Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0838/11
Data do Acordão:11/16/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÕES
SIGILO
Sumário:I - O direito à informação encontra expressão normativa na Constituição da República Portuguesa e foi transposto para a lei ordinária através do Código de Procedimento Administrativo. Todavia, face ao reconhecimento, também constitucional, do direito à privacidade, o legislador foi obrigado a estabelecer restrições ao direito à informação e a criar instrumentos jurídicos que funcionem como garantias do direito à privacidade.
II - A consagração da regra do sigilo fiscal, constante do artigo 64.º da Lei Geral Tributária, corresponde, precisamente, à extensão e reconhecimento do direito à privacidade no âmbito da actividade tributária, estando por ele abrangidos os dados de natureza pessoal dos contribuintes (pessoa singular ou colectiva) e os dados expressivos da sua situação tributária, os quais só podem ser revelados a terceiros - outros sectores da Administração ou particulares - nos casos expressamente previstos na lei, para responder a um motivo social imperioso, e só na medida estritamente necessária para satisfazer o equilíbrio entre os interesses em jogo.
III - Podem, contudo, ser revelados os dados pessoais livremente cognoscíveis (dados públicos ou dados pessoais constantes de documento público oficial, como acontece, por exemplo, com o número de identificação fiscal, com a identificação dos bens inscritos na matriz predial ou no registo predial e comercial) bem como os dados fiscais que não reflictam nem denunciem a situação tributária dos contribuintes.
IV - À luz da Lei das Finanças Locais, os Municípios têm direito de obter informação relativa à liquidação e cobrança de impostos municipais e informação sobre a transferência dessas receitas.
V - A identificação em bloco das pessoas colectivas a quem foram efectuadas essas liquidações e cobranças, pelo nome e/ou número de identificação fiscal, sem individualização ou particularização do montante liquidado e cobrado a cada uma delas, encontra-se fora da esfera da confidencialidade fiscal.
Nº Convencional:JSTA00067244
Nº do Documento:SA2201111160838
Data de Entrada:09/22/2011
Recorrente:DIRECTOR GERAL DOS IMPOSTOS
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE VILA NOVA DE FAMALICÃO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF LISBOA DE 2011/08/21 PER SALTUM
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - INTIMAÇÃO INF CERT
Legislação Nacional:CONST97 ART18 ART26 ART35 ART37 N1 N2 ART48 N2 ART268 N2
CPA91 ART61 ART64 ART65
L 46/2007 DE 2007/08/24 ART5
LGT98 ART17 D ART63 ART64 N2 B
DL 363/78 DE 1978/11/28 ART 30 N1 C
L 28/84 DE 1984/08/14 ART43 N1
LFL07 ART11
Referência a Doutrina:CARLOS PAMPLONA CORTE-REAL E OUTROS BREVES REFLEXÕES EM MATÉRIA DE CONFIDENCIALIDADE FISCAL IN CTF N368 PAG17
AMÉRICO BRÁS CARLOS IMPOSTOS (TEORIA GERAL) 3ED
MANUEL FREITAS PEREIRA IN FISCALIDADE
Aditamento:
Texto Integral: 1. O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DIRECTOR GERAL DOS IMPOSTOS recorre da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, em 21 de Agosto de 2011, no âmbito do meio processual de intimação para prestação de informações que o MUNICÍPIO DE VILA NOVA DE FAMALICÃO instaurou contra o MINISTÉRIO DAS FINANÇAS E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, e que, na procedência do pedido, intimou a Entidade Requerida a «no prazo de 10 (dez) dias prestar ao Requerente informação sobre quem são os sujeitos atingidos pela base de incidência tributária da derrama na área do Município em 2009 e a quem foi liquidado esse imposto em 2010.».
1.1. Terminou as alegações de recurso com as seguintes conclusões:
I. O pedido formulado pela R. é vago e indeterminado, não permitindo à ER a exacta definição dos elementos pretendidos.
II. Não dispõe a R. de qualquer poder legal de fiscalização junto da DGCI relativamente às operações administrativas por esta praticadas com intuito de liquidar e/ou cobrar tal prestação tributária, de onde resulte o direito a obter a identidade dos sujeitos passivos da derrama, assim como a identificação dos sujeitos passivos a quem esta foi liquidada, nem tão pouco a informação relativa à situação tributaria daqueles que deriva da mera comparação das listas identificativas com o universo empresarial do concelho.
III. A Derrama é um imposto que incide sobre o lucro tributável das entidades sujeitas e não isentas de IRC, que corresponda à proporção do rendimento gerado na respectiva área geográfica por sujeitos passivos residentes e que exerçam a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável em território nacional.
IV. Para os sujeitos passivos que possuem estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria colectável superior a 50.000 euros, o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.
V. Os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado.
VI. O sigilo fiscal abrange os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal das pessoas singulares e colectivas.
VII. O dever de sigilo fiscal cessa nos casos de cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, quando exista norma legal expressa para o efeito, não bastando para tal a existência de um dever geral de colaboração.
VIII. A alínea b) do n.º 2 do artigo 64.° da LGT não é uma norma de aplicação directa, mas de remissão para outros preceitos legais que consagrem expressamente o afastamento do dever de sigilo fiscal.
IX. A Lei das Finanças Locais não consagra nenhuma norma que afaste expressamente o dever de sigilo fiscal, confere apenas às Câmaras Municipais o acesso a informação geral sobre a liquidação e cobrança dos impostos municipais, e sobre a transferência da respectiva receita, sem qualquer menção à obrigatoriedade de individualização dos sujeitos passivos dos referidos tributos.
X. O princípio da administração aberta previsto no artigo 65° do Código de Procedimento Administrativo não afasta expressamente o sigilo fiscal, o que resulta do próprio texto legal dessa norma (vide artigo 65°, n° 1, in fine do CPA).
XI. O artigo 136.° do CIRC reforça, expressamente, o carácter sigiloso dos elementos constantes dos processos individuais dos sujeitos passivos de IRC.
XII. Estão abrangidos pelo dever de sigilo fiscal os dados relativos à situação tributária dos contribuintes, nomeadamente quaisquer informações, quaisquer elementos informatizados ou não, que reflictam de alguma forma a situação patrimonial dos sujeitos passivos da obrigação de imposto, sejam pessoas singulares ou colectivas.
XIII. A expressão «situação tributária dos contribuintes» abrange os dados detidos pela Administração Fiscal, que, de um modo ou de outro, parcelar ou globalmente, digam da capacidade contributiva dos cidadãos.
XIV. A decisão proferida em primeira instância condena a ER a prestar informações que permitem, directa ou indirectamente, a R obter dados relativos a situação tributária dos sujeitos passivos em geral, e a sua capacidade contributiva em especial.
XV. A decisão recorrida, salvo melhor opinião, limita-se a considerar o sigilo fiscal enquanto mera garantia dos interesses dos particulares, no entanto, este tutela outros valores, nomeadamente a protecção da confiança na AT por parte dos particulares, e constitui uma verdadeira condição do sucesso da actividade desta.
XVI. Assim sendo, o tribunal de primeira instância ao decidir nos termos supra expostos não procedeu à correcta interpretação da norma legal prevista no artigo 64° da LGT.
1.2. A Recorrida apresentou contra-alegações para sustentar a manutenção do julgado, tendo concluído do seguinte modo:
34. A Recorrida tem direito a ser informado pelo Recorrente, sobre quem são os sujeitos atingidos pela base de incidência tributária da derrama na área do Município em 2009 e a quem foi liquidado esse imposto em 2010.
35. A Derrama é um imposto não estadual, consubstanciando, por sua vez, uma receita dos municípios.
36. Os Municípios são os sujeitos activos da titularidade da receita proveniente da cobrança da Derrama, desencadeada por deliberação da Assembleia Municipal, podendo ir até 1,5% do lucro sujeito a IRC.
37. O sigilo fiscal cessa em caso de cooperação legal entre a administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes.
38. Nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 64.° da LGT, a cooperação legal entre a Administração Tributária com outras entidades públicas deve desenvolver-se na medida dos seus poderes.
39. A Lei das Finanças Locais confere à Recorrida o direito à informação actualizada.
40. Assim, está no âmbito dos poderes da Recorrida o direito de ser informado sobre a Derrama, poderes estes conferidos pelo artigo 11.° alínea a) da Lei das Finanças Locais.
41. O pedido não é indeterminado, porquanto se encontra em perfeita conformidade com os poderes atribuídos pelo artigo 11.° alínea a) da Lei das Finanças Locais, uma vez que esta atribui aos Municípios o “Acesso a informação actualizada dos impostos municipais e da derrama, liquidados e cobrados, quando a liquidação e cobrança seja assegurada pelos serviços do Estado, nos termos do n.º 4 do artigo 13.°”.
42. A Recorrida pretende tão só obter as informações necessárias para o exercício pleno dos poderes sobre a Derrama que lhe são conferidos por lei,
43. Bem como a informação necessária a um bom planeamento da sua actividade, atenta a importância que a receita proveniente da derrama representa no seu orçamento.
1.3. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso e revogada a decisão recorrida, com a seguinte argumentação:
«Quer parecer que resulta violado o dever de confidencialidade actualmente previsto no art. 64.° da LGT, em que, aliás, o recorrente assenta o seu recurso, e não havendo norma excepcional que o afaste quanto ao que foi decidido — no sentido de assim ser de entender face à LGT, em que aquele dever até foi reforçado, cfr. ainda o parecer do Conselho Consultivo da P.G.R. de 27-3-2003, publicado na 2ª S. do D.R. de 20-6-2003, p. 9292 e ss.
Com efeito, o constante do art. 11.º al. a) da Lei de Finanças Locais (n.º 2/07, de 15/1) em que se prevê, a propósito, que “os municípios dispõem de (...) acesso à informação actualizada dos impostos municipais e da derrama, liquidados e cobrados”, parece não integrar excepção ao dito dever com o conteúdo constante do n.º 1 do dito art. 64.°, pois o fornecimento de dados como o nome em associação ao demais também teriam de ser incluídos, não obtém cobertura, pelo menos, de uma forma clara na dita norma da Lei das Finanças Locais.
Crê-se ainda que o entendimento contrário ao que foi aplicado é aquele que corresponde aos direitos à identidade pessoal e à reserva da intimidade da vida privada, os quais obtêm tutela constitucional no art. 26.° n.° 1 da C.R.P., em termos de envolverem também o respeito do anonimato, para além do decorrente de outros comportamentos.
Assim, parece que apenas seria possível ao dito Município obter, a propósito da derrama em causa, elementos de carácter genérico, mas sempre sem a identificação dos contribuintes a que se referem as derramas liquidadas.».
1.4. Com dispensa dos vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, atenta a natureza urgente do processo, cumpre decidir em conferência.
2. Na decisão recorrida deu-se como assente a seguinte matéria de facto:
1. O Requerente solicitou à Entidade Requerida através dos seus ofícios de 19/01/2011, 25/01/2011, 14/02/2011 e 30/03/2011, informação acerca dos sujeitos passivos que exercem a título principal uma actividade de natureza económica no concelho, sujeitos ao pagamento da derrama no exercício de 2009 e liquidada em 2010 — fls. 20 a 23;
2. Por ofício datado de 18/04/2011, foi o Requerente notificado nos seguintes termos: «Relativamente ao assunto em epígrafe, informa-se que o assunto está a ser estudado, tendo sido proposta a audição dos Serviços Jurídicos do qual se aguarda resposta»;
3. Não se conformando com o teor da notificação, o Requerente remeteu ao Tribunal Administrativo de Círculo em 16/05/2011, sob registo postal, a petição de intimação para prestação de informações;
4. No seguimento do despacho de 20/05/2011, a fls. 32, de incompetência em razão da matéria, foi ordenada a remessa do processo ao Tribunal Tributário.
3. A questão a decidir no presente recurso consiste em saber se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento ao considerar que a informação que o Município de Vila Nova de Famalicão (Entidade Requerente) pretende obter do Ministério da Finanças e da Administração Pública (Entidade Requerida) – e que consiste em saber quem são os sujeitos passivos que naquele concelho foram atingidos pela base de incidência tributária da derrama no exercício de 2009 e a quem foi liquidado o imposto em 2010 – não afronta nem viola o dever de sigilo ou confidencialidade previsto no artigo 64.º da Lei Geral Tributária.
Nestes autos de intimação para prestação de informações, a Entidade Requerente alegou, em suma, ter legítimo interesse na obtenção dessa informação, enquanto sujeito activo da titularidade da receita proveniente da cobrança da Derrama à luz da Lei n° 2/2007, de 15 de Janeiro (Lei das Finanças Locais), e que a mesma lhe foi negada pela Entidade Requerida.
Em sede de articulado de resposta, a Entidade Requerida sustentou que essa informação não podia ser prestada, por envolver informação individualizada sobre os contribuintes, pois vai «muito para além de um pedido sobre os valores da receita da derrama a que teria eventualmente direito», violando, assim, o dever de sigilo fiscal regulado no artigo 64.° da LGT sobre o direito de acesso por uma câmara municipal à informação actualizada dos impostos municipais e da derramas, nos termos dos artigos 11.°, alínea a), e 13.°, n.º 6, da Lei das Finanças Locais. Na sua óptica, a Lei das Finanças Locais «apenas garante às câmaras municipais o acesso a informação geral sobre a liquidação e cobrança dos impostos municipais e derrama e transferência para os municípios da respectiva receita, sem qualquer menção à obrigatoriedade de individualização dos sujeitos passivos dos referidos tributos e do montante pago por cada um deles a titulo de derrama. E por esse motivo, não consagra qualquer derrogação expressa ou mesmo implícita do sigilo fiscal. Se é verdade que têm direito a conhecer a previsão das receitas a obter em caso de exercício da faculdade de lançamento da derrama, a que se refere o art.º 14.° da Lei n° 2/2007, bem como da despesa fiscal em caso de eventuais isenções a conceder nos termos dos artigos 11°, alínea d), e 12°, n° 2, da mesma Lei, não têm direito a conhecer informação individual dos contribuintes de imposto.».
Na sentença recorrida julgou-se que a Entidade Requerente tinha interesse legítimo na informação face ao regime de distribuição intermunicipal da matéria tributável da derrama previsto no artigo 14.º da Lei das Finanças Locais, na medida em que essa informação pode revelar-se útil e proporcionar-lhe a realização do alegado objectivo de reorganização financeira. «Trata-se, pois, de interesse próprio do Município, comprovado, sério e útil e, nessa medida, legítimo. Por outro lado, a informação prevista no art.º 13.° da Lei das Finanças Locais tem por escopo possibilitar o controlo, pelos sujeitos activos, da regularidade da transferência dos montantes de impostos municipais arrecadados, mas não esgota a informação que pode ser, a propósito das suas receitas próprias, disponibilizada aos Municípios - vd. art.º11.° alínea a) e o citado art.º 13 ° nºs 5 e 8, in fine.»
Para além disso, julgou-se que a prestação dessa informação não ofendia o dever de sigilo contido no artigo 64.° da LGT. «O sigilo recai sobre dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que os dirigentes, funcionários e agentes da Administração tributária obtenham no procedimento. Na verdade, o que se pretende é, apenas, informação sobre quem são os sujeitos atingidos pela base de incidência tributária da derrama na área do Município em 2009 e a quem foi liquidado esse imposto em 2010.
Tanto quanto alcançamos da p.i., não se pretende informação sobre o montante de imposto liquidado a cada sujeito passivo da derrama (isto é, o montante global desta receita desagregado por sujeito passivo), menos ainda, sobre os elementos que serviram de base à liquidação ou quem pagou, voluntaria ou coercivamente ou é devedor.».
Razão por que se decidiu intimar a Entidade Requerida, a, no prazo de 10 dias, prestar à Entidade Requerente informação sobre quem são os sujeitos atingidos pela base de incidência tributária da derrama na área do Município em 2009 e a quem foi liquidado esse imposto em 2010.
A Entidade Requerida, ora Recorrente, embora não conteste a decisão no que toca ao interesse legítimo da Entidade Requerente na obtenção da informação solicitada, que ali se deu por verificado, invoca que nela se incorreu em erro na interpretação da norma contida no artigo 64.° da LGT, na medida em que ela impõe o dever de sigilo fiscal e a informação solicitada afrontaria essa norma, não existindo na Lei das Finanças Locais nenhuma norma que afaste expressamente esse dever de confidencialidade fiscal.
Vejamos.
Em primeiro lugar, convém recordar que o direito à informação encontra expressão normativa de primeiro grau na Constituição da República Portuguesa, desde logo no artigo 268.º, onde se distingue entre o direito à informação procedimental (que pressupõe a qualidade de interessado num procedimento administrativo em curso - n.º 1) e o direito de acesso a arquivos e registos administrativos (em que um dos pressupostos é a inexistência de procedimento administrativo em curso - n.º 2). Segundo este n.º 2, “Os cidadãos têm também o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas”.
E encontra, também, abrigo no artigo 37.º da Constituição, que acolhe a “liberdade de expressão e informação”, dispondo o seu nº 1 que todos têm “o direito de informar, de se informar e de ser informados (...) sem impedimentos nem discriminações”, direitos cujo exercício – acrescenta o nº 2 – “não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”, bem como no artigo 48.º da Constituição, que ao definir os parâmetros fundamentais da “participação na vida pública”, preceitua que todos os cidadãos têm “o direito de ser esclarecidos objectivamente sobre actos do Estado e demais entidades públicas e de ser informados pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos”.
Estes dois planos constitucionais do direito à informação (procedimental e não procedimental) foram transpostos para a lei ordinária através do Código de Procedimento Administrativo, encontrando-se o primeiro consagrado nos artigos 61.º a 64.º, e o segundo no artigo 65.º, proclamando este último o princípio da “administração aberta” que flui directamente do artigo 268.º n.º 2 da CRP, ao estabelecer que “1 - Todas as pessoas têm direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, mesmo que não se encontre em curso qualquer procedimento que lhes diga directamente respeito, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas”.
Por outro lado, o artigo 5.º da Lei n.º 46/2007, de 24 de Agosto, que regula o acesso aos documentos administrativos, estabelece expressamente que «todos, sem necessidade de enunciar qualquer interesse, têm direito de acesso aos documentos administrativos, o qual compreende os direitos de consulta, de reprodução e de informação sobre a sua existência e conteúdo» e, no específico domínio da actividade tributária, o artigo 63.º da Lei Geral Tributária garante aos contribuintes o “direito à informação” sobre as matérias nele definidas.
Todavia, face ao reconhecimento, também constitucional, do direito à privacidade ou direito de reserva da intimidade da vida privada e familiar, plasmado no artigo 26.º da CRP (Dispõe o artigo 26º da Constituição da República Portuguesa, no seu nº 1, que «a todos são reconhecidos os direitos (...) à reserva da vida privada familiar» e, no seu nº 2, que «a lei estabelecerá garantias efectivas contra a utilização abusiva, ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias».), que visa impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e impedir a divulgação de informações que se tenham sobre a vida privada e familiar de outrem, o legislador foi obrigado a estabelecer restrições ao direito à informação e a criar instrumentos jurídicos que funcionem como garantias do direito à privacidade, como é o caso, designadamente, do sigilo profissional, do sigilo bancário e do sigilo fiscal.
Na verdade, e conforme resulta do disposto no artigo 18.º da Constituição, é possível a restrição de certos direitos fundamentais para garantir a salvaguarda de outros direitos constitucionalmente protegidos, restrições que se devem, porém, limitar ao necessário para alcançar os objectivos visados. Ou seja, perante a necessidade de conciliar o princípio da administração pública aberta e da cooperação institucional pública (resultante de uma administração pública regida por coordenadas de legalidade e transparência na prossecução do interesse público) com o direito constitucional à privacidade e sequente carácter sigiloso de certos dados, os conflitos que surjam entre o direito à informação em poder da Administração e o direito dos administrados à privacidade terão de ser analisados à luz das disposições que regulam o acesso à informação e das disposições que restringem esse acesso, numa equilibrada ponderação dos interesses em jogo.
Ora, a consagração da regra do sigilo fiscal corresponde, precisamente, à extensão e reconhecimento do direito à privacidade no âmbito da actividade tributária, enquanto direito fundamental constitucionalmente consagrado, que privilegia a tutela da intimidade privada dos contribuintes e que se traduz num impedimento quer ao acesso a estranhos quer à divulgação de informações disponíveis acerca da vida pessoal e privada dos contribuintes.
Por isso, o artigo 30.º n.º 1, alínea c), do DL n.º 363/78, de 28 de Novembro (diploma que procedeu à reestruturação orgânica da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos) estabelece que além dos deveres gerais inerentes a todos os trabalhadores da função pública, devem ainda os funcionários da Direcção-Geral guardar sigilo profissional, não podendo, nomeadamente, revelar quaisquer elementos sobre a situação profissional e os rendimentos dos contribuintes.
Já no Código do Processo Tributário o sigilo fiscal era entendido como “a confidencialidade dos dados relativos à situação tributária dos contribuintes” [artigo 17.º, alínea d)] e a actual Lei Geral Tributária estabelece que os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento [artigo 64.º].
Com efeito, este preceito da Lei Geral Tributária estabelece o seguinte:
Artigo 64.º
Confidencialidade
1 - Os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado.
2 - O dever de sigilo cessa em caso de:
a) Autorização do contribuinte para a revelação da sua situação tributária;
b) Cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes;
c) Assistência mútua e cooperação da administração tributária com as administrações tributárias de outros países resultante de convenções internacionais a que o Estado Português esteja vinculado, sempre que estiver prevista reciprocidade;
d) Colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil e Código de Processo Penal.
3 - O dever de confidencialidade comunica-se a quem quer que, ao abrigo do número anterior, obtenha elementos protegidos pelo segredo fiscal, nos mesmos termos do sigilo da administração tributária.
4 - O dever de confidencialidade não prejudica o acesso do sujeito passivo aos dados sobre a situação tributária de outros sujeitos passivos que sejam comprovadamente necessários à fundamentação da reclamação, recurso ou impugnação judicial, desde que expurgados de quaisquer elementos susceptíveis de identificar a pessoa ou pessoas a que dizem respeito.
5 - Não contende com o dever de confidencialidade:
a) A divulgação de listas de contribuintes cuja situação tributária não se encontre regularizada (...);
b) A publicação de rendimentos declarados ou apurados por categorias de rendimentos, contribuintes, sectores de actividades ou outras, de acordo com listas que a administração tributária deve organizar anualmente (...).
6 - Considera-se como situação tributária regularizada, para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior (...).
Donde resulta que o legislador não se limitou a restringir o campo da privacidade à esfera pessoal dos contribuintes, isto é, aos dados de natureza estritamente pessoal, tendo estendido a privacidade à sua situação tributária, aos seus rendimentos e, por conseguinte, à sua situação patrimonial e económico-financeira.
Assim o entendeu também o legislador na Lei nº 28/89, de 14 de Agosto (Lei da Segurança Social), onde se determina que «qualquer pessoa ou entidade têm direito a que os dados de natureza estritamente privada, quer pessoais, quer referentes à situação económico-financeira, não sejam indevidamente divulgados pelas instituições da segurança social abrangidos pela presente lei» - artigo 43º, n.º 1.
E embora a intimidade da vida privada seja inerente à pessoa singular, ao indivíduo, nada impedirá que, na prossecução de outros valores, a lei alargue a defesa de acesso a elementos relativos à situação patrimonial das pessoas colectivas, estabelecendo para estas um regime paralelo ao traçado para as pessoas singulares. Como escrevem CARLOS PAMPLONA CORTE-REAL, J. BACELAR GOUVEIA e J. CARDOSO DA COSTA (“BREVES REFLEXÕES EM MATÉRIA DE CONFIDENCIALIDADE FISCAL”, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 368, págs. 17 e segs.), «parece ser de admitir que o princípio da confidencialidade fiscal possa abarcar dados fiscais expressivos da situação tributária de pessoas colectivas. Com efeito, o artigo 17º, alínea d), do Código de Processo Tributário (Que tem correspondência com o actual artigo 64ºda Lei Geral Tributária) , não distingue entre pessoas singulares e pessoas colectivas e não se vislumbram razões para não se estender a protecção do sigilo fiscal aos entes colectivos, que não são senão criações artificiais do Direito, naturalmente integradas por indivíduos. E não parece que deva necessariamente circunscrever-se tal protecção apenas aos dados fiscais referentes a pessoas colectivas quando indicadores de aspectos pessoais relativos a pessoas singulares, tal como poderia pensar-se decorrer do recurso ao conceito de dados pessoais constante da alínea a) do artigo 2º da Lei nº 10/91.».
Foi, aliás, neste contexto jurídico que a Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informatizados considerou, no Parecer n.º 22/96, de 26 de Março, que o sigilo fiscal implica para os funcionários da Administração Fiscal a obrigação de guardar sigilo relativamente ao “rendimento” ou à “situação tributária dos contribuintes” (vg. os seus bens, as receitas, as despesas, as deduções e despesas), na consideração de que esta informação tem carácter reservado desde que a sua difusão evidencie a situação patrimonial ou contributiva do titular dos dados, assim se pretendendo salvaguardar a confiança depositada pelo contribuinte na Administração Fiscal e, ao mesmo tempo, tutelar a intimidade da vida privada.
Entendimento que posteriormente reiterou, designadamente na Deliberação n.º 62/96, de 14 de Novembro, e no Parecer n.º 5/98, de 28 de Maio, onde deixou explicado que nem toda a informação em poder da DGCI tem o mesmo grau de confidencialidade, havendo informação detida pela administração fiscal cuja natureza pública já resulta de outros institutos ou se destina, mesmo, a ser publicitada: será o caso do número fiscal, da qualidade de comerciante e dos dados constantes da matriz relativamente a imóveis.
Como também esclarecem CARLOS PAMPLONA CORTE-REAL, J. BACELAR GOUVEIA e J. CARDOSO DA COSTA, na obra citada e que acompanhamos nesta parte, «a ideia de “situação tributária” reflecte um grau relativamente significativo da repercussão dos dados fiscais eventualmente solicitados sobre a visualização e denúncia, parcelar que seja, da situação patrimonial do cidadão fiscalmente relevante, como expressão da sua confidencialidade contributiva. Quer isto dizer que não é tanto um dado fiscal isolado que preocupará o legislador quando impõe a confidencialidade fiscal, mas os dados fiscais que digam algo de forma mais ampla acerca da situação patrimonial dos contribuintes» (sublinhado nosso).
Daí decorre, desde logo, que os dados fiscais confidenciais não excluem o seu carácter económico, como se poderia antever de uma eventual conexão que se admitiu de tais dados com uma perspectiva, personalizada ou intimista do princípio da confidencialidade fiscal. Portanto, deve assentar-se que se tem em vista dados de natureza pessoal, sim, mas cujo teor possa retratar, de algum modo, a capacidade contributiva dos cidadão (sublinhado nosso).
(...) Há, pois, que fazer a conjugação do princípio da confidencialidade fiscal com a protecção legal dos dados ditos pessoais, buscando no recurso à noção de capacidade contributiva e de personificação dos dados o critério delimitador do objecto de sigilo fiscal. Deverá, entretanto, ressalvar-se, como é óbvio, os dados retidos pela Administração Fiscal que tenham natureza pública, porquanto a sua divulgação já decorre inclusive de outros institutos. Será o caso do número fiscal do contribuinte; ou de inscrição da qualidade de comerciante; ou de início ou de cessação de uma actividade económica; ou, como se viu, dos próprios elementos constantes da matriz relativamente aos imóveis, uma vez que a matriz tem uma função de tendencial publicitação (...).
Resumindo e concluindo: os dados fiscalmente trabalhados terão uma natureza plúrima: podem ter uma natureza pública, quando sejam livremente cognoscíveis por recurso a outras vias jurídico-institucionais (v.g. registo predial, civil, comercial, etc.); podem ser, diversamente, dados estritamente fiscais, mas de índole “neutra” em termos da expressão personalizada de uma situação tributária, como será o caso de todos os dados que se reportem a bens, actos ou factos, enquanto tais e porque objecto de incidência real ou de quaisquer obrigações acessórias de natureza tributária; por fim, a larga maioria dos dados fiscais terá um carácter, por regra, sigiloso porque e se reveladores de capacidade contributiva.».
Também a Procuradoria-Geral da República, através do seu Conselho Consultivo, emitiu parecer sobre o sentido e alcance do artigo 17.º, alínea d), do Código de Processo Tributário, combinando-o quer com o artigo 26.º, quer com o artigo 35.º, ambos da Constituição, por forma a habilitar a Administração Fiscal a responder às solicitações que lhe vão sendo efectuadas. De acordo com o seu Parecer n.º 20/94, de 9 de Fevereiro, “A intimidade da vida privada é um desses campos sensíveis, e a situação patrimonial insere-se no vasto campo da vida privada. Por conseguinte, os dados referentes à situação patrimonial de um indivíduo, que a Administração tenha recolhido para determinado fim, só podem ser revelados a terceiros – outros sectores da Administração – nos casos previstos na lei, para responder a um motivo social imperioso e na medida estritamente necessária, no justo equilíbrio entre o interesse que postula a revelação e a protecção da intimidade da vida privada”.
Nesta medida – prossegue o referido Parecer - encontram-se abrangidos pelo sigilo fiscal, integrando-se nos “dados relativos à situação tributária dos contribuintes (...), quaisquer informações, quaisquer elementos informatizados ou não, que reflictam de alguma forma a situação patrimonial dos sujeitos passivos da obrigação de imposto, sejam pessoas singulares ou colectivas, comerciantes e não comerciantes”. Não estarão, contudo, abrangidos pelo dever de sigilo os dados que tenham natureza pública, por serem livremente cognoscíveis por recurso a outras vias jurídico-institucionais, como sejam, os registos predial, comercial e civil.
Razão por que se concluiu, nesse Parecer, que a expressão “dados relativos à situação tributária dos contribuintes” abrange, na sua previsão, quaisquer informações ou elementos que reflictam de alguma forma a situação patrimonial dos sujeitos passivos da obrigação de imposto, sejam pessoas singulares, ou pessoas colectivas, comerciantes e não comerciantes; mas a confidencialidade fiscal protegida não abrangerá os dados que tenham natureza pública, por serem livremente cognoscíveis por recurso a outras vias.
Por conseguinte, e como também salientam CARLOS PAMPLONA CORTE-REAL, J. BACELAR GOUVEIA e J. CARDOSO DA COSTA, na obra citada, não é tanto um dado fiscal isolado que preocupará o legislador quando impõe a confidencialidade fiscal, mas os dados fiscais que digam algo de forma mais ampla acerca da situação patrimonial dos contribuintes. Os dados fiscais, de per se, terão uma índole “neutra” se não configurarem a expressão personalizada da situação tributária do contribuinte.
De todo o exposto decorre, em conclusão, que estão abrangidos pelo sigilo fiscal os dados de natureza pessoal dos contribuintes (pessoa singular ou colectiva) e os dados expressivos da sua situação tributária [como acontece com a existência ou não de débitos ou créditos fiscais, com o tipo, natureza e valor de rendimentos obtidos (do trabalho, lucros, rendas, juros, mais-valias, etc.), com o tipo e valor de bens e serviços produzidos e consumidos, com a estrutura económica e financeira das empresas e sectores de actividade, com o valor e modalidades de propriedade e riqueza (mobiliária e imobiliária), com as formas e montantes de poupança e respectivas aplicações, com os encargos e deduções, com os benefícios fiscais, com a existência de execuções fiscais, etc.], os quais só podem ser revelados a terceiros - outros sectores da Administração ou particulares - nos casos expressamente previstos na lei, para responder a um motivo social imperioso, e só na medida estritamente necessária para satisfazer o equilíbrio entre os interesses em jogo.
Poderão, contudo, ser revelados os dados pessoais livremente cognoscíveis (dados públicos ou dados pessoais constantes de documento público oficial, como acontece, por exemplo, com o número de identificação fiscal, com a identificação dos bens inscritos na matriz predial ou no registo predial e comercial) ou os dados que não reflictam nem denunciem minimamente a situação tributária do contribuinte – como acontece, por exemplo com a declaração de início e de cessação de actividade ou com outras obrigações acessórias que não revelem a sua capacidade contributiva.
Retornando ao caso vertente, verifica-se que a derrama é um imposto não estadual (pois o credor desse imposto não é o Estado em sentido estrito), inserindo-se na classificação de “impostos acessórios” que carecem de autonomia e acrescem aos impostos principais de que dependem Crf., entre outros, AMÉRICO FERNANDO BRÁS CARLOS, in Impostos (Teoria Geral), 3ª Edição, Almedina, 2006 e MANUEL HENRIQUES FREITAS PEREIRA, in Fiscalidade, Almedina, 2005., constituindo uma receita dos municípios. E por força da Lei das Finanças Locais (Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro), a derrama passou a ser uma percentagem até 1,5% do lucro tributável não isento de IRC, correspondendo à proporção do rendimento gerado na área do município (artigo 14.º), sendo, assim, os municípios os sujeitos activos da titularidade da receita proveniente da cobrança da derrama, desencadeada por deliberação da respectiva Assembleia Municipal.
Ora, consta do artigo 11.º da Lei das Finanças Locais, que «Os municípios dispõem de poderes tributários relativamente a impostos e outros tributos a cuja receita tenham direito, designadamente: a) Acesso à informação actualizada dos impostos municipais e da derrama, liquidados e cobrados, quando a liquidação e cobrança seja assegurada pelos serviços do Estado». E o n.º 6 do seu artigo 13.º estabelece que «A Direcção-Geral dos Impostos fornece à Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) informação, desagregada por municípios, relativa às relações financeiras entre o Estado e o conjunto dos municípios e fornece a cada município informação relativa à liquidação e cobrança de impostos municipais e transferências de receita para o município».
Deste modo, apesar de o artigo 64.º da Lei Geral Tributária consagrar o dever de sigilo fiscal, ele também estabelece que tal dever cessa nas circunstâncias previstas no seu n.º 2, designadamente no caso de «Cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes» - alínea b).
Existindo, assim, o apontado dever legal de cooperação entre a Administração e os Municípios no que toca à informação actualizada dos dados referentes à liquidação e cobrança de impostos municipais e à transferências dessas receitas para os municípios, tem de cessar, quanto a esses dados, o dever de confidencialidade fiscal, embora apenas na medida estritamente necessária para alcançar os objectivos visados com a norma que autoriza o acesso e impõe o dever de cooperação, tendo sempre em atenção a ponderação dos interesses em jogo.
Razão por que continuarão a ter carácter reservado ou confidencial todos os dados de natureza pessoal cuja divulgação, não sendo livremente cognoscível, não se mostre necessária para alcançar os objectivos visados pela norma que legitima o acesso dos Municípios àquela informação, bem como todos os dados cuja difusão, parcelar ou globalmente, evidencie a situação patrimonial ou capacidade contributiva das empresas sujeitas à liquidação e cobrança dos impostos municipais, sabido que essa norma de acesso não afasta expressamente do dever de confidencialidade fiscal a matéria relativa à situação tributária dos contribuintes.
No caso vertente, apesar de a Recorrente defender que o pedido formulado pela Entidade Requerente é vago e indeterminado, não lhe permitindo a exacta definição dos elementos pretendidos, o certo é que tal não se verifica. O pedido é, inquestionavelmente, o de obter informação sobre quem são os sujeitos passivos que no concelho de Vila Nova de Famalicão foram atingidos pela base de incidência tributária da derrama no exercício de 2009 e a quem foi liquidado o imposto em 2010. Isto é, pretende-se saber a identidade dos sujeitos passivos a quem foi liquidada a derrama, e não colher qualquer informação relativa à situação tributária ou capacidade contributiva destes contribuintes - designadamente quanto à sua matéria colectável, ao lucro tributável imputável à circunscrição do município ou ao rendimento gerado na respectiva área geográfica - ou qualquer informação sobre a cobrança do imposto, isto é, sobre o pagamento voluntário ou coercivo por parte desses contribuintes. Como se deixou dito na sentença recorrida, «não se pretende informação sobre o montante de imposto liquidado a cada sujeito passivo da derrama (isto é, o montante global desta receita desagregado por sujeito passivo), menos ainda, sobre os elementos que serviram de base à liquidação ou quem pagou, voluntaria ou coercivamente ou é devedor».
De qualquer modo, podendo a Entidade Requerida definir o maior ou menor alcance informativo dos dados a revelar, não pode utilizar este argumento para justificar a recusa de prestar qualquer informação à Entidade Requerente.
E esse dever legal de cooperação entre a Administração e os Municípios no que toca à informação actualizada dos dados referentes à liquidação e cobrança da Derrama e à transferência dessa receita para os Municípios, autoriza, na nossa perspectiva, a identificação fiscal, ainda que em bloco, das pessoas colectivas/sujeitos passivos a quem foram liquidados esses tributos, uma vez que esse dado tem uma índole “neutra”, não configurando uma expressão personalizada da respectiva situação patrimonial e tributária.
Como acima se deixou dito, não é um dado fiscal isolado que preocupa o legislador quando impõe a confidencialidade fiscal, mas sim os dados fiscais de natureza pessoal que digam algo acerca da situação patrimonial das pessoas colectivas. Ora, sendo inquestionável que os Municípios têm direito de obter «informação relativa à liquidação e cobrança de impostos municipais e transferências de receita para o município», não será a identificação das pessoas a quem foram efectuadas as liquidações, sem discriminação do montante liquidado e cobrado a cada uma, que irá revelar a situação patrimonial e tributária de cada uma delas.
Esta identificação em bloco, pelo nome e/ou número de identificação fiscal, sem individualização ou particularização do montante liquidado e cobrado a cada um dos sujeitos passivos, encontra-se claramente fora da esfera da confidencialidade fiscal, não se descortinando nenhum motivo válido para a recusa dessa informação ao Município de Vila Nova de Famalicão.
Neste enquadramento, somos levados a concluir que o tribunal de 1ª instância, ao decidir nos termos supra expostos, procedeu a uma correcta interpretação da norma legal contida no artigo 64.° da Lei Geral Tributária, improcedendo todas as conclusões da alegação do recurso.
4. Por todo o exposto, acordam os Juízes desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso jurisdicional e confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Lisboa, 16 de Novembro de 2011.- Dulce Manuel Neto (relatora) – Lino Ribeiro -Valente Torrão.