Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0308/14
Data do Acordão:11/05/2014
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:NULIDADE DE SENTENÇA
CONTRADIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P18167
Nº do Documento:SA2201411050308
Data de Entrada:03/12/2014
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1. A FAZENDA PÚBLICA recorre da sentença proferida pelo TAF de Almada, a fls. 57 e segs. dos autos – com a correcção introduzida pelo despacho de fls. 72, proferido ao abrigo do disposto no art. 614°, nº 1, do CPC –, que julgou procedente a acção de anulação da venda de imóvel efectuada em processo de execução fiscal, instaurada pelo respectivo adquirente, A……………...

1.1. Terminou a alegação de recurso com as seguintes conclusões:

I. A Sentença nos presentes autos, emitida em 29.11.2013, padecia de lapso manifesto, constando na sua fundamentação, a final: “No entanto, a verdade é que no caso concreto o imóvel é passível de ser utilizado para a construção, devendo apenas o A. requerer a entrega do bem adquirido e se necessário com a intervenção de forças policiais, sem que isso lhe retire quaisquer das qualidades publicitadas no anúncio de venda do mesmo. Nestes termos, e sem necessidade de mais considerações julgaremos totalmente improcedente a presente anulação de venda pelos motivos supra expostos”. No entanto, no título IV – DECISÃO – consta: “em face de tudo o anteriormente exposto, julga-se totalmente procedente o presente pedido de anulação de venda”.// “Custas pelo Autor”.

II. No dia 09.12.2013, foi aquela Sentença corrigida. Tal rectificação por “lapso manifesto”, foi erradamente realizada, salvo o devido respeito, tendo agravado o erro anterior. Foi alterado o que estava bem, e deixou-se ficar o que estava em contradição com todo o dispositivo;

III. Foi a seguinte a rectificação: “Donde consta “Nestes termos, e sem necessidade de mais considerações julgaremos totalmente improcedente a presente anulação de venda pelos motivos supra expostos.” Passe a constar: “nestes termos, e sem necessidade de mais considerações julgaremos totalmente procedente a presente anulação de venda pelos motivos supra expostos”. Tendo tal rectificação deixado incólume a Decisão;

IV. A Sentença, como está, é nula, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 615º do Código de Processo Civil, com a versão da Lei n.º 41/2013, de 26.06 (anteriormente, art.º 668º);

V. Com efeito, toda a fundamentação, que não o último parágrafo da mesma, após a “rectificação”, vai no sentido da improcedência do peticionado. O que estava em desacordo com a fundamentação, era a decisão e era esta que deveria ter sido rectificada, pois era ali que estava o lapso manifesto;

VI. O que ficou fundamentado foi, nomeadamente que, “na situação em apreço o imóvel encontra-se devidamente identificado no anúncio de venda e mesmo que o imóvel se encontre eventualmente ocupado por um acampamento de indivíduos de etnia cigana tal não implica que o mesmo não seja passível de ser atribuído ao fim a que se destina. De facto, tal circunstância não constitui um ónus (real) ou limitação relevante, para efeito da anulação da venda nos termos do disposto no artigo 838.º nº 1 do CPC.” e “a verdade é que no caso concreto o imóvel é passível de ser utilizado para a construção, devendo apenas o A. requerer a entrega do bem adquirido e se necessário com a intervenção de forças policiais, sem que isso lhe retire quaisquer das qualidades publicitadas no anúncio de venda do mesmo”, em clara contradição com a rectificação realizada e o que consta da decisão;

VII. Sendo que a própria decisão é contraditória, quando decide pela procedência e condena o autor em custas. Mais uma evidência que, o que haveria a rectificar era o primeiro parágrafo da decisão, não o último parágrafo da fundamentação. Acordando, após correcção, a DECISÃO com o final da Fundamentação, ambas conflituam com a argumentação desta;

VIII. Caso não se entenda pela nulidade da Sentença, cabe dizer que a mesma é ilegal, por não estar de acordo com as normas vigentes;

IX. No sentido da não existência de quaisquer vícios invalidantes da venda [não o sendo, necessariamente, a alegada ocupação do imóvel, a qual o requerente nem sequer invocou, em sede de pedido de anulação da venda – na qual veio invocar motivos ocasionais graves que fizeram com que não tivesse meios para dar seguimento à compra, alterações negativas na vida e graves no projecto que tinha, a dependência de terceiros e não querer, desde o início ficar com problemas], remete a Fazenda Pública para o que deixou dito, tanto em sede de contestação, por impugnação, como em sede de alegações após inquirição das testemunhas arroladas pelo requerente;

X. Tendo a Autoridade Tributária cumprido com todos os preceitos legais;

XI. Pelo que, é nula a Sentença quando “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”, nos termos da alínea c) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, com a versão da Lei nº 41/2013, de 26.06 (anteriormente, art.º 668º);

XII. Caso assim se não entenda, o decidido pelo Tribunal “a quo” viola o disposto nos arts. 248º e seguintes do CPPT (formalidades da venda), no arts 257º do mesmo diploma, art. 908º do CPC, art. 74º da LGT e 342º do CC.

1.2. A Recorrida não apresentou contra-alegações.


1.3. O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de que devia ser concedido provimento ao recurso, por assistir inteira razão à recorrente.


1.4. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2. A sentença recorrida – proferida em acção de anulação de venda proposta por A………………. (adquirente do imóvel vendido) e que teve por fundamento o erro sobre a coisa transmitida, na medida em que esse imóvel, constituído por terreno para construção, se encontra ocupado por um acampamento de etnia cigana, facto que o adquirente desconhecia) – contém, no que ora interessa, a seguinte motivação:
«A questão que se coloca nos presentes autos é a de saber se o anúncio de venda continha todos os elementos suficientes para que os potenciais compradores formem uma ideia sobre as características do bem em venda.
Por “descrição sumária dos bens” entende-se a necessidade de os elementos divulgados serem suficientes para que os potenciais interessados formem uma ideia sobre as características do bem, nos seus aspectos quantitativos e qualitativos, devendo os anúncios incluir todos os dados pertinentes, susceptíveis de influir no juízo sobre o conteúdo das propostas de aquisição, ou seja, com interesse para os proponentes, e desde que selam conhecidos no processo.
Assim, e desde logo, dos anúncios deverá constar toda a informação relevante para a formação da vontade do comprador que não seja possível obter através do exame dos próprios bens. Trata-se de uma exigência manifestamente imposta pelas regras da boa-fé que deve caracterizar a generalidade das relações contratuais (artigo 227º, nº 1 do Código Civil) e toda a actividade da Administração pública (artigo 266º, nº 2 da CRP)” (Cfr. Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Áreas Editora, 2011, IV volume, página 121.).
Ora, na situação em apreço o imóvel encontra-se devidamente identificado no anúncio de venda e mesmo que o imóvel se encontre eventualmente ocupado por um acampamento de indivíduos de etnia cigana tal não implica que o mesmo não seja passível de ser atribuído ao fim a que se destina.
De facto, tal circunstância não constitui um ónus (real) ou limitação relevante, para efeito da anulação da venda nos termos do disposto no artigo 838°, n.° 1 do CPC.
É sabido e já foi referido que o entendimento subjectivo do comprador sobre as qualidades do imóvel adquirido não releva no domínio da venda em processo de execução fiscal.
Ainda assim, o erro sobre o objecto pode ser determinado pela insuficiência e imprecisão do anúncio de venda que devem respeitar as boas regras publicitárias, designadamente o dever de informar e publicitar com rigor. Ora, no dizer de J. Lopes de Sousa in CPPT anotado e comentado, 11ª edição 4º volume a fls. 179 basta o mero erro instrumental para justificar a anulação da venda e será indiferente que o comprador tenha culpa na ocorrência do erro. (…).
No entanto, a verdade é que no caso concreto o imóvel é passível de ser utilizado para a construção, devendo apenas o A. requerer a entrega do bem adquirido e se necessário com a intervenção de forças policiais, sem que isso lhe retire quaisquer das qualidades publicitadas no anúncio de venda do mesmo.
Nestes termos, e sem necessidade de mais considerações, julgaremos totalmente improcedente a presente anulação de venda pelos motivos supra expostos.».

Apesar desta motivação jurídica, que é clara e inequívoca no sentido de não ocorrer, no caso, motivo para a peticionada anulação da venda, e de, por conseguinte, não poder proceder a pretensão do autor, a sentença terminou com o seguinte segmento decisório: «Em face de tudo o anteriormente exposto, julga-se totalmente procedente o presente pedido de anulação de venda. // Custas pelo Autor.

Perante isso, a Fazenda Pública pediu a rectificação da sentença, invocando lapso manifesto na parte decisória, porquanto onde se escrevera “procedente” se deveria ter escrito “improcedente”, estando correcta a condenação em custas do autor tendo em conta a lógica da decisão de improcedência da acção.

Apreciando esse requerimento, a Mmª Juíza do tribunal “a quo” proferiu a fls. 72 despacho de rectificação da sentença, nos seguintes termos:

Compulsados os autos, nomeadamente a sentença de fls. 57 e seguintes, verifica-se que existe lapso manifesto na mesma.

Assim, ao abrigo do disposto no art. 667º, nº 1 do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 2º, alínea e), do CPPT, corrige-se o seguinte:

Onde consta:

“Nestes termos, e sem necessidade de mais considerações julgaremos totalmente improcedente a presente anulação de venda pelos motivos supra expostos.”

Passe a constar:

“Nestes termos, e sem necessidade de mais considerações julgaremos totalmente procedente a presente anulação de venda pelos motivos supra expostos.”

Notifique.»

É neste enquadramento que surge o presente recurso jurisdicional, onde se imputa à sentença (de fls. 57 e segs., com a correcção de fls. 72) uma nulidade, por os seus fundamentos estarem em oposição com a decisão, ou, para o caso de assim não se entender, se imputa à sentença erro de julgamento, por afronta do disposto nas disposições conjugadas dos arts. 257º do CPPT, 908º do CPC, 74º da LGT, e 342º do Código Civil.

2.1. Da nulidade da sentença

Invoca a Recorrente a nulidade da sentença com fundamento no disposto na alínea c) do nº 1 do art. 615º do actual CPC, por ocorrer contradição entre a decisão e respectivos fundamentos, porquanto estes conduziriam, lógica e coerentemente, à decisão de improcedência do pedido de anulação da venda.

Nos termos do referido preceito legal, a sentença é nula quando os «fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que tome a decisão ininteligível». O que significa que esta nulidade ocorre quando a construção da sentença é viciosa, quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas ao resultado oposto. Isto é, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma oposta à que logicamente deveria ter extraído: a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente.

No caso concreto dos autos, não se nos oferecem quaisquer dúvidas de que os fundamentos aduzidos pela Mmª Juiz vão no sentido de que a venda não padece do vício que lhe é imputado (erro sobre o objecto transmitido), porquanto a eventual ocupação do imóvel vendido (terreno para construção) por “acampamento de pessoas de etnia cigana” não significa um erro passível de levar à anulação da venda, na medida em que esse terreno é passível de ser utilizado para construção, devendo apenas o adquirente requerer a entrega do bem, se necessário com a intervenção de forças policiais, mas sem que isso retire ao imóvel as qualidades publicitadas no anúncio de venda. Razão por que se rematou a motivação jurídica da sentença com a seguinte afirmação: «Nestes termos, e sem necessidade de mais considerações, julgaremos totalmente improcedente a presente anulação de venda pelos motivos supra expostos.».

Desse modo, e como muito refere a Recorrente, o lapso verificava-se apenas na parte decisória da sentença, por se ter julgado “totalmente procedente” a acção, quando se devia ter julgado “totalmente improcedente” face à motivação jurídica enunciada. E foi somente isso que foi invocado no requerimento para rectificação do lapso de escrita e que podia/devia ter sido apreciado e decidido.

Todavia, a Mmª Juíza, em vez de proceder à rectificação do lapso no segmento decisório, nos termos que lhe foram pedidos, procedeu antes à rectificação da parte final da motivação da sentença, sem qualquer justificação ou lógica jurídica, tornando esta peça processual ainda mais confusa e contraditória.

Uma vez que esse despacho de rectificação, proferido a fls. 72, não tem qualquer coerência jurídica com a motivação da sentença, nem corresponde ou condiz, sequer, ao lapso de escrita invocado e cuja rectificação fora pedida, importa revogá-lo, por ilegal. E porque se constata uma real oposição ou contradição da sentença pronunciada a fls. 57 e segs. com a respectiva motivação jurídica, reveladora de uma construção viciosa da sentença, impõe-se reconhecer a invocada nulidade da sentença.

Razão por que assiste razão à Recorrente, sendo de julgar procedente a arguida nulidade, cujo suprimento incumbe a este Tribunal (cfr. art. 684º, nº 1, do actual CPC), impondo-se declarar em que sentido deve considerar-se modificada a sentença, isto é, declarar que no segmento decisório desta deve constar que se tem de julgar totalmente improcedente o pedido.

Em consequência, fica prejudicado o conhecimento da outra questão que constituía objecto do presente recurso jurisdicional.

3. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar o despacho de fls. 72 e declarar nula a sentença proferida a fls. 57 e segs., por contradição entre a decisão e os seus fundamentos; e, suprindo a nulidade, declarar que o segmento decisório dessa sentença passa a ter o seguinte teor: «Em face de tudo o anteriormente exposto, julga-se totalmente improcedente o presente pedido de anulação de venda.».

Sem custas o recurso.

Lisboa, 5 de Novembro de 2014. – Dulce Neto (relatora) – Ascensão LopesAna Paula Lobo.