Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02207/15.7BESNT
Data do Acordão:02/21/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
Sumário:É de admitir a revista de acórdão que considerou ilidida a presunção de culpa de uma concessionária de auto-estrada em acidente provocado por objectos na via, se tal decisão se mostra contextualmente complexa e carente de clarificação.
Nº Convencional:JSTA000P31933
Nº do Documento:SA12024022102207/15
Recorrente:AA E OUTROS
Recorrido 1:A..., S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, em «apreciação preliminar», na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

1. AA e BB - autores desta acção administrativa «comum» - vêm, invocando o artigo 150º do CPTA, interpor recurso de revista do acórdão do TCAS - de 13.07.2023, complementado pelo acórdão de 12.12.2023 - que negou provimento à sua apelação e confirmou - com um «voto de vencido» - a sentença - de 25.07.2017 - pela qual o TAF de Sintra «julgou improcedente» a sua acção e «absolveu dos pedidos a demandada A..., S.A., e a interveniente principal B..., S.A.» [actual C..., S.A.].

Alegam que o recurso de revista deve ser admitido em nome da «necessidade de uma melhor aplicação do direito» e da «importância fundamental» da questão litigada.

A entidade demandada - A..., S.A apresentou contra-alegações em que defende, além do mais, a não admissão da revista por falta dos necessários pressupostos legais - artigo 150º, nº1, do CPTA.

2. Dispõe o nº1, do artigo 150º, do CPTA, que «[d]as decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que pela sua relevância jurídica ou social «se revista de importância fundamental» ou quando a admissão do recurso seja «claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

Deste preceito extrai-se, assim, que as decisões proferidas pelos TCA’s, no uso dos poderes conferidos pelo artigo 149º do CPTA - conhecendo em segundo grau de jurisdição - não são, em regra, susceptíveis de recurso ordinário, dado a sua admissibilidade apenas poder ter lugar: i) Quando esteja em causa apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental; ou, ii) Quando o recurso revelar ser claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.

3. Os referidos autores demandaram a A..., S.A - que chamou à demanda, como «interveniente principal», a actual C... - responsabilizando-a pelos danos patrimoniais e morais resultantes de acidente de viação ocorrido em 29.11.2011 na A16 - no sentido Lisboa Sintra, Km 19,5, via da esquerda - alegadamente provocado por objectos existentes na via de trânsito - 3 volumes com 1,60m por 75cm, com placas de lã de vidro com referência da empresa D... - sem qualquer sinalização. Pedem ao tribunal que condene a demandada a pagar ao autor a quantia global de 14.980,22€ - pelos danos patrimoniais e morais - e à autora - que com autorização do autor conduzia a viatura - a quantia global de 21.549,00€ - pelos danos patrimoniais e morais. Os autores fundamentam a sua pretensão indemnizatória na «responsabilidade» que recai sobre a A..., S.A relativamente à conservação e vigilância da auto-estrada em causa, de que é concessionária, e atenta a presunção de culpa constante do artigo 12º, nº1 alínea a), da Lei nº24/2007, de 18.07 - diploma que define os direitos dos utentes nas vias rodoviárias concessionadas.

O tribunal de 1ª instância - TAF de Sintra - após ter procedido ao «julgamento de facto», considerou em termos jurídicos e com base naquilo que «deu como provado», que não era de se responsabilizar a concessionária demandada por esta ter conseguido «ilidir a referida presunção de ilicitude e de culpa». Para o efeito, na sua sentença, assentou o respectivo «julgamento de direito» no cotejo de um vasto conjunto de normas legais - convoca os artigos 7º, nº1, e 10º, nº3, da Lei nº67/2007, de 31.12; 493º do CC; 12º, nº1 alínea a), e nº2, da Lei nº24/2007, de 18.07; Base X do contrato de concessão da Grande Lisboa, constante do DL nº242/2006, de 28.12; e 6º da minuta do contrato de concessão, constante da Declaração de Rectificação nº4-A/2007, de 05.01 - e na mesma refere, além do mais, o seguinte: «Contudo a concessionária poderá afastar essa presunção de culpa se conseguir demonstrar que o facto que esteve na origem do acidente se deveu à intervenção de outrem, de tal forma que, mesmo tomando todas as medidas razoáveis de cautela para evitar o acidente, ele teria igualmente ocorrido devido a essa intervenção, ainda que meramente negligente. É o que entendemos no caso em apreço, porquanto pela quantidade dos objectos e sua dimensão, os mesmos só podem ter sido deixados pouco tempo antes por um veículo que ali circulou. Aliás, a testemunha CC referiu quanto aos destroços dos objectos que aquilo não cabia dentro da carrinha, teve de chamar outra viatura. O que denota a grande dimensão dos mesmos, e se estivessem efectivamente na via há tempo suficiente para serem localizados pela viatura responsável pelo patrulhamento, fosse há uma, duas ou três horas antes, teriam certamente provocado outros acidentes ou outros condutores teriam alertado quer a ré ou a autoridade policial. A ré tentou ainda identificar o veículo causador, mas não foi possível. Assim, a menos que a viatura de patrulhamento da ré tivesse circulado à frente do veículo conduzido pela autora, pouco tempo antes, não poderia a ré ter evitado o embate com os ditos objectos. Ou seja, o acidente teria ocorrido independente da sua acção de vigilância que não deixou que ela tivesse tido sucesso. Pelo que se considera elidida a presunção de ilicitude e culpa, e, por isso, inexistindo a inversão do ónus da prova, caberia aos autores provar a ilicitude do facto e a culpa da ré, o que não lograram fazer. Não se bastando, para o efeito, a mera existência não sinalizada de um objecto na via. Termos em que se conclui que não se encontram preenchidos os requisitos ilicitude e culpa necessários para responsabilizar a ré pelos danos causados pelo embate do veículo conduzido pela autora para evitar o embate com os objectos na via, e por isso, a presente acção improcederá, por não provada».

O tribunal de 2ª instância - TCAS - negou provimento à «apelação» dos autores, embora com um voto de vencido, e terminou, assim, confirmando o julgamento da sentença aí recorrida. Para tanto, o tribunal de apelação julgou improcedentes erros de julgamento de facto invocados no recurso - factos dados como não provados que, alegadamente, deveriam ser dados como provados, e omissão de factos alegadamente relevantes para a decisão de direito -, e confirmou, com base no provado, o julgamento de direito do tribunal de 1ª instância. Considerou que a decisão recorrida andou bem ao entender que a presunção de culpa do artigo 12º, nº1 alínea a), da Lei nº24/2007 de 18.07, foi, no caso concreto, afastada pela demandada, e sublinha que tal presunção não foi afastada com base em prova genérica - como alegam os apelantes -, mas antes em prova produzida sobre a específica factualidade do caso e da qual «resultou claro que face ao pouco tempo que os objectos poderiam ter permanecido na via sem que fossem notados por outros condutores, o que não sucedeu, a intervenção da demandada, ainda que fosse diferente, não teria sido apta a impedir a ocorrência do acidente, pelo que a sua actuação foi a adequada e aquela que racionalmente lhe podia ser exigida».

Novamente os autores, e apelantes, discordam, e imputam ao acórdão do «tribunal de apelação» erro de julgamento de facto e erro de julgamento de direito. É certo que os ora recorrentes apontam também uma nulidade ao acórdão recorrido, a qual, todavia, não levaram às «conclusões» da revista. Porém, essa nulidade acabou por ser objecto de acórdão complementar - de 12.12.2023 - que, e aparentemente, a alijou com mérito. O erro de julgamento de facto, consubstancia-se na discordância dos ora recorrentes em não ver integrada - pelo tribunal de apelação - na factualidade provada a referência a que «a viatura ficou danificada» nos termos do auto da PSP que o tribunal de 1ª instância deu por reproduzido, a fim de isso permitir um eventual e futuro incidente de liquidação de danos. O erro de julgamento de direito cifra-se na discordância dos recorrentes sobre o já referido afastamento da presunção de culpa, dado que, na tese dos recorrentes, a matéria de facto, como vem julgada da 1ª instância, é «suficiente e adequada» para condenar a concessionária demandada, «atento o disposto nos artigos 12º, nº1, alínea a), da Lei nº24/2007, de 18.07, e 350º do CC». Sublinha que «não se alcança como é que o tribunal de apelação deu como provado que os objectos estavam na faixa de rodagem há pouco tempo, e com isso considerou ilidida a presunção legal de culpa que recai sobre a concessionária, a qual só poderá ser ilidida mediante prova em contrário», e que «para ilidir a presunção de incumprimento que recai sobre tal entidade não basta a prova genérica de que houve passagens da equipa de assistência e/ou que não foi comunicada a presença de objectos na faixa de rodagem…».

Compulsados os autos, importa apreciar «preliminar e sumariamente», como compete a esta Formação, se estão verificados os «pressupostos» de admissibilidade do recurso de revista - referidos no citado artigo 150º do CPTA - ou seja, se está em causa uma questão que «pela sua relevância jurídica ou social» assume «importância fundamental», ou se a sua apreciação por este Supremo Tribunal é «claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

Ora, como vem sublinhando esta «Formação», a admissão da revista fundada na clara necessidade de uma melhor aplicação do direito prende-se com situações respeitantes a matérias relevantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente, ou, até, de forma contraditória, a exigir a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa como essencial para dissipar as dúvidas sobre o quadro legal que regula essa concreta situação, emergindo, destarte, a clara necessidade de uma melhor aplicação do direito com o significado de boa administração da justiça em sentido amplo e objectivo. E que a relevância jurídica fundamental se verifica quando se esteja - designadamente - perante questão jurídica de elevada complexidade, seja porque a respectiva solução envolve a aplicação conjugada de diversos regimes jurídicos, seja porque o seu tratamento tenha já suscitado dúvidas sérias na jurisprudência ou na doutrina. Por seu lado, a relevância social fundamental aponta para questão que apresente contornos indiciadores de que a respectiva solução pode corresponder a paradigma de apreciação de casos similares, ou que verse sobre matérias revestidas de particular repercussão na comunidade.

Como se evidencia a questão nuclear ainda litigada tem a ver com a correcta aplicação ao caso dos ora recorrentes da presunção de culpa estipulada no artigo 12º, nº1 alínea a), da Lei nº24/2007, de 18.07, conjugado com o artigo 350º do CC. Trata-se, decerto, de assunto jurídico vastamente tratado na jurisprudência, mas que, no presente caso, apresenta contornos tão subtis que o coloca no «fio da navalha» deste tipo de casos, como o manifesta, aliás, o «voto de vencido» que integra o acórdão recorrido. E é esta complexidade «do caso» que justifica a admissão deste recurso de revista, porque não é certo que o mesmo tenha sido correctamente decidido, subsistindo dúvidas bastantes para justificar a sua apreciação pelo tribunal de revista. Ademais, a presente situação, de um condutor se deparar - inopinadamente - com objectos a obstruir a faixa de rodagem numa auto-estrada concessionada, pode acontecer a qualquer um, e daí a «relevância social» de o órgão superior da jurisdição administrativa se pronunciar, esclarecendo os contornos jurídicos das exigências impostas à concessionária para arredar de si a legal presunção de culpa, e de ilicitude, sobretudo quando o condutor nenhuma culpa teve.

Daí que, ponderadas as pertinentes críticas ínsitas nas alegações de revista à solução acolhida no acórdão do «tribunal de apelação», atenta a complexidade da questão e a vocação paradigmática da decisão que venha a ser proferida, impõe-se que o juízo ora impugnado seja objecto de reanálise e reponderação por este STA, de forma a dissipar as dúvidas que ainda subsistem.

Importa, pois, considerar que este caso integra a natureza excepcional que é exigida por lei à admissão deste tipo de recursos, e admitir a revista interposta pelos autores AA e BB.

Nestes termos, e de harmonia com o disposto no artigo 150º do CPTA, acordam os juízes desta formação em admitir a revista.

Sem custas.

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2024. - José Veloso (relator) – Teresa de Sousa – Fonseca da Paz.