Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:073/17.7BELLE
Data do Acordão:11/09/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:APRECIAÇÃO PRELIMINAR
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
COMPRA E VENDA
Sumário:I - O tribunal «a quo» andou seguramente bem ao recusar o pedido cautelar de suspensão provisória dos efeitos de um contrato de compra e venda, já celebrado e regido pelo direito civil.
II - E andou aparentemente bem ao recusar o pedido de que provisoriamente se proibisse uma câmara municipal de licenciar obras, de demolição e de edificação, no terreno objecto da mencionada venda, já que não estariam verificadas as condições de que depende a aplicabilidade do art. 37°, n.º 1, al. c), do CPTA.
III - Não é de admitir a revista em que os recorrentes questionam insuficientemente as decisões ditas em I e II.
Nº Convencional:JSTA000P23824
Nº do Documento:SA120181109073/17
Data de Entrada:10/01/2018
Recorrente:A... E OUTROS
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em apreciação preliminar, no Supremo Tribunal Administrativo:
B………… e outros, identificados nos autos, interpuseram a presente revista do acórdão do TCA Sul que, para além de declarar parcialmente nula a sentença do TAF de Loulé – que deferira o procedimento cautelar instaurado pelos recorrentes contra o Município de Vila Real de Santo António e C…………, SA - revogou-a e indeferiu a providência.

Os recorrentes pugnam pela admissão da revista porque esta incide sobre questões relevantes e mal decididas pelo tribunal «a quo».

Só o município contra-alegou, considerando a revista inadmissível.

Cumpre decidir.

Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos TCA's não são susceptíveis de recurso para o STA. Mas, excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental; ou quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito («vide» o art. 150°, n.º 1, do CPTA).

Os recorrentes Instauraram a presente «providência cautelar não especificada», dizendo que ela serve uma acção administrativa em que pediriam a declaração de nulidade de vários actos da Câmara e da Assembleia Municipal de Vila Real de Santo António – os quais possibilitaram que um determinado terreno fosse desafectado do domínio público e que, relativamente a uma parcela dele destacada, se abrisse um procedimento pré-contratual concluído pela escolha da C……….. como a compradora do imóvel para aí erigir um hotel – e pediriam ainda a declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre os requeridos.

Entretanto, e neste meio cautelar, os requerentes pediram a suspensão dos efeitos dessa venda e a condenação do município a abster-se de autorizar a demolição dos vários equipamentos existentes no terreno vendido e de licenciar quaisquer construções – designadamente o hotel – no mesmo local. E, a título complementar, também pediram que se inscrevesse «a proibição» no registo predial.

Em prol do deferimento das referidas pretensões cautelares, os requerentes invocaram, «grosso modo», o seguinte: por um lado, as ilegalidades dos actos sobreditos; por outro lado, os prejuízos que sofrerão se tais equipamentos – por si utilizados – desaparecerem e se o hotel for construído.

O TAF de Loulé deferiu o procedimento cautelar. Mas o TCA Sul – para além de declarar a nulidade parcial da sentença, por omissão de pronúncia, e de, num julgamento substitutivo, afirmar a ilegitimidade processual das duas sociedades por quotas que integravam o vasto elenco dos requerentes iniciais – revogou a decisão do TAF e indeferiu «as providências cautelares requeridas».

Para assim decidir, o TCA disse duas básicas coisas: que era impossível suspender os efeitos do contrato de compra e venda porque eles já se consumaram; e que não estão reunidas as condições para os requerentes pedirem – seja em sede cautelar, seja na ação principal – uma condenação do ente público a abster-se da prática de actos de licenciamento («vide» o art. 37°, n.º 1, al. c), do CPTA), já que a tutela dos interesses por eles invocados é perfeitamente realizável por uma via reactiva.

Os recorrentes questionam estes dois pontos. Mas uma «summaria cognitio» aponta logo para o relativo acerto do aresto «sub specie». A crença, exibida pelos recorrentes «ab initio litis», de que os tribunais administrativos poderiam suspender «os efeitos» dessa anterior compra e venda, internamente regida pelo direito civil, carece de base. Os efeitos essenciais da compra e venda constam do art. 879º do Código Civil. Ora, e porque não são negócios reais «quoad constitutionem», os contratos de compra e venda transmitem de imediato o direito de propriedade – pelo que este efeito fundamental não depende de «traditio». E, como é do conhecimento comum, as obrigações sinalagmáticas de «entregar a coisa» e de «pagar o preço» só respeitam aos respectivos contraentes, dada a natureza relativa dos contratos (art. 406°, n.º 2, do Código Civil). Portanto, os recorrentes estão severamente equivocados ao dizerem que o negócio não produziu todos os seus efeitos porque a sociedade adquirente ainda não exerceu efectivos actos de posse sobre a parcela transmitida.

Por outro lado, a revista não conseguiu atacar eficazmente a outra afirmação do acórdão «sub specie» - relacionada com a inadmissibilidade de aqui se usar uma via preventiva. É do conhecimento geral que este «iter» só excepcionalmente se pode seguir. E o TCA argumentou longamente – e bem – no sentido de afastar o propósito, ensaiado pelos requerentes, de se intrometer «ex ante» na actividade administrativa.

É certo que os recorrentes dizem temer que uma sua atitude simplesmente reactiva contra os, ainda hipotéticos, licenciamentos camarários – de demolição dos equipamentos e de edificação do hotel – não tutele eficazmente os seus interesses. Mas esse risco relaciona-se sobretudo com o tempo da sua reacção. Ora, a eficácia das respostas reactivas afere-se «in abstracto», não tendo a ver com os modos, mais atentos ou mais negligentes, como os interessados concretamente respondam.

Ademais, os recorrentes parecem olvidar que – fruto do aludido contrato de compra e venda – os equipamentos por eles utilizados, e em cujo uso insistem, pertencem agora à compradora; pelo que, enquanto o contrato subsistir, a utilização que deles façam decorrerá de mera tolerância E é claro que nenhum tribunal pode impor aos «domini» que tolerem o gozo dos seus bens por terceiros desprovidos, para tanto, de um título legitimador.

Portanto, o processo cautelar dos autos apresentava, «ab initio», fragilidades jurídicas gritantes; pelo que o aresto sob recurso, ao indeferi-lo, limitou-se aparentemente a operar a «restitutio ordinis» que o caso impunha. E, assim sendo, não se justifica uma qualquer reapreciação do acórdão e antes se impõe que aqui reiteremos a regra da excepcionalidade das revistas.

Nestes termos, acordam em não admitir a revista.

Custas pelos recorrentes (art. 4°, n.º 5, do RCP).

Porto, 9 de Novembro de 2018. – Madeira dos Santos (relator) – Costa Reis – São Pedro.