionário da Administração e não já quando esse exercício é vinculado.
15. Tendo sido violados, pelo ato impugnado, concretos preceitos legais, não poderia o tribunal deixar de aplicar tais preceitos, em nome de invocados princípios gerais de direito, pelo que as decisões judiciais em crise não violaram estes princípios ao declararem a nulidade do ato.
16. A pretensão da recorrente carece de apoio legal, pelo menos nesta ação, por nada ter a ver com o pedido e a causa de pedir formulados (e fixados) na petição inicial e ainda porque na ação administrativa especial não é permitido invocar pedido reconvencional.
17. O n.º 3 do art. 134.º do CPA é inaplicável ao caso vertente dado que o ato declarado nulo é de 2009, pelo que até ao momento presente decorreram apenas 4 anos, sendo de 5 anos o período máximo previsível até ao trânsito em julgado da decisão da primeira instância.
18. O período de 10 anos concedido para a recorrente explorar o apoio de praia, dado que ainda não decorreu, não releva para efeitos de aplicabilidade do n.º 3 do art. 134.º do CPA.
19. Não foram violados quer pela Administração, quer pelo Tribunal os princípios da boa fé, da confiança e da segurança e certeza do direito, bem como o n.º 3 do art. 134.º do CPA.
20. Não pode o ato impugnado manter-se na ordem jurídica, com os fundamentos por invocados pela recorrente, não podendo, assim, ser revogado o acórdão recorrido …”.

1.6. Pelo acórdão da formação de apreciação preliminar deste Supremo Tribunal prevista no n.º 5 do art. 150.º do CPTA, datado de 31.10.2013, veio a ser admitido o recurso de revista.

1.7. Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos à Conferência para julgamento.


2. DAS QUESTÕES A DECIDIR
No essencial, constituem objeto de apreciação nesta sede:
- Erro de julgamento suscitado pela Recorrente dado discordar do decidido por entender haver violação dos princípios da boa fé, da proteção da confiança e segurança jurídica [infração aos arts. 06.º-A e 134.º, n.º 3 ambos do CPA];
- Nulidade do acórdão TCAS por excesso de pronúncia [art. 668.º, n.º 1, al. d) do CPC na redação anterior à Lei n.º 41/2013], suscitada pelo Recorrido, dado haver, por um lado, conhecido do recurso jurisdicional de apelação sem atentar que para o mesmo não tinha competência mercê da jurisprudência uniformizada deste Supremo quanto ao regime legal inserto nos arts. 27.º, n.º 1, al. i) do CPTA e 40.º, n.º 3 do ETAF e, por outro lado, por haver analisado de fundamento que se prende com alegada violação do art. 134.º, n.º 3 do CPA quando tal questão, mormente, a sua aplicabilidade ao caso vertente não tinha sido invocada por nenhuma das partes [cfr. alegações e demais conclusões supra reproduzidas].

3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. DE FACTO
Resulta como assente nos autos o seguinte quadro factual:
I) O Edital n.º 70/2009, de 13.04.2009, abriu “… concurso para atribuição de novos licenciamentos para instalação de um apoio balnear na área sob jurisdição desta Capitania, conforme POOC Burgau/Vilamoura na praia e unidade balnear (...) PRAIA DA ROCHA UB 06 (...)” [cfr. doc. n.º 2 da p.i. e n.º 3 da contestação da Entidade Demandada];
II) Em 13.05.2009, a Comissão de Análise da Entidade Demandada procedeu à abertura das propostas ao concurso para atribuição de novos licenciamentos para instalação de um apoio balnear na Praia da Rocha UB 06 [cfr. doc. n.º 03 da p.i.];
III) Pelo ofício de 26.05.2009, a Capitania do Porto de Portimão notificou a Contrainteressada de que “… a proposta apresentada por V. Ex.ª não vem acompanhada do pacto social e Curriculum Vitae da empresa (concorrente) (...) pelo que dispõe de um prazo de 2 dias úteis, a contar da receção do presente ofício, para apresentar o documento em falta …” [cfr. doc. n.º 04 da p.i.];
IV) Em 02.07.2009, no “Relatório de Análise das Propostas” pode ler-se que foi “… apresentada e admitida a concurso a (...) proposta …” da Contrainteressada [cfr. doc. n.º 01 da p.i.];
V) Em 02.07.2009, a Comissão de Análise das Propostas reuniu para definição dos critérios de apreciação das propostas do concurso, referindo designadamente que “… decorrente da existência de apenas um concorrente foi utilizada na apreciação da sua proposta o cumprimento e adequação dos requisitos definidos no Edital ...” [cfr. doc. n.º 05 da p.i.];
VI) Pelo ofício n.º 761, de 06.07.2009, a Capitania do Porto de Portimão informou a Contrainteressada designadamente do seguinte: “… No seguimento do procedimento concursal relativo ao Apoio Balnear em epígrafe, comunico que foi atribuída a V. Exa licença para o exercício da atividade a partir de 2010, renovando-se a licença mediante pedido até 2019, devendo dar cumprimento a todas as disposições de funcionamento do Apoio Balnear …” [cfr. doc. n.º 06 da p.i.];
VII) Foram abertos concursos para atribuição de outros novos licenciamentos para instalação de apoios balneares, designadamente o Apoio Balnear n.º 01 [UB 01] da PRAIA DA ROCHA, o qual foi anulado por despacho do Secretário de Estado da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar, do Ministério da Defesa Nacional, de 2009.12.17 [cfr. doc. n.º 07 da p.i.];
VIII) Com data de entrada de 2010.02.17 na Entidade Demandada, “B…………….., Lda.” apresentou um requerimento a pedir a anulação dos demais concursos, idênticos ao respeitante ao do Apoio Balnear n.º 1 [UB 1] da Praia da Rocha [cfr. doc. n.º 08 da p.i.];
IX) Por ofício de 2010.03.18, a Entidade Demandada indeferiu o solicitado em VIII) por “B………………., Lda.” [cfr. doc. n.º 09 da p.i.];
X) Pelo ofício de 2010.03.25, o A. solicitou ao Senhor Capitão do Porto de Portimão que informasse se ponderava proceder à anulação oficiosa dos demais concursos [cfr. doc. n.º 10 da p.i.];
XI) Pelo ofício de 2010.04.27, o Senhor Capitão do Porto de Portimão informou o A. sobre o referido em X) que não tencionava tomar qualquer iniciativa nesse sentido [cfr. doc. n.º 11 da p.i.];
XII) Na citada deliberação de 02.07.2009 da Comissão de Análise das propostas do concurso para a atribuição do uso privativo no Domínio Público Hídrico na área de intervenção do Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) de Burgau-Vilamoura, foi decidido atribuir à Contrainteressada a licença de ocupação do domínio público hídrico para o Apoio Balnear da Unidade Balnear n.º 06 [UB06] da Praia da Rocha - Portimão [cfr. doc. n.º 01 da p.i.];
XIII) Essa Comissão de Análise foi constituída e presidida pelo Capitão do Porto de Portimão, que se encontra integrado na estrutura da Autoridade Marítima Nacional, a qual por sua vez funciona na estrutura do Ministério da Defesa Nacional [cfr. doc. n.º 01 da p.i.];
XIV) Através do Edital 70/2009, de 13.04.2009, foi aberto, pelo Capitão do Porto de Portimão, concurso para atribuição de novo licenciamento por 10 anos consecutivos para instalação do Apoio Balnear n.º 06 [UB 6], na área de jurisdição daquela Capitania, em conformidade com o POOC de Burgau-Vilamoura, a ser instalado na Praia da Rocha, UB 06 [cfr. doc. n.º 02 da p.i., que se dá aqui por reproduzido];
XV) Nesse edital era concedido o prazo de 10 dias para apresentação das propostas pelos concorrentes, na medida em que dele constava que as propostas e os documentos que a acompanham redigidos em português, devem ser assinados pelos proponentes e devem dar entrada até 17h00 do 10.º dia útil [27.04.2009] [cfr. doc. n.º 02 da p.i.];
XVI) A Contrainteressada foi a única concorrente e foi-lhe atribuída a licença de ocupação do domínio público - UB 6 - na Praia da Rocha, pelo prazo de 10 anos;
XVII) A Contrainteressada, desde a atribuição da licença, tem vindo a fazer uso da mesma - cfr. docs. n.ºs 1 a 10 da contestação da mesma, que para os devidos legais aqui se dão por integralmente reproduzidos;
XVIII) Tendo investido milhares de euros em infraestruturas [barraca de apoio, toldos, palhotas e chapéus de sol] - cfr. docs. n.ºs 11 a 16 da contestação da Contrainteressada, que para os devidos legais aqui se dão por integralmente reproduzidos;
XIX) Bem como, com salários com funcionários, como por exemplo nadadores-salvadores - cfr. doc. n.º 15, da contestação da contrainteressada, que para os devidos legais aqui se dá por integralmente reproduzido;
XX) Pagando as taxas pelo respetivo uso da licença concedida - cfr. docs. n.ºs 1 a 10, que para os devidos legais aqui se dão por integralmente reproduzidos;
XXI) Prestando serviços, como o salvamento de naufrágios, como se demonstra nas ocorrências de 31.03.2010, 30.04.2010 e 24.05.2010 - cfr. docs. n.ºs 17 a 19 da contestação da Contrainteressada, que para os devidos legais aqui se dão por integralmente reproduzidos;
XXII) A Administração produziu o despacho n.º 01/2010, onde autorizou a ocupação da UB6 à Contestante, entre 15.03.2010 a 31.10.2010, resultante do cumprimento das obrigações impostas pela Administração, com concessão, por renovações, até 2019 - cfr. docs. n.ºs 20 a 22 da contestação da Contrainteressada, que para os devidos legais aqui se dão por integralmente reproduzidos;
XXIII) A Administração emitiu recibos referentes às taxas de utilização do domínio público concessionado à Contrainteressada.
*
3.2. DE DIREITO
Presente o quadro factual antecedente passemos, então, à apreciação das questões que constituem objeto desta instância de recurso de revista, começando, prioritariamente, pelas arguições de nulidade de decisão que foram invocadas pelo aqui recorrido em sede de contra-alegações.
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3.2.1. DA NULIDADE DE DECISÃO

I. Argumenta o recorrido que o acórdão sob impugnação se mostra lavrado em excesso de pronúncia porquanto, por um lado, conheceu mérito do recurso jurisdicional de apelação sem atentar que para o mesmo não tinha competência mercê da jurisprudência uniformizada deste Supremo quanto ao regime inserto nos arts. 27.º, n.º 1, al. i) do CPTA e 40.º, n.º 3 do ETAF e, por outro lado, por haver apreciado fundamento relativo a alegada violação do art. 134.º, n.º 3 do CPA quando tal questão, mormente, a sua aplicabilidade ao caso “sub judice” não tinha sido invocada, o que geraria como consequência a nulidade da decisão judicial sobre apreciação [conclusões 06.ª) a 09.ª) das contra-alegações].

II. Analisemos, sendo que essa atividade será feita considerando o regime processual civil vigente à data da emissão da referida decisão judicial face àquilo que constitui o necessário e devido respeito quanto à validade e eficácia dos atos praticados no quadro da lei antiga e ao assegurar da sua utilidade [cfr. art. 12.º do CC], presente, sempre, também o que se mostra disposto nos arts. 11.º e 12.º do DL n.º 303/2007, de 24.08, 05.º e 07.º, n.º 1 da Lei n.º 41/013, de 26.06.

III. Assim, preceituava-se na al. d) do n.º 1 do art. 668.º do CPC que é “… nula a sentença quando: … d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento ...” (n.º 1), derivando ainda do mesmo preceito que as “… nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades ...” (n.º 4).

IV. As situações de nulidade da decisão encontravam-se legalmente tipificadas no art. 668.º, n.º 1 do CPC, cuja enumeração era taxativa, comportando causas de nulidade de dois tipos [de caráter formal - art. 668.º, n.º 1, al. a) CPC - e várias causas respeitantes ao conteúdo da decisão - art. 668.º, n.º 1, als. b) a e) CPC], na certeza de que a qualificação como nulidade de decisão de ilegalidades integradoras de erro de julgamento não impedia o Tribunal “ad quem” de proceder à qualificação jurídica correta e apreciar, nessa base, os fundamentos do recurso.

V. Caraterizando em que se traduzia a nulidade de decisão por infração ao disposto na al. d) temos que a mesma consistia na infração ao dever que impendia sobre o tribunal de resolver todas as questões que as partes tinham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão estivesse ou ficasse prejudicada pela solução dada a outras [cfr. art. 660.º, n.º 2 CPC].

VI. De tal dever, constituindo uma decorrência do princípio da disponibilidade objetiva [cfr. art. 264.º, n.º 1 e 664.º, 2.ª parte do CPC], derivava e deriva a imposição ao julgador da obrigação de examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e de analisar todos as pretensões/questões formulados pelas mesmas, com exceção apenas das matérias ou dos pedidos/pretensões que se mostrem como juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se haja tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões.

VII. Questões para este efeito eram “... todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer ato (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes …” [cfr. A. Varela in: RLJ, Ano 122.º, pág. 112], ou, por outras palavras, trata-se de termo que deve ser considerado “em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das exceções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem …” [cfr. Ac. do STA de 31.10.2007 - Proc. n.º 01007/06, in: «www.dgsi.pt/jsta»], sendo que não poderiam confundir-se “... as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os pressupostos em que a parte funda a sua posição na questão …” [cfr. J. Alberto dos Reis in: “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 143] [cfr., no mesmo sentido e entre os mais recentes, os Acs. deste Supremo de 18.03.2010 - Proc. n.º 0528/08, de 13.07.2011 - Proc. n.º 0937/10, e de 10.10.2013 - Proc. n.º 0774/13 in: «www.dgsi.pt/jsta»].

VIII. Daí que no contexto do quadro normativo disciplinador das regras de elaboração da decisão judicial em crise as questões suscitadas pelas partes e que justificam a pronúncia do Tribunal eram determinadas pelo binómio causa de pedir-pedido, pelo que a decisão será nula quando o tribunal conheça de questões de que não podia tomar conhecimento [art. 668.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte], ou seja, quando a decisão se mostre viciada por excesso de pronúncia.

IX. E tal excesso ocorrerá sempre que o julgador/tribunal utilize, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou condene ou absolva num pedido não formulado, bem como quando conheça de matéria alegada ou pedido formulado em condições para que estava impedido de o fazer, sendo que não integra excesso de pronúncia a atribuição pelo julgador/tribunal de uma qualificação jurídica distinta daquela que é fornecida pelas partes.

X. O referido excesso de pronúncia poderá ser parcial ou qualitativo, consoante o julgador/tribunal conheça de um pedido que é quantitativa ou qualitativamente distinto daquele que foi formulado pela parte, na certeza de que, como afirma neste âmbito M. Teixeira de Sousa, este “... excesso de pronúncia parcial ou qualitativo também conduz à nulidade da decisão [arts. 661.º, n.º 1 e 668.º, n.º 1, al. e)], mas ele é distinto do excesso de pronúncia previsto no art. 668.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte, pela seguinte razão: - se o tribunal condena no pedido formulado, mas utiliza um fundamento que excede os seus poderes de conhecimento, a hipótese cabe na nulidade prevista no art. 668.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte; - mas se o tribunal, mesmo utilizando os fundamentos admissíveis, condena em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, o caso inclui-se na previsão do art. 668.º, n.º 1, al. e) …” [in: “Estudos sobre o novo Processo Civil”, Lex, Lx 1997, pág. 223].

XI. Cientes dos considerandos caraterizadores da nulidade de decisão aqui ora em análise constitui, nosso entendimento, o de que a decisão judicial sob impugnação mostra-se proferida em parte em infração do disposto no art. 668.º, n.º 1, al. d) do CPC.

XII. Do confronto da pronúncia firmada pela decisão judicial recorrida com aquilo que havia sido alegado em termos de fundamentos de defesa invocados na contestação pela Contrainteressada [cfr. arts. 32.º e segs. desta peça processual - questão do apelo aos princípios da boa fé, da segurança e da proteção da confiança (no quadro normativo do art. 06.º-A do CPA) como e enquanto fundamentos que obstariam ao operar dos efeitos da ilegalidade e consequente manutenção na ordem jurídica do ato que lhe conferiu a licença de ocupação do domínio público hídrico para instalação de apoio balnear na Praia da Rocha UB 06] e, bem assim, daquilo que constituíam as questões suscitadas pelas partes nas alegações e nas contra-alegações de recurso jurisdicional produzidas junto do TCA Sul, afigura-se-nos que, na situação em presença, ocorre nulidade de decisão por excesso de pronúncia já que a mesma não observou aquilo que eram os limites decorrentes das questões objeto do litígio, havendo extravasado aquilo que eram as suas fronteiras, sem que com o acabado de referir se conclua pela total procedência dos fundamentos de nulidade que se mostram invocados pelo recorrido.

XIII. Na verdade, não se afigura como sendo conducente à concreta nulidade de decisão arguida a pronúncia feita pelo tribunal recorrido em pretensa violação da jurisprudência uniformizada deste Supremo supra aludida porquanto se trata duma arguição a destempo e que, quanto muito, seria suscetível de gerar eventual erro de julgamento e nunca nulidade de decisão.

XIV. É que a pronúncia objeto da presente impugnação mostra-se lavrada num contexto em que a questão prévia relativa ao não conhecimento do objeto do recurso de apelação com tal fundamento não foi, enquanto ónus processual, suscitada pelo aqui recorrido no tempo e momento processual adequados [quer nas contra-alegações produzidas pelo recorrido junto do TCA Sul, quer posteriormente uma vez proferido/conhecido tal acórdão uniformizador de jurisprudência], não incorrendo, nessa medida, em nulidade por excesso de pronúncia o despacho do Relator e o acórdão que não a hajam conhecido oficiosamente.

XV. Já a fundamentação e o segmento decisório do acórdão relativos ao enquadramento e apreciação da situação vertente à luz dos pressupostos do art. 134.º, n.º 3 do CPA se nos afigura como fora daquilo que eram e são os limites do objeto desta ação administrativa especial e do objeto do recurso jurisdicional dirigido ao Tribunal “a quo” [cfr., quanto a este último, nomeadamente matéria vertida nas conclusões 14.ª) a 42.ª)], incorrendo em nulidade [art. 668.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte CPC].

XVI. Com efeito, na pronúncia que se mostra firmada o tribunal recorrido, ao proceder à análise da alegação e dos fundamentos produzidos em sede de defesa por parte da aqui recorrente, fê-lo levando em consideração o preenchimento do regime inserto no art. 134.º, n.º 3 do CPA, regime esse que não havia sido invocado em momento algum pela Contrainteressada, aqui recorrente, o que gera um excesso na mesma dado se mostrarem extravasados os seus poderes de conhecimento.

XVII. O mesmo enquadrou e procedeu à análise do conhecimento dos fundamentos de defesa [princípios da boa fé, da confiança legítima e da segurança] enquanto, alegadamente, afirmados no quadro dos arts. 06.º-A e 134.º, n.º 3 do CPA, sem que na defesa a ora recorrente tivesse feito apelo ao concreto regime geral da nulidade e aos pressupostos específicos insertos na previsão do n.º 3 do citado art. 134.º.

XVIII. Tal pronúncia nos termos em que se mostram desenvolvidos enferma de excesso já que faz apelo a quadro normativo e aprecia alegada situação jurídica que em momento algum havia sido suscitada nos autos enquanto fundamento pretensivo e/ou de defesa, não se podendo considerar estarmos, no caso, perante meras considerações ou argumentos tecidos sobre aspetos ou a propósito de questões suscitadas pelas partes.

XIX. A possibilidade ou não de atribuição de ”certos efeitos jurídicos” a situações de facto decorrentes de atos nulos e que tem em vista os chamados “efeitos putativos” não influencia ou interfere com a questão/juízo de declarar ou não a nulidade dum ato administrativo.

XX. É que nas situações previstas no n.º 3 do art. 134.º do CPA não se está perante o afastamento ou sanação da ilegalidade geradora do desvalor da nulidade que afeta a validade do ato administrativo na sequência do qual se criou a situação de facto, mas sim numa atribuição de efeitos autónomos a essa situação de facto.

XXI. Nessa medida, não relevando para efeito da declaração de nulidade a existência ou não de uma situação de facto a que devam ser reconhecidos os chamados “efeitos putativos” à luz do interesse público da estabilização das relações jurídico-sociais e sendo que a consideração duma tal situação não se mostra alegada ou sequer invocada em sede e momentos próprios pela Contrainteressada, aqui recorrente, então estamos em face de matéria ou de questão que está manifestamente fora do âmbito do objeto da ação não podendo, como tal, ser conhecida e apreciada pelo julgador.

XXII. Daí que está, assim, em questão uma pronúncia quanto a fundamento de defesa que não foi invocado pelas partes em litígio, mormente, pela recorrente, pelo que procede, nesse âmbito, a arguição de nulidade suscitada pelo recorrido [conclusão 09.ª)], o que implica, pelas consequências do assim considerado, ficar o recurso jurisdicional que se nos mostra dirigido reconduzido tão-só à apreciação do erro de julgamento no segmento que se prende com a alegada infração aos princípios da boa fé, da proteção da confiança e segurança jurídica [art. 06.º-A do CPA].
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3.2.2. DO ERRO DE JULGAMENTO

XXIII. Alega a recorrente, naquilo que ora se mostra reconduzido o objeto de recurso, que o acórdão sob impugnação enferma de erro de julgamento porquanto a mesma está de boa fé e deve ser protegida na sua situação jurídica mediante o operar dos princípios da boa fé, da segurança e da proteção da confiança à luz do disposto no art. 06.º-A do CPA, como e enquanto fundamentos que obstariam ao desencadear dos efeitos da ilegalidade e consequente manutenção na ordem jurídica do ato que lhe conferiu a licença de ocupação do domínio público hídrico para instalação de apoio balnear na Praia da Rocha UB 06.
Analisemos da procedência desta motivação, impondo-se para tal tecer algumas notas de enquadramento da matéria.

XXIV. Assim, importa ter presente, desde logo, que o princípio da boa fé encontra-se claramente positivado na nossa ordem jurídica mercê da sua consagração nos arts. 266.º da CRP e 06.º-A do CPA [mercê das alterações introduzidas neste Código pelo DL n.º 6/96, de 31.01].

XXV. O princípio em análise opera com relação aos atos jurídicos bem como com os direitos que se exercitam e as obrigações que se cumprem, passando, fundamentalmente, pela emissão de um juízo de valor aplicado a uma conduta quando confrontada com um determinado comportamento anterior.

XXVI. Enquanto princípio geral de direito a boa fé significa “… que qualquer pessoa deve ter um comportamento correto, leal e sem reservas, quando entra em relação com outras pessoas …” [cfr. M. Esteves de Oliveira, Pedro C. Gonçalves e J. Pacheco Amorim in “Código do Procedimento Administrativo”, 2.ª edição, pág. 108].

XXVII. Ora à luz daquilo que constitui o objeto de dissídio importa que a nossa análise se circunscreva à vertente do subprincípio da tutela da confiança, pressupondo este várias circunstâncias para a sua verificação.

XXVIII. Assim, serão cinco os pressupostos jurídicos para o preenchimento da tutela de confiança. A saber: a) a atuação dum sujeito de direito que crie a confiança; b) a situação de confiança mostrar-se justificada por elementos objetivos idóneos a produzir uma crença plausível; c) a existência dum investimento de confiança; d) o nexo de causalidade/imputação entre a atuação geradora de confiança e a situação de confiança e entre esta e o investimento de confiança; e) a frustração da confiança por parte do sujeito jurídico que a criou [cfr. Marcelo Rebelo de Sousa in: “Direito Administrativo Geral”, Tomo I, pág. 216; vide, também, Diogo Freitas do Amaral in: “Curso de Direito Administrativo”, vol. II, 2.ª edição (2012), págs. 149/150].

XXIX. Note-se que no quadro duma situação de tutela de confiança revela-se como necessário estarmos em face duma confiança “legítima”, o que passa, em especial, pela sua adequação ao Direito, dado não poder invocar-se a violação do referido princípio quando o mesmo radique num ato anterior claramente ilegal, sendo tal ilegalidade percetível e não contestada por aquele que pretenda invocar em seu favor o referido princípio [cfr., entre outros, os Ac. deste Supremo de 18.06.2003 - Proc. n.º 01188/02, de 21.06.2007 - Proc. n.º 0126/07 in: «www.dgsi.pt/jsta»; e Marcelo Rebelo de Sousa in: ob. cit., págs. 217/218].

XXX. Temos, por outro lado, que para que se possa, válida e relevantemente, invocar tal princípio é necessário que o interessado não o pretenda alicerçar apenas na sua mera convicção psicológica antes se impondo a enunciação de sinais externos produzidos pela Administração suficientemente concludentes para um destinatário normal e onde se possa razoavelmente ancorar a invocada confiança.

XXXI. Ao referido acresce ainda a necessidade do particular ter razões sérias para acreditar na validade dos atos ou condutas anteriores da Administração aos quais tenha ajustado a sua atuação.

XXXII. Dúvidas não existem de que a jurisprudência deste Supremo tem admitido inequivocamente a aplicação quer do princípio da boa fé quer do princípio da proteção da confiança enquanto fonte de ilegalidade e de responsabilidade da Administração [cfr., entre outros e sem preocupações exaustivas, os Acs. deste Supremo de 26.10.1994 - Proc. n.º 017626, de 28.11.2000 - Proc. n.º 042055, de 16.10.2002 - Proc. n.º 048379, de 13.11.2002 - Proc. n.º 044846, de 30.04.2003 (Pleno) - Proc. n.º 047275, de 06.05.2003 - Proc. n.º 46188, de 18.06.2003 - Proc. n.º 01188/02, de 03.11.2005 - Proc. n.º 0803/05, de 05.12.2007 - Proc. n.º 0653/07, de 11.09.2008 - Proc. n.º 0112/07, de 09.07.2009 - Proc. n.º 0203/09, de 30.09.2009 - Proc. n.º 0662/09, de 31.10.2012 - Proc. n.º 0553/11 in: «www.dgsi.pt/jsta»].

XXXIII. Temos, por outro lado, que a exigência da proteção da confiança é também uma decorrência do princípio da segurança jurídica, imanente ao Estado de Direito, já que o princípio do Estado de Direito Democrático garante seguramente um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica.

XXXIV. Não podemos deixar de ter sempre como presente que o ser humano para além de liberdade carece de segurança para poder conduzir, planificar, estruturar e conformar de forma autónoma e responsável a sua vida.

XXXV. Nessa medida, a vida num Estado de Direito Democrático terá de estar ancorada necessariamente nos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

XXXVI. O princípio da segurança jurídica, enquanto implicado no princípio do Estado de Direito Democrático, comporta duas ideias basilares. Uma, a de estabilidade, no sentido de que as decisões dos entes públicos “não devem poder ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável a alteração das mesmas quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes”. Outra ideia é a da previsibilidade que, no essencial se “reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos atos normativos”.

XXXVII. Daí que a realização e efetivação do princípio do Estado de Direito, no nosso quadro constitucional, impõe que seja assegurado um certo grau de calculabilidade e previsibilidade dos cidadãos sobre as suas situações jurídicas, ou seja, que se mostre garantida a confiança na atuação dos entes públicos.

XXXVIII. É, assim, que o princípio da proteção da confiança e segurança jurídica pressupõe um mínimo de previsibilidade em relação aos atos do poder, de molde a que a cada pessoa seja garantida e assegurada a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos atos que pratica.

XXXIX. Assiste às pessoas o direito de poderem confiar que as decisões sobre os seus direitos ou relações/posições jurídicas tenham os efeitos previstos nas normas que os regulam e disciplinam.

XL. A propósito da “segurança jurídica” e da “proteção da confiança” refere o J.J. Gomes Canotilho que “… a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica - garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e de realização do direito - enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos dos poderes públicos. A segurança e a proteção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios atos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança são exigíveis perante qualquer ato de qualquer poder - legislativo, executivo e judicial. O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de proteção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses atos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico …” [in: “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7.ª edição, pág. 257].

XLI. Aqui chegados e cientes dos considerandos de enquadramento tecidos impõe-se, então, que nos interroguemos da procedência da argumentação expendida pela recorrente para sustentar a tese que esgrimiu nos autos.

XLII. E nesse quadro a conclusão terá de ser no caso negativa, não assistindo razão à recorrente no posicionamento que sustenta.

XLIII. É que, presente a situação jurídica sob apreciação, mostra-se neste momento admitido nos autos, por não objeto de impugnação recursiva pela recorrente, que o ato administrativo em crise é ilegal dada a infração de vários dispositivos legais tal como se concluiu no acórdão do TCAS, tendo-o este declarado nulo.

XLIV. Assim, não pode a recorrente, fazendo apelo aos princípios da boa fé, da proteção da confiança e da segurança jurídica, querer ou pretender obstar ao operar das consequências legais em termos do respetivo desvalor decorrente da verificação de concretas ilegalidades de que enferma o ato administrativo impugnado, tanto mais que os mesmos princípios não possuem efeitos convalidatórios ou sanatórios a ponto de lograrem manter na ordem jurídica aquele ato administrativo.

XLV. Todavia, mesmo a considerarem-se como preenchidos em concreto os requisitos/pressupostos integradores da violação dos princípios invocados pela recorrente, em especial, os atrás enunciados quanto ao princípio da tutela/proteção da confiança o que não se tem como minimamente líquido, frise-se, não é aceitável, nem admissível, que os mesmos princípios obstem ou impeçam sem mais e sem qualquer limitação o operar do desvalor decorrente de ilegalidade de que enferme ato administrativo, mantendo ou impondo, dessa forma, na ordem jurídica um ato administrativo desconforme com a lei.

XLVI. Assim, como o apelo a tais princípios não poderá determinar a anulação dum ato administrativo que, praticado no exercício de poderes vinculados, se apresenta em conformidade com a lei, também não se descortina como sempre admissível ou possível o mesmo apelo aos referidos princípios para preservar ou manter na ordem jurídica um ato administrativo ilegal sancionado com o desvalor da nulidade, impedindo que o mesmo, assim, seja julgado e declarado em processo judicial deduzido com tal objetivo.

XLVII. Não se vislumbra que uma ilegalidade de que padeça um ato administrativo, conferidor duma determinada situação/posição jurídica a um particular e de que o mesmo beneficia, não possa ser declarada judicialmente em ação movida para esse efeito por a isso obstar algum dos princípios jurídicos convocados pela recorrente.

XLVIII. Na tese desta a pretexto de que tal se traduziria ou redundaria sempre numa violação dos princípios jurídicos em referência estava o tribunal impedido de assim julgar e declarar.

XLIX. Tal não é aceitável em tese e muito menos o é na situação em análise no caso concreto.

L. Na verdade, não se pode considerar que pelo simples facto da Administração haver praticado um ato favorável à pretensão da aqui recorrente, datado de 02.07.2009, tal haja implicado automática e sem mais o criar dum qualquer clima potencialmente gerador de confiança e, muito menos, duma confiança legítima, ou seja, por conforme com a lei [no sentido de que a recorrente tinha direito à atribuição do uso privativo nos termos pretendidos], ou que tivesse sido criado um quadro de total e absoluta segurança jurídica da posição, na certeza de que a recorrente sabe, pelo menos, desde a data da sua citação para os termos desta ação [26.05.2010] que aquele seu “direito” se mostra controvertido e a sua legalidade posta em questão.

LI. Aquilo que existe é, tão-só, a emissão dum ato com determinado conteúdo [atribuição à Contrainteressada, ora recorrente, de licença de ocupação do domínio público hídrico para instalação de apoio balnear na Praia da Rocha UB06] ato esse cuja legalidade foi posta em causa com a dedução da presente ação [24.05.2010] e que assim veio a ser reconhecido com trânsito em julgado nesse âmbito.

LII. A declaração de nulidade do ato administrativo impugnado no quadro de ação judicial, com os contornos já referidos, não poderá deixar de ser operante de nada valendo, nesse domínio, quaisquer expectativas detidas pela recorrente quanto à manutenção na ordem jurídica do ato que, sendo-lhe favorável, é nulo dado o desvalor que sanciona algumas das ilegalidades de que o mesmo enferma.

LIII. Tal como é referido por M. Esteves de Oliveira e outros “… a atuação de boa fé de um dos intervenientes no procedimento não convalidará, não fará desaparecer o vício invalidante de que sofre o ato administrativo: um deferimento a que falta um requisito legalmente exigido, por a Administração ter sugerido ao particular, e este ter confiado nela, que não o consideraria na sua avaliação, é anulável; como também não é válido o ato de órgão incompetente, por a sua conduta ter levado o particular a entender que se tratava do órgão competente (…). (…) A conduta administrativa, nesses casos, é certamente fonte de responsabilidade civil, mas não de convalidação jurídica do ato ilegal: este não deixa de ser anulável mesmo que represente o culminar de um comportamento procedimental correto e leal da Administração ou que o seu destinatário tenha mantido ao longo do procedimento uma postura irrepreensível, ignorando violar qualquer disposição legal. (…) As hipóteses em que se vem admitindo algo diferente são, por exemplo, a de a Administração ter considerado, durante um longo espaço de tempo, uma dada situação conforme ao Direito (apesar de ilegal), mas pretender agora, porque a manutenção dela já não lhe aproveita, invocar a sua nulidade (por vício de forma ou por qualquer outro), ou de ter, com a sua conduta ilegal (consubstanciada ou não em ato administrativo), induzido em erro o particular e querer depois extrair dessa conduta, de forma intolerável, efeitos desfavoráveis para o administrado de boa fé …” [in: ob. cit., págs. 113/114].

LIV. Aliás, como também refere Marcelo Rebelo de Sousa, mostra-se problemático o alcance, mormente, do princípio da tutela da confiança, enquanto limite da atuação administrativa, não sendo claro que o referido princípio possa em qualquer caso implicar a “adstrição da administração à adoção do comportamento esperado e mesmo a anulação de um comportamento contrário já efetivamente adotado …” e sendo que “… só em casos extremos, e desde que não estivesse em causa a confiança de terceiros, poderia o princípio impor à administração a prática de um ato violador de parâmetros da atividade administrativa ou implicar a anulação de um ato vinculado já praticado que se tivesse conformado com aqueles …” [in: ob. cit., págs. 217/218].

LV. Dos princípios jurídicos em referência não se extraem termos e comandos que que, no caso, imponham a manutenção na ordem jurídica de ato administrativo ilegal sujeitando particulares e a Administração a “conviver” com ato que se sabe ser ilegal, tanto mais que isso redundaria num claro entrave à reposição da legalidade, num cerceamento ilegítimo dos poderes de reafirmação da primazia da legalidade dos procedimentos e dos atos e sem que existam ou militem razões sérias e válidas ancoradas noutros valores e princípios que importe considerar.

LVI. Ao invés do pretendido pela recorrente não é esse o desiderato ou função conferido aos mesmos princípios, não servindo os mesmos para tutela de situação como aquela que se mostra apurada nos autos, já que não se divisa que a concreta situação jurídica da recorrente integre ou preencha qualquer dos princípios jurídicos que a mesma convocou ou o quadro normativo inserto no art. 06.º-A do CPA, que, assim, não foram violados pelo juízo firmado na decisão judicial sob recurso.

LVII. Nessa medida e considerando tudo o atrás exposto, não vislumbramos assistir razão à recorrente nas críticas avançadas perante esta instância e enquanto estribadas num alegado erro de julgamento assacado ao acórdão recorrido, impondo-se, por conseguinte, concluir pela total improcedência do recurso jurisdicional.
4. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em negar total provimento ao recurso jurisdicional “sub judice” e consequentemente, pela motivação antecedente, manter a decisão judicial recorrida.
Custas nesta instância a cargo da recorrente. D.N..
Lisboa, 9 de Julho de 2014. – Carlos Luís Medeiros de Carvalho (relator) – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Alberto Augusto Andrade de Oliveira.