Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0113/11
Data do Acordão:02/24/2011
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ROSENDO JOSÉ
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
PRESSUPOSTOS
Sumário:I - A Lei n.º23/2007, de 4 de Julho, transpôs a Directiva 2003/86/CE, do Conselho, relativa ao direito ao reagrupamento familiar de cidadãos estrangeiros residentes em Portugal e estabelece, no art.º 64.º: “sempre que um pedido de reagrupamento familiar com os membros da família, que se encontrem fora do território nacional, seja deferido nos termos da presente lei, é imediatamente emitido ao familiar ou familiares em questão um visto de residência, que permite a entrada em território nacional.
II - O Decreto Regulamentar n.º 84/2007, de 5 de Novembro, emitido para aplicar aquela Lei, prevê um pedido de visto autónomo, depois de deferido o pedido de reagrupamento, a apresentar pelo familiar que pretende entrar em Portugal. Prevê ainda que na falta de apresentação deste pedido no prazo de três meses, o direito de reagrupamento concedido caduca.
III - Além disso, no caso sujeito, a Administração iniciou, a partir de um requerimento do tipo referido em II, um procedimento no qual exigiu vários documentos, incluindo a prova de rendimentos do residente em território nacional para o sustento da pessoa a entrar para a reunião da família.
IV - O recurso de Acórdão do TCA que, no contexto referido, julgou pela ilegitimidade do requerente do reagrupamento, que é residente em Portugal, para pedir, em acção de intimação para a protecção de direitos liberdades e garantias, a emissão imediata da autorização de entrada da esposa que se encontra na Índia, versa sobre questão cujo quadro legal se antevê complexo, pela virtual confluência de princípios gerais, de direito internacional convencional geral, de direito da União e de normas internas de diferentes hierarquias.
A matéria em causa tem relevância social fundamental, por respeitar a direitos das pessoas dignos de protecção reforçada e cuja aplicação prática é de prever que venha a ocorrer recorrentemente.
Estão, assim, reunidos os pressupostos exigidos pelo n.º 1 do artigo 150º do CPTA, razão pela qual deve admitir-se recurso excepcional de revista.
Nº Convencional:JSTA000P12630
Nº do Documento:SA1201102240113
Recorrente:A...
Recorrido 1:MNE
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Formação de Apreciação Preliminar

Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do STA:
I – Relatório:
A…
interpôs no TAF de Lisboa processo urgente de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, contra
MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS,
em que pede a condenação da entidade requerida a emitir urgentemente visto de residência em favor de B…, esposa do Requerente, com vista à concretização do direito de reagrupamento familiar, previsto no artigo 98º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, e reconhecido pelo SEF por despacho de 19 de Março de 2009.
Por sentença de 14 de Junho de 2010 o TAF de Lisboa deferiu o pedido e intimou a entidade requerida a decidir o pedido e a emitir visto de residência em favor de B…, no prazo de 30 dias.
Inconformado com esta decisão, o MNE recorreu para o TCA Sul que, por Acórdão de 9 de Dezembro de 2010, concedeu provimento ao recurso, revogou a sentença recorrida e julgou procedente a excepção de ilegitimidade processual activa do A., absolvendo o MNE da instância.
É deste acórdão que, nos termos do artigo 150º do CPTA, o Recorrente A… pede a admissão de revista, alegando, em síntese, que está em causa a violação do direito ao reagrupamento familiar, direito análogo aos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados e extensíveis aos estrangeiros residentes em Portugal. Imputa também ao Acórdão recorrido violação de lei (ponto 79 das conclusões de revista).
O MNE contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e pela inadmissibilidade da revista, por entender que se não verificam os pressupostos legais.
II - Apreciação. Os Pressupostos do Recurso de Revista.
1. Da conjugação dos artigos 142º n.º 4 e 150º n.º 1 do CPTA resulta que o recurso de revista é um meio processual excepcional, a utilizar quando “esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
Para aferir da “importância fundamental” de uma questão de direito, tem entendido o STA que “essa qualificação é adequada quando a questão, no plano teórico, implica operações exegéticas de acentuada dificuldade para esclarecer o sentido de um preceito legal ou para inteligir as suas conexões com outros lugares do sistema e, no plano prático, é previsível que essa mesma questão venha a ressurgir em contextos futuros. (P. 0379/06 de 27/4).
Sobre a importância social, o STA tem considerado que “o relevo social da controvérsia medir-se-á pelo invulgar impacto comunitário da situação da vida que a norma ou normas jurídicas em apreço visam regular” (P0596/06 de 7/6).
2. Vejamos agora como aplicar ao caso dos autos a referida norma que limita a admissão da revista aos casos de maior importância.
O Recorrente pretende que o STA aprecie questão relativa à recusa de emissão de visto de residência, pelo MNE, em favor da sua esposa, e na sequência de ter visto deferido pelo SEF, por despacho de 19 de Março de 2009, o pedido de reagrupamento familiar, que formulara ao abrigo da conjugação normativa dos artigos 98º n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, e artigo 66º do Decreto Regulamentar n.º 84/2007, de 5 de Novembro.
Para apreciar a verificação dos pressupostos de que depende a admissão deste recurso excepcional, convém recordar o essencial da factualidade assente nas instâncias. Assim:
a) O Recorrente, A…, era titular da autorização de residência temporária em Portugal n.º ..., válida até 3//2009.
b) Formulou junto do SEF, ao abrigo do artigo 98º n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, pedido de reagrupamento familiar, com vista a que a esposa, B…, pudesse obter de visto de residência e juntar-se a ele para residirem em Portugal (cfr. alínea A) da matéria de facto a fls. 365 dos autos).
c) O SEF deferiu esse pedido em 19 de Março de 2009, altura em que notificou o recorrente e o MNE da sua decisão e de que deveria requerer, no prazo de 90 dias, junto do posto consular português mais próximo, o visto de residência (cfr. alíneas B), C) e D) da matéria de facto a fls. 365 e 366 dos autos).
d) A esposa do recorrente formulou na secção consular de Nova Deli, em 4 de Maio de 2009, pedido de emissão de visto de residência (cfr. alínea F) da matéria de facto assente, a fls. 366 dos autos).
e) Na rede de pedidos de visto do MNE, no posto consular de Nova Dehli consta, com data de 27/10/2008, informação relativa ao deferimento do pedido de reagrupamento familiar de B…, de nacionalidade indiana, titular do passaporte n.º G.....
O TAF considerou julgou legitima a intervenção do requerente marido, A…, como requerente do visto para a esposa, que o MNE sustentava não lhe caber e concluiu que “ tendo sido deferido o pedido de reagrupamento familiar formulado pelo Requerente, impõe-se a emissão, imediata, do visto de residência requerido a favor de B…, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 68º n.º 1 do DR n.º 84/2007 e 64º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, para efeitos da entrada da mesma em território nacional (…). Com a não emissão do requerido visto de residência mostra-se violado o direito ao reagrupamento familiar do requerente, direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, impondo-se a imediata decisão sobre a emissão do requerido visto de residência a favor de B….” (cfr. pág. 31 e 32 da sentença do TAF, a fls. 373 e 374 dos autos).
Em apreciação do recurso jurisdicional, o MNE insistiu na ilegitimidade activa do requerente e o TCA disse a propósito:
“Não há dúvidas que o A. era o titular do direito ao reagrupamento familiar (cfr. art.ºs 66º, n.º 1, 68º, n.º 1, ambos do Dec. Regulamentar n.º 84/2007, de 5-11).
Mas dúvidas também não existem que a titular do direito à emissão de um visto de residência era a sua mulher e não ele, pois esse visto destinava-se a permitir a sua entrada em território português a fim de solicitar a autorização de residência, habilitando-a a neste permanecer por um período de quatro meses (…). Aliás, que não existe coincidência entre o titular do direito ao reagrupamento familiar e o titular do direito à emissão de visto de residência resulta claramente dos n.ºs, 2 e 3 do art.º 68º do Dec. Regulamentar n.º 84/2007, onde se prevê a notificação daquele mas se afirma que é este que tem de formalizar o pedido de emissão desse visto sob pena de caducidade da decisão de reconhecimento do direito ao reagrupamento familiar.
O procedimento tendente à emissão do visto de residência é, assim, distinto daquele onde é proferida a decisão de reagrupamento familiar, estando sempre dependente da iniciativa e vontade do titular daquele direito.
E, atento a essa dependência, não se compreenderia que um processo judicial se abstraísse de tal iniciativa, admitindo-se que viesse a ser emitido um visto de residência sem, ou mesmo contra, a vontade do titular do respectivo direito.
Assim, porque o titular da relação jurídica controvertida tal como é configurada pelo autor é a sua mulher, deveria a sentença ter julgado procedente a excepção da ilegitimidade activa absolvendo o R. da instância.” (cfr. Acórdão recorrido, a fls. 594 dos autos).
É este o contexto em que se move o litígio e à luz do qual devemos determinar se estão reunidos os pressupostos exigidos pelo n.º 1 do artigo 150º do CPTA para a admissão da revista.
Vejamos.
A Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho aprovou o regime jurídico aplicável à entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional e, nos termos do seu artigo 1º, define os procedimentos e condições aplicáveis aos pedidos de entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros em território português, ao mesmo tempo que estabelece o estatuto legal do residente de longa duração. Simultaneamente, nos termos do artigo 2º n.º 1 alínea a) desta lei, procede-se à transposição para o direito interno da Directiva 2003/86/CE, do Conselho, relativa ao direito de reagrupamento familiar.
A citada Directiva, com vista à progressiva construção de um espaço comum de liberdade, segurança e justiça, vincula os estados membros a adoptarem um quadro jurídico que possibilite a livre circulação de pessoas nos Estados membros, e viabilize a protecção dos direitos dos nacionais de países estrangeiros.
A Directiva dispõe que os estados membros devem adoptar medidas relativas ao agrupamento familiar em conformidade com a obrigação de protecção da família, do respeito da vida familiar consagrada em numerosos instrumentos de direito internacional, e ao mesmo tempo deixa expresso que esta matéria respeita aos direitos fundamentais e as suas disposições visam garantir a observância dos princípios reconhecidos no artigo 8º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Diz, especificamente no que concerne ao reagrupamento familiar que “é um meio necessário para a vida em família. Contribui para a criação de uma estabilidade sociocultural favorável à integração dos nacionais de países terceiros nos Estados-Membros, o que permite, por outro lado, promover a coesão económica e social, que é um dos objectivos fundamentais da comunidade consagrado no Tratado.”
Assim, de acordo com o artigo 1º da Directiva, o reagrupamento familiar é reconhecido como um direito que assiste aos cidadãos de países terceiros que vivam legalmente nos Estados-Membros. E a alínea b) do artigo 2º define o que, para efeitos de aplicação da Directiva, deve ser considerado “reagrupamento familiar”, ao mesmo tempo que a alínea c) define a noção relevante de “requerente do reagrupamento”, esclarecendo que devem ser considerados para este efeito: “o nacional de um país terceiro com residência legal num Estado-Membro e que requer, ou cujos familiares requerem, o reagrupamento familiar para se reunificarem.”
Quanto às condições de exercício do direito, nomeadamente no que concerne à apresentação do pedido, o artigo 5º n.º 1 da Directiva remete expressamente para os Estados-membros a questão de determinar se, “(…) para exercer o direito ao reagrupamento familiar, cabe ao requerente do reagrupamento ou aos seus familiares apresentar o pedido de entrada e residência às autoridades competentes do Estado-Membro em causa.”
No caso “sub juditio” verifica-se que o litígio tem incidência quanto a determinar as condições de exercício do direito ao reagrupamento familiar, direito este que tem de ser compatibilizado com as exigências legais referentes ao pedido de visto de residência, a emitir em benefício do familiar do cidadão estrangeiro legalmente residente em território nacional.
O legislador nacional, definiu o regime aplicável aos cidadãos estrangeiros que pretendam entrar e residir em Portugal na Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho. Quanto ao direito ao reagrupamento familiar, dispõe o artigo 98º:
Artigo 98.o
Direito ao reagrupamento familiar
1—O cidadão com autorização de residência válida tem direito ao reagrupamento familiar com os membros da família que se encontrem fora do território nacional, que com ele tenham vivido noutro país, que dele dependam ou que com ele coabitem, independentemente de os laços familiares serem anteriores ou posteriores à entrada do residente.
2—Nas circunstâncias referidas no número anterior é igualmente reconhecido o direito ao reagrupamento familiar com os membros da família que tenham entrado legalmente em território nacional e que dependam ou coabitem com o titular de uma autorização de residência válida.
3—O refugiado, reconhecido nos termos da lei que regula o asilo, tem direito ao reagrupamento familiar com os membros da sua família que se encontrem no território nacional ou fora dele, sem prejuízo das disposições legais que reconheçam o estatuto de refugiado aos familiares.
Estabelece ainda o artigo 64º desta mesma Lei:
Artigo 64.o
Visto de residência para efeitos de reagrupamento familiar
Sempre que um pedido de reagrupamento familiar com os membros da família, que se encontrem fora do território nacional, seja deferido nos termos da presente lei, é imediatamente emitido ao familiar ou familiares em questão um visto de residência, que permite a entrada em território nacional.
E acrescenta o artigo 65º:
Artigo 65.o
Comunicação e notificação
1—Para efeitos do disposto no artigo anterior, o SEF comunica à Direcção-Geral dos Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas as decisões de deferimento dos pedidos de reagrupamento familiar, dando delas conhecimento ao interessado.
2—O visto de residência é emitido na sequência da comunicação prevista no número anterior e nos termos dela decorrentes, valendo a mesma como parecer obrigatório do SEF, nos termos do artigo 53.o.
De acordo com esta Lei, o reagrupamento familiar aparece consagrado como um direito reconhecido ao cidadão estrangeiro a a emissão de visto de entrada e autorização de residência válida em território nacional é estabelecida no art.º 64.º como um efeito imediato do deferimento do pedido de reagrupamento familiar.
Esta Lei foi posteriormente desenvolvida pelo Decreto Regulamentar n.º 84/2007, de 5 de Novembro. No preâmbulo deste diploma pode ler-se que:
No que concerne ao reagrupamento familiar, além de se proceder à transposição da Directiva n.º 2003/86/CE do Conselho, de 22 de Setembro, em consequência da unificação dos estatutos jurídicos dos estrangeiros a residir legalmente em Portugal, precisam-se os termos em que é alargado o âmbito de aplicação pessoal do direito ao reagrupamento familiar a estrangeiros que dele estão excluídos à luz do regime anterior, em especial, os titulares de vistos de trabalho e os titulares de autorizações de permanência, através da concessão imediata de títulos de residência e, em consequência, do direito de reagruparem de imediato com os seus familiares. Regulamenta -se, igualmente, o reagrupamento com o parceiro de facto. Os pedidos de reagrupamento familiar passam a poder ser tratados de forma conjunta e o seu deferimento implica a concessão automática de visto aos membros da família que se encontrem no estrangeiro.” (negrito e sublinhados nossos).
No caso concreto, o Acórdão recorrido suscitou, como constituindo um problema, a articulação entre procedimentos: por um lado o procedimento tendente ao reconhecimento do direito ao reagrupamento familiar, cuja competência cabe ao SEF e por outro, um procedimento criado pelos artigos 66.º e 68.º do Decreto Regulamentar n.º 84/2007, de 5 de Novembro, que, a final, retira as características de imediação e automatismo da emissão do visto para reagrupamento familiar que a lei parece garantir.
Determina o artigo 68º deste decreto regulamentar:
Artigo 68.º
Comunicação do deferimento
1 — O deferimento do pedido formulado nos termos do n.º 1 do artigo 98.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, é comunicado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros sempre que possível por via electrónica, acompanhado de cópia digitalizada das peças processuais relevantes e determina a emissão, imediata, do visto de residência, salvo no caso de verificação de factos que, se fossem do conhecimento da autoridade competente, teriam obstado ao reconhecimento do direito ao reagrupamento familiar.
2 — O titular do direito ao reagrupamento familiar é notificado do despacho de deferimento no prazo de 8 dias, sendo informado de que os seus familiares se deverão dirigir à missão diplomática ou posto consular de carreira da respectiva área de residência, no prazo de 90 dias, a fim de formalizarem o pedido de emissão de visto de residência.
3 — A não apresentação do pedido de emissão de visto de residência nos termos do n.º 2 implica a caducidade da decisão de reconhecimento do direito ao reagrupamento familiar.
Foi à luz dos n.ºs 2 e 3 deste normativo, em especial o n.º 2, que o Acórdão recorrido sustentou o entendimento segundo o qual o Recorrente – titular do direito ao reagrupamento familiar – não possui legitimidade processual activa que lhe permita intimar o MNE à emissão de visto de residência em benefício do seu cônjuge.
A perspectiva do Acórdão recorrido é que o titular do direito à emissão do visto de residência é o cônjuge do cidadão estrangeiro residente em Portugal, ao qual a autoridade competente tenha reconhecido o direito ao reagrupamento familiar.
Esta perspectiva começa por aceitar, sem mais análise, que a lei permite dois procedimentos sucessivos um para a autorização de reagrupamento e outro de visto, o que não se afigura resultar claramente da lei, pelo contrário parece surgir como uma inovação da norma regulamentar cuja conformidade com a lei pode também ser questionada.
Na referida perspectiva, o TCA distinguiu o âmbito e a titularidade do que entende serem dois direitos distintos – o direito ao reagrupamento familiar e o direito à emissão de visto de residência para aquele fim -, para concluir pela verificação da excepção de ilegitimidade processual activa do recorrente neste processo contencioso de intimação para protecção de direitos liberdades e garantias, já que não teria também legitimidade activa no procedimento perante a Administração, isto é, para pedir a emissão do visto.
Entendeu o Acórdão do TCA que a legitimidade procedimental activa para o pedido de visto pertence exclusivamente à pessoa a que respeita. O que tem como consequência, que apenas a esposa do Recorrente, residente na Índia, pudesse pedir e obter dentro do prazo referido no n.º 3 do Regulamento (também ele inovatório, restritivo e contrário à afirmada imediação e automatismo deste tipo de visto) o visto para entrar e passar a residir em Portugal.
Ao assim decidir, com um voto de vencido, alterou a decisão de 1.ª instancia.
Consta da matéria de facto e da decisão recorrida que a esposa do A. requereu no consulado competente o visto, e que, a partir daí, foi iniciado um procedimento no qual lhe foram pedidos vários documentos, incluindo a prova de rendimentos do residente em território nacional para o sustento da pessoa a entrar para a reunião da família.
Tendo em conta o que antecede percebe-se que a interpretação do quadro legal pode ser a preconizada pelo Acórdão do TCA, em obediência estrita à interpretação que parece ter maior arrimo na letra dos n.ºs 2 e 3 do artigo 68.º do Decreto Regulamentar n.º 84/2007, de 5 de Novembro, ou pode dar-se o caso de ser outra, designadamente a que interprete estes dispositivos em conformidade com a Directiva e a Lei, ou, noutro registo hipotético, afaste a validade desta parte do Decreto Regulamentar, por se não conformar com a Directiva e com a Lei que esta fonte hierarquicamente inferior deveria desenvolver para aplicar, mas parece condicionar fortemente, talvez divergindo do espírito e da letra das normas de hierarquia superior (quer ao criar um sub-procedimento, quer a norma de caducidade do direito).
Do que se disse resulta com suficiente clareza que a matéria aqui em apreciação se reveste de uma particular sensibilidade e respeita ao exercício de direitos fundamentais da pessoa humana.
As questões atinentes às condições exigidas para o exercício do direito de reagrupamento familiar, assim como à sua conexão com a emissão de vistos de residência, possuem um elevado grau de relevância social, considerando que a mobilidade de pessoas é hoje cada vez maior e se projecta à escala global, o que impõe particulares exigências no que tange à segurança dos Estados e dos seus cidadãos e quando é igualmente certo que a preservação destes valores tem de ser compatibilizada com o respeito dos direitos pessoais dos estrangeiros.
A presente questão não foi objecto de anterior análise pelo STA e reveste-se de dignidade e relevância que justificam a intervenção deste órgão de cúpula da jurisdição administrativa, em sede de recurso excepcional, uma vez que se apresenta como oportunidade para esclarecer o sentido das normas relevantes, num quadro jurídico complexo, em que se vislumbra como possível serem chamados, com pertinência, princípios gerais de direito, direito internacional convencional geral, direito da União e direito interno situado em diferentes camadas hierárquicas.
III – Decisão:
Em conformidade com o exposto, com fundamento na relevância jurídica e social da questão, e nos termos dos n.ºs 1 e 5 do art.º 150.º do CPTA, acordam em admitir a revista.
Sem custas nesta fase.
Lisboa, 24 de Fevereiro de 2011. - Rosendo Dias José (relator) - José Manuel da Silva Santos Botelho – Luís Pais Borges.