Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:069/11
Data do Acordão:05/25/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:CASIMIRO GONÇALVES
Descritores:IRC
LIQUIDAÇÃO ADICIONAL
TAXA
REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES
AJUDAS COMUNITÁRIAS
REPOSIÇÃO DE QUANTIAS
JUROS COMPENSATÓRIOS
Sumário:I - Não tendo sido imputados vícios próprios à liquidação operada no seguimento e nos limites de decisão da Comissão Europeia de recuperar os auxílios concretizados nas reduções de taxas previstas no art. 5º do Decreto Legislativo Regional nº 2/99-A, de 20/1, as questões da eventual violação, por parte de tal decisão, do princípio da legalidade fiscal, incluindo o sub-princípio da não retroactividade das leis fiscais, bem como dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima dos cidadãos, devem ser suscitadas em sede de sindicância judicial dessa decisão da Comissão, já que não constituem vícios próprios do acto de liquidação que se limita a executá-la.
II - Não são devidos juros compensatórios se o contribuinte, ao proceder à autoliquidação de IRC, se limitou a respeitar o enquadramento legal vigente na altura e de acordo com o qual aplicou taxa reduzida constante do art. 5º do Decreto Legislativo Regional nº 2/99-A, de 20/1, que só posteriormente veio a ser considerada pela Comissão como incompatível com o mercado comum.
Nº Convencional:JSTA00066984
Nº do Documento:SA220110525069
Data de Entrada:01/28/2011
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF PONTA DELGADA PER SALTUM.
Decisão:PROVIMENTO PARCIAL.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - IMPUGN JUDICIAL.
DIR FISC - IRC.
Área Temática 2:DIR COMUN.
Legislação Nacional:ETAF02 ART26 B ART38 A.
CPPTRIB99 ART280 N1.
CPC96 ART684 N1 N3 ART690 N1 N3.
DLR 2/99/A DE 1999/01/20 ART5.
CPA91 ART154 N1.
Legislação Comunitária:DECIS COM CEE 2003/442/CE DE 2002/12/11.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC1091/05 DE 2006/05/24.; AC STA PROC576/08 DE 2008/11/19.; AC STA PROC791/10 DE 2011/03/22.; AC STA PROC1006/04 DE 2005/06/12.
Jurisprudência Internacional:AC TRIJ PROC C-88/03 DE 2006/09/06.
AC TRIJ PROC C-183/02 DE 2004/11/11.
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA - JUROS NAS RELAÇÕES TRIBUTÁRIAS IN PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO TRIBUTÁRIO PAG145
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
RELATÓRIO
1.1. A…, SA., recorre da sentença que, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, lhe julgou improcedente a impugnação judicial que deduzira contra as liquidações adicionais de IRC relativas aos anos de 1999, 2000, 2001, 2002, 2006 e 2007.
1.2. A recorrente termina as alegações formulando as conclusões seguintes:
a) O presente recurso vem interposto da decisão proferida no processo à margem referenciado, que julgou improcedente a impugnação judicial de seis actos tributários, relativos a IRC;
b) Os referidos actos tributários tiveram por base a Decisão da Comissão Europeia – «Auxílio Estatal C 35/2002 (EX NN 10/2000) – Portugal»;
c) O ora Recorrente não se conforma a sentença recorrida, porquanto a execução da Decisão da Comissão Europeia implica a prática de actos que violam os princípios fundamentais do Estado de direito democrático, como são o princípio da legalidade fiscal, incluindo o sub-princípio da não retroactividade das leis fiscais, bem como os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima dos cidadãos;
d) Desde logo, as liquidações adicionais de IRC emitidas em execução da Decisão da Comissão, implicam a cobrança retroactiva de impostos relativamente a situações tributárias já cumpridas e validadas pela Administração tributária de acordo com a lei em vigor;
e) Atente-se ainda que, nas datas em que o ora Recorrente liquidou os seus impostos, o sistema informático da Administração fiscal não permitia liquidá-los a outra taxa que não a taxa reduzida imposta pelo artigo 5º do Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A, de 20 de Janeiro;
f) Pelo que, a aplicação posterior de nova taxa (não prevista na lei) é uma intolerável cobrança retroactiva de impostos, manifestamente violadora do disposto no artigo 103° nº 3 da CRP;
g) Tais actos de liquidação são igualmente violadores do princípio da legalidade fiscal, que nas palavras dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira representa «um dos elementos essenciais do Estado de direito constitucional» – (Coimbra Editora) Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1° a 107°, 4ª Edição, pág. nº 1090;
h) Isto porque, a taxa aplicada retroactivamente ao ora Recorrente não é a taxa constante da lei aplicável às empresas sediadas na Região Autónoma dos Açores;
i) E, não se pode considerar como constitucionalmente admissível a possibilidade das autoridades fiscais fixarem, por mero acto de execução de uma decisão comunitária e ao arrepio da legislação nacional vigente e aplicável, as taxas de determinados impostos;
j) Só a lei da Assembleia da República, ou outra desde que devidamente autorizada por esta, é que poderá definir os impostos a pagar pelos cidadãos;
k) Em conformidade, a Assembleia da República definiu no artigo 37° da Lei nº 13/98, de 24 de Fevereiro (em vigor à data dos factos), e a Assembleia Legislativa Regional dos Açores no Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A, as modalidades de adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades regionais e fixou uma redução de 30% nas taxas nacionais IRC em vigor em cada ano;
l) Ora, não pode a Administração fiscal através de uma decisão da Comissão Europeia cobrar aos contribuintes residentes nos Açores outra taxa de imposto que não a definida na lei nos termos exigidos pela CRP;
m) Pelo que, os actos de liquidação aqui em apreço violam manifestamente o princípio da legalidade imposto pelo nº 2 do artigo 103° da CRP;
n) Por outro lado, admitirem-se como válidos os actos de liquidação em apreço, significaria o fim dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos no nosso ordenamento jurídico;
o) A fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo para refutar a violação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos é, salvo o devido respeito, insustentável e inadmissível, na medida em que defende que os cidadãos para puderem depositar confiança nas leis emanadas dos seus órgãos de soberania deverão primeiro certificar-se que estes cumpriram as suas obrigações perante os órgãos da Comunidade Europeia, nomeadamente a notificação prévia à Comissão Europeia;
p) Ora, com que fundamento é que se defende que os cidadãos têm de fiscalizar o cumprimento dos procedimentos impostos aos Estados-Membros no âmbito do direito comunitário?, sob pena de, não lhes ser reconhecida a protecção da sua legítima confiança, nem lhes ser conferida qualquer segurança jurídica!
q) Este entendimento deturpa manifestamente estes princípios retirando-lhe qualquer alcance e sentido útil;
r) Com bem ilustra Karl Larenz: “Uma coexistência pacífica das pessoas sob leis jurídicas que assegurem a cada um «o que é seu» só é possível quando está garantida a confiança indispensável. Uma desconfiança total e de todos conduz à eliminação total de todos ou ao domínio do mais forte, quer dizer, ao oposto de um «estado jurídico»” (Metodologia da Ciência do Direito, 5ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 679).
s) Concluindo de seguida o mesmo autor, que “Possibilitar a confiança e proteger a confiança justificada é, portanto, um dos preceitos fundamentais que deve cumprir o ordenamento jurídico” (Obra citada, pág. 679).
t) Nestes termos, os despachos de indeferimento em crise e as liquidações de IRC e de juros referentes aos exercícios de 1999, 2000, 2001, 2002, 2006 e 2007 são inconstitucionais e ilegais, por violação do disposto nos artigos 103°, nº 2, e 2° da CRP, e nos artigos 5°, nº 2, 55° e 59° da LGT e no artigo 5° do Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A, pelo que a sentença ora recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que aplique correctamente a Lei e salvaguarde os princípios fundamentais do Estado de direito democrático, determinando, em consequência, a revogação dos actos de liquidação em causa;
u) Por outro lado, as liquidações de juros compensatórios depende, nos termos da lei, sempre de verificação de culpa do contribuinte no atraso verificado no pagamento dos tributos;
v) No caso em apreço, o ora Recorrente liquidou atempadamente todos os impostos que lhe eram devidos por lei, nomeadamente pelo Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A;
w) Mesmo que quisesse, não os poderia ter pago a uma taxa mais alta do que a prevista no Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A, porquanto o sistema informático da Administração fiscal não o permitia às empresas sediadas na Região Autónoma dos Açores;
x) Pelo que, estas liquidações acarretam uma enorme injustiça e assim, violando a letra e o espírito do artigo 102° do Código do IRC e do artigo 35° da LGT, devendo também, relativamente a este aspecto, a sentença recorrida ser revogada e, em consequência, serem anulados os próprios actos de liquidação de juros;
y) Por fim, e porque os actos impugnados foram praticados em execução de uma Decisão da comissão Europeia, importa salientar que, não obstante reconhecer primado do direito comunitário sobre o direito interno dos Estados-Membros, este sofre uma limitação/derrogação sempre que a sua aplicação interna ponha em causa os princípios fundamentais do Estado de direito democrático, de acordo com o disposto no nº 4 do artigo 8º da CRP;
z) E a execução desta decisão, conforme já demonstrámos, atenta de forma violenta contra princípios fundamentais do estado de direito democrático, como sejam, os princípio da legalidade fiscal e os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos;
aa) Pelo que, nos termos do disposto no artigo 204° da CRP, a referida Decisão da Comissão deverá ser declarada inconstitucional e, nessa medida, determinar-se a sua inaplicabilidade na nossa ordem interna;
bb) Está em causa uma situação de uma gritante injustiça, em que estão em causa princípios fundamentais do Estado de direito, e só nos resta confiar nos Tribunais e esperar que os Juízes não se esqueçam, como bem refere Miguel Galvão Teles, que a sua relação com o sistema jurídico “é uma relação de fidelidade” e “Em matéria de fidelidade, porém, o juiz nacional não pode esquecer que foi o sistema jurídico português que o constituiu e investiu” (Obra citada, pág. 330).
Termina pedindo a procedência do recurso e que seja revogada a decisão recorrida, e, em consequência, seja declarada a inconstitucionalidade dos actos de execução da Decisão da Comissão Europeia «Auxílio Estatal C 35/2002 (EX NN 10/2000) – Portugal», nomeadamente das liquidações de IRC e respectivos juros, por violação dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima dos cidadãos, da legalidade fiscal e da não retroactividade fiscal, e, ainda que seja determinada, por força da violação destes princípios fundamentais do Estado de direito democrático, a sua ineficácia e inaplicabilidade na nossa ordem interna, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 8º e do artigo 204°, ambos da CRP.
1.3. Contra-alegando, a recorrida Fazenda Pública sustentou a confirmação da sentença recorrida.
1.4. O MP emite Parecer, no qual suscitou a questão prévia da incompetência, em razão da hierarquia, deste Tribunal, nos termos seguintes:
«Nos presentes autos suscita-se, desde logo, a questão prévia da incompetência deste Tribunal em razão da hierarquia.
Com efeito e como se constata das conclusões das alegações de recurso de fls. 277 e segs. a recorrente A…, SA. vem invocar factos novos que o tribunal recorrido não estabeleceu, nem levou em conta na sentença, mas em cuja afirmação fundamenta o seu direito.
É o que se apura nomeadamente das conclusões e) e w) em que a recorrente refere que «nas datas em que (...) liquidou os seus impostos, o sistema informático da Administração Fiscal não permitia liquidá-los a outra taxa que não a taxa reduzida imposta pelo art. 5º do Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A de 20 de Janeiro» factos esses que não foram dados por assentes na decisão recorrida, mas em cuja afirmação fundamenta o seu direito, pretendendo daí retirar a conclusão de que não se verificou culpa do contribuinte no atraso no pagamento dos tributos, e de que a liquidação de juros compensatórios é ilegal (cf. conclusões u) a x)).
A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a entender que na delimitação da competência do Supremo Tribunal Administrativo em relação à do Tribunal Central Administrativo deve entender-se que o recurso não tem por fundamento exclusivamente matéria de direito sempre que nas conclusões das respectivas alegações o recorrente pede a alteração da matéria fáctica fixada na decisão recorrida ou invoca, como fundamento da sua pretensão, factos que não têm suporte na decisão recorrida, independentemente da atendibilidade ou relevo desses, factos para o julgamento da causa – vide neste sentido Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 03.10.2007, recurso 373/07, de 31.01.2007, recurso 1027/06 e de 17.01.2007, recurso 962/06, todos in www.dgsi.pt.
Verifica-se, pois, a incompetência deste Supremo Tribunal Administrativo já que versando o recurso, também, matéria de facto, será competente para dele conhecer o Tribunal Central Administrativo Sul – arts. 280º, nº 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 26º alínea b) e 38º alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Nestes termos somos de parecer que, ouvida a recorrente, este Tribunal deve ser julgado incompetente em razão da hierarquia.»
1.5. Notificadas as partes para se pronunciarem, querendo, sobre a questão prévia suscitada pelo MP apenas a recorrente veio fazê-lo, nos seguintes termos:
1. Pronunciou-se o Exmo Procurador-Geral Adjunto pela incompetência em razão da hierarquia deste Tribunal em virtude de entender que o recurso versa também sobre a matéria de facto;
2. Tal entendimento, justificou, prende-se com o facto de o Tribunal a quo não ter expressamente considerado como provado que “nas datas em que (…) liquidou os seus impostos, o sistema informático da Administração Fiscal não permitia liquidá-los a outra taxa que não a taxa reduzida imposta pelo artº 5º do Decreto-Legislativo Regional n.º 2/99/A de 20 de Janeiro”;
3. No entanto, não pode a ora Recorrente aceitar este entendimento, porquanto, o presente recurso não visa impugnar a matéria de facto considerada assente pelo Tribunal a quo, nem acrescentar quaisquer factos à mesma matéria;
4. O facto supra mencionado é um facto notório que carece de ser alegado ou provado e foi mencionado na P.I. e nas alegações de recurso para melhor expressar a gritante contradição da Administração Fiscal subjacente às liquidações impugnadas nos presentes autos;
5. Ou seja, julgamos ser notório o facto de a administração fiscal não aceitar a liquidação de impostos por taxas diferentes daquelas que são respectivamente aplicáveis aos sujeitos passivos;
6. Muito menos, quando as declarações são efectuadas informaticamente, em que, com a introdução do respectivo número de contribuinte no sistema informático da administração fiscal, a sua taxa é determinada automaticamente pelo sistema, não lhe estando acessível qualquer opção;
7. Os factos notórios, nos termos do disposto no artigo 514.° do Código do Processo Civil (‘CPC’), não carecem de ser alegados nem de ser provados;
8. Pelo que, o presente recurso não versa sobre matéria de facto, mas sim apenas sobre matéria de direito, sendo competente para o efeito o Supremo Tribunal Administrativo;
9. Mas, ainda assim, entendemos que o Meritíssimo Juiz a quo teve, ainda que implicitamente, em consideração tal facto na matéria dada como provada;
10. Nomeadamente, quando considerou provado que “o referido Decreto Legislativo Regional consagrou uma redução de 30% às taxas nacionais de IRC, em vigor em cada ano, relativamente ao imposto devido por pessoas colectivas que tenham sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável nos Açores – artigo 5º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A, sendo que esta redução de taxas foi automaticamente aplicável a todos os agentes económicos”;
11. Ou seja, o Meritíssimo Juiz a quo, ao considerar que “a redução de taxas foi automaticamente aplicável a todos os agentes económicos”, considerou implicitamente provado que não estava na disponibilidade destes agentes optar por outra taxa que não a reduzida;
12. Pelo que, não restam dúvidas que o recurso interposto pela ora Recorrente versa apenas sobre matéria de direito, sendo, por isso, competente para a sua apreciação o Supremo Tribunal Administrativo.
1.6. Corridos os vistos legais, cabe decidir.
FUNDAMENTOS
2. Na sentença recorrida julgaram-se provados os factos seguintes, ora submetidos a alíneas:
a) A impugnante é uma instituição de crédito que integrou por fusão o …, S.A. que tinha sede nos Açores e desenvolvia a sua actividade exclusivamente no mencionado arquipélago, e, em função dos resultados dessa actividade, era tributada em sede de IRC.
b) Em 20 de Janeiro de 1999, foi publicado, em Diário da República, o Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A, aprovado pela Assembleia Legislativa dos Açores.
c) Este diploma estabelece as modalidades de adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades da Região Autónoma dos Açores, em conformidade com o disposto na CRP – maxime artigos 225° e 227° - e na Lei de Finanças das Regiões Autónomas – Lei nº 13/98, de 24 de Fevereiro –, aprovada pela Assembleia da República e em vigor à data dos factos, tendo sido posteriormente substituída pela Lei Orgânica nº 1/2007 de 19 de Fevereiro.
d) Nos termos do regime de autonomia financeira aplicável às Regiões Autónomas, os impostos sobre o rendimento constituem receitas das Regiões Autónomas, podendo as Assembleias Legislativas Regionais, de acordo com o artigo 37° da mencionada Lei nº 13/98, diminuir as taxas de imposto até ao limite de 30% das taxas previstas pela legislação nacional.
e) Esta prerrogativa das Assembleias Legislativas Regionais manteve-se na actual Lei de Finanças das Regiões Autónomas – Lei Orgânica nº 1/2007 de 19 de Fevereiro – nomeadamente no artigo 56° da referida Lei.
f) Foi em conformidade com tal habilitação legal que a Assembleia Legislativa Regional dos Açores aprovou o Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A, de 20 de Janeiro, estabelecendo as modalidades de adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades regionais.
g) O referido Decreto Legislativo Regional consagrou uma redução de 30% às taxas nacionais de IRC, em vigor em cada ano, relativamente ao imposto devido por pessoas colectivas que tenham sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável nos Açores – artigo 5° do Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A, sendo que esta redução de taxas foi automaticamente aplicável a todos os agentes económicos.
h) O artigo 5° do Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A mantém-se em vigor no nosso ordenamento jurídico desde a data da sua publicação, não tendo sido objecto de qualquer alteração, limitação ou revogação.
i) Em 11 de Dezembro de 2002, a Comissão Europeia adoptou a Decisão «Auxílio Estatal C 35/2002 (EX NN 10/2000) – Portugal» relativa à parte do regime que adapta o sistema fiscal nacional às especificidades da Região Autónoma dos Açores referente à vertente das reduções das taxas do imposto sobre o rendimento, declarando-o incompatível com o mercado comum quando aplicável a empresas que exerçam as actividades previstas na secção J, códigos 65, 66 e 67 da nomenclatura estatística das actividades económicas na comunidade europeia.
j) Em execução daquela Decisão da Comissão, a impugnante foi sujeita a uma inspecção tributária, tendo sido notificada para exercer o direito de audição prévia relativamente aos projectos de relatório de conclusões que propôs a correcção das liquidações de IRC referentes aos exercícios de 1999 a 2002, 2006 e 2007, resultante de um acréscimo no valor das respectivas colectas mas também da tributação autónoma e respectiva derrama, aos quais seriam acrescidos ainda juros indemnizatórios.
k) As liquidações em apreço apresentaram os seguintes valores:
Montante da correcção e juros compensatórios*
1999
2000
2001
2002
2006
2007
96363,96
711944,84
981638,31
1002791,23
1342915,93
1501987,26
___________________________________________________________________________
* Valores em euros
l) A impugnante exerceu o respectivo direito de audição prévia, tendo contestado a legalidade e constitucionalidade das liquidações adicionais de IRC então propostas pela Administração Fiscal.
m) Os Serviços da Inspecção Tributária converteram os projectos de relatório em relatórios finais de conclusões, dando origem às correcções e emissão da nota de liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios, respeitantes aos anos supra indicados.
n) Notificada das referidas liquidações adicionais, apresentou a impugnante as competentes reclamações graciosas, que foram indeferidas.
o) Face ao que a impugnante interpôs seis recursos hierárquicos que foram julgados improcedentes.
3.1. Com base nesta factualidade, a sentença veio a julgar improcedente a impugnação, com fundamento, em síntese, em que:
- não se verifica o alegado vício de falta de fundamentação dos actos, dado que cada uma das decisões tomadas pela administração contém a exposição das razões de facto e de direito que as sustentam, sendo que os factos que se pressupõem em cada uma dessas decisões são aqueles a que a impugnante se reporta e esta, na sua argumentação, demonstra que apreendeu o raciocínio lógico da administração, rebatendo-o sem ambiguidades.
- não se verifica a alegada violação do princípio da não retroactividade das leis fiscais, dado que a taxa reduzida de que inicialmente beneficiou a impugnante é considerada pela legislação comunitária como um auxílio e como tal sujeita ao procedimento de notificação à Comissão, procedimento que no caso foi omitido. Esse auxílio não seria de executar antes de a Comissão ter tomado, ou de se poder considerar que tomou, uma decisão que o autorize, pelo que o Decreto Regulamentar que o instituiu nunca teve eficácia executória no ordenamento jurídico português, face ao direito comunitário recebido na ordem jurídica portuguesa e, assim, a taxa do imposto sempre foi, no caso da impugnante, a taxa em vigor no restante território nacional, nenhuma lei fiscal retroactiva tendo, pois, sido aplicada.
- não se verifica a alegada violação do princípio constitucional da legalidade, porquanto o auxílio não pode ser considerado enquanto a Comissão não tiver tomado uma decisão que o autorize.
- não se verifica a alegada violação do princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima dos cidadãos, pois que o princípio vigente na matéria, expresso na jurisprudência do TJCE (hoje TJUE), é o de que os beneficiários devem conhecer o direito comunitário em matéria de auxílios de Estado, sendo que um operador económico diligente deve estar normalmente em condições de se assegurar de que o processo de notificação pelo Estado foi respeitado e se não o fez, não pode ter confiança legítima na regularidade do auxílio e não pode, em consequência, invocar a sua quebra.
- não se verifica a invocada ilegalidade da liquidação de juros compensatórios, dado que, face ao que dispõe o art. 14°, n° 2, do Regulamento (CE) n° 659/1999, do Conselho de 22/3/99, o auxílio a recuperar mediante uma decisão de recuperação incluirá juros a uma taxa adequada fixada pela Comissão e os mesmos são devidos a partir da data em que o auxílio ilegal foi colocado à disposição do beneficiário e até ao momento da sua recuperação.
3.2. A recorrente discorda do assim decido continuando a sustentar, como decorre das Conclusões do recurso, que a execução da Decisão da Comissão Europeia implica a prática de actos que violam os princípios fundamentais do Estado de direito democrático, sendo, por isso, ilegais as liquidações impugnadas, por violação do princípio da legalidade fiscal, incluindo o sub-princípio da não retroactividade das leis fiscais, bem como dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima dos cidadãos. Pelo que, nessa medida, a sentença recorrida, ao julgar pela não verificação de tais ilegalidades, enferma de erro de julgamento.
As questões a decidir são, portanto, as de saber se, em relação às liquidações adicionais impugnadas, as ditas ilegalidades se verificam.
4. Importa, porém, antes de mais, apreciar a questão suscitada pelo MP, atinente à invocada incompetência, em razão da hierarquia, deste STA, para conhecer do recurso.
Alega o MP que a recorrente vem, nomeadamente nas Conclusões e) e w) do recurso, invocar factos novos que o tribunal recorrido não estabeleceu, nem levou em conta na sentença, mas em cuja afirmação aquela fundamenta o seu direito, conforme decorre das Conclusões u) a x).
A recorrente, por seu lado, sustenta que o recurso não visa impugnar a matéria de facto julgada provada pelo Tribunal a quo, nem acrescentar quaisquer factos à mesma matéria, até porque:
- o facto referido pelo MP é um facto notório (é notório que a AT não aceita a liquidação de impostos por taxas diferentes daquelas que são respectivamente aplicáveis aos sujeitos passivos, e menos, ainda, quando as declarações são efectuadas informaticamente, pois com a introdução do respectivo número de contribuinte no sistema informático da administração fiscal, a sua taxa é determinada automaticamente pelo sistema, não lhe estando acessível qualquer opção) que, apesar de articulado na petição inicial, não carece de ser alegado ou provado;
- acresce que, apesar disso, a sentença também teve esse facto em consideração, ainda que implicitamente, na matéria julgada provada, nomeadamente quando considerou provado que “o referido Decreto Legislativo Regional consagrou uma redução de 30% às taxas nacionais de IRC, em vigor em cada ano, relativamente ao imposto devido por pessoas colectivas que tenham sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável nos Açores – artigo 5º do Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A, sendo que esta redução de taxas foi automaticamente aplicável a todos os agentes económicos”.
Vejamos.
Tal como resulta da al. b) do art. 26º do ETAF (na redacção da Lei 107-D/2003 de 31.12), a competência do Supremo Tribunal Administrativo para apreciação dos recursos jurisdicionais interpostos de decisões dos Tribunais Tributários restringe-se, exclusivamente, a matéria de direito, constituindo, assim, uma excepção à competência generalizada do Tribunal Central Administrativo, ao qual compete (cfr. al. a) do art. 38º) conhecer «dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, salvo o disposto na alínea b) do artigo 26°.
Em consonância, o nº 1 do art. 280° do CPPT prescreve que das decisões dos tribunais tributários de 1ª instância cabe recurso para o Tribunal Central Administrativo, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito, caso em que cabe recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
Reserva-se, portanto, ao Supremo Tribunal Administrativo o papel de tribunal de revista, com intervenção reservada para os casos em que a matéria de facto controvertida no processo esteja estabilizada e apenas o direito se mantenha em discussão.
Deste modo, para aferir da competência, em razão da hierarquia, do STA, apenas há que atentar, em princípio, no teor das conclusões da alegação do recurso (pois por elas se define o objecto e se delimita o âmbito deste - cfr. o nº 3 do art. 684° e os nºs 1 e 3 do art. 690°, ambos do CPC) e verificar se, perante tais conclusões, as questões controvertidas se resolvem mediante uma exclusiva actividade de aplicação e interpretação de normas jurídicas, ou se, pelo contrário, a sua apreciação implica a necessidade de dirimir questões de facto (ou porque o recorrente defende que os factos levados ao probatório não estão provados, ou porque diverge das ilações de facto que deles se devam retirar, ou, ainda, porque invoca factos que não vêm dados como provados e que não são, em abstracto, indiferentes para o julgamento da causa).
E se o recorrente suscitar qualquer questão de facto, o recurso já não terá por fundamento exclusivamente matéria de direito, ficando, desde logo, definida a competência do Tribunal Central Administrativo, independentemente da eventualidade de, por fim, este Tribunal vir a concluir que a discordância sobre a matéria fáctica, ou que os factos não provados alegados são irrelevantes para a decisão do recurso.
No caso vertente, na Conclusão e) a recorrente, reportando-se às liquidações dos juros compensatórios, alega que «nas datas em que (...) liquidou os seus impostos, o sistema informático da Administração Fiscal não permitia liquidá-los a outra taxa que não a taxa reduzida imposta pelo art. 5º do Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A de 20 de Janeiro» e nas Conclusões u) a x), alega que a liquidação desses juros compensatórios «depende, nos termos da lei, sempre de verificação de culpa do contribuinte no atraso verificado no pagamento dos tributos» mas, no caso, ela, recorrente, «liquidou atempadamente todos os impostos que lhe eram devidos por lei, nomeadamente pelo Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A» e, «Mesmo que quisesse, não os poderia ter pago a uma taxa mais alta do que a prevista no Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A, porquanto o sistema informático da Administração fiscal não o permitia às empresas sediadas na Região Autónoma dos Açores».
Ora, como alega a recorrente, a sentença, julgando provado que «o referido Decreto Legislativo Regional consagrou uma redução de 30% às taxas nacionais de IRC, em vigor em cada ano, relativamente ao imposto devido por pessoas colectivas que tenham sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável nos Açores – artigo 5º do Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A, sendo que esta redução de taxas foi automaticamente aplicável a todos os agentes económicos» contempla, necessariamente, aquela alegação de não opção, por parte dos agentes económicos, para aplicação de taxa diferente da prevista no citado Decreto Legislativo Regional, não podendo, pois, afirmar-se que estamos perante invocação de factualidade não considerada na sentença recorrida e sendo que a alegação de que a liquidação dos juros compensatórios «depende, nos termos da lei, sempre de verificação de culpa do contribuinte no atraso verificado no pagamento dos tributos» constitui apenas mera alegação conclusiva.
Assim, apesar de aquela factualidade não ser, em abstracto, indiferente para o julgamento da causa, não deixa de ser factualidade que a sentença considerou no Probatório, concluindo-se, assim, que o recurso tem por fundamento exclusivamente matéria de direito, sendo competente para o seu conhecimento a Secção do Contencioso Tributário deste STA e improcedendo, portanto, a excepção suscitada pelo MP.
5. Vejamos, então, se se verificam, ou não, as ilegalidades imputadas às liquidações adicionais aqui em questão (IRC dos anos de 1999, 2000, 2001, 2002, 2006 e 2007) e respectivos juros compensatórios, feitas em execução de Decisão da Comissão Europeia (Decisão nº 2003/442/CE da Comissão, de 11/12/2002) que declarou incompatível com o mercado comum a parte do regime fiscal que, adaptando o sistema fiscal nacional às especificidades da Região Autónoma dos Açores, reduziu as taxas do imposto sobre o rendimento.
A recorrente substancia aquelas ilegalidades nas invocadas violações do princípio da legalidade fiscal, incluindo o sub-princípio da não retroactividade das leis fiscais, do princípio da segurança jurídica e do princípio da protecção da confiança legítima dos cidadãos.
E a recorrente alega, ainda, que também a exigência de juros compensatórios numa situação em que não se verificou culpa do contribuinte no atraso do pagamento dos tributos acarreta uma enorme injustiça.
Por sua vez, a Fazenda Pública, sustenta que deve ser confirmada a decisão recorrida.
5.1. Este Supremo Tribunal pronunciou-se já, por diversas vezes, sobre questões idênticas às aqui em causa, ou seja, questões relacionadas com a referida Decisão da Comissão, de 11/12/2002, relativa à parte do regime que adapta o sistema fiscal nacional às especificidades da Região Autónoma dos Açores, no que respeita às reduções das taxas do imposto sobre o rendimento.
Assim, no acórdão de 24/5/2006, proferido no recurso nº 01091/05 (referido, aliás, na decisão recorrida), exarou-se o seguinte:
«3. Como vimos supra, a recorrente defende que o acto tributário sob recurso enferma de vícios de violação de lei.
Desde logo de lei constitucional.
Concretamente, viola, na sua óptica, os princípios da segurança jurídica e da confiança, vertidos no art. 2º da Constituição, bem como o princípio da retroactividade da lei fiscal, consagrado no art. 103º, 2, da Constituição.
A questão a dirimir também já está suficientemente recortada.
Diz ela respeito à decisão da Comissão Europeia (de 11/12/2002) que se pronunciou sobre a redução de 30% sobre o IRC, prevista no art. 5º do Decreto Regional nº 2/99/A, de 20/1.
Na verdade, o corpo do citado art. 5º dispunha que "as taxas nacionais do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, em vigor em cada ano, é aplicada uma redução de 30% ....".
Apreciando este normativo, a Comissão começou por dizer o seguinte:
"Por carta n. 18, de 5 de Janeiro de 2000, da Representação Permanente de Portugal, registada na Comissão em 10 de Janeiro de 2000, as Autoridades Portuguesas notificaram à Comissão um regime que adapta o sistema fiscal nacional às especificidades da Região Autónoma dos Açores. Uma vez que a notificação foi efectuada tardiamente, em resposta a um pedido de informações dos serviços da Comissão constante da carta D/65111, de 7 de Dezembro de 1999, dirigida à Representação Permanente de Portugal, feito na sequência dos artigos que surgiram na imprensa, e que o regime em questão teria entrado em vigor antes de ser autorizado pela Comissão, o mesmo foi inscrito no registo dos auxílios não notificados".
Anotamos pois, e desde já, que a notificação feita pelo Governo Português foi-o tardiamente e que o regime entrou em vigor antes de ser autorizado pela Comissão, como esta expressamente o refere.
E depois de considerar que "os referidos auxílios foram postos ilegalmente em vigor e que não existe qualquer princípio de direito comunitário que se oponha a isso, os benefícios fiscais de que já terão beneficiado as empresas que operam no sector financeiro, bem como as que relevam das actividades do tipo "serviços intragrupo" (e relativos aos anos de 1999, 2000 e 2001) devem ser recuperados pelas Autoridades portuguesas".
E seguidamente a conclusão:
"A Comissão verifica que Portugal pôs em execução ilegalmente a parte do regime que adapta o sistema fiscal nacional às especificidades da Região Autónoma dos Açores, a que se refere a vertente relativa às reduções das taxas do imposto sobre o rendimento, em violação do disposto no nº 3 do art. 88º do Tratado. Contudo, ... e após ter examinado tal regime à luz das orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional, a Comissão considera que os auxílios acima referidos satisfazem as condições para poderem ser considerados compatíveis com o mercado comum ... com excepção dos auxílios atribuídos a favor das empresas que exerçam actividades financeiras ou do tipo "serviços intragrupo...".
E depois a decisão, destacando-se o art. 3º, do seguinte teor:
"1. Portugal deve adoptar as medidas necessárias para recuperar, junto das empresas que exercem as actividades mencionadas no artigo 2º, os auxílios pagos a título da parte do regime de auxílios referido no artigo 1º.
"2. A recuperação deve efectuar-se imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional, desde que estas permitam a execução imediata e efectiva da presente decisão. Os auxílios a recuperar incluem juros a partir da data em que foram colocados à disposição dos beneficiários e até ao momento da sua recuperação. Os juros são calculados com base na taxa de referência utilizada para o cálculo do equivalente-subvenção no âmbito dos auxílios com finalidade regional".
Anote-se que a impugnante é uma empresa abrangida pelo art. 2º da decisão em análise.
Concretamente, e como vimos, a Comissão considerou que o diploma regional violou uma norma comunitária (no tocante a empresas como a impugnante), ordenando a entrega das quantias que seriam devidas se não houvesse tal incentivo e juros calculados do modo aí referido.
E a AF limitou-se a cumprir o assim decidido.
Porém, como vimos, a impugnante defende que "enferma a decisão da Comissão Europeia que motivou as correcções efectuadas de manifesta inconstitucionalidade, razão pela qual não pode a mesma ser aplicada", pelo que a liquidação, nela baseada é manifestamente ilegal "por violação dos princípios jurídicos previstos nos art.ºs 2º e 103º, nº 3, da CRP".
Ou seja: o que está imediatamente em causa é a decisão comunitária, sendo que a liquidação, operada com base em tal decisão, só mediatamente é que enferma de ilegalidade.
Anote-se desde já que a decisão da Comissão Europeia foi tomada de acordo com uma Directiva comunitária, concretamente o Regulamento (CE) nº 659/1999, do Conselho de 22/3/99, onde, depois de se definir o que é um "auxílio" (art. 1º), diz-se que a Comissão deve ser notificada a tempo pelo Estado-membro dos projectos de concessão de novos "auxílios" (art. 2º) e refere-se que os "auxílios a notificar não serão executados antes de a Comissão ter tomado, ou de se poder considerar que tomou, uma decisão que os autorize" (art. 3º).
Depois, o art. 14º, sob a epígrafe "recuperação do auxílio", determina no seu nº 2, que "o auxílio a recuperar mediante uma decisão de recuperação incluirá juros a uma taxa adequada fixada pela Comissão. Os juros são devidos a partir da data em que o auxílio ilegal foi colocado à disposição do beneficiário e até ao momento da sua recuperação".
Pois bem.
Foi na sequência deste normativo comunitário que a Comissão agiu.
Ou seja, o que está em causa é a decisão da Comissão Europeia.
E esta não é sindicável pelos tribunais portugueses. É sim sindicável pelos tribunais comunitários, seja pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (art. 230º do Tratado de Roma), seja pelo Tribunal de 1ª Instância da UE (art. 225º do Tratado de Roma), não importando aqui precisar qual o órgão jurisdicional concretamente competente.
É certo que, como é óbvio, a pretensão do recorrente visa o acto de liquidação, porque é esse que o afecta directamente.
Mas o recorrente não assaca a esse acto de liquidação vícios próprios.
O que o recorrente defende é que o acto da Comissão Europeia, que está na base do acto de liquidação, é ilegal, violando normas constitucionais portuguesas.
Ou seja: a recorrente não vem dizer que o acto de liquidação impugnado contenha vícios próprios.
No caso concreto, o acto de liquidação não é mais do que um acto de execução da determinação comunitária.
É um acto de execução de uma decisão da Comissão Europeia.
Que não foi objecto de recurso perante os tribunais comunitários.
Assim, e porque o acto de liquidação não foi atacado por vícios próprios (sendo, como vimos, e na hipótese concreta, um acto executivo), e não excede a determinação comunitária, poderá fazer-se apelo à doutrina do art. 151º, nºs. 3 e 4, do CPA), defendendo-se aqui a irrecorribilidade do acto de liquidação. Acto ao qual não vêm assacados vícios próprios, antes se limitando tal acto a executar uma decisão comunitária definitiva e executória, contendo-se nos precisos termos e limites dessa decisão.
No caso concreto, e limitando-se a dar execução a uma decisão comunitária, e não mais do que isso, não enfermando de vícios próprios, poderemos dizer que o acto de liquidação não é mais do que um acto de execução dessa decisão.
Ora, os actos de execução que se limitam a pôr em prática o já decidido no acto exequendo são, em regra irrecorríveis, por serem meramente confirmativos, não assumindo autonomamente a natureza de actos lesivos ou interesses legalmente protegidos, lesão essa que, a existir, deriva do acto que anteriormente definiu a situação do interessado (Jorge de Sousa, CPPT Anotado, 4ª Edição, pág. 488, e jurisprudência aí citada.).
Transportando-nos à hipótese dos autos, logo vemos que o acto de liquidação, balizando-se pela decisão comunitária, não enferma de qualquer vício.
Coisa diversa é saber se a impugnante, aqui recorrente, pode pedir responsabilidades por um diploma que viola norma comunitária e que, revogado por decisão comunitária, lhe causa prejuízos. Mas sobre isto não tem o tribunal que se pronunciar.».
5.2. Em termos de jurisprudência do TJUE, no acórdão de 6/9/2006, proferido no Processo nº C-88/03, instaurado pela República Portuguesa (apoiada pelo Reino de Espanha, pelo Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte) contra a Comissão das Comunidades Europeias, decidiu-se que ao declarar incompatível com o mercado comum a parte do regime de auxílios referida no artigo 1º da decisão impugnada na medida em que se aplica às empresas que exercem actividades financeiras, a Comissão não cometeu um erro manifesto de apreciação.
5.3. E o STA vem mantendo a jurisprudência anteriormente firmada naquele aresto de 24/5/2006 (cfr. os acs. de 19/11/2008, rec. nº 576/08, de 2/3/2011, rec. nº 911/10 e de 22/3/2011, rec. nº 791/10), no sentido de que «Sendo a invocada ilegalidade do acto de liquidação (violação do princípio constitucional da não retroactividade fiscal), enquanto acto de execução, uma mera consequência da ilegalidade do acto exequendo (decisão da Comissão), o correspectivo vício de violação de lei não é passível de conhecimento na presente impugnação judicial do primeiro daqueles actos (cfr. art. 154º, nº 1 do CPA), o qual nesse segmento decisório não reveste lesividade própria por se ter mantido nos limites da estatuição jurídica constantes desse acto exequendo.» (citado ac. de 19/11/2008).
Ora, porque não encontramos, nem a recorrente avança, razões jurídicas que contrariem esta fundamentação, concluímos que, dada a similitude das questões e porque não existem, no momento, razões de ordem legislativa ou doutrinal que imponham a adopção de decisão diversa, o recurso deve improceder nesta parte em que a recorrente imputa à sentença recorrida o erro de julgamento por ter considerado que as liquidações adicionais do IRC em causa não sofrem de ilegalidade derivada de violação do princípio da legalidade fiscal, incluindo o sub-princípio da não retroactividade das leis fiscais, do princípio da segurança jurídica e do princípio da protecção da confiança legítima dos cidadãos.
Refira-se, aliás, que, tal como diz a sentença recorrida, também o TJCE formulara já doutrina a respeito deste princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima dos cidadãos, delimitando-a e vincando o seu carácter absolutamente excepcional e afastando a sua aplicação nos casos em que não foi respeitado o procedimento do art. 88° do TCE (como sucedeu no caso vertente).
Com efeito, no acórdão Demesa e Território Histórico Álava, de 11/11/2004, proc. C-183/02, aquele Tribunal afirma que “tendo em conta a natureza imperativa da fiscalização, nos termos do art. 88° CE, dos auxílios de Estado pela Comissão, as empresas beneficiárias de um auxílio só podem depositar, em princípio, uma confiança legítima na regularidade do auxílio, se este tiver sido concedido com observância do procedimento previsto no referido artigo e, por outro lado, se um operador económico diligente puder normalmente assegurar-se de que esse procedimento foi respeitado. Em particular, quando um auxílio é executado sem notificação prévia à comissão, sendo assim ilegal nos termos do artigo 88°, n° 3, CE, o beneficiário desse auxílio não pode, nesse momento, depositar uma confiança legítima na regularidade da sua concessão”. E no acórdão Unicredito Italiano, de 15/12/2005, proc. C-148/04, afirma-se que “a recuperação de um auxílio concedido sem observância do procedimento previsto no artigo 88°, n° 3, CE constitui um risco previsível para o operador que dele beneficia”, sendo que, como “as empresas beneficiárias de um auxílio ilegal levam normalmente em conta o montante deste nas suas opções económicas, e a recuperação ulterior desse auxílio tem, em regra, efeitos negativos nas suas finanças”, caso “essa situação constituísse um obstáculo à recuperação, os auxílios ficariam definitivamente adquiridos pelos beneficiários na quase totalidade dos casos e a fiscalização comunitária dos auxílios de Estado não teria qualquer eficácia”.
5.4. Mas a recorrente também impugnou a liquidação dos juros compensatórios relativos às questionadas liquidações de IRC.
Ora, os citados acs. deste STA, de 19/11/08 e de 22/3/11, também se pronunciaram sobre tal questão, nos termos seguintes:
«Mas bem mais decisivo para se concluir pela ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios constitui o facto de ser manifesto que à recorrente não pode ser assacada qualquer culpa no retardamento da liquidação realizada, como estatui o artigo 35º da LGT.
Na realidade, a responsabilidade por juros compensatórios, tendo a natureza de uma reparação civil, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a actuação do contribuinte e da possibilidade de formular um juízo de censura a título de dolo ou negligência a essa actuação – cfr. entre outros, acórdãos de 3-10-01, 2-10-02, 16-02-05 e 12-07-05, nos processos n.ºs 25.034, 546/02, 1006/04 e 12.649; e Jorge Lopes de Sousa, in “Juros nas relações tributárias”, Problemas fundamentais do Direito tributário, Lisboa, 1999, pag. 145.
Ora, na situação em apreço, a recorrente ao proceder à autoliquidação de IRC limitou-se a respeitar o enquadramento legal vigente na altura e de acordo com o qual aplicou taxa reduzida constante do artigo 5º do Decreto Legislativo Regional nº 2/99/A de 20 de Janeiro, a qual só mais tarde veio a ser considerada pela Comissão das Comunidades Europeias como incompatível com o mercado comum (decisão de 11 de Dezembro de 2002).
Deste modo, carecendo de fundamento legal a liquidação de juros compensatórios…».
Subscrevemos, também quanto a tal questão, este entendimento do STA, pelo que o recurso tem de proceder nesta parte, improcedendo no mais.
DECISÃO
Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do STA em, dando parcial provimento ao recurso, revogar parcialmente a sentença recorrida e julgar a impugnação procedente quanto aos juros compensatórios que não são devidos, confirmando-a no demais com a presente fundamentação.
Custas a cargo da recorrente, na proporção do respectivo decaimento.
Lisboa, 25 de Maio de 2011. - Casimiro Gonçalves (relator) - António Calhau - Isabel Marques da Silva.