Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:03104/11.0BEPRT 0772/18
Data do Acordão:01/29/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:RENÚNCIA
CONTRATO
CESSAÇÃO DO CONTRATO
ARRENDAMENTO RURAL
INDEMNIZAÇÃO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
PRINCÍPIO DA TIPICIDADE FISCAL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Sumário:I - Em concordância com o princípio da legalidade dos impostos, estes só podem ser cobrados quando se verificam os pressupostos aos quais a lei condiciona a existência de uma obrigação fiscal devendo o intérprete cuidar de a conceber em termos restritos, aplicável, consequentemente, apenas aos casos e situações inequivocamente naquela previstos.
II - A tributação só pode resultar da verificação concreta de todos os pressupostos tributários, como tais previstos e descritos, abstractamente, na lei de imposto. Se não se verificar um dos pressupostos, já não é possível a tributação, por obediência ao princípio da tipicidade do imposto.
III - No Direito Tributário, a tipologia é dominada não só por um princípio de taxatividade como também por um princípio de exclusivismo. Opera-se o fenómeno que a lógica jurídica designa por implicação intensiva. Verifica-se a implicação intensiva sempre que os elementos enunciados no pressuposto não são apenas suficientes, mas ainda necessários para a verificação da consequência: se esses elementos se verificarem, segue-se a consequência, mas esta só se segue, se eles se verificarem.
IV - As indemnizações devidas por renúncia onerosa a posições contratuais ou outros direitos inerentes a contratos relativos a bens imóveis constituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias (artigo 9º, nº1, alínea e) do CIRS).
V - Esta norma de incidência foi introduzida pela Lei n.º 82-E/2014, de 31de Dezembro (Lei da Reforma do IRS). Anteriormente, as indemnizações por renúncia onerosa a posições contratuais ou outros direitos inerentes a contratos relativos a bens imóveis não se encontravam sujeitas a tributação em sede de IRS, em virtude da inexistência de norma de incidência específica que as previsse.
VI - Assim, no tocante à renúncia onerosa a posições contratuais, designadamente, a cessação de contrato de arrendamento rural não estava contemplada nas normas de incidência do IRS, concretamente enquanto rendimento da categoria G, previsto no artigo 9º, nº1, alínea b) até porque, se a primitiva redacção já pretendesse abranger estes ganhos, seria natural que se atribuísse à nova redacção natureza interpretativa, à semelhança do que é usual fazer-se nas leis orçamentais, quando se pretende que as novas redacções (clarificadoras) se apliquem às situações potencialmente abrangidas pelas anteriores redacções.
VII) Significa que a partir da Reforma do IRS de 2014, há uma nova despesa relevante para efeitos de cálculo das mais-valias imobiliárias e, em compensação, uma ampliação simétrica, inovadora, da norma de incidência tributária, a que corresponde a referida alínea e) do nº 1 do artigo 9.º do Código do IRS.
Nº Convencional:JSTA000P25495
Nº do Documento:SA22020012903104/11
Data de Entrada:09/05/2018
Recorrente:A............
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

I – Relatório

Vem interposto recurso jurisdicional por A………… e B…………, devidamente sinalizados nos autos, visando a revogação da sentença de 28-03-2018, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou improcedente a impugnação intentada contra o acto de liquidação do IRS relativo ao ano de 2008, no valor de € 23.597,48, peticionando a sua anulação.

Inconformados, nas suas alegações, formularam os recorrentes as seguintes conclusões:

“1. Não foi infligido qualquer dano na esfera jurídica dos recorrentes (artigo 562º do C.C.);
2. Além de inexistir lesão, os produtos de origem animal e vegetal deixados de obter não configuram benefícios líquidos;
3. Foi aposta cláusula compensatória ao acordo de revogação do contrato de arrendamento rural – aquisição do imóvel (artigo 16º do DL. 294/2009);
4. Prevalecendo a substância sobre a forma, a transmissão do imóvel não assume natureza indemnizatória;
5. Os factos não são subsumíveis no artigo 9º nº 1 b) do CIRS;
6. Em virtude disso, foram violados os artigos 103º nº 2 e 3 da CRP bem como o artigo 8º da LGT.;
7. Foi também violado o princípio da capacidade contributiva – corolário dos artigos 103 nº 1 e 104 nº 1 da CRP – porquanto a aquisição do imóvel não se traduziu em liquidez, muito menos em rendimento disponível, tendo a “capacidade de gastar” dos recorrentes permanecido inalterada;
8. Este acréscimo patrimonial não configura rendimento tributável;
9. A decisão recorrida viola o disposto no artigo 562º do C. Civil, no art. 16 da Lei do Arrendamento Rural, no art. 9º, 1, b do CIRS (a contrario) e as normas constitucionais dos art. 103 e 104, nº 1, da C.R.P., devendo ser revogada.
Nestes termos e nos melhores que doutamente forem supridos, deve ser julgado procedente o presente recurso e, em consequência, deve ser revogada a sentença recorrida e atendida a pretensão dos recorrentes, com o que se fará boa e sã Justiça!
que é timbre deste Venerando Tribunal.”

Não foram apresentadas contra-alegações.

Neste Supremo Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, notificado nos termos do art. 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se no sentido de o recurso não merecer provimento, por, em substância, não resultar dos contratos escritos celebrados nem ter sido comprovado por outra via que a quantia auferida constitua compensação pela perda do rendimento resultante dos produtos de origem animal e vegetal associados ao cultivo da terra (frutas, legumes, aves de capoeira, leite, ovos e diversos), contexto em que a quantia tributada configura um incremento patrimonial, tributável como rendimento da categoria G (art. 9º nº 1 al. b) CIRS).
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Os autos vêm à conferência corridos os vistos legais.

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2. FUNDAMENTAÇÃO:

2.1. - Dos Factos:

Na decisão recorrida foi fixado o seguinte probatório reputado relevante para a decisão:

A) Na esfera dos Impugnantes foi desencadeada uma acção inspectiva credenciada pela OI2011000221 interna, de âmbito parcial, em sede de IRS 2008 - Cf. fls. 3 do RIT junto ao PA apenso aos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
B) Em 25/05/2011, os SIT da DF do Porto elaboraram o seguinte relatório de inspecção do qual se extrai o seguinte:



- Cf. fls. _ do PA apenso aos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
C) Em 08/06/2011, os Impugnantes foram notificados do RIT mencionado na alínea antecedente e de correcções do rendimento declarado para efeitos de IRS (2008) no valor de € 82.814,13 - Cf. fls. _ do PA apenso aos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
D) Na sequência do referido em B) e C), em 18/07/2011, a AT emitiu em nome dos Impugnantes a liquidação de IRS n.º 20111329019 relativa ao ano de 2008 no valor de € 23.597,48, com data limite de pagamento em 24/08/2011- Cf. fls. 18 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
E) Em 19/10/2011 deu entrada a presente Impugnação - Cf. fls. 5 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
F) Em 04/07/2008, a C…………, Lda. e os aqui Impugnantes outorgaram entre si escritura pública designada dação em cumprimento da qual se extrai o seguinte:



Cf. fls. 12 e ss dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
G) Em 03/07/2008, a C…………, Lda. e os aqui Impugnantes outorgaram entre si escritura pública designada escritura de rectificação da qual se extrai o seguinte:


Cf. fls. 17 e ss dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
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2.2.- Motivação de Direito

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 144º nº 2 e 146º nº 4 do CPTA e dos artigos 5º, 608º nº 2, 635º nºs 4 e 5 e 639º do CPC novo (aprovado pela Lei n.º 41/013, de 26 de Junho) ex vi dos artigos 2º do CPPT.
No caso, em face dos termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso pela recorrente, a questão que cumpre decidir subsume-se a saber se a decisão vertida na sentença a qual julgou improcedente a impugnação padece de erro de julgamento, por violação do disposto no artigo 562.º do Código Civil, no artigo 16.º da Lei de Arrendamento Rural, no artigo 9.º, n.º 1, alínea b) do CIRS e nas normas constitucionais dos artigos 103.º e 104.º.
Vejamos.
Está controvertida a legalidade da tributação como incremento patrimonial de indemnização resultante da cessação de contrato de arrendamento rural nos termos do artigo 9º nº 1 al. b) CIRS.
Reiterando o que sustentara inicialmente, o recorrente assaca à sentença erro de julgamento dado que, em vista do disposto no artigo 562º do C.C., além de inexistir lesão produtora de qualquer dano na sua esfera jurídica, os produtos de origem animal e vegetal deixados de obter não configuram benefícios líquidos, sendo que foi aposta cláusula compensatória ao acordo de revogação do contrato de arrendamento rural – aquisição do imóvel (artigo 16º do DL. 294/2009) e, devendo prevalecer a substância sobre a forma, a transmissão do imóvel não assume natureza indemnizatória, não sendo os factos subsumíveis no artigo 9º nº 1 b) do CIRS.
Atentando.
Dispunha o art.º 9.º, n.º 1, b) do CIRS sob a epígrafe —rendimentos da categoria G) que constituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias: “b) As indemnizações que visem a reparação de danos não patrimoniais, exceptuadas as fixadas por decisão judicial ou arbitral ou resultantes de acordo homologado judicialmente, de danos emergentes não comprovados e de lucros cessantes, considerando-se neste último caso como tais apenas as que se destinem a ressarcir os benefícios líquidos deixados de obter em consequência da lesão.”
Como assertivamente se consigna na sentença, a regra geral é a não incidência de IRS sobre as indemnizações, com as excepções enunciadas.
Em conformidade com o doutrinado por Barreira in a tributação das indemnizações no âmbito do IRS, Fisco, ano 1, n.º 9, Junho de 1989, p. 4, citado na decisão recorrida, ([...] são sempre objecto de tributação as indemnizações originadas, provenientes ou relacionadas com actividades comerciais, industriais e agrícolas [...]. Quanto às outras indemnizações [...] não são tributáveis desde que ou na medida em que não abranjam 'lucros cessantes'. [...] não faria sentido a tributação da indemnização por danos emergentes, que apenas corresponde à diminuição do património existente do lesado, não havendo qualquer acréscimo, mas apenas e só a reconstituição do património lesado pelo comportamento culposo de outrem. [...] a indemnização por lucros cessantes, porque compreende benefícios auferidos pelo lesado — benefícios que não obteve mas deveria ou poderia ter obtido se não existisse a lesão —, é tributada porque reconduzível ao conceito de rendimento.
Os doutrinadores Herculano Curvelo, Vasco Guimarães, Ramos Costa e Gaspar Encarnação, in Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (comentado e anotado), Lisboa, 1990, pp. 175-177, conforme citação também feita na sentença, advertem para que «O princípio que preside à não tributação das indemnizações é o de que estas não têm carácter de rendimento, visando tão somente repor uma situação existente antes da verificação do dano. [...] Um estudo da teoria do rendimento acréscimo revelará que esta é conforme com a consagração do princípio do artigo 13.º. De facto, uma indemnização não visa o acréscimo de um património, mas tão só o ressarcimento do dano provocado por acto ilícito culposo. A indemnização visa reparar o dano sofrido e não vai assim acrescentar algo a um património mas tão só colocá-lo na posição que este teria se não se tivesse verificado o evento que provocou o dano. Não existe 'acréscimo' mas tão só 'reposição'»).
Pontificam ainda a respeito as considerações expendidas por José Guilherme Xavier de Basto, IRS, Incidência real e determinação dos rendimentos líquidos, Coimbra Editoria, 2007, p. 362 —só certas indemnizações (…) são tributáveis. Não o são as indemnizações recebidas ao abrigo do contrato de seguro, como também não o são – não tem sentido que o sejam – as indemnizações por dano emergente; estas são acréscimos patrimoniais que simplesmente compensam decréscimos provados pelo dano infligido, pelo que não são acréscimos patrimoniais líquidos, e só estes são tributáveis, só estes constituem rendimentos para efeitos fiscais. (…) A lei não podia deixar de exigir que tais indemnizações, não tributáveis, correspondessem a danos emergentes comprovados. A falta de comprovação acarreta, por conseguinte, a plena tributação da indemnização, enquadrando-se nesta categoria G de rendimentos”.
Ora, a matéria da interpretação dos negócios jurídicos está sujeita ao poder de fiscalização do tribunal, a efectuar de acordo com as regras da interpretação da declaração negocial das partes, para o que regulam os arts. 236° a 239° do Código Civil (CC).
Vale isto por dizer que, independentemente da qualificação que as partes deram a determinado contrato, o que importa é apurar o que elas quiseram, qual o sentido que as declarações encerram pois, o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
In casu, a AT considerou que o identificado prédio foi entregue com o objectivo de indemnizar os arrendatários, em virtude da cessação do contrato de arrendamento, pelo que constitui um rendimento tributável no âmbito da categoria G, pois o ganho da pessoa singular pela indemnização em resultado da cessação de um contrato de arrendamento é considerado um incremento patrimonial tributado em sede de IRS.
O certo é que a cessação do contrato de arrendamento rural, podendo ter causas diversas, tem uma consequência ou efeito único: a extinção do vínculo, com tudo o que isso implica, ou seja, a total extinção de todos os direitos e obrigações que, no âmbito do contrato de trabalho, resultavam para ambas as partes.
Sendo isto assim, e analisando os termos da escritura de dação em cumprimento apreendem-se as seguintes realidades (i) a sociedade —C………… é dona e legítima proprietária de um prédio rústico constituído por uma terra de cultivo inscrita na matriz rústica sob o artigo 2649; (ii) entre a sociedade e os impugnantes foi celebrado um contrato de arrendamento rural relativamente ao prédio rústico 2649 tendo acordado numa renda anual de € 600,00, não reduzido a escrito; (iii) pretendendo a sociedade e os impugnantes pôr termo ao contrato acordaram que: a troco de uma indemnização que ajustam ser de €80.000,00 a pagar pela sociedade entregaram a esta o indicado prédio rústico devoluto, renunciando a qualquer direito de preferência a que poderiam arrogar-se ou lhes pudesse assistir em futura venda do dito prédio rústico; (iv) O pagamento da quantia indemnizatória em que acordaram é feita sob a forma de dação em pagamento (prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 1258)
Em síntese útil: as partes acordaram entre si fazer cessar o contrato de arrendamento rural relativamente ao prédio rústico inscrito na matriz sob o n.º 2649 e estabeleceram uma indemnização pela cessação do contrato, no valor de €80.000,00 a ser paga por via da dação em cumprimento do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 1258 que deve ser considerada como rendimento para efeitos de IRS.
Na verdade, com a entrega do prédio rústico, os impugnantes viram os rendimentos provenientes do trabalho, não líquidos, nem certos, deixando de auferir os produtos daquela terra, nomeadamente frutas, legumes, aves de capoeira, leite, ovos e diversos mas a casa que receberam a título de indemnização pela entrega da parcela de terreno assegura-lhes a possibilidade de habitarem em casa própria sem pagamento de renda, pelo que é inquestionável a natureza de rendimento da indemnização paga que deve ser tributada em sede de IRS.
Por esse prisma, dúvidas não parecem subsistir de que, num juízo de normalidade, estamos em presença de um acréscimo patrimonial que não visa compensar um decréscimo por qualquer dano infligido, sendo, por isso, tributável por ser um rendimento para efeitos fiscais.
É que o dano pode ser perspectivado segundo uma noção natural que se analisa como a supressão natural ou diminuição duma situação favorável ou num sentido jurídico que se observa como a supressão ou diminuição duma situação favorável que estava protegida pelo direito – nesse sentido, Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1980, 2º-283. E é no sentido jurídico que o dano releva, pelo que importava aferir se houve algum prejuízo in natura que o lesado (os impugnantes) sofreram nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar, na certeza de que só há dano quando existe uma lesão causada no interesse juridicamente tutelado, que reveste as mais das vezes a forma de uma destruição, subtracção ou deterioração de certa coisa, material ou incorpórea – Cfr. A. Varela, Das Obrigações, 3ª ed., 1º-492.
Independentemente da qualificação que as partes deram a determinado contrato, o que importa é apurar o que elas quiseram, qual o sentido que as declarações encerram pois, repete-se, o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Como refere Cardoso da Costa in Curso de Direito Fiscal, 2ªed., 1972, pág. 126, «frequentemente o legislador fiscal liga a obrigação do imposto à prática de actos, ao exercício de actividades e ao gozo de situações, que são disciplinadas enquanto tais pelo direito privado».
Nesses casos, o facto gerador do imposto deriva ou é pelo menos influenciado nos seus contornos pela celebração dum negócio jurídico de determinado tipo.
E, assim, no douto ensinamento de Alberto Xavier, «Conceito e Natureza do Acto Tributário», 324, «O facto tributável com ser facto típico, só existe como tal, desde que na realidade se verifiquem todos os pressupostos legalmente previstos que, por esta nova óptica, se convertem em elementos do próprio facto».
Como se assinala na doutrina fiscal cfr. inter alia, José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2ª ed., págs. 83 e ss, são patentes e múltiplos os pontos de conexão do direito fiscal com o direito privado, mormente o direito civil e o direito comercial que decorre, desde logo, da estrutura da relação tributária que é decalcada da obrigação civil bipolar:- do lado activo, o credor do imposto investido do poder de exigir determinada prestação pecuniária e, do lado passivo, o contribuinte, adstrito à realização dessa prestação.
É esta estrutura que torna inevitável que a disciplina e a construção jurídicas da obrigação fiscal recorra aos princípios e conceitos do direito das obrigações, não estivesse a obrigação de imposto, no dizer de J.M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, pág.s 16 e ss, ligada à prática de actos, ao exercício de actividades ou ao gozo de situações que se apresentam disciplinadas enquanto tais pelo direito privado, que conduz a que o direito fiscal seja o sector do direito público que mais se aproxima do direito privado.
E é por isso, como já se salientou, que as normas fiscais se servem amiúde de conceitos próprios do direito privado, tais como os conceitos de transmissão, compra e venda, doação, propriedade, usufruto, prédio, imóvel, comércio, revogação, dação em cumprimento ou em pagamento ou em função do cumprimento, indemnização, etc., etc.
Mas se assim é, coloca-se a par e passo, como já se aventou, a questão de saber se tais figurinos jurídicos típicos do direito privado conservam o mesmo significado que aí lhes é atribuído ou se são e em que termos, objecto de reelaboração no âmbito do direito fiscal.
Ora, tendo em vista o caso concreto e como se deduz do já antes exposto, é a própria lei que, radicada em exigências específicas da matéria a disciplinar, abandona a regulamentação jurídica privada de certos actos ou situações, atribuindo um significado específico aos conceitos do direito privado, como sucede precisamente no caso que nos ocupa, da cessação contratual mediante a dação em pagamento (ou cumprimento), que deve ser o correspondente conceito do direito civil porque abrangente de certos actos e contratos que têm essa dimensão, mas que se justifica que assim sejam considerados, não apenas por terem um significado económico equiparável.
Na senda do expendido ainda por J.M. Cardoso da Costa, Curso, pág. 121 e ss, há, pois, que seguir a directriz metodológica segundo a qual, quando as normas fiscais utilizam expressões correspondentes a dados conceitos do direito privado, caberá aos órgãos aos quais compete a sua aplicação indagar, em cada caso, de acordo com as regras da hermenêutica jurídica e recorrendo ao elementos de interpretação disponíveis, se essa norma ou essas normas deram a tais conceitos um significado próprio ou se mantiveram o seu conteúdo originário jurídico-privado.
Todavia, com a vigente LGT, passou a ter consagração legal a orientação metodológica segundo a qual e por expressa determinação do artº 11º nº 2 “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos do direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer da lei”. Formulação que, como refere Leite de Campos, in “Interpretação das Normas Fiscais”, Problemas Fundamentais do Direito Tributário, pág. 17 e ss, não invalida que o intérprete, através dos elementos da interpretação jurídica, chegue à conclusão de que estamos perante um sentido próprio ou específico do direito fiscal quanto a termos oriundos de outros ramos do direito, resulte tal sentido directa ou indirectamente das normas interpretandas.
Tudo o que vem afirmado vale para evidenciar a autonomia que o direito fiscal marca em relação ao direito privado a qual encontra a sua ratio na natureza da relação jurídica fiscal com respeito pelo princípio da legalidade tributária por mor do qual a relação jurídica se constitui com a verificação do facto tributário previsto na lei, independentemente quer da vontade dos particulares nesse sentido dirigida, como da actuação da administração fiscal, irrelevando, pois, de todo em todo, a autonomia da vontade para moldar a obrigação fiscal ao invés do que sucede nas obrigações privadas.
Tal princípio está consagrado no artº 36º da LGT ao dispor que “a relação jurídica tributária constitui-se com o facto tributário” – nº 1 - ; “os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes” – nº 2 – e “a qualificação do negócio jurídico efectuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a administração tributária” – nº 3.
Adite-se que, nos termos do nº 2 do artº 30º da Lei Geral Tributária (LGT) o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária”.
Consagram estes incisos legais (ver também o artº 85º do CPPT) o princípio de que as obrigações fiscais são relativamente indisponíveis, estendendo-se a indisponibilidade do crédito tributário, por identidade de razões, a todos os outros vínculos creditícios da relação jurídica tributária.
Ora, certo é que “a qualificação do negócio jurídico efectuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a administração tributária”.
Mas, nessa actividade, terá a AT que cumprir ónus da prova enformado pelos princípios da legalidade e da tipicidade tributárias, procurando fazer, nos termos já analisados, uma aproximação aos figurinos ou tipos legais do direito privado, pelo que convém fazer uma incursão pela tipicidade normativa.
Esta é um dos instrumentos de que o Direito se socorre na regulamentação da vida económico-social, através do qual procede à fixação de certas categorias jurídicas ou tipos, que ele próprio delimita, de modo directo ou indirecto, v. g. a compra e venda, o testamento, o direito de propriedade, o usufruto, etc. os quais são categorias jurídicas, cujo regime se aplica aos eventos ou às realidades da vida que se revestem das características que constam da sua descrição jurídica.
É sabido e já acima se disse, que no Direito Privado, maxime no Direito das Obrigações ou do trabalho, a fixação das categorias jurídicas não reveste carácter de taxatividade ou exclusividade, o que quer dizer que os particulares podem, com relevância jurídica, criar outras que melhor assegurem a realização dos seus interesses.
Para nós, a ratio dessa separação de conceitos é imposta pelos princípios da legalidade e da tipicidade tributárias na dimensão que lhes dá a LGT, que obriga a uma aproximação aos figurinos ou tipos legais do direito privado.
O regime substantivo que enforma a relação jurídica tributária mostra-se submetido ao princípio da legalidade evidenciado - na tipificação específica de cada imposto - dos factos e qualidades do objecto normativo de incidência, donde deriva uma pluralidade de vinculações, tanto para os particulares como para a Administração Fiscal.
Segundo Duarte Faveiro, in "Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português", Coimbra Editora, Vol-I, págs. 335 e 338, dessa pluralidade de vinculações sobre os "(...) particulares - pessoas e empresas - visados pela norma tributária quer como titulares dos direitos ou realidades consideradas como objecto do imposto em causa quer como possuidores da qualidade pessoal prevista no tipo de sujeição, resulta a criação de um condicionalismo jurídico de predeterminação de efeitos para as condutas correspondentes aos elementos previstos na norma (...)" que, para a Administração Fiscal, resulta no dever funcional "(...) de vigilância das situações reais correspondentes aos tipos legais tributários e precisão mediata e recíproca do conteúdo da norma tributária (...)".
Como corolário do princípio da tipicidade, temos que o procedimento administrativo de averiguação e qualificação jurídica dos factos integrativos da base de incidência do imposto que, no caso concreto, se exige ao particular, pressupõe por parte da AF, no exercício da sua competência, o uso de poderes estritamente vinculados.
De acordo com este enquadramento jurídico, cabe à Fazenda Pública, tanto no recurso administrativo como na impugnação junto dos Tribunais, o ónus da prova da existência dos pressupostos de facto e de direito do acto de liquidação oficiosa, seja por correcções técnicas ou por métodos indiciários e presuntivos, constantes do relatório dos serviços de fiscalização, o que veio a ser consagrado em letra de lei no art° 74° n° 3 LGT, para os casos de determinação da matéria tributável por métodos indirectos.
Este mesmo ponto de vista pode ver-se afirmado por Jorge Lopes de Sousa in "Código de Procedimento de Processo Tributário, Anotado", Vislis/2000, 2a edição, pág. 470:
"(…) o ónus de prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.
Embora esta regra [art° 74° n° 1 LGT] esteja prevista para o procedimento tributário, o seu conteúdo deve ser transposto para o processo judicial que se lhe seguir, por forma a que quem tinha o ónus da prova no procedimento tributário tenha o respectivo ónus do processo judicial tributário (...).
Assim, pelo facto de o impugnante no processo de impugnação judicial surgir processualmente numa posição em que deve invocar vícios de um acto tributário, não se lhe deve imputar o ónus de prova de factos que não tinha de provar no procedimento tributário, designadamente o de provar que não se verificam os factos constitutivos dos direitos da administração tributária, factos estes cuja verificação competia provar a esta no procedimento tributário (…).
Essencialmente neste sentido, já antes da LGT, pode ver-se Vieira de Andrade, que sustenta que "há-de caber, em princípio, à Administração o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável); em contrapartida, caberá ao administrado apresentar prova bastante da ilegitimidade do acto, quando se mostrem verificados estes pressupostos" (A Justiça Administrativa (Lições), 2ª edição, pág. 269)".
A administração fiscal só deve praticar o acto tributário - liquidação - quando "formar convicção a existência e conteúdo do facto tributário" (assim, Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, pág. 150). Esta convicção deve assentar em pressupostos objectivos e não em meras suposições ou juízos de natureza puramente subjectiva.
No caso concreto, bem se demonstra na sentença e no Parecer do EPGA, estavam reunidos os pressupostos conducentes à conclusão de que se verificava o facto tributário e qual a sua medida nos termos pretendidos pela AT à qual cabia o ónus de demonstrar a existência do fundamento legal com que se arroga a titularidade de atribuições e de competência para a prática do acto em causa ou da sua actuação enquanto persona potentior, pois só perante a existência deste está autorizada a actuar.
É nesta perspectiva que se poderá, de algum modo, falar que a administração apenas terá de fazer a prova, em tribunal, do bem fundado da formação das suas presunções de inexistência dos factos tributários e que, na falta dessa prova, essa questão - ou seja a questão relativa à legalidade do seu agir praticando o acto tributário - terá de ser resolvida contra ela.
Na senda de Vieira de Andrade, in "A Justiça Administrativa" (Lições), 2ª edição, pág. 569, «há-de caber, em princípio, à Administração o ónus de prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável); em contrapartida, caberá ao administrado apresentar prova bastante da ilegitimidade do acto, quando se mostrem verificados estes Pressupostos». Nesse sentido, expende Jorge Lopes de Sousa, in "Código de Procedimento e Processo Tributário Anotado", 2ª edição, pág. 470, que «o ónus de prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque. Embora esta regra (art. 74º/1 LGT) esteja prevista para o procedimento tributário, o seu conteúdo deve ser transposto para o processo judicial que se lhe seguir, por forma a que quem tinha o ónus da prova no procedimento tributário tenha o respectivo ónus no processo judicial tributário (...)».
Todavia, o princípio da autonomia privada, subjacente ao nosso direito privado, manifesta-se, designadamente, através do negócio jurídico, meio privilegiado de os particulares procederem à regulamentação das suas relações jurídicas. Esse auto-governo da esfera jurídica assenta num dos princípios básicos do nosso ordenamento jurídico, que é o princípio da liberdade contratual.
As partes, dentro dos limites da lei, têm a liberdade de celebração dos contratos, a faculdade de fixar o conteúdo dos mesmos, a possibilidade de celebrar contratos típicos ou atípicos, de reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei (artigo 405º do C. Civil).
O desenvolvimento económico, as inovações técnicas e tecnológicas e a necessária ligação entre o direito e a realidade vivida, têm feito aparecer com acelerada frequência novos negócios jurídicos, com regulamentação própria e específica.
Na verdade, as partes, face ao prescrito no artigo 405º do Código Civil, têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos no Código Civil ou incluir neles as cláusulas que lhes aprouver.
Não estavam, por isso, os interessados na cessação do contrato de arrendamento impedidos de acordar a dação em pagamento ou datio in solutum a qual é um meio extintivo das obrigações, consistindo em o devedor dar ao credor, em vez do objecto devido, um outro, que o credor aceita como tal: o objecto da obrigação é, assim, substituído por outro que é logo entregue, extinguindo-se a obrigação. Ou seja, há a realização de uma prestação diferente da que é devida com o fim de extinguir imediatamente a obrigação, o que significa que o credor passa a ser imediatamente titular do crédito dado pelo devedor, ficando este logo liberado da sua precedente dívida – vide Vaz Serra, RLJ, 115º-57; Pires de Lima e A. Varela, C.C. Anotado, nota ao artº 837º e Almeida e Costa, Noções Direito Civil, ed. 1980-238.
Ora, o pagamento da quantia de €80 000,00, sob a forma de dação em pagamento de prédio urbano destinado à habitação própria e permanente dos impugnantes, segundo eles corresponde à indemnização pela cessação de um contrato de arrendamento rural tendo por objecto prédio rústico (factos provados als. F) G)), visando esta indemnização a reparação de dano não patrimonial resultante da renúncia à titularidade do direito ao arrendamento e ao direito de preferência na futura venda do prédio rústico cultivado pelos impugnantes, com o consequente decréscimo da sua esfera jurídica.
Porém, como salientam o EPGA e o Mº Juiz a quo, não resulta dos contratos escritos celebrados nem foi comprovado por outra via que a quantia auferida constitua compensação pela perda do rendimento resultante dos produtos de origem animal e vegetal associados ao cultivo da terra (frutas, legumes, aves de capoeira, leite, ovos e diversos) pelo que, em tal contexto, a quantia tributada configura um incremento patrimonial, tributável como rendimento da categoria G (art. 9º nº 1 al. b) CIRS)
Portanto, na visão do julgador e do Ministério Público, não se trata de um acréscimo patrimonial que vise compensar um decréscimo por qualquer dano infligido, sendo, por isso, tributável por ser um rendimento para efeitos fiscais.
Assim, tratar-se-ia de rendimento que acresce ao património dos impugnantes, sendo a sua tributação devida nos termos do disposto no artigo 9.º, n.º 1, al. b), do CIRS, não violando a AT qualquer princípio ao praticar o acto com base nos pressupostos por ela aduzidos.
É certo que o artigo 10º da LGT estabelece que a tributação é valorativamente neutra, devendo atender apenas às circunstâncias reveladoras da capacidade contributiva do facto ou acto, irrelevando, pois, os imperativos jurídicos ou éticos como pressuposto ou medida da tributação a qual assentará no resultado económico dos negócios ou actos jurídicos ainda que estes sejam ilícitos ou contra os bons costumes. E ao consagrar a vertente da consideração económica dos factos ou actos com relevância jurídica tributária, o direito fiscal está em consonância com o direito civil no sentido de que, por exemplo, quando os negócios jurídicos são de objecto físico ou legalmente impossível à ordem pública ou contrários aos bons costumes, juscivilisticamente são nulos (cfr. artº 280º do Ccivil) mas, apesar disso, esse vício será ignorado quando é invocado pela pessoa que o praticou por forma a impedir que essa pessoa seja beneficiada; também assim no direito fiscal, em que quem actua de modo ilícito não pode fruir de protecção jurídica, devendo sofrer a tributação prevista na lei.
É esse princípio que subjaz ao disposto no artº 38º nº 1 da LGT em que se prevê a tributação dos efeitos económicos pretendidos pelas partes que tenham sido produzidos apesar da ineficácia do negócio: tal como no direito civil, o negócio não produz os efeitos que tenderia a produzir por uma circunstância intrínseca que juntamente com o negócio válido integra o tipo legal e que é o de o único ou principal objectivo ter sido evitar ou reduzir a tributação.
É que a tributação tem os seus limites materiais e o seu princípio rector é o da capacidade contributiva visando impedir o livre arbítrio por obrigar, quer o legislador, quer o aplicador da lei fiscal (AT e juiz), a que, na selecção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, que erija em objecto ou matéria colectável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto.
Como pressuposto e critério da tributação no nosso sistema jurídico fiscal, o princípio da capacidade contributiva está expressamente consagrado no artº 4º nº 1 da LGT que prescreve que os impostos assentam especialmente na capacidade contributiva revelada através do rendimento ou da sua utilização e do património, bem como as relativas à tributação dos rendimentos ilícitos e às cláusulas antiabuso.
Assim, os factos seriam subsumíveis no artigo 9º nº 1 b) do CIRS e não teria sido perpetrada a violação dos artigos 103º nº 2 e 3 da CRP e 8º da LGT e do princípio da capacidade contributiva, como proclamam os recorrentes.
Tratar-se-ia de um real e efectivo incremento patrimonial o valor da indemnização em causa por não corresponder exactamente à ideia de reconstituição da situação existente antes da perda ocorrer, citados arts. 562º e 566º nº1 do Código Civil.
E essa qualificação respeitaria os limites do princípio da capacidade contributiva, como limite constitucional à tributação, por mor do qual a tributação das indemnizações apenas tem lugar se e na medida em que se constituam em efectivos rendimentos, se apresentem como incrementos patrimoniais reais segundo um conceito amplo de rendimento, abarcando a generalidade dos acréscimos patrimoniais.
Por esse prisma e como sucede no caso concreto, o nomeado princípio justificaria a tributação de falsos acréscimos patrimoniais, como indemnizações qualificadas pelas partes no contrato em apreço como ressarcitórias ou por danos emergentes, porque não dirigidas exclusivamente à reposição patrimonial.
Isso mesmo parece resultar do estatuído pelo citado art.9º nº 1 corpo e alínea b), que limita os casos de tributação a indemnizações (além de indemnizações por certos danos não patrimoniais) por danos patrimoniais não comprovados, ou por lucros cessantes de benefícios líquidos – aquelas que podem ser ainda gastas após a reposição do património inicial, expressando por isso um enriquecimento efectivo. Pelo que se excluem as indemnizações por danos emergentes, já que aqui ocorre apenas um aumento nominal do património que tinha sido alvo de anterior diminuição pela ocorrência do dano, cfr. neste sentido o Senhor Prof. Casalta Nabais, in Contratos Fiscais - Reflexões Acerca da sua Admissibilidade, Coimbra, 1994, n. 928, pág.288, ou in O Dever Fundamental de Pagar Impostos Contributo para a Compreensão Constitucional do Estado Fiscal Contemporâneo, Coimbra, 1998, pág.520.
Mas existe um quid a nosso ver determinante para a solução do caso concreto.
É que, afirmando os próprios recorrentes que não foi infligido qualquer dano na sua esfera jurídica, também ocorreu que foi aposta cláusula compensatória ao acordo de revogação do contrato de arrendamento rural – aquisição do imóvel (artigo 16º do DL. 294/2009) pelo que, prevalecendo a substância sobre a forma, a transmissão do imóvel não assume natureza indemnizatória, não sendo os factos subsumíveis no artigo 9º nº 1 b) do CIRS.
E segundo esse trilho discursivo, redundariam violados os referidos artigos 103º nº 2 e 3 da CRP bem como o artigo 8º da LGT e o princípio da capacidade contributiva – corolário dos artigos 103 nº 1 e 104 nº 1 da CRP – porquanto a aquisição do imóvel não se traduziu em liquidez, muito menos em rendimento disponível, tendo a “capacidade de gastar” dos recorrentes permanecido inalterada. Logo, este acréscimo patrimonial não configura rendimento tributável.
E, na verdade, vigora, no Direito Fiscal, o princípio da legalidade que se traduz no brocardo nullum tributum sine lege e, uma das decorrências do princípio da legalidade fiscal é a proibição de pagamento de impostos que não tenham sido estabelecidos de harmonia com a Constituição, que se inscreve no quadro das garantias individuais, por isso revestindo as normas atinentes carácter preceptivo (cfr. artº 18º da C.R.P.).
Donde que, de acordo com o princípio da legalidade do imposto, só podem ser cobrados os impostos quando se verificam os pressupostos aos quais a lei condiciona a existência de uma obrigação fiscal devendo o intérprete cuidar de a conceber em termos restritos, aplicável, consequentemente, apenas aos casos e situações inequivocamente nela previstos.
Por outro lado, também é sabido que no Direito Fiscal vigora o princípio da tipicidade, que se traduz no brocardo latino nullum tributum sine lege, ou nullum vectigal sine lege, paralelo àquele outro, vigente no Direito Penal, nullum crimen sine lege. Assim como não há crime que não corresponda a uma definição legal, a um tipo legal, também não haverá imposto, nem isenção, que não corresponda a uma definição legal, a um tipo legal.
Nisto consiste a tipicidade do imposto.
A tributação só pode resultar da verificação concreta de todos os pressupostos tributários, como tais previstos e descritos, abstractamente, na lei de imposto. Se não se verificar um dos pressupostos, já não é possível a tributação, por obediência a este princípio da tipicidade do imposto - cf. Soares Martinez, Manual de Direito Fiscal, 1987, p. 105 e 106.
Salienta-se que no Direito Tributário, a tipologia é dominada não só por um princípio de taxatividade como também por um princípio de exclusivismo. Opera-se o fenómeno que a lógica jurídica designa por implicação intensiva. Verifica-se a implicação intensiva sempre que os elementos enunciados no pressuposto não são apenas suficientes, mas ainda necessários para a verificação da consequência: se esses elementos se verificarem, segue-se a consequência, mas esta só se segue, se eles se verificarem - cfr., sobre o princípio da tipicidade em Direito Fiscal, Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, p. 263 e ss., onde, a p. 327, cita Castanheira Neves, Questão-de-facto-Questão-de-direito, p. 264.
À luz dos antecedentes considerandos e face à fundamentação do acto tributário e à escritura transcrita na alínea "F" dos factos provados – parece ser pacífico que estamos perante dação em cumprimento visando a cessação do contrato de arrendamento e da renúncia ao direito de preferência do arrendatário rural.
Também é incontrovertível, por referência aos apontados princípios, que à data dos factos, as verbas pagas (mesmo que fosse a título de indemnização como as partes declararam) pela renúncia onerosa a posições contratuais ou outros direitos inerentes a contratos relativos a bens imóveis (incluindo a indemnização paga por senhorio a inquilino pela desocupação de imóveis) não eram tributadas em mais-valias. A respectiva norma de incidência só foi introduzida pela Lei n.º 82-E/2014, de 31/12, que aditou uma alínea "e)" ao n.º 1 do artigo 9.º do CIRS.
Neste sentido, na doutrina, o Manual de IRS de Paula Rosado Pereira, pág. 276 em que se expende:
“As indemnizações devidas por renúncia onerosa a posições contratuais ou outros direitos inerentes a contratos relativos a bens imóveis constituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias (artigo 9º, nº 1, alínea e) do CIRS).
Esta norma de incidência foi introduzida pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro (Lei da Reforma do IRS). Anteriormente, as indemnizações por renúncia onerosa a posições contratuais ou outros direitos inerentes a contratos relativos a bens imóveis não se encontravam sujeitas a tributação em sede de IRS, em virtude da inexistência de norma de incidência específica que as previsse”.
Na jurisprudência, o Acórdão do TCAS de 13/12/2019, processo n.º 628/09.3BELRS (da Dr.ª Catarina Almeida e Sousa), versando uma situação em que a AT configurou, tal como no caso dos presentes autos a liquidação no âmbito da categoria G, tal como o sujeito passivo, pelo que não cabe indagar se a mesma estaria, ou não, incluída noutra categoria de rendimentos de IRS.
Como já antedito, o artigo 9.º, nº 1, alínea b) do CIRS, na redacção em vigor em 2007, previa, sob a epígrafe “Rendimentos da categoria G”, o seguinte:
“1 - Constituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias:
b) As indemnizações que visem a reparação de danos não patrimoniais, exceptuadas as fixadas por decisão judicial ou arbitral ou resultantes de transacção, de danos emergentes não comprovados e de lucros cessantes, considerando-se neste último caso como tais apenas as que se destinem a ressarcir os benefícios líquidos deixados de obter em consequência da lesão;”
Releva ainda para o caso o que o artigo 12.º, nº 1, do CIRS, sob a epígrafe “Delimitação negativa de incidência”, dispunha:
1 - O IRS não incide sobre as indemnizações recebidas ao abrigo de contrato de seguro ou devidas a outro título, salvo quando:
a) As indemnizações devam ser consideradas como proveitos para efeitos de determinação dos rendimentos empresariais e profissionais;
b) Se trate das indemnizações referidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º;
c) Se trate das indemnizações relativas a bens sinistrados, de harmonia com o artigo 43.º do Código do IRC;
d) Neste Código se disponha diferentemente.
Como se expende no citado acórdão do TCAS “Temos, pois, que nos termos da apontada alínea b) do nº 1 do artigo 9º, incluíam-se, então, no âmbito de tributação as indemnizações por:
a) danos não patrimoniais, exceptuadas as fixadas por decisão judicial ou arbitral ou resultantes de acordo homologado judicialmente,
b) danos emergentes não comprovados,
c) lucros cessantes, considerando-se neste último caso como tais apenas as que se destinem a ressarcir os benefícios líquidos deixados de obter em consequência da lesão.
Esta previsão legal foi alterada, concretamente com a reforma do CIRS de 2014, em termos que assumem uma especial importância para o caso que nos ocupa, ou seja, para as situações de indemnização do arrendatário por abdicar do imóvel que habita e pelas benfeitorias nele realizadas na pendência do arrendamento.
Com efeito, importa ter presente que a Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro, aditou ao nº 1 do artigo 9.º do Código do IRS uma nova norma de incidência, a alínea e), passando aí a ler-se:
“Artigo 9.º
Rendimentos da categoria G
1 – Constituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias:
a) […];
b) […];
c) […];
d) […];
e) As indemnizações devidas por renúncia onerosa a posições contratuais ou outros direitos inerentes a contratos relativos a bens imóveis.”
A este propósito, e como meio auxiliar incontornável na interpretação, chama-se à colação o Anteprojecto da Reforma do IRS, de Julho de 2104, concretamente o seu ponto 4.1.12.10, no qual se pode ler o seguinte:
“A par com o que, como já referimos, acontece no âmbito das mais-valias de partes sociais e de outros valores mobiliários, também no caso das mais-valias imobiliárias se regista um regime injustificadamente restritivo ao nível das despesas elegíveis para efeitos da determinação destas mais-valias, pois a lei excluiu a dedutibilidade de gastos efetiva e necessariamente suportados para a respetiva obtenção.
Com o objetivo de assegurar uma tributação mais justa, que atenda à real capacidade contributiva, entende-se que deve ser alargado o leque de despesas a considerar na determinação de mais e menos-valias, passando a incluir as indemnizações comprovadamente pagas pela renúncia onerosa a posições contratuais ou outros direitos relativos a bens imóveis.
Em contrapartida, prevê-se expressamente que aquelas indemnizações constituam incrementos patrimoniais passíveis de tributação na esfera dos respetivos beneficiários” (negrito nosso).
A introdução desta previsão expressa na lei afigura-se relacionada com “com o cômputo do ganho passível de tributação em IRS enquanto mais valia, pela transmissão de bens imóveis, destinado à agilização do mercado de arrendamento imobiliário, tendo previsto a sua simétrica tributação” (cfr. CAAD, processo nº 67/2016-T do CAAD, de 05/08/16).
Realce-se, aliás, que o emprego da palavra “expressamente” – lê-se, “Em contrapartida, prevê-se expressamente que aquelas indemnizações constituam incrementos patrimoniais passíveis de tributação na esfera dos respetivos beneficiários” – no Anteprojecto de Reforma, a par da circunstância de o legislador não ter atribuído carácter interpretativo à alínea e) do nº 1 do artigo 9º do CIRS, levam-nos a concluir, com firmeza, que tal preceito se apresenta com carácter inovador.
Dito de outro modo, até à Reforma de 2014, levada a cabo pela Lei nº 82-E/2014, de 31 de Dezembro, a indemnização pela cessação do contrato de arrendamento e benfeitorias realizadas não estava contemplada nas normas de incidência do IRS, concretamente enquanto rendimento da categoria G, previsto no artigo 9º, nº 1, alínea b), como a Fazenda Pública aqui defende.
“Na verdade, se a primitiva redação já pretendesse abranger estes ganhos, seria natural que se atribuísse à nova redação natureza interpretativa, à semelhança do que é usual fazer-se nas leis orçamentais, quando se pretende que as novas redações (clarificadoras) se apliquem às situações potencialmente abrangidas pelas anteriores redações. Por isso, o facto de não se ter atribuída natureza interpretativa à nova alínea no sentido de que se ter pretendido ampliar o âmbito de incidência da referida norma e não mantê-lo, esclarecendo-o” - cfr. processo nº 67/2016-T já citado.
Temos, pois, que, a partir da Reforma do IRS de 2014, há uma nova despesa relevante para efeitos de cálculo das mais-valias imobiliárias e, em compensação (como o texto do Anteprojecto esclarece), uma ampliação simétrica, inovadora, da norma de incidência tributária, a que corresponde a supra transcrita alínea e) do nº 1 do artigo 9.º do Código do IRS – Constituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias, as indemnizações devidas por renúncia onerosa a posições contratuais ou outros direitos inerentes a contratos relativos a bens imóveis.
Com efeito, foi, com novidade, incluída na norma de incidência uma nova realidade, não abrangida na redacção anterior do preceito, concretamente na formulação vigente em 2007, data a que se reportam os factos aqui em apreciação.
Portanto, tem razão o sujeito passivo, Impugnante, aqui Recorrido, quando defende que a alínea b) do nº 1 do artigo 9° do CIRS, na redacção vigente no ano 2007, não contempla a indemnização recebida.”
Propendemos, pois, com a fundamentação acabada de gizar por arrimo à solução contida na doutrina e jurisprudência citadas, para dar provimento ao recurso e determinar a anulação do acto por via da procedência da impugnação.
*

3. – Decisão

Termos em que, face ao exposto, Acordam os Juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em conceder provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida com a fundamentação aqui exarada.

Custas pela recorrida.
*
Lisboa, 29 de Janeiro de 2020. - José Gomes Correia (relator) – Nuno Bastos - Francisco Rothes.


SEGUE ACÓRDÃO DE 17 DE JUNHO DE 2020



ACORDA-SE, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:

1.- A……….. e B…………, com os sinais identificadores dos autos, interpuseram recurso para este STA visando obter a revogação da sentença de 28-03-2018, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou improcedente a impugnação intentada contra o acto de liquidação do IRS relativo ao ano de 2008, no valor de € 23.597,48, peticionando a sua anulação.
Por Acórdão proferido em 29 de Janeiro de 2020 decidiu-se (vide ponto 3. – Decisão):
“Termos em que, face ao exposto, Acordam os Juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em conceder provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida com a fundamentação aqui exarada.
Custas pela recorrida.”
Vêm agora os recorrentes impetrar a rectificação do acórdão ao abrigo do disposto no artigo 614, nº 1 do C.P.C., aplicável ao caso, rectificação, nos termos e pelos seguintes fundamentos:
“No penúltimo parágrafo que antecede o ponto “3. Decisão” pode ler-se:
“Portanto, tem razão o sujeito passivo, Impugnante, aqui Recorrido, quando defende que a alínea b) do nº 1 do artigo 9º do CIRS, na redacção vigente no ano de 2007, não contempla a indemnização recebida.”
E, mais adiante:
“Propendemos, pois, com a fundamentação acabada de gizar por arrimo à solução contida na doutrina e jurisprudência citadas, para dar provimento ao recurso e determinar a anulação do acto por via da procedência da impugnação.”
E, quanto a custas, decide-se que as mesmas são pela recorrida (Autoridade Tributária e Aduaneira).
Entendem os requerentes que a parte decisória deve ser no sentido de conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida com a fundamentação aqui exarada.
É que, no penúltimo parágrafo que antecede 3. Decisão, deve ser substituído aqui recorrido, por aqui recorrente.
Por se tratar de lapsos de escrita, devem ser rectificados no sentido de
- ser substituído “aqui recorrido” por “aqui recorrente”; e
- ser rectificada a decisão no sentido de “conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida com a fundamentação aqui exarada”.

Veio agora o recorrido requerer a rectificação do lapso de escrita.

O processo é submetido à conferência com dispensa dos vistos legais.

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2. - Como decorre do artº 614º, nºs 1 e 2 do CPC, conquanto com a prolação do Acórdão ficasse esgotado o poder jurisdicional quanto à matéria da causa, se contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
No caso vertente, evidenciam os autos que, acolhendo as razões apresentadas pelo reclamante é configurável o cometimento de genuínos erros materiais (manifestos) cometidos no acórdão em apreço.
Com efeito, como explica J. A: Reis, CPC Anotado, 5º-130, dá-se o erro material quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real.
E o erro material ou lapso cometido é manifesto porquanto, a inexactidão ou omissão foi verificada em circunstâncias tais que é patente através de outros elementos do processo (o termo de julgamento) a discrepância com os dados verdadeiros e se pode presumir, por isso, uma divergência entre a vontade real do juiz e o que ficou escrito – cfr. Castro Mendes, Lições de Processo Civil, 1967/68, 2º-307).
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3 -Assim, rectifica-se o Acórdão em termos de onde no mesmo se lê
“Portanto, tem razão o sujeito passivo, Impugnante, aqui Recorrido, quando defende que a alínea b) do n° 1 do artigo 90 do CIRS, na redacção vigente no ano 2007, não contempla a indemnização recebida.”
Propendemos, pois, com a fundamentação acabada de gizar por arrimo à solução contida na doutrina e jurisprudência citadas, para dar provimento ao recurso e determinar a anulação do acto por via da procedência da impugnação.
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3. — Decisão
Termos em que, face ao exposto, Acordam os Juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em conceder provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida com a fundamentação aqui exarada.
Custas pela recorrida.”
Passe a constar:
“Portanto, tem razão o sujeito passivo, Impugnante, aqui Recorrente, quando defende que a alínea b) do n° 1 do artigo 9º do CIRS, na redacção vigente no ano 2007, não contempla a indemnização recebida.”
Propendemos, pois, com a fundamentação acabada de gizar por arrimo à solução contida na doutrina e jurisprudência citadas, para dar provimento ao recurso e determinar a anulação do acto por via da procedência da impugnação.

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3. — Decisão

Termos em que, face ao exposto, Acordam os Juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida com a fundamentação aqui exarada.

Custas pela recorrida.”
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Lisboa, 17 de Junho de 2020. - José Gomes Correia (relator) – Nuno Bastos – Francisco Rothes.