Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0865/16
Data do Acordão:10/13/2016
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:RECURSO DE APELAÇÃO
CONHECIMENTO EM SUBSTITUIÇÃO
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário:I - O artigo 149º, nº5, do CPTA, impõe que seja aberto «contraditório» junto do «tribunal de apelação» que conhece em «substituição»;
II - Esse contraditório «só será de dispensar» quando as partes, nas alegações e contra-alegações do recurso de apelação, já tiverem antecipado a discussão das pertinentes questões omitidas ou consideradas prejudicadas pela 1ª instância;
III - A omissão desse contraditório, quando devido, constitui nulidade processual prevista no actual artigo 195º do CPC «ex vi» artigo 1º do CPTA.
Nº Convencional:JSTA000P20994
Nº do Documento:SA1201610130865
Data de Entrada:09/01/2016
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:SE DA CULTURA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO [MP] interpõe este «recurso de revista» do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul [TCAS], datado de 10.03.2016, que indeferiu a providência cautelar por ele intentada contra o MINISTÉRIO DAS FINANÇAS [MF], o SECRETÁRIO DE ESTADO DA CULTURA [SEC], a DIRECÇÃO-GERAL DO PATRIMÓNIO CULTURAL [DGPC], A……….., SA [A….], B…………., SA [B…], e C………….. [C….], em que pede «a intimação dos requeridos a absterem-se de colocar no mercado externo as obras de JOAN MIRÓ, que vieram à posse e titularidade do Estado após a nacionalização das acções do D…………… [D…], de forma a permitir o cumprimento obrigatório dos requisitos impostos pela Lei de Bases do Património Cultural [LBPC], nomeadamente inventariação e classificação das obras».

Conclui as suas alegações formulando as seguintes conclusões:

I- Introdução

1- Em defesa do património cultural e dos bens do Estado, propôs o Ministério Público, junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa [TACL] ao abrigo do artigo 9º nº2 CPTA, providência cautelar [processo nº955/14.8BELSB] de intimação para abstenção de conduta formulando pedidos de intimação do Secretário de Estado da Cultura, da Direcção-Geral do Património Cultural, do Ministério das Finanças, das empresas públicas A…………., S.A., e B…………, S.A. e da C…………, pedindo a final que fosse decretada a intimação dos requeridos a absterem-se de colocar no mercado externo as obras de Joan Miró que vieram à posse e titularidade do Estado após a nacionalização das acções do D……….. [D…..], de forma a permitir o cumprimento obrigatório dos requisitos impostos pela LBPC, nomeadamente a inventariação e classificação das obras;

2- O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por despacho/sentença de 18.11.2014 julgou a instância cautelar extinta com base em inutilidade superveniente da lide, entendendo que, por despacho do Director-Geral do Património Cultural, com data de 21.07.2014, em cumprimento do despacho do Secretário de Estado da Cultura, de 18.07.2014, publicitados nos anúncios nº197/2014 e nº198/2014, foi ordenada a abertura do procedimento administrativo de inventariação e classificação das 85 obras de Joan Miró ficando, aqueles bens culturais, a partir de então, a estar em «vias de classificação» - nº1 do artigo 25º da LBPC - e, em consequência, sujeitos a um regime de protecção especial, nomeadamente no que respeita à sua exportação e expedição, e que pelo Director-Geral do Património Cultural foram proferidos dois despachos de arquivamento liminar dos procedimentos de classificação, com base no artigo 68º nº2 da LBPC, considerando a A……….., S.A. e a B………., S.A., como meros particulares;

3- O MP requereu a suspensão de eficácia dos despachos de arquivamento referidos e propôs a respectiva Acção Administrativa Especial, na qual pediu a anulação dos referidos actos;

4- Da decisão proferida pelo TAC de Lisboa recorreu o MP, tendo o TCAS negado provimento ao recurso, mantendo a decisão proferida em 1ª instância, de que o MP junto deste TCAS interpôs recurso de revista, o qual foi admitido, apreciado e provido pelo Venerando Supremo Tribunal Administrativo [STA];

5- Considerou o STA que a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, não é a causa normal de extinção da instância, a causa normal é decisão de mérito - ver XXXII do Acórdão do STA, a folhas 2304-verso - e que o facto de ter sido aberto e proferida decisão no procedimento administrativo referente à inventariação e classificação das obras de Joan Miró não implica a perda da utilidade da lide cautelar proposta pelo MP, porque a pretensão formulada não se esgota com a inventariação e classificação das obras, uma vez que o fim visado é que, após aquele procedimento [relativamente ao qual não há actos administrativos com força de caso decidido], o acervo artístico permaneça duradouramente em Portugal, satisfazendo os interesses culturais que o MP defende;

6- Entendeu, o Supremo Tribunal Administrativo, que, na situação concreta, face aos elementos carreados para os autos, não podia concluir-se que inexistiam efeitos susceptíveis de serem assegurados ou que inexistia qualquer utilidade na tutela dos direitos e interesses em presença, razão por que concedeu provimento ao recurso, revogou o acórdão proferido pelo TCAS, sob revista, e determinou a baixa dos autos ao TCAS para que determinasse o seu prosseguimento nos ulteriores termos;

7- Na sequência deste acórdão do STA, de 03.12.2015, decidiu o TCAS no acórdão em revista, em 10.03.2016, indeferir a inquirição das testemunhas arroladas pelas partes por considerar que os autos contêm todos os elementos de prova necessários para apreciar as pretensões cautelares formuladas e apreciar o mérito da pretensão formulada pelo MP, e indeferindo-a com fundamento na ponderação de interesses prevista no artigo 120º, nº2, do CPTA, considerando que, ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que para o interesse público resultarão da sua concessão, serão superiores aos que podem resultar da sua recusa;

II- Da admissibilidade do recurso de revista

8- O artigo 150º nº1 do CPTA, prevê que das decisões proferidas em 2ª instância, pelo TCA, pode haver, a título excepcional, recurso de revista para o STA «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito»;

9- A jurisprudência desse Colendo Supremo Tribunal tem vindo a entender que a relevância jurídica fundamental, exigida pelo artigo 150º, nº1, do CPTA, se verifica tanto em face de questões de direito substantivo, como de direito processual, sendo essencial que a questão atinja um grau de relevância fundamental, como é o caso presente, importando clarificar as questões jurídicas suscitadas que se podem equacionar em muitos outros processos e a excepcionalidade deste recurso tem sido reiteradamente sublinhada pela jurisprudência do STA, referindo que só pode ser admitido nos estritos limites fixados naquele preceito;

10- De acordo com esta jurisprudência do STA, o preenchimento do conceito indeterminado da relevância jurídica fundamental verifica-se quando se esteja perante questão jurídica de elevada complexidade - seja porque a sua solução envolve a aplicação e conjugação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, seja porque o seu tratamento suscite dúvidas sérias, ao nível da jurisprudência, ou ao nível da doutrina - e tem-se considerado que estamos perante assunto de relevância social fundamental quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode ser paradigma ou orientação para se apreciarem outros casos;

11- O TCAS, não remetendo os autos ao TAC de Lisboa, e apreciando o mérito da providência cautelar, não respeitou o julgamento efectuado em sede de revista excepcional pelo STA, no acórdão datado de 03.12.2015, que determinou «a baixa dos autos ao TCAS para que o mesmo determine o seu prosseguimento nos ulteriores termos», e decidiu com flagrante violação do disposto no artigo 149º, do CPTA, uma vez que, embora este preceito atribua ao tribunal de apelação poderes para conhecer do mérito da causa, prescreve, no seu nº5 que «...o relator, antes de ser proferida decisão, ouve cada uma das partes pelo prazo de dez dias», o que não aconteceu, em violação do princípio do contraditório;

12- Foi violado o princípio do contraditório, por não ter sido dada às partes a possibilidade de debater, perante este TCAS, as questões respeitantes ao mérito da pretensão cautelar, é manifesto e notório que a omissão do acto cuja prática o CPTA impõe no seu artigo 149º, nº5, teve influência no exame e na decisão proferida, constituindo nulidade processual nos termos e com os efeitos previstos no artigo 195º do CPC;

13- A «questão de direito» que aqui suscitamos, e que versa sobre os «Poderes do Tribunal de Apelação», tal como consta da epígrafe do artigo 149º do CPTA, constitui violação de norma processual, cuja interpretação e correcta aplicação torna necessária e imperiosa a intervenção do STA, face ao erro grave em que incorreu este TCAS ao proferir o acórdão de 10.03.2016;

14- Ao apreciar e decidir, «de mérito», a pretensão cautelar formulada pelo MP, o TCAS violou, também, de forma flagrante e grosseira o disposto no artigo 635º, nº4, do CPC [antigo 684º nº3; ex vi artigo 1º do CPTA] porque, sendo as conclusões da alegação do recorrente que definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso e constatando-se que, no caso, ao recorrer da decisão proferida em 1ª instância - aquela que declarou a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide - o MP não produziu alegação ou conclusão alguma relativamente «ao mérito» da sua pretensão cautelar, tem de concluir-se que o acórdão produzido pelo TCAS, em 10.03.2016, em revista, extravasou, de forma clara, o objecto e o âmbito do recurso interposto pelo MP no TAC de Lisboa, sendo nulo o próprio acórdão de 10.03.2016, de acordo com o previsto nos artigos 716º e 668º nº1, alínea d), do CPC, uma vez que conheceu de matéria que não podia conhecer, e de acordo com o disposto nos artigos 716º, e 668º, do CPC [ex vi artigo 1º do CPTA], o TCAS cometeu «excesso de pronúncia» o que determina a nulidade do acórdão de 10.03.2016;

15- A pronúncia do STA sobre as ditas questões de direito processual é, como se vê, importante e necessária, impondo-se a admissão deste recurso tendo em vista uma melhor interpretação e compreensão dos poderes conferidos ao TCAS enquanto tribunal de apelação e tendo em vista uma melhor interpretação e aplicação do direito – ver artigo 150º, nº1, do CPTA;

16- O TCAS apreciou «o mérito» dos pedidos cautelares formulados pelo MP, sem que antes o tribunal de 1ª instância, o TAC de Lisboa o tenha feito, sem antes dar cumprimento ao disposto no nº5 do artigo 149º CPTA, sendo que, como supra referimos, o TCAS não interpretou bem, nem respeitou o decidido pelo STA no acórdão de 03.12.2015 [folhas 2288 a 2307] e, também por essa razão se justifica a admissão do presente recurso de revista excepcional;

17- Estamos face a um contencioso que envolve interesses públicos muito relevantes do Estado Português, mas, também, da comunidade portuguesa, pois em causa estão, não só interesses económicos importantes, mas, também, interesses imateriais relacionados com o património cultural, sendo crucial a apreciação das questões em litígio, suscitando-se dúvidas no seu tratamento e importando delimitar a melhor interpretação a dar aos preceitos invocados como tendo sido ofendidos;

18- As questões em análise neste recurso estão também relacionadas com o cumprimento de tarefas fundamentais do Estado no domínio cultural [ver artigos 9º, alínea d), e 78º, da CRP] e já publicamente suscitadas, pela venda do conjunto das obras de arte do pintor Joan Miró; assumem, assim, grande relevo social e cultural, sendo os interesses imateriais envolvidos de valor indeterminável, pretende evitar-se o perigo de saída das referidas obras de arte do território nacional, sem que, previamente, seja observado o procedimento previsto na Lei de Bases do Património Cultural [LBPC], o que é posto em crise pelo douto acórdão proferido, dado que, quando for levado a efeito o procedimento administrativo para proceder à «inventariação e classificação», nos termos da LBPC, poderão já não ser encontrados os bens a «inventariar e classificar» - já foi intentada a acção administrativa especial de impugnação dos despachos de arquivamento dos procedimentos de inventariação e classificação;

19- Invoca-se «erro de julgamento» evidente do douto acórdão recorrido, lapso clamoroso, e manifesto e notório erro de interpretação dos preceitos ao abrigo dos quais foi proposta a providência cautelar, assim como na apreciação dos requisitos necessários para que a mesma possa e deva ser decretada à luz do estabelecido no artigo 120º do CPTA;

20- Invoca-se, ainda, a evidência da ilegalidade da inércia [actuação por omissão] dos agentes da administração, que motivou a propositura desta providência cautelar por patente ofensa aos princípios ordenadores do direito administrativo, quanto às normas da LBPC, concretamente da interpretação a dar aos artigos 14º, 16º, nº1, 25º, nº1, 33º, 55º, nºs 1, 2 e 3, 68º, da Lei 107/2001, e dos preceitos constitucionais respeitantes às tarefas do Estado previstas no artigo 9º e 78º nº2 alíneas c) e e) da CRP, demonstrativas da verificação do requisito contido naquele artigo 120º nº1 do CPTA;

21- O acórdão recorrido, incorre em ofensa e «erro de interpretação» das normas mencionadas e do artigo 120º, nº1, alínea a), do CPTA, não sendo correcto o entendimento de que o critério de concessão de providências cautelares previsto na alínea a) do artigo 120º do CPTA assume carácter excepcional, face aos critérios gerais de concessão das referidas providências previstos nas alíneas b) e e), sendo que é patente a ilegalidade da actuação omissiva dos requeridos;

22- Nos termos do disposto no citado artigo 120º nº1 alínea b) CPTA, o juízo de probabilidade da existência do direito invocado assenta no requisito negativo de que «não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular» no processo principal, sendo que, no âmbito das providências conservatórias, como é o caso, em que o interesse do requerente é de mera conservação do «status quo», no tocante à aparência do bom direito, ou «fumus boni iuris», a intensidade exigida basta-se com o facto de não ser manifesta a falta de fundamento da pretensão na acção principal ou a existência de causa obstativa do conhecimento de mérito;

23- Não sendo decretada a providência requerida, são igualmente evidentes e irreparáveis os prejuízos que advirão para o património cultural e até mesmo para os interesses económicos do Estado, na medida em que, poderá proceder-se à venda das referidas obras de arte de Joan Miró, sem que tenha existido qualquer hipótese da comunidade portuguesa as poder conhecer ou «controlar» a sua natureza, descrição, ou mesmo o seu valor económico, com o risco de, no caso, poderem não ser previamente observadas e avaliadas por peritos credenciados;

24- Ao que se sabe, nunca foi concretizada uma perícia considerada adequada, competente e credível, por forma a salvaguardar os interesses públicos relevantes em causa, sejam eles os económicos ou os culturais;

25- Ao contrário do é suposto no douto acórdão em revista, a não avaliação das obras, poderá causar graves danos à economia nacional, porquanto se desconhece se o valor pelo qual foi ajustada a venda das obras corresponde ao seu real valor ou se é inferior, sendo certo que quanto menor for o preço de venda, maior será o dano para os interesses financeiros públicos portugueses e também não é válido o argumento de que a protecção do património cultural é de menor importância e tenha que ser ponderado, no caso, por virtude da crise económica existente no nosso país;

26- Da eventual degradação, extravio ou saída definitiva dos ditos bens do território nacional, decorrerá «perda irreparável» para o património cultural, nos termos a que se refere o nº2, do artigo 18º da Lei nº107/2001, de 08.09 [LBPC];

27- Mesmo que se entenda que as sociedades A……….. e B………. se devem pronunciar, não terão as mesmas fundamento para se oporem à classificação das mencionadas obras de arte, em virtude de, conforme demonstrado, 41 daquelas obras terem entrado em território nacional há mais de 10 anos, não interessando apurar quando se verificou efectivamente a importação definitiva, já que a lei não o prevê, nem distingue importação definitiva ou não definitiva, não devendo o intérprete fazê-lo, sob pena de ofensa do artigo 9º do CC [ver redacção do artigo 68º da LBPC] já que o artigo 68º nº2 alínea b) refere simplesmente importação ou admissão;

28- Como resulta bem evidente dos pedidos que foram feitos pelo MP, pretende-se, apenas, a avaliação/classificação das obras em causa, resultando claramente que não se pretende impor uma decisão de classificação das mesmas, num ou noutro sentido, dado que a actividade da administração é, nesta matéria, do âmbito discricionariedade técnica e também não se pretende impedir a sua venda, mas apenas sustá-la até que seja feita peritagem e avaliação/classificação das obras em causa, para que em benefício do interesse público não ocorra prejuízo irreversível para este, sendo que também o MP pretende defender os interesses económicos do Estado Português, ao invés do que pretende fazer crer o acórdão em revista;

29- Encontra-se, assim, também demonstrada a verificação dos requisitos da alínea b) do nº1 e do nº2 do artigo 120º do CPTA, bem como da aplicação do critério da proporcionalidade que é previsto nesta última norma;

30- Não podemos aceitar a conclusão a que chegou o Excelentíssimo Desembargador Relator de que, do decretamento da providência advirão para o Estado Português maiores prejuízos económicos do que aqueles que advirão para a cultura portuguesa, se ela não for decretada e as obras de arte saírem definitivamente do País, sendo certo que também não desvalorizamos o período de esforço financeiro em que nos encontramos e que no acórdão vem mencionado; o que não podemos esquecer é que os prejuízos para o património cultural serão irreparáveis e irreversíveis;

31- Entendemos que foram ofendidos os preceitos legais mencionados como sejam os artigos 120º, nºs 1 alínea b), e nº2, do CPTA, 3º, 14º, 16º, nº1, 18º, 25º a 30º, 33º, 55º, e 68º, da Lei nº107/2001, de 08.09 [LBPC], 9º, alínea d), e 78º, ambos da CRP, impondo-se o provimento do presente recurso jurisdicional e a revogação do douto acórdão recorrido com todas as legais consequências;

32- Está em causa não a apreciação dos factos que fundamentam o pedido mas a consequência jurídica a retirar dos interesses em conflito, e sobre qual das partes deverá suportar o custo inerente a aguardar-se a decisão a proferir na acção principal, sendo certo que a intervenção do STA é de se considerar justificada no caso, já que as questões em apreço são de assinalável relevância, de grande utilidade prática, e a decisão recorrida a manter-se constitui clamoroso erro na aplicação do direito, podendo acarretar graves danos para a economia nacional, para o interesse público e para o património cultural português, se o recurso não for apreciado, devendo o acórdão ser sindicado por esse Supremo Tribunal;

33- A intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa, tem plena justificação, razão por que deve ser admitido o recurso de revista, face à clara necessidade de melhor aplicação do direito; só assim se fará boa administração da justiça, em sentido amplo e objectivo, sendo necessária orientação jurídica esclarecedora que possa surgir do entendimento desse Supremo Tribunal, face às dúvidas suscitadas - artigo 150º, nºs 1, 2 e 4, do CPTA;

III- Do Mérito do recurso de revista

34- Em defesa do património cultural e dos bens do Estado, propôs o MP, junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa [TAFL], ao abrigo do artigo 9º nº2 do CPTA, providência cautelar [processo nº955/14.8BELSB] de intimação para abstenção de conduta formulando pedidos de intimação do Secretário de Estado da Cultura, da Direcção-Geral do Património Cultural, do Ministério das Finanças, das empresas públicas A…………, S.A., e B…………., S.A. e da C………….., pedindo a final que fosse decretada a intimação dos requeridos a absterem-se de colocar no mercado externo as obras de Joan Miró que vieram à posse e titularidade do Estado após a nacionalização das acções do D………… [D…….], de forma a permitir o cumprimento obrigatório dos requisitos impostos pela LBPC, nomeadamente a inventariação e classificação das obras;

35- O TACL, por despacho/sentença de 18.11.2014 julgou a instância cautelar extinta com base em inutilidade superveniente da lide, entendendo que, por despacho do Director-Geral do Património Cultural, com data de 21.07.2014, em cumprimento do despacho do Secretário de Estado da Cultura, de 18.07.2014, publicitados nos anúncios nº197/2014 e nº198/2014, foi ordenada a abertura do procedimento administrativo de inventariação e classificação das 85 obras de Joan Miró ficando, aqueles bens culturais, a partir de então, a estar em «vias de classificação» - nº1 do artigo 25º da LBPC - e, em consequência, sujeitos a um regime de protecção especial, nomeadamente no que respeita à sua exportação e expedição, e que pelo Director-Geral do Património Cultural foram proferidos dois despachos de arquivamento liminar dos procedimentos de classificação, com base no artigo 68º nº2 da LBPC, considerando a A…………., S.A. e a B………., S.A., como meros particulares;

36- Da decisão proferida pelo TACL recorreu o MP, tendo o TCAS negado provimento ao recurso, mantendo a decisão proferida em 1ª instância, de que o MP junto deste TCAS interpôs recurso de revista, o qual foi admitido, apreciado e provido pelo Venerando Supremo Tribunal Administrativo [STA];

37- Considerou o STA que a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, não é a causa normal de extinção da instância, a causa normal é decisão de mérito - ver XXXII do Acórdão do STA, a folhas 2304-verso - e que o facto de ter sido aberto e proferida decisão no procedimento administrativo referente à inventariação e classificação das obras de Joan Miró não implica a perda da utilidade da lide cautelar proposta pelo MP, porque a pretensão formulada não se esgota com a inventariação e classificação das obras, uma vez que o fim visado é que, após aquele procedimento [relativamente ao qual não há actos administrativos com força de caso decidido], o acervo artístico permaneça duradouramente em Portugal, satisfazendo os interesses culturais que o MP defende;

38- Entendeu, o STA que, na situação concreta, face aos elementos carreados para os autos, não podia concluir-se que inexistiam efeitos susceptíveis de serem assegurados ou que inexistia qualquer utilidade na tutela dos direitos e interesses em presença, razão por que concedeu provimento ao recurso, revogou o acórdão proferido pelo TCAS, sob revista, e determinou a baixa dos autos ao TCAS para que determinasse o seu prosseguimento nos ulteriores termos;

39- Na sequência deste acórdão do STA, de 03.12.2015, decidiu o TCAS no acórdão em revista, em 10.03.2016, indeferir a inquirição das testemunhas arroladas pelas partes por considerar que os autos contêm todos os elementos de prova necessários para apreciar as pretensões cautelares formuladas e apreciar o mérito da pretensão formulada pelo MP, e indeferindo-a com fundamento na ponderação de interesses prevista no artigo 120º, nº2, do CPTA, considerando que, ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que para o interesse público resultarão da sua concessão, serão superiores aos que podem resultar da sua recusa;

40- Ao não remeter os autos ao TACL e apreciando o mérito da providência cautelar, o TCAS não respeitou o julgamento efectuado em sede de revista excepcional pelo STA, no acórdão proferido em 03.12.2015 que determinou «a baixa dos autos ao TCAS para que o mesmo determine o seu prosseguimento nos ulteriores termos» e decidiu com flagrante violação do disposto no artigo 149º do CPTA, uma vez que, embora este preceito atribua ao tribunal de apelação poderes para conhecer do mérito da causa, prescreve, no seu nº5 que, «...o relator, antes de ser proferida decisão, ouve cada uma das partes pelo prazo de dez dias», o que não aconteceu, em violação do princípio do contraditório;

41- O tribunal a quo não respeitou as normas processuais relativas ao exercício dos poderes do tribunal de apelação, previstas no artigo 149º do CPTA e omitiu um acto processual cuja prática a lei impõe, e que, não tendo as partes tido oportunidade de debater as questões decidendas, teve influência no exame e decisão da causa, o que determina a anulação de tudo o que nos autos foi produzido posteriormente, designadamente, o próprio acórdão em revista;

42- Violou também o artigo 635º, nº4, do CPC, uma vez que sendo as conclusões do recorrente que definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso e não tendo sido cumprido o disposto no artigo 149º, nº5, CPTA, teremos de concluir que, no caso, o próprio acórdão de 10.03.2016 é nulo de acordo com o previsto nos artigos 716º e 668º, nº1 alínea d), do CPC, uma vez que conheceu de matéria e não podia conhecer;

43- De acordo com o disposto nos artigos 716º e 668º do CPC [ex vi artigo 1º do CPTA] é nulo o acórdão proferido porquanto o tribunal conheceu de questões - o mérito da pretensão - de que não podia conhecer, porque o mérito da pretensão do MP não estava incluído no objecto e âmbito do recurso interposto relativamente à decisão da 1ª instância, nem foi cumprido o disposto no artigo 149º, nº5, do CPTA;

44- A apreciação da providência requerida pelo MP no TACL envolve interesses públicos muito relevantes do Estado Português mas, também, da comunidade portuguesa; em causa estão, não só interesses económicos importantes, mas ainda interesses imateriais relacionados com o património cultural, sendo que as questões em análise no recurso estão também relacionadas com o cumprimento de tarefas fundamentais do Estado no domínio cultural [ver artigos 9º, alínea d), e 78º, da CRP];

45- Invoca-se «erro de julgamento» evidente do douto acórdão recorrido, lapso clamoroso e manifesto e notório erro de interpretação dos preceitos ao abrigo dos quais foi proposta a providência cautelar, assim como na apreciação dos requisitos necessários para que a mesma possa e deva ser decretada à luz do estabelecido no artigo 120º do CPTA;

46- Contrariamente às conclusões retiradas no douto acórdão recorrido, a inércia dos agentes do Estado contra quem a providência de intimação foi intentada é manifestamente ilegal, sendo evidente a procedência da pretensão na acção principal já instaurada;

47- Incorre o acórdão recorrido em ofensa e erro de interpretação das normas mencionadas e do artigo 120º, nº1 alínea a), do CPTA, não sendo correcto o entendimento de que o critério de concessão de providências cautelares previsto na alínea a) do artigo 120º do CPTA assume um carácter excepcional, face aos critérios gerais de concessão das referidas providências previstos nas alíneas b) e c), sendo que, como se disse, é patente a ilegalidade da actuação omissiva dos requeridos;

48- A colocação no mercado das obras em causa sem que se ter procedido à sua inventariação e classificação constitui manifesta ilegalidade, para efeitos do disposto no artigo 120º, nº1, alínea a), do CPTA, dado que foi solicitada a abertura do procedimento respectivo e este não se mostra efectuado, em violação do estabelecido nos artigos 25º e 30º da LBPC, sendo certo que de acordo com o previsto no artigo 16º, nº3, desta LBPC a aplicação de medidas cautelares previstas na lei, não depende de prévia classificação ou inventariação;

49- Nos termos do disposto no citado artigo 120º nº1 alínea b) CPTA, o juízo de probabilidade da existência do direito invocado assenta no requisito negativo de que «não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular» no processo principal;

50- No âmbito das providências conservatórias, como o caso, em que o interesse do requerente é de mera conservação do «status quo», no tocante à aparência do bom direito, ou fumus boni iuris a intensidade exigida basta-se com o facto de não ser manifesta a falta de fundamento da pretensão no processo principal ou a existência de causa obstativa do conhecimento do mérito, o que não foi considerado;

51- Se não for decretada a providência requerida, são igualmente evidentes e irreparáveis os prejuízos que advirão para o património cultural e para os interesses económicos do Estado, na medida em que, poderá proceder-se à venda das referidas obras de arte de Joan Miró, sem que tenha existido qualquer hipótese de a comunidade portuguesa as poder conhecer ou controlar a sua natureza, descrição, ou mesmo o seu valor económico, com o risco de, no caso, poderem não ser previamente observadas e avaliadas por peritos devidamente credenciados;

52- O valor económico atribuído às obras em questão, não está fora de controvérsia, sendo que há quem defenda que as mesmas têm um valor muito superior àquele que foi anunciado para a sua venda e, ao contrário do é suposto no douto acórdão em apreço, a não avaliação das obras por peritos competentes e credenciados poderá originar graves danos à economia nacional, precisamente porque se desconhece se o valor pelo qual foi ajustada a venda das obras corresponde ao seu real valor ou se é inferior, sendo certo que quanto mais baixo for o preço de venda, maior será o dano para os interesses financeiros públicos portugueses;

53- Também não é válido o argumento de que a protecção do património cultural é de menor importância e tenha que ser ponderado no caso, por virtude da crise económica existente no nosso país, sendo que da eventual degradação, extravio ou saída definitiva dos referidos bens do território nacional decorrerá «perda irreparável» para o património cultural, nos termos a que se refere o nº2 do artigo 18º da LBPC;

54- Dos pedidos formulados pelo MP, pretende-se, apenas, a avaliação/classificação das obras em causa, não se pretende impor uma decisão de classificação das mesmas, num ou noutro sentido, pois que a actividade da administração é nesta matéria do âmbito da discricionariedade técnica, não se pretendendo impedir a sua venda, mas tão só sustá-la, até que seja realizada peritagem e avaliação/classificação das obras para que, em benefício do interesse público, não ocorra prejuízo irreversível para este, pretendendo o MP defender os interesses económicos do Estado Português;

55- Encontra-se, assim, também, demonstrada a verificação dos requisitos da alínea b), do nº1, e do nº2, do artigo 120º do CPTA, bem como da aplicação do critério da proporcionalidade consignado nesta última norma;

56- Não pode aceitar-se a conclusão a que chegou o Excelentíssimo Desembargador Relator de que do decretamento da providência advirão para o Estado Português maiores prejuízos económicos do que aqueles que advirão para a cultura portuguesa, se ela não for decretada e as obras de arte saírem definitivamente do País, não desvalorizando o período de esforço financeiro em que nos encontramos, sendo que os prejuízos para o património cultural serão irreparáveis e irreversíveis, e, nessa medida, sendo estes superiores, porque irreparáveis e irreversíveis, merecendo tutela, deve a providência ser decretada;

57- Foram ofendidos os preceitos legais mencionados como sejam os artigos 120º, nºs 1 alínea b), e nº2, do CPTA, 3º, 14º, 16º, nº1, 18º, 25º a 30º, 33º, 55º, e 68º, da Lei nº107/2001, de 08.09 [LBPC], 9º, alínea d), e 78º, ambos da CRP, impondo-se o provimento do presente recurso jurisdicional e a revogação do douto acórdão recorrido com todas as legais consequências.

2. Apenas as recorridas A………. e B………. contra-alegaram, concluindo assim:

A) Não deverá ser atribuído efeito suspensivo ao presente recurso, desde logo porque o próprio recorrente, aquando da interposição de recurso para o TCAS havia requerido a atribuição se efeito meramente devolutivo, o qual foi atribuído;

B) Por outro lado, a atribuição do efeito suspensivo aos recursos das decisões respeitantes à adopção de providências cautelares não é possível, a lei não permite [artigo 143º, nº2, do CPTA];

C) O nº3, do artigo 143º, do CPTA, prevê a possibilidade de se requerer o efeito devolutivo, quando o recurso tenha efeito suspensivo [e não o contrário];

D) A questão sobre a qual versa a decisão recorrida [falta de preenchimento dos pressupostos de que depende o decretamento de uma providência cautelar] não reveste relevância jurídica ou relevância social de importância fundamental, requisito de admissibilidade do recurso de revista;

E) Por outro lado, também não se encontra preenchido o requisito da necessidade de uma melhor aplicação do direito, não tendo a decisão recorrida formulado o seu juízo de forma absurda ou descabida. Aliás, o tribunal recorrido encarou a verificação desses pressupostos de acordo com o entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência;

F) Por outro lado, a pronúncia do TCAS sobre o mérito da causa [abstendo-se de ordenar a baixa dos autos à primeira instância] é um poder-dever e não uma mera faculdade, relacionado com razões de celeridade e economia processual;

G) O que está em causa neste recurso é exactamente a análise perfunctória do preenchimento dos requisitos do decretamento das providências cautelares, questão amplamente debatida nos presentes autos, e sobre a qual já amplamente se pronunciou o recorrente;

H) O TCAS pronunciou-se sobre as questões trazidas aos autos pelo recorrente em sede de requerimento inicial, ou seja, sobre o preenchimento ou não dos requisitos da providência requerida;

I) Com efeito, a decisão recorrida não violou o disposto nos artigos 149º, nº5, do CPTA, nem o disposto no artigo 635º, nº4, do CPC;

J) A arguição de nulidades em que incorrem os acórdãos do TCA não poderá ser, por si só, fundamento para admissibilidade da revista, sendo jurisprudência deste STA que tais nulidades devem ser arguidas junto do TCA e não em sede de alegações de recurso de revista, dada a excepcionalidade da revista e a consequente incerteza da sua admissibilidade;

K) A A…………. e a B………… são sociedades anónimas regidas pela lei comercial e pelos seus estatutos [direito privado], que visam prosseguir uma actividade lucrativa;

L) Não são «pessoas colectivas públicas», caracterizadas, primariamente, pelo fim de interesse público que visam prosseguir;

M) O facto de serem pessoas colectivas privadas de capital exclusivamente público não as torna pessoas colectivas públicas e, bem assim, não faz com que lhe sejam aplicáveis as normas e princípios de direito público;

N) Nomeadamente, as contra-interessadas encontram-se sujeitas a normas e princípios de direito privado; estão sujeitas à jurisdição dos tribunais judiciais; regem as suas relações de trabalho ao abrigo do Código do Trabalho [e não do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas];

O) Sendo este o entendimento jurisprudencial e doutrinal, citado em sede de alegações;

P) Com efeito, as 85 obras de Joan Miró em causa não são propriedade do Estado mas de pessoas colectivas de direito privado, sendo-lhes, por essa razão, aplicável o artigo 68º, nº2, alínea b), da LBPC, podendo, nessa medida, oporem-se à classificação;

Q) O prazo de 10 anos previsto no artigo 68º, nº2, alínea b), da LBPC, não pode contar-se desde a data de admissão ou importação temporárias [ou seja, quando as obras entram em Portugal temporariamente, sem serem inseridas no comércio por, por exemplo, serem propriedade de nacionais de outros Estados], mas apenas quando as obras entram em território português definitivamente;

R) Resulta demonstrado e provado que as obras de arte em questão foram importadas ou admitidas há menos de 10 anos;

S) Estipula o nº1, do artigo 3º, do CPTA, que: «1- No respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes, os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua actuação»;

T) A Direção-Geral do Património Cultural está habilitada de poderes de discricionariedade na classificação de bens culturais;

U) Acresce que, nos termos do disposto no artigo 83º do CPA «O órgão competente para a decisão final, logo que estejam apurados os elementos necessários, conhece de qualquer questão que prejudique o desenvolvimento normal do procedimento ou impeça a tomada de decisão sobre o seu objecto […]»;

V) As proprietárias das 85 obras de Joan Miró opuseram-se, oportuna e tempestivamente, à sua classificação, nos termos do artigo 68º, nº2, alínea b), da LBPC;

W) Os «procedimentos de classificação» foram iniciados, instruídos e concluídos através dos despachos de arquivamento, em consequência da impossibilidade legal da classificação;

X) Assim, bem andou a decisão recorrida em dar por não preenchidos os pressupostos de que depende decretamento da providência requerida, previstos no artigo 120º do CPTA, não havendo qualquer evidência da procedência da pretensão formulada no processo principal;

Y) Ainda que assim não se entendesse, sempre se imporia a ponderação dos interesses em questão, no respeito pelo princípio da proporcionalidade, aliás, como bem salientou a decisão recorrida.

Termina pedindo a não admissão da revista, ou, caso assim não se entenda, o malogro da mesma com o seu julgamento de não provimento.

3. O recurso de revista foi admitido por acórdão deste STA [Formação a que alude o nº5 do artigo 150º do CPTA], proferido a 14.01.2016, nos termos seguintes:

[…]

«3.2. A questão que vem colocada é a de saber se o TCAS, em cumprimento de um acórdão do STA que revogou um anterior acórdão daquele Tribunal, que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente, poderia ter julgado a providência cautelar, por substituição, sem ter ouvido o requerente da providência [MP].

Alega o MP que, no recurso que dirigira ao TCAS, não produziu qualquer alegação ou conclusão relativamente à sua pretensão cautelar e que, portanto, aquele Tribunal ao decidir a mesma por substituição [o objecto do recurso interposto era uma decisão que julgara extinta a instância por inutilidade superveniente da lide] violou o disposto no artigo 149º, nº5, do CPTA, segundo o qual «…o relator, antes de ser proferida decisão, ouve cada uma das partes pelo prazo de dez dias», o que não aconteceu.

3.3. A nosso ver a questão colocada justifica a admissão da revista. Trata-se de questão central do processo administrativo saber em que medida pode o Tribunal «ad quem» julgar por substituição sem necessidade de ouvir as partes, tendo em conta o disposto no artigo 149º, nº5, do CPTA [quer na versão anterior, quer na actualmente vigente].

E se é verdade que, no acórdão de 10.09.2015, proferido por esta Formação no processo 0907/15 se não admitiu a revista em situação algo semelhante, tal decorreu da circunstância de nesse processo a parte que invocou a violação do artigo 149º, nº5, CPTA, se ter pronunciado sobre a questão apreciada, precisamente, por ter sido ela que a colocara no recurso para o TCA, o que não ocorreu no presente caso.

Assim e com vista a uma melhor interpretação e aplicação do direito - artigo 149º, nº5, do CPTA - justifica-se a admissão da revista.

4. Decisão

Face ao exposto admite-se a revista.

[…]

4. Sem vistos, uma vez que se trata de processo de natureza urgente, cumpre apreciar e decidir o recurso de revista [artigo 36º, nº2, do CPTA].

II. De Facto

Os factos dados como assentes pelo acórdão recorrido são os seguintes:

A) A importação definitiva de 41 obras de JOAN MIRÓ e respectivo desalfandegamento ocorreu em 29.12.2005 - documento 8 junto pela A……….. e pela B…………, a folhas 831 e seguintes dos autos;

B) No dia 29.04.2013 foi elaborado o «Relatório de Gestão» da A…………, SA, do qual consta o seguinte:

[…]

«Obras de arte

Neste domínio o processo de inventariação e determinação de propriedade e localização das Obras, revelou-se bastante complicado pela sua dispersão física e documental, pelo que só no final do ano 2012, foi possível apresentar um Plano de Actuação relativo ao portfólio.

Este Plano prevê a necessária regularização do processo de armazenagem das Obras, assim como a sua reavaliação, criando as condições mínimas necessárias para promover o processo de alienação do acervo.

Relativamente à colecção Miró, a tomada de posse efectiva do portfólio ocorreu apenas no passado mês de Dezembro, pelo que se prevê a curto prazo o início do processo de alienação.

Resumidamente foram estes os principais «highligts» da actividade em 2012 na vertente de gestão de carteira de Obras de Arte:

- Elaboração do processo de inventariação documental;

- Elaboração do processo de inventariação física/localização;

- Elaboração do processo de determinação da propriedade;

- Elaboração e apresentação do Plano de situação e actuação sobre o portfólio;

- Início dos contactos com os vários agentes de mercado com vista a iniciar os processos de reavaliação, armazenagem, promoção e comercialização do portfólio.

O património da A……….. nesta vertente é composto por 68 obras da famosa colecção de quadros Joan Miró, sendo os restantes 17 activos propriedade da B……….. [13] e do B……. IFI [4]. A colecção integral é assim composta por 85 obras que representam a maior colecção privada mundial deste artista.

A DGA é também responsável pela gestão e manutenção do Programa de Papel Comercial e dos Empréstimos Obrigacionistas das PAR’s bem como do conjunto de activos financeiros detidos pela B…….» - ver documento 2 junto com o requerimento cautelar;

C) No dia 05.12.2013 foi outorgado entre a A………….., S.A., a B………. S.A., e a C………., Lda. acordo escrito denominado «Contrato de Prestação de Serviços para Colocação de obras de arte em Leilão» - ver pasta 2 do PA;

D) Posteriormente foi outorgado «Aditamento ao contrato de prestação de serviços de colocação de obras de arte em leilão» - ver pasta 1 do PA;

E) Através de requerimento datado de 15.01.2014, a B………… requereu à Directora Geral do Património Cultural a emissão de licença de expedição temporária, para eventual venda, para o Reino Unido, de bens culturais – ver documento de folha 1141 dos autos;

F) Através de requerimento datado de 15.01.2014, a A…………. requereu à Directora Geral do Património Cultural a emissão de licença de expedição temporária, para eventual venda, para o Reino Unido de bens culturais – ver folha 1142 dos autos;

G) Através de requerimento datado de 15.01.2014, subscrito por diversos requerentes, foi solicitado à Director Geral do Património Cultural fosse diligenciado no «...sentido da abertura do procedimento administrativo conducente à inventariação e eventual classificação do fundo Miró, constituído por 85 quadros do pintor Joan Miró e que se encontra na posse do Estado» - ver folhas 1143 a 1145 dos autos;

H) No dia 15.01.2014 foi elaborado Parecer acerca de oitenta e cinco obras de arte de Joan Miró, por David Santos, Director do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, do qual se extrai o seguinte:

«Considera-se que o bem em causa, um vasto conjunto de oitenta e cinco obras de arte [entre pinturas, desenhos, colagens, esculturas/assemblages e objectos] da autoria de Joan Miró, representando algumas das mais importantes fases da sua produção artística, reveste-se de “inestimável valor cultural”.

Considera-se igualmente que da eventual degradação, extravio ou saída definitiva do bem de território nacional decorrerá «perda irreparável» para o património cultural, nos termos a que se refere o nº2 do artigo 18º da Lei nº107/2001, de 8 de Setembro.

Os bens referidos no seu conjunto representam uma das colecções mais valiosas em termos artísticos, reveladora das diversas fases e processos de trabalho de um dos mais decisivos artistas do modernismo internacional, e que deveria ser integrada nas colecções do Estado Português, inclusive nas colecções do Museu Nacional Contemporânea - Museu do Chiado [MNAC – MC], atendendo não apenas à sua intrínseca relevância cultural e artística, como à sua capacidade de poder estabelecer-se como programação de exposições, em futuras parcerias e intercâmbios com colecções e instituições museológicas internacionais. Situação raramente observada na caracterização das colecções de arte moderna do Estado Português».

[...]

Perante estes argumentos, defende este parecer a necessária atenção a este caso particular, devendo a integração nas colecções de arte moderna do MNAC - MC das oitenta e cinco obras de arte de Joan Miró constituir uma prioridade para o Estado Português, contribuindo assim, desse modo, para o inequívoco enriquecimento do seu valor cultural e patrimonial conjunto - ver folhas 1128/1129 dos autos;

I) Foi elaborado parecer por Pedro Lapa, Director Artístico do Museu Colecção Berardo, do qual se retira o seguinte:

«O conjunto de pinturas de Miró em análise provém da maior colecção privada do mundo sobre este artista. A colecção foi adquirida pelo empresário …………., em 1990, à família de ………… e constituía parte dos fundos da sua galeria de Nova York.

Posteriormente a colecção foi dividida em três núcleos: o que permanece na posse da família do empresário japonês; 23 obras foram objecto de comodato com a Fundação Joan Miró de Barcelona por um período de 10 anos de 2000 a 2010 e recentemente renovado por mais 10 anos, tendo mesmo a fundação construído uma ala específica para acolher este depósito; e 83 obras foram vendidas em 2006 ao D……………. Com a intervenção do Estado Português no banco passaram para a sua posse.

Trata-se de um conjunto amplo e extremamente significativo de obras que representam as mais diversas fases do artista, um dos nomes maiores e universais da arte moderna do século XX. Mesmo numa selecção tão específica como foi a recente retrospectiva Painting and Anti-Painting 1927-1937, que o museu de Arte Moderna de Nova York dedicou ao artista em 2008, três obras deste núcleo integraram a referida exposição.

Assim a apresentação deste conjunto de 83 pinturas permite compreender muitas das fases de Joan Miró, razão pela qual desde 2007 tentei levar a cabo uma exposição no Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado, bem como posteriormente no Museu Colecção Berardo, onde este núcleo deveria ser apreciado a partir da relação histórica proporcionada pela própria colecção do museu.

[...]

Num momento extremamente difícil que o país atravessa a aquisição de obras susceptíveis de colmatar tamanha lacuna é certamente muito difícil, mas a perda do que neste momento não implica aquisição, sendo já um bem público, que deveria ser classificado como património nacional, é um acto que se impõe de forma a inverter a referida tendência, que gerou o panorama depauperado dos museus nacionais» - ver folhas 1130/1131;

J) Os referidos pareceres constituíram anexo da Informação GDC/02/2014, elaborada pela Directora Geral do Património Cultural da qual se retira o seguinte:

[...]

«A reunião destes dois acervos constituiria uma colecção a par das melhores da Europa no domínio da Arte Contemporânea Internacional, constituindo-se como dois núcleos fundadores de uma colecção no domínio e posse do Estado, a ser continuada e completada, em articulação com a da Fundação de Serralves, através de uma política de incorporações definida por uma Comissão constituída por Serralves e pela Fundação Colecção Berardo e por peritos independentes, mormente internacionais, a nomear sob proposta de ambas as instituições.

O financiamento necessário para integrar no património do Estado os dois acervos referidos, deverá constituir um dos projectos estratégicos a apresentar no âmbito do próximo QCA - 2014 - 2020.

4. Considerando a eventual existência na Colecção anteriormente detida pelo D………….. de outros bens culturais móveis, enquadráveis quer na categoria de arte contemporânea, quer na categoria de antiguidades, colocamos igualmente à consideração de Sua Exª o Secretário de Estado da Cultura que sejam efectuadas as diligências necessárias, no sentido de a Direcção-Geral do Património ter acesso à respectiva informação de inventário e possa proceder à peritagem dos mesmos, com vista a possibilitar uma actuação atempada no sentido da caracterização da relevância cultural de tais bens» - ver folhas 1121/1127 dos autos;

L) Sobre a referida informação foi exarado em 17.01.2014, o seguinte despacho:

«Visto. Muito me surpreende esta informação, quando a DGPC e o então IMC, em nada se pronunciaram até à data sobre este assunto, de 2008 a esta parte, excepto por informação breve e não documentada de Setembro de 2012, a pedido do meu antecessor e sem nenhuma sequência por parte da mesma DGPC» - ver folha 1121 dos autos;

M) No dia 17.01.2014, foi elaborada pelo Chefe da Divisão do Património Imóvel, Móvel e Imaterial a informação DPIMI/03/2014 da qual se retira do seguinte passo:

[…]

«4. Proposta de tramitação do pedido:

4.1. Assim, face ao acima exposto, e tendo em consideração:

a) As competências atribuídas à Direcção-Geral do Património Cultural, em matéria de expedição e exportação de bens culturais móveis decorrentes em exclusivo do disposto no Despacho nº13309/2013, de Sua Excelência o Secretário de Estado da Cultura, publicado em Diário da República nº202,II/S, de 18.10.2013,

c) Que a eventual abertura do “Requerimento para Abertura de Procedimento Administrativo de Inventariação e Classificação” da Colecção apresentado à DGPC deverá encontrar-se dependente da observação directa das 85 obras que constituem a Colecção, com vista à elaboração de parecer que suporte e habilitação da decisão que venha a ser tomada, o que implicará a presença das obras em território nacional.

d) Que, conforme já foi referido supra [Ponto 2] nos termos da Lei nº107/2001, de 8 de Setembro, a expedição, temporária ou definitiva, de bens culturais deve ser obrigatoriamente precedida de comunicação à administração do património cultural português com uma antecedência mínima de 30 dias, sob pena de ser ilícita, conforme os nºs 1 e 4 do seu artigo 64º, pressupondo naturalmente, a presença em território nacional dos bens a expedir até ao momento que a eventual autorização venha a ser concedida;

e) Que o “Requerimento para “Abertura de Procedimento Administrativo de Inventariação e Classificação” da Colecção Joan Miró, apresentado à DGPC [ver Ponto 3.5] constitui fundamento relevante para que, até à decisão que venha a ser tomada sobre o mesmo, e nos termos do disposto do nº3 do artigo 64º da Lei de Bases do Património Cultural, “A Administração do património competente [vede] liminarmente a exportação ou a expedição, a título de medida provisória”;

f) As posições assumidas pelo Estado Português, tal como sucessivamente veiculadas pela imprensa nacional, inclusive na presente data, quanto ao destino a dar à Colecção em apreço;

4.2. Vimos propor superiormente que, para fins da eventual autorização para a expedição definitiva da Colecção em apreço de território nacional, sob a forma de “expedição temporária para eventual venda”, seja o mesmo colocado à apreciação de Sua Excelência o Secretário de Estado da Cultura» - páginas 1135/1140 dos autos;

N) Sobre a referida Informação o Secretário de Estado da Cultura exarou, em 28.01.2014, despacho com o seguinte teor:

«Nos termos das declarações em anexo dos requerentes que configuram a cominação do artigo 68º nº2 b) da Lei nº107/2001, não é possível a abertura do procedimento de classificação. Assim sendo, face aos pedidos de expedição temporária para eventual venda apresentados exaro o seguinte:

Autorizo, cumpridos os formalismos respectivos para efeito legal, os pedidos submetidos pela B……….. e A………….» - ver folha 1135 dos autos;

O) No dia 31.01.2014, o Secretário de Estado da Cultura proferiu despacho com o seguinte teor:

«Despacho

Tendo presente o conteúdo do ofício nº1114, de 30.01.2014, da Direcção Geral do Património Cultural, na sequência do Despacho de 28.01.2014, referente aos pedidos da A……….., S.A., e da B…………, S.A., cumpre-me emitir o seguinte despacho:

1. Os pedidos de expedição apresentados pela A…………, S.A. e B……….., S.A. têm por objecto a concessão de autorização de expedição temporária das obras ali identificadas, nos termos do artigo 64º, nº1, da Lei nº107/2001, de 8 de Setembro;

2. Estes pedidos decorrem da decisão de venda da designada colecção Joan Miró em leilão, proposta pelas sociedades A…………., S.A. e B…………., S.A., ao então XVIII Governo Constitucional, e reiterada publicamente por este Governo em 24.07.2013;

[...]

4. Encontrando-se tais obras fora do território nacional, pelas evidências aqui demonstradas pela Direcção Geral do Património Cultural no ofício de 30.01.2014, valoráveis nos termos do artigo 87º nº2 do Código do Procedimento Administrativo, verifica-se que não é possível, neste momento, emitir a solicitada autorização porquanto o fim da decisão - autorizar a saída do território nacional através da expedição temporária - já não é possível e não pode produzir efeito útil;

[…]

6. Nestes termos, e com os fundamentos antecedente, declaro extintos os procedimentos relativos aos pedidos apresentados por A………….., S.A. e B…………., S.A. de expedição temporária para o Reino Unido, para eventual venda de 85 obras da autoria de Joan Miró;

7. A não observância do disposto no artigo 64º, nº1, da Lei nº107/2001, de 8 de Setembro, constitui um ilícito contra-ordenacional, competindo ao Director Geral» - ver folha 1151 dos autos;

P) Através de requerimento datado de 23.01.2014, subscrito por vários requerentes, dirigido à Directora Geral do Património Cultural foi requerido fosse dado «…início imediato à abertura dos procedimentos para a inventariação e classificação das 85 obras de Joan Miró que se encontram na posse do Estado e que estiveram depositadas na Caixa Geral de Depósitos» - ver documento 9 junto com o requerimento cautelar;

Q) Através de ofício datado de 28.02.2014, dirigido à primeira subscritora do requerimento supra referido, o Director Geral do Património respondeu o seguinte:

[...]

«Analisámos atentamente o requerimento que deu entrada nesta Direcção Geral do Património Cultural, em 18 de Fevereiro do ano em curso, a solicitar a classificação e inventariação dos bens móveis acima referidos e entendemos ser útil os seguintes esclarecimentos:

Como é do conhecimento de V. Exa a Lei 107/2001, de 8 de Setembro, preconiza no número 1 e na alínea b) do número 2 do artigo 68º, que são aplicáveis com as necessárias adaptações, o disposto nos números 1 e 2 do artigo 64º e que salvo acordo do proprietário, é vedada a classificação, como de interesse nacional ou de interesse público dos bens nos 10 anos seguintes à importação ou admissão.

Ora, desse conjunto de obras, a mais antiga tem a data de admissão de Outubro de 2004.

Quanto ao conceito de bem cultural móvel definido no nº1 do artigo 55º da lei acima citada, não seria possível, pela mera invocação do inestimável valor cultural, abrir um procedimento de classificação atendendo às estatuições do número 2 deste artigo que remete para a definição constante do artigo 14º e números 1, 3 e 5, do artigo 14º, todos da Lei 107/2001

No que respeita ao procedimento de inventariação, carece de colaboração dos seus proprietários quando os bens não se encontram na posse do Estado.

Contudo, é de referir que esta inventariação não confere um nível de protecção semelhante ao da classificação» - ver documento de folha 117 dos autos;

R) Através de requerimento datado de 20.02.2014, outorgado por vários subscritores, foi requerido ao Director Geral do Património Cultural a «…abertura do procedimento administrativo conducente à inventariação e eventual classificação da colecção de arte proveniente do ex-D………, incluindo fundo Miró, constituído por 85 quadros do pintor Joan Miró» - ver documento 10 junto com o requerimento cautelar;

S) Através de ofício datado de 28.02.2014, dirigido à primeira subscritora do requerimento supra referido o Director Geral do Património respondeu que:

«Analisámos atentamente o requerimento que deu entrada nesta Direcção Geral do Património Cultural, em 21 de Fevereiro do ano em curso, a solicitar a classificação e inventariação dos bens móveis acima referidos e entendemos ser útil os seguintes esclarecimentos:

Como é do conhecimento de V. Exa a Lei 107/2001, de 8 de Setembro, preconiza no número 1 e na alínea b) do número 2 do artigo 68º, que são aplicáveis com as necessárias adaptações, o disposto nos números 1 e 2 do artigo 64º e que salvo acordo do proprietário, é vedada a classificação, como de interesse nacional ou de interesse público dos bens nos 10 anos seguintes à importação ou admissão.

Ora, deste conjunto de obras, a mais antiga tem a data de admissão em Outubro de 2004.

Quanto ao conceito de bem cultural móvel definido no nº1 do artigo 55º da lei acima citada, não seria possível, pela mera invocação do inestimável valor cultural, abrir um procedimento de classificação atendendo às estatuições do número 2 deste artigo que remete para a definição constante do artigo 14º e números 1, 3 e 5 do artigo 14º, todos da Lei 107/2001.

No que respeita ao procedimento de inventariação, carece de colaboração dos seus proprietários quando os bens não se encontram na posse do Estado.

Contudo, é de referir que esta inventariação não confere um nível de protecção semelhante ao da classificação» - ver folha 121 dos autos;

T) Por decisão prolatada nos autos em 26.05.2014, nos termos do artigo 131º/6/CPTA, foi mantido o decretamento provisório da[s] providência[s] cautelar[es] requerida[s] - ver folhas 1316 e seguintes dos autos em suporte de papel, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido;

U) Por despacho do Director-Geral do Património Cultural, de 21.07.2014, em cumprimento do despacho do Secretário de Estado da Cultura, de 18.07.2014, foi determinada a abertura do procedimento de classificação das 13 obras de Joan Miró pertencentes à B………., SA, ora Requerida - ver documento 1 junto com o requerimento da A…………. e B………., de folhas 1606 e seguintes dos autos em suporte de papel, cujo teor aqui se dá por reproduzido na íntegra;

V) Por despacho do Director-Geral do Património Cultural, de 21.07.2014, em cumprimento do despacho do Secretário de Estado da Cultura, de 18.07.2014, foi determinada a abertura do procedimento de classificação das 72 obras de Joan Miró pertencentes à A…………, SA, ora Requerida - ver documento 2 junto com o requerimento da A………… e B…………., de folhas 1606 e seguintes dos autos em suporte de papel, cujo teor aqui se dá por reproduzido na íntegra;

X) Ambos os despachos de abertura dos procedimentos administrativos de classificação das obras em causa nestes autos, foram objecto de publicação em Diário da República - Anúncios nºs 197/2014 e 198/2014, respectivamente, publicados no DR, 2ª Série, nº146, de 31.07.2014 - ver documento 3 junto com o requerimento da A………….. e B…………., de folhas 1606 e seguintes dos autos;

Z) Em 19.08.2014, pelo Director-Geral do Património Cultural, foram proferidas decisões de arquivamento dos procedimentos administrativos de classificação das obras em causa nestes autos, as quais foram objecto de publicação em Diário da República - conforme Anúncios nºs 215/2014 e 216/2014, publicados no DR, 2ª Série, nº166, de 29.08.2014 - ver documento 1 junto com o requerimento da A………….. e B…………., de folhas 1663 e seguintes dos autos em suporte de papel;

AA) Do supra referido arquivamento, foram as ora requeridas A……….. e B……….. notificadas, através dos ofícios nºs 8453 e 8452, respectivamente, ambos datados de 19.08.2014, e com cópia das referidas decisões, exaradas sobre as Informações nºs 2007/DPIMI/2014 e 2006/DPIMI/2014, ambas de 12.08.2014, das quais se retira que, o fundamento que esteve na base das decisões de arquivamento, foi a oposição expressa das ora requeridas A………. e B………… à classificação das ditas obras de Joan Miró, seja como bens móveis de interesse nacional, seja como bens móveis de interesse público, por se tratar de obras importadas há menos de 10 anos - ver documentos 1 e 2 juntos pela requerida DGPC, como seu requerimento de folhas 1766 e seguintes dos autos em suporte de papel, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido;

BB) O Ministério Público intentou no TAC de Lisboa providência cautelar contra o Ministério das Finanças e a Secretaria de Estado da Cultura peticionando a intimação dos requeridos a absterem-se de alienar o acervo das obras de Miró, que veio à posse e titularidade do Estado após nacionalização das acções do D………….. [D……] de forma a permitir o cumprimento dos requisitos impostos pela LBPC, nomeadamente a inventariação e classificação das obras, impedindo deste modo a realização do leilão que a leiloeira D…………. programa realizar para os dias 4 e 5 de Fevereiro - [Processo 246/14] - facto que se considera provado por consulta do SITAF;

CC) O Ministério Público intentou no TAC de Lisboa providência cautelar contra a A……….., B…………, o Ministério das Finanças e o Secretário de Estado da Cultura peticionando a suspensão de eficácia das deliberações do Conselho de Administração das referidas A………. e da B………. referentes à alienação das obras de arte de Joan Miró e ainda dos actos referentes à mesma alienação praticados pelo Ministério das Finanças e pelo Secretário de Estado da Cultura [Processo 271/14] - facto que se considera provado por consulta ao SITAF;

DD) No processo cautelar nº246/14.4BELSB, foi proferida sentença em 24.09.2014, indeferindo a providência ali requerida - ver documento junto aos autos a folhas 1738 e seguintes;

EE) Nos presentes autos são formuladas as seguintes pretensões:

1- O Secretário de Estado da Cultura a exercer os poderes de tutela, nomeadamente determinando à Direcção-Geral do Património Cultural a abertura do devido procedimento de inventariação e classificação, já impulsionado, nos termos dos artigos 25° a 30° da LBPC.

2- A Direcção-Geral do Património Cultural a assegurar e coordenar a instrução do procedimento administrativo de classificação e inventariação das obras de arte de Joan Miró, incluindo a obrigatória audição dos órgãos consultivos competentes [artigo 26º, nº3 da LBPC].

3- O Ministério das Finanças, accionista único da A…………, SA e B…………, SA, através da Direção-Geral do Tesouro e Finanças, a exercer os poderes de superintendência e de tutela, através de orientações e instruções no sentido de não serem executadas as anunciadas decisões de venda enquanto não se mostrar produzido despacho ordenando a abertura do referido procedimento, subsequente instrução e decisão, proferida no exercício de poderes vinculados.

4- As empresas públicas A……….., SA e B……….. SA a abster-se de colocar no mercado externo as obras de arte em causa enquanto não for produzido, pela administração do património cultural, despacho ordenando a abertura do procedimento administrativo anteriormente referido, e nesse âmbito, apreciado o pedido de expedição/exportação conforme expressamente impõe a LBPC.

5- A C………….. a abster-se de colocar no mercado as mesmas obras de arte enquanto não for produzido, pela administração do património cultural, despacho ordenando a abertura do procedimento administrativo anteriormente referido, e nesse âmbito, apreciado o pedido de expedição/exportação conforme expressamente impõe a LBPC.

Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis, deve ser decretada providência cautelar de intimação dos requeridos a absterem-se de colocar no mercado externo as obras de Joan Miró, que vieram à posse e titularidade do Estado após nacionalização das acções do D………….. [D…….] de forma a permitir o cumprimento obrigatório dos requisitos impostos pela LBPC, nomeadamente a inventariação e classificação das obras» - requerimento cautelar;

FF) Em 27.10.2014, deu entrada neste Tribunal o processo cautelar nº2527/14.SBELSB, no qual o ora requerente MP vem requerer a providência cautelar de suspensão de eficácia dos despachos de arquivamento dos procedimentos de classificação supra mencionados, como preliminar de acção administrativa especial de impugnação dos actos administrativos, que reputa de ilegais - ver requerimento inicial do aludido processo, no SITAF.

III. De Direito

1. O recorrente - MP - requer que ao presente recurso de revista seja atribuído «efeito suspensivo».

As recorridas que contra-alegaram – A……….. e B……….. - opuseram-se a essa pretensão, pugnando pela manutenção do efeito meramente devolutivo que foi fixado ao recurso no despacho da sua admissão pelo TCAS.

E é esta a decisão, na verdade, que deverá manter-se.

Conjugado o disposto nos artigos 143º, nº2, e 147º, do CPTA [2004], resulta que aos recursos interpostos de decisões judiciais em processos cautelares - sejam de deferimento ou de indeferimento da pretensão cautelar requerida - deve ser fixado o efeito meramente devolutivo - neste sentido, e a título exemplificativo, AC do STA de 24.05.2012, Rº0225/12; AC do STA de 05.09.2012, Rº0470/12; AC do STA de 13.09.2012, Rº0628/12; AC do STA de 08.11.2012, Rº0889/12; AC do STA de 22.11.2012, Rº0872/12; AC do STA de 05.03.2013, Rº0553/12; AC do STA de 30.10.2014, Rº0681/14; AC do STA de 05.02.2015, Rº01122/14; AC do STA/Pleno de 17.09.2015, Rº0622/15; na doutrina, Mário Aroso de Almeida, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao CPTA, 3ª edição, página 940.

Assim, e sem mais delongas, deverá ser desatendida a pretensão do recorrente, mantendo-se o «efeito meramente devolutivo» ao presente recurso de revista.

2. O MP deduziu pretensão cautelar junto do TACL - ao abrigo dos artigos 9º, nº2, do CPTA, e 9º da Lei nº107/2001, de 08.09 [Lei de Bases do Património Cultural - LBPC] - pedindo, em suma, que os requeridos fossem intimados a absterem-se de colocar no mercado externo as obras de JOAN MIRÓ, que vieram à posse e titularidade do Estado após a nacionalização das acções do D…, de forma a permitir o cumprimento obrigatório dos requisitos impostos pela LBPC, nomeadamente inventariação e classificação das respectivas obras.

Os requeridos opuseram-se a tal pretensão, pugnando pelo seu indeferimento.

O TACL, por sentença de 18.11.2014 julgou extinta a instância com fundamento na inutilidade superveniente da lide.

Entendeu que «durante a pendência» deste procedimento cautelar tinham sido abertos dois procedimentos administrativos para inventariar, e classificar, as 85 obras de Joan Miró - despacho de 18.07.2014 do SEC e despacho de 21.07.2014 do DGPC - e que tais procedimentos tinham sido objecto de despachos de arquivamento liminar - com base no artigo 68º nº2 da LBPC - proferidos pelo DGPC, motivo pelo qual, entendeu, não restava «qualquer utilidade à eventual concessão da providência cautelar» requerida pelo MP.

Este interpôs recurso de apelação, desta sentença, para o TCAS, apresentando alegações que versam exclusivamente sobre a sua discordância com a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

O TCAS, por acórdão de 26.02.2015, «negou provimento» à apelação do MP, e, em conformidade, manteve a decisão de extinção da instância cautelar com o referido fundamento de inutilidade superveniente.

O MP interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal, que foi admitido, e foi decidido, por acórdão de 03.12.2015, no sentido de «conceder provimento ao recurso», «revogar o acórdão recorrido», e «determinar a baixa dos autos ao TCAS para que o mesmo determine o seu prosseguimento nos ulteriores termos».

Neste aresto, o STA considerou, fundamentalmente, que a circunstância de ter sido aberto e decidido procedimento administrativo referente à inventariação e classificação das obras de JOAN MIRÓ não implica a perda de utilidade desta lide cautelar, porque a pretensão formulada pelo MP não se esgota na inventariação e classificação de tais obras, uma vez que o fim visado é o de que, após aquele procedimento - relativamente ao qual ainda não há actos administrativos com força de caso decidido - o acervo artístico de JOAN MIRÓ permaneça duradouramente no nosso país, satisfazendo os interesses culturais que o MP defende.

O TCAS, recebidos os autos, ordenou de imediato a sua «inscrição em tabela», e, em 10.03.2016, proferiu acórdão em que conheceu do mérito da providência cautelar requerida pelo MP, a qual julgou improcedente.

Neste acórdão, o TCA «indeferiu a inquirição de testemunhas arroladas pelas partes» por entender que os autos continham «todos os elementos de prova necessários a apreciar» a pretensão cautelar, aditou 21 pontos factuais ao acervo factual que constava da sentença do TACL de 18.11.2014, julgou preenchidos os requisitos de concessão de providência de natureza conservatório exigidos pela alínea b) do nº1 do artigo 120º do CPTA [2004], e terminou indeferindo o pedido cautelar deduzido pelo MP por ter entendido, após ter identificado e ponderado os vários interesses que estavam em confronto, que «…sem questionar o valor das obras em apreço, se deve concluir que os prejuízos que resultariam da concessão da providência seriam superiores aos que resultam da recusa da mesma».

É deste acórdão do TCAS, de 10.03.2016, proferido na sequência da «baixa dos autos» ordenada pelo acórdão de 03.12.2015 do STA, que vem interposto este recurso de revista.

Nele, como ressuma das conclusões reproduzidas no ponto 1 do «Relatório», o recorrente MP invectiva o acórdão recorrido por ter avançado para o julgamento do mérito da pretensão cautelar «sem dar cumprimento ao contraditório exigido pelo nº5 do artigo 149º do CPTA». À cautela, para o caso de assim não vir a ser entendido por este tribunal de revista, pugna pela efectiva verificação de todos os pressupostos legais indispensáveis ao decretamento da providência cautelar, e, desde logo, o ínsito na alínea a) do nº1 do artigo 120º do CPTA/2004.

3. Este CPTA, no seu artigo 149º, e sob a epígrafe de «Poderes do tribunal de apelação» estipula, para além do mais, assim: «… 4- Se, por qualquer motivo, o tribunal recorrido não tiver conhecido do pedido, o tribunal de recurso, se julgar que o motivo não procede e que nenhum outro obsta a que se conheça do mérito da causa, conhece deste no mesmo acórdão em que revoga a decisão recorrida. 5- Nas situações previstas nos números anteriores, o relator, antes de ser proferida decisão, ouve cada uma das partes pelo prazo de 10 dias».

Estes preceitos surgiram no CPTA de 2004 na linha do que já vinha prevendo o CPC desde a reforma feita pelo DL nº329-A/95, de 12.12, em cujo preâmbulo, e a tal respeito, se esclarecia o seguinte: «Consagra-se expressamente a vigência da substituição da Relação ao tribunal recorrido, ampliando e clarificando o regime que a doutrina tem vindo a inferir da lacónica previsão do artigo 715º do CPC, por se afigurar que os inconvenientes resultantes da possível supressão de um grau de jurisdição são largamente compensados pelos ganhos em termos de celeridade na apreciação das questões controvertidas pelo tribunal “ad quem”. Neste sentido, estatui-se que os poderes de cognição da Relação incluem todas as questões que ao tribunal recorrido era lícito conhecer, ainda que a decisão recorrida as não haja apreciado designadamente por as considerar prejudicadas pela solução que deu ao litígio - cumprindo à Relação, assegurado que seja o contraditório e prevenido o risco de serem proferidas decisões surpresa, resolvê-las sempre que disponha dos elementos necessários».

4. A melhor interpretação destas normas, ou seja, a interpretação mais segura de acordo com a aplicação dos «critérios interpretativos legais» [artigo 9º do CC], vai no sentido das mesmas atribuírem ao tribunal de apelação o poder-dever de se substituir ao tribunal recorrido no conhecimento do mérito da causa, quando tal conhecimento tenha ficado prejudicado pela solução dada ao litígio, e entenda que este obstáculo não procede e que nenhum outro se perfila [nº4].

Mas, nesse seu afã substitutivo, terá de observar o «contraditório», evitando a «decisão surpresa» [nº5].

Esta é a interpretação que resulta da letra da lei, da devida atenção à «unidade do sistema jurídico», e da intenção do legislador, atendendo às «circunstâncias em que tais normas foram elaboradas».

Como vem salientando a doutrina, e a jurisprudência, a intenção do legislador -e isto tanto no caso do artigo 149º do CPTA como no do artigo 715º do CPC - vai no sentido do recurso de apelação provido não apenas eliminar da ordem jurídica a decisão recorrida mas substituí-la pela decisão tida por correcta. Ou seja, não se limitar a ser «recurso cassatório», mas ser «recurso substitutivo», ou de «reexame» - ver Mário Aroso de Almeida/Fernandes Cadilha, CPTA, 2ª edição revista, página 855; AC STA de 02.08.2006, Rº571/06; AC STA de 06.12.2006, Rº0858/06; AC do STA de 10.03.2011, Rº0641/09; AC STA de 22.03.2011, Rº0916/10; AC STA de 28.06.2011, Rº0412/11; AC do STA de 29.05.2014, Rº0502/13; AC do STA de 05.03.2015, Rº01511/14; AC do STA de 28.05.2015/0123/14; AC do STA de 25.11.2015, Rº01309/13.

Mas, esta natureza substitutiva do recurso de apelação, deverá conciliar-se com o objectivo - que não direito - do «duplo grau de jurisdição» que é o de assegurar a intervenção de um tribunal superior, presumidamente mais apto para apreciar e para decidir. Desiderato que o legislador entendeu ficar satisfeito desde que as partes tenham a real possibilidade de debater perante o tribunal superior as questões sobre as quais ele se vai pronunciar em substituição do tribunal a quo. Em suma, desde que seja respeitado, no tribunal de apelação, o contraditório, enquanto princípio estruturante, «reitor», e fundamental, do processo judicial.

5. Não há dúvida, portanto, de que uma vez remetidos os autos ao TCAS, para determinar «o seu prosseguimento nos ulteriores termos», este tribunal podia e devia, dado ter sucumbido no STA, em sede de revista, o motivo impeditivo do conhecimento do mérito, apreciar e decidir o pedido cautelar se nada mais a tal obstasse. E foi o que aconteceu.

Não ocorre, assim, ao contrário do que parece entender o recorrente, qualquer «desrespeito» por banda do TCAS em relação à decisão do STA. Ao tribunal de apelação competia, uma vez devolvidos os autos para seu prosseguimento nos ulteriores termos, verificar se tinha os elementos indispensáveis para conhecer de mérito e se nada mais impedia que o fizesse. Respondendo afirmativamente a estes dois pressupostos, o TCAS avançou para a decisão do pedido cautelar, fazendo-o ao abrigo do poder-dever, ou, se quisermos, da verdadeira imposição que lhe era feita pelo nº4 do artigo 149º do CPTA.

A questão a apreciar reduz-se, pois, a saber se o poderia ter feito, no caso, sem ter cumprido o «contraditório» imposto pelo nº5 desse mesmo artigo legal.

6. Esta questão não é nova, e tem sido objecto de vários acórdãos, quer deste STA quer do STJ, nem sempre convergentes, embora a maioria das vezes essa divergência decorra da diversidade das situações em apreciação - entre outros, a título exemplificativo: AC do STJ de 09.07.2003, Rº04B4031; AC do STJ de 07.06.2011, Rº906/2001; AC STA de 28.06.2011, Rº0412/11; AC do STA de 25.11.2015, Rº01309/13.

No referido acórdão de 28.06.2011 [Rº0412/11], do STA, perfeitamente secundado pelo de 25.11.2015 [Rº01309/13], do mesmo tribunal, escreveu-se, a propósito do princípio do contraditório o seguinte: «A partir da reforma do processo civil de 1995 e por influência germânica, o legislador nacional adoptou uma concepção mais ampla do princípio do contraditório, como tem vindo a ser reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, passando o objectivo principal deste princípio a ser, já não apenas o direito de cada uma das partes a se defender no processo, mas também o direito de participar nele activa e efectivamente, contribuindo, desse modo, para a obtenção de uma decisão justa, pois só assim fica assegurado um due processo of law - neste sentido, ver José Lebre de Freitas, «Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código revisto», 1996, página 96, e CPC anotado, volume I, 1999, página 8.

Aliás, a dispensa do cumprimento do princípio do contraditório só é permitida em casos de manifesta desnecessidade, como decorre do nº3 do artigo 3º do CPC ao dispor que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

É, portanto, dentro desse novo entendimento alargado do princípio do contraditório, manifestamente também acolhido pelo legislador do CPTA, que deve ser interpretado o nº5 do artigo 149º do CPTA, ao exigir que o relator do tribunal de apelação, ouça cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias, antes de esse tribunal fazer uso dos poderes que lhe são conferidos nos nºs 1 e 4 do citado preceito legal».

E concretizam, os acórdãos referidos, como caso de manifesta desnecessidade do «cumprimento do contraditório», a circunstância de as partes, nas alegações e contra-alegações do recurso de apelação, terem antecipado o debate sobre as questões omitidas ou consideradas prejudicadas pelo tribunal a quo, prevenindo a hipótese do recurso de apelação proceder.

7. No presente caso, o tribunal de apelação - TCAS - não fez qualquer referência expressa ao uso do poder-dever conferido pelo artigo 149º do CPTA, mas certo é que decidiu de fundo, obviamente, nessa base legal. Dispensou a inquirição das testemunhas arroladas pelas partes, por entender que era desnecessária, e passou a decidir o mérito da pretensão cautelar.

A montante tinha o requerimento cautelar, do MP, e a resposta ao mesmo, em que as entidades e sociedades demandadas pugnavam pelo «indeferimento» da providência cautelar requerida.

Em sede de alegações e contra-alegações do «recurso de apelação», e como já tivemos ensejo de sublinhar, as partes limitaram-se, exclusivamente, a atacar e defender a decisão proferida pelo TACL: «absolver da instância os demandados, com fundamento em inutilidade superveniente da lide», e julgar «prejudicado o conhecimento do mérito da pretensão cautelar».

A propósito, escreveu-se no já citado acórdão de 28.06.2011 [Rº0412/11], doutrina adoptada, também, no aresto de 25.11.2015 [Rº01309/13], que «Decisão surpresa é a decisão com que não se conta. Ora, no caso de ter sido interposto recurso de apelação e uma vez que o recurso jurisdicional tem por objecto a decisão judicial recorrida e não questões que aquela não apreciou [artigo 690º nº1 do CPC], não se conta, naturalmente, com uma decisão do tribunal de recurso que se pronuncie sobre questões que a decisão ali recorrida não apreciou, a não ser que as partes tenham antecipado o debate sobre tais questões, nas alegações de recurso, prevenindo a hipótese deste proceder.

Entendemos, pois, que com a formalidade prevista no nº5 do artigo 149º do CPTA, o legislador pretendeu que às partes fosse sempre dada a possibilidade de se pronunciarem, junto do tribunal de apelação, sobre as questões omitidas e/ou consideradas prejudicadas pela 1ª instância, antes daquele tribunal delas conhecer, em substituição do tribunal a quo e, em princípio, em definitivo, isto independentemente de as partes já se terem pronunciado em 1ª instância sobre essas questões, até porque poderão, porventura, aduzir novos argumentos em defesa da sua posição nessas questões, pelo que o não cumprimento dessa formalidade é susceptível de influir na decisão da causa e, como tal, constitui uma nulidade processual secundária prevista no artigo 201º do CPC.

A não ser assim, o campo de aplicação do artigo 149º, nº5, do CPTA, estando, como está, reportado às situações referidas nos nºs 1 a 4 do mesmo preceito, ficaria reduzido aos poucos casos em que a parte que não suscitou a questão omitida ou considerada prejudicada na sentença, não tivesse tido a possibilidade de se pronunciar sobre ela na 1ª instância, pois, em regra, essa oportunidade é-lhe concedida nos termos da lei. […]».

Aderimos a esta perspectiva jurídica de interpretação da abrangência do nº5 do artigo 149º do CPTA, pois cremos ser a mais respeitadora da letra e do espírito da lei. Aliás ao impor o cumprimento do contraditório pelo tribunal de apelação, nestes casos, o legislador não pôde deixar de ter em conta o «contraditório» já realizado na 1ª instância e vertido nos respectivos «articulados» das partes em litígio. Mas, apesar deste, e dentro da perspectiva vertida já no parágrafo 5º do ponto 3 supra, impôs, e de forma imperativa, o seu cumprimento pelo tribunal de apelação, ressalvados sempre, como resulta da regra geral do cumprimento deste princípio [artigo 3º, nº3, do CPC], os casos de «manifesta desnecessidade».

8. Deste modo, no presente caso, o cumprimento do princípio do contraditório só poderia ser dispensado pelo tribunal de apelação - TCAS - se os respectivos litigantes tivessem, nas alegações e contra-alegações de recurso de apelação, antecipado o debate sobre as questões inerentes à apreciação do mérito. O que, como já frisamos, não aconteceu.

A conclusão que se nos impõe, pois, na decorrência de quanto vimos dizendo, é a de que não foi cumprido pelo TCAS o contraditório imposto pelo nº5 do artigo 149º do CPTA, e devê-lo-ia ter sido, uma vez que não estamos perante caso de «manifesta desnecessidade» desse cumprimento.

9. Desta conclusão, defendida pelo recorrente, retira ele duas consequências: - nulidade do acórdão recorrido, por «excesso de pronúncia» [artigos 615º, nº1, alínea d), ex vi 666º nº1, do CPC]; - e nulidade processual, por «omissão do contraditório» que a lei prescreve [artigo 195º do CPC].

Em seu entender, como o objecto do recurso de apelação é, por regra, limitado pelas conclusões das alegações do respectivo recorrente, e ele, no caso, como apelante, se limitou a discordar da ocorrência de uma situação de «inutilidade superveniente» da lide, resulta que o TCAS, ao avançar, de motu proprio, para o julgamento do mérito da causa, incorreu em «excesso de pronúncia».

Mas não é assim. E que não o é, resulta claro de quanto já deixamos dito neste acórdão.

Efectivamente, não configura excesso de pronúncia o conhecimento do pedido efectuado pelo tribunal de apelação ao abrigo do poder-dever conferido pelo nº5 do artigo 149º do CPTA. Trata-se, ao invés, de uma imposição feita pelo próprio legislador, verificados que sejam os respectivos pressupostos. Deste jeito, é um conhecimento «que se impõe ao tribunal de apelação», e não um conhecimento invasivo, excessivo, susceptível de gerar a nulidade substantiva prevista no nº1 alínea d) do artigo 615º do CPC [ex vi artigos 666º, nº1, do CPC, e 1º do CPTA].

Mas estamos, certamente, e como já o entendeu este STA no citado acórdão de 28.06.2011 [Rº0412/11], perante uma nulidade processual secundária, actualmente prevista no artigo 195º do CPC [antigo artigo 201º, ex vi artigo 1º do CPTA], dado tratar-se da omissão de um «contraditório» que «a lei prescreve» e cujo cumprimento podia «influir no exame ou na decisão da causa».

10. Importará, por conseguinte, retirar as consequências jurídicas da verificação desta nulidade processual secundária.

Assim, e ao abrigo do disposto no nº2 do artigo 195º do CPC [ex vi 1º do CPTA], terá o acórdão proferido pelo tribunal de apelação - TCAS - de ser anulado, devido à nulidade processual ocorrida, e terão os autos de baixar a esse tribunal a fim de ser cumprido o nº5 do artigo 149º do CPTA, com a ulterior tramitação legal dos autos.

E, perante esta decisão anulatória, obviamente que resta prejudicado o demais invocado no «recurso de revista». Aliás nunca este Supremo Tribunal, enquanto «tribunal de revista», poderia substituir-se ao tribunal de apelação na realização dos julgamentos de facto que, ao que tudo indica, importará fazer [artigos 12º, nº4, do ETAF].

IV. Decisão

Nestes termos, decidimos conceder provimento ao recurso de revista, e, em conformidade, anular o acórdão recorrido e ordenar que os autos baixem ao Tribunal Central Administrativo Sul para seu prosseguimento, de acordo com o ora decidido.

Custas pelas sociedades recorridas que contra-alegaram.

Lisboa, 13 de Outubro de 2016. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Alberto Acácio de Sá Costa Reis.