Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0989/07
Data do Acordão:05/21/2008
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:JORGE DE SOUSA
Descritores:PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
MATERNIDADE
GRAVIDEZ
PROTECÇÃO
PARECER PRÉVIO
OMISSÃO
AUTONOMIA DO PROCESSO DISCIPLINAR
EFEITOS DA ABSOLVIÇÃO PENAL
PENA DE DEMISSÃO
INVIABILIZAÇÃO DA RELAÇÃO FUNCIONAL
Sumário:I - A obrigatoriedade do parecer prévio previsto no n.º 1 do art.º 24.º da Lei 4/84, de 5 de Abril, na redacção e renumeração que constam da Lei n.º 142/00, de 31 de Agosto, (art.º 18.º -A, na redacção dada pela Lei n.º 17/95, de 9 de Junho) é aplicável, a partir da entrada em vigor daquela redacção, a todas as situações de cessação de relações de emprego público em que estejam em causa trabalhadoras grávidas, puérperas ou lactantes (n.º 9 do mesmo artigo), designadamente a aplicação de penas expulsivas (art.º 28.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro).
II - As normas referidas não careciam de regulamentação, sendo aplicáveis imediatamente, após a entrada em vigor da nova redacção, a todos os processos pendentes que culminassem com a cessação da relação de emprego público.
III - A aplicação de uma pena de demissão a uma trabalhadora que se encontrava na situação de puérpera, definida no art.º 2.º, alínea b), da mesma Lei, sem prévia obtenção do parecer referido, implica nulidade do acto punitivo.
IV - A absolvição em processo criminal não impede que a mesma conduta seja dada como demonstrada em procedimento disciplinar.
V - A pena de demissão não é desproporcionada num caso de apropriação reiterada de dinheiros públicos, perdurando por um período de tempo considerável (cerca de um ano e meio), sem demonstração de qualquer circunstância exógena que explique a prática da infracção, situação em que é afectada indelevelmente a confiança que tem de merecer quem exerce funções no âmbito das quais tem em seu poder dinheiros públicos com o fim de lhes dar um determinado destino.
VI - Numa situação deste tipo é inviável a manutenção da relação funcional, o que justifica a aplicação de uma pena expulsiva, sendo a de demissão a adequada, por ser a especialmente prevista para casos deste tipo no art.º 26.º, n.º 4, alínea d), do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo DL n.º 24/84, de 16 de Janeiro.
Nº Convencional:JSTA00065054
Nº do Documento:SA1200805210989
Data de Entrada:11/19/2007
Recorrente:A...
Recorrido 1:SE DO AMBIENTE E RECURSOS NATURAIS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC TCA.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - FUNÇÃO PUBL / DISCIPLINAR.
DIR ADM CONT - ACTO.
Legislação Nacional:L 4/84 DE 1984/04/05 ART18-A ART2 B ART24 ART33.
L 17/95 DE 1995/06/09.
L 142/99 DE 1999/08/31 ART3 N2.
DL 427/89 DE 1989/12/07 ART28 N1.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC47555 DE 2007/02/13.; AC STAPLENO PROC42203 DE 2005/12/06.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1 – A... interpôs no Tribunal Central Administrativo recurso contencioso de anulação do despacho do Senhor Secretário de Estado do Ordenamento do Território e Conservação da Natureza, de 8-6-2000, que lhe aplicou a pena de demissão.
Inconformada, a Recorrente interpôs o presente recurso para este Supremo Tribunal Administrativo, apresentando alegações com as seguintes conclusões:
1) À data da instauração do procedimento disciplinar já estava em vigor a Lei 142/99 de 31/10, que alterou a Lei n.º 4/84.
2) Cujo art.º 18º -A prevê a obrigatoriedade da entidade patronal solicitar parecer prévio a entidade competente antes de proceder ao despedimento da trabalhadora, sob pena de nulidade do procedimento.
3) Nos termos do n.º 9.º dessa disposição, este regime é aplicável à função pública.
4) Essa lei, e nesta parte, não carece de execução, sendo imediatamente aplicável com a sua entrada em vigor.
5) Na medida em que já existia essa entidade competente – CITE – que já elaborava esses pareceres.
6) O Estado, enquanto a principal e maior entidade empregadora, está, mais do que ninguém, obrigada a cumprir a lei.
7) Actualmente esta aplicabilidade à função pública mantém-se, como não poderia deixar de o ser – art.º 5.º da Lei 9/2003 que aprovou o Código de Trabalho e art.º 51.º deste Código.
8) Sob pena de violação das Directivas Comunitárias sobre a matéria e da Constituição da República Portuguesa.
9) Com efeito, o entendimento vertido no douto acórdão é, salvo devido respeito, ilegal e inconstitucional.
10) O acto administrativo impugnado é nulo, por violação das supra referidas normas, porque o é o procedimento em que o mesmo culmina.
11) Sem conceder, a conduta da recorrente não é subsumível ao disposto no art.º 26.º do ED.
12) Tendo havido uma grosseira apreciação das provas.
13) E um manifesto erro na aplicação da sanção de demissão, claramente injusta e desproporcional.
14) O Tribunal concluiu existir dolo e consciência por parte da arguida sem base factual para tal.
15) Sendo certo que a entidade administrativa não provou, como lhe competia (na pessoa do titular da instrução do processo) factos consubstanciadores da intenção de apropriação e uso em proveito próprio dos dinheiros públicos.
16) Não obstante haver autonomia entre processos-crime e processos disciplinares, exige-se que, perante os mesmíssimos factos e com a produção de semelhante prova documental e testemunhal, haja semelhante rigor e isenção na sua apreciação.
17) Mal se compreendendo que só neste último, e para se alcançar o desiderato da demissão, se tenha concluído, sem mais, por aqueles elementos intencionais.
18) A recorrente foi desorganizada no seu serviço, por sua culpa, dos seus colegas e da própria entidade administrativa.
19) Admitindo ter-lhe faltado zelo durante um período concreto e determinado da sua relação laboral
20) A pena de demissão é excessiva e grosseiramente desproporcional, ilegal e injusta.
21) Podendo e devendo os Tribunais sindicar estas actuações, sob pena de se coarctarem totalmente os direitos dos administrados perante as arbitrariedades e discriminações da Administração Pública.
22) O Tribunal recorrido violou o disposto no art.º 26.º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários da Administração Pública, o art.º 127.º do CPP, os artºs. 18.º -A da Lei 75/95 e da Lei 142/99 (esta por omissão), os artºs. 51.º do C. Trabalho e art.º 5.º da Lei 99/2003 de 27/08, os arºs. 13.º, 58.º n.º 1 b) e n.º 2 c) e 68.º da Constituição Portuguesa e as Directivas n.º s 75/117/CEE de 10 de Fevereiro e n.º 76/207/CEE de 9 de Fevereiro, 92/85/CEE de 19 Outubro.
Termos em que
Revogando-se o douto acórdão recorrido e proferindo-se outro que decida pela nulidade/anulação do despacho impugnado com fundamento em violação da lei, farão V.Exas JUSTIÇA!!!!!!!!!!!!
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer nos seguintes termos:
1. A recorrente imputa ao douto acórdão recorrido erro de julgamento em matéria de improcedência do alegado vício de violação das normas legais relativas à protecção da maternidade na demissão de funcionária pública grávida – cfr fls 205, 3-b) – por ofensa do art.º 18-A da Lei n.º 4/84, de 5 de Abril, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/95, de 9 de Junho, pelo DL n.º 332/95, de 23 de Dezembro e pela Lei n.º 142/99 de 31 de Agosto – cfr. 101v, alínea c).
Alega, em síntese, que à data da instauração do procedimento disciplinar (8/10/99), já estava em vigor esta última lei, sendo imediatamente aplicável às relações públicas de emprego, com as necessárias adaptações, nos termos do seu n.º 9, o disposto no referido art.° 18v-A, que “prevê a obrigatoriedade da entidade patronal solicitar parecer prévio à entidade competente antes de proceder ao despedimento da trabalhadora, sob pena de nulidade do procedimento” – cfr. fls. 211 – 1), 2) e 3).
Censura, em consequência, o entendimento perfilhado pelo acórdão em apreço, no sentido de considerar este normativo apenas aplicável às trabalhadoras sujeitas ao contrato individual trabalho e não às que mantinham com a Administração uma relação jurídica de emprego público, como a recorrente.
Independentemente da análise da pertinência da interpretação sustentada pela recorrente em contrário, o certo é que, ainda nessa perspectiva, necessariamente improcederá o alegado vício de violação de lei, por preterição do parecer prévio obrigatório da entidade com competência na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, nos termos do referido artigo, na redacção dada pela Lei n.º 142/99, de 31 de Agosto.
De acordo com o mesmo preceito, este parecer constitui apenas um pressuposto obrigatório do acto extintivo da relação de emprego e não também um pressuposto da instauração do procedimento conducente à sua prática, importando a sua preterição a nulidade daquele acto.
Por outro lado, tal pressuposto impõe-se relativamente a trabalhadora grávida, puérpera ou lactante, no sentido que a estes conceitos é dado pelo art.º 2 da Lei n.º 4/84, de 31 de Agosto, redacção da Lei n.º 142/99, de 31 de Agosto.
Ora, não resulta dos autos que, à data da prática do acto punitivo de demissão (8/6/2000), a recorrente se encontrasse em qualquer uma destas situações: é inequívoco que ela não estava já grávida, face aos factos articulados nos art.°s 15, 16 e 17 da petição inicial, e dos autos não resulta também que ela tenha feito prova, como lhe incumbia, da sua qualidade de “trabalhadora lactante” ou de “trabalhadora puérpera” perante a entidade competente, por escrito e mediante atestado médico, nos termos do art.° 2, alíneas c) e b) da referida lei.
Improcederá pois, nesta parte, o recurso.
2. A recorrente imputa ainda ao douto acórdão recorrido erro de julgamento sobre a improcedência do vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto, com fundamento em grosseira apreciação das provas e em manifesto erro de aplicação da pena disciplinar de demissão.
Invoca, para tanto, em defesa do primeiro aspecto, a sentença penal absolutória proferida no processo crime que lhe foi movido por factos idênticos, com base na falta de prova de apropriação dolosa, em proveito próprio, das quantias em dinheiro relativas a receitas do B..., não depositadas, pelas quais era responsável.
Conforme constitui jurisprudência pacífica, a sentença penal absolutória, baseada na falta de prova dos factos imputados ao arguido, não prejudica, em princípio, a censura feita, com base em idênticos factos que se provaram em processo disciplinar considerando a autonomia do processo disciplinar face ao processo penal, a qual assenta na diversidade de pressupostos da responsabilidade criminal e disciplinar bem como na diferente natureza e finalidade das penas aplicáveis nesses processos – cfr., entre outros, os acórdãos deste STA, de 6/3/07, rec. 219/05-Pleno; de 6/12/05, rec. 042203- Pleno; de 22/02/06, rec. 0219/05; de 21/4/05, rec. 0142/05; de 112 04, rec. 042203 e de 1/4/03, rec. 1228/02
Ora, a recorrente não concretiza minimamente a alegada grosseira apreciação das provas em processo disciplinar contra a livre convicção da autoridade recorrida fundada nos elementos do processo, segundo as regras da experiência. E como bem se decidiu no douto acórdão em apreço, tais elementos constituem, nesta óptica, suficiente suporte probatório que permite considerar que a recorrente, a quem incumbia a venda de publicações, o recebimento das receitas e o seu depósito regular (semanal) na conta do ICN da CGD, não procedeu ao depósito de todas as quantias arrecadadas no B... de ..., no montante total de Esc. 271.097$00, durante o período compreendido entre 1 de Janeiro de 1998 a Junho de 1999, bem sabendo que o dinheiro ao seu alcance não lhe pertencia, e dele se usando como de coisa própria se tratasse – cfr. fls. 164.
Consequentemente, não se vislumbra também que a pena aplicada seja ilegal e manifestamente desproporcional e injusta: a gravidade objectiva dos factos praticados e a falta de idoneidade da recorrente para o exercício das suas funções, atentas as circunstâncias da respectiva prática e a natureza de tais factos, que fundaram o juízo da autoridade recorrida de inviabilidade da manutenção da relação funcional da arguida, excluem seguramente a pertinência de tal alegação, como também o entendeu o acórdão recorrido.
3. Improcedendo todas as conclusões das alegações da recorrente, deverá, em nosso parecer, ser negado provimento ao recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – No acórdão recorrido deu-se como assente a seguinte matéria de facto:
I. A recorrente é funcionária do quadro do Instituto da Conservação da Natureza, desde 30-10-98, exercendo funções, à data dos factos, no Centro de Informação da Delegação de ... do B..., doravante designado “B... – ...”, onde trabalha desde 1-1-90, em regime de aquisição de serviços.
II. Na sequência de denúncia efectuada em 30-7-99 por uma funcionária do “B... – ...”, e da averiguação interna que a ela se seguiu, onde se detectaram várias irregularidades na Contabilidade e Tesouraria do Centro de Informação do “B... – ...”, o Presidente da Comissão Directiva daquele Parque, por despacho de 8-10-99, determinou a instauração de processo disciplinar contra a recorrente e nomeou o respectivo instrutor [cfr. fls. 4 do Volume 1 do processo instrutor apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].
III. Em 18-11-99, foi deduzida contra a recorrente a acusação de fls. 116 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzida, e na qual se lhe imputa a violação consciente, grave, repetida e culposa dos deveres de isenção, zelo, obediência e lealdade.
IV. Por despacho datado de 19-11-99, o instrutor do processo disciplinar propôs ao Presidente do Instituto da Conservação da Natureza [INC] que a recorrente fosse preventivamente suspensa do exercício das suas funções até à prolação de decisão nos autos [cfr. fls. 151 do Volume 1 do processo instrutor apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].
V. Sob a Informação do Presidente do INC com o n.º 94/99ASS.PTI, de 30-11-99 [cfr. fls. 187/188 do Volume ido processo instrutor apenso], que anuiu integralmente com o proposto em iv., foi exarado em 12-1-2000, pelo Secretário de Estado do Ordenamento do Território o seguinte despacho:
“Concordo, nos termos propostos e sem prejuízo do limite legal do período de suspensão -
VI. Face à acusação referida em III, a recorrente elaborou a sua defesa, conforme consta de fls. 155 a 160 do processo instrutor apenso, cujo teor se dá aqui por reproduzido, requerendo a audição de 7 (sete) testemunhas, sendo uma delas o próprio instrutor do processo, o qual veio a declarar-se impedido de prestar declarações por despacho fundamentado, datado de 17-12-99 [cfr. fls. 161 do Volume 1 do processo instrutor apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].
VII. Ouvidas que foram as restantes testemunhas em 10-2-2000, o instrutor elaborou o relatório final, com o seguinte teor:
“/.../
– Elementos probatórios
Com base no Auto de Denúncia e na Informação n.º 568/99 sobre o movimento de receitas do B..., elaborado pelo funcionário C..., responsável pela Contabilidade e Tesouraria, onde foram detectadas irregularidades várias [fls. 1 a 3], procedi à inquirição de vários funcionários deste Serviço, os quais depuseram perante mim, nas instalações de ..., a 15 e 19 de Outubro [fls. 8 a 11 e 25 a 29].
No decurso da instrução e por minha solicitação, foram-me entregues pela funcionária DR.ª D..., depois de os pedir à Arguida por minha ordem, vários documentos relativos às vendas efectuadas, referentes a 1998 e 1999 [fls. 12 a 24].
Foram-me também entregues pelo funcionário C..., na data do seu depoimento, vários documentos contabilísticos e de depósitos efectuados [fls. 30 a 68].
No âmbito da inquirição deste, a Arguida entregou ao mesmo funcionário, por minha ordem, 3 livros de cobrança de receitas que estavam na sua posse tem anexo ao processo, além de um outro que se encontrava em uso e que lhe foi devolvido.
Nos termos do n.º 2 do artigo 55.º do referido Estatuto, decidi por oportuno nesta fase proceder á audição da Arguida, o que ocorreu a 26 de Outubro, na presença de Mandatário por ela constituído [fls. 70 a 72].
A requerimento da mesma, foi-lhe concedido o prazo de 12 dias para proceder à reunião de toda a documentação de que dispunha, tendo entregue a 8 de Novembro, 61 documentos, sendo 58 relativos a despesas diversas e 3 a depósitos efectuados na Caixa Geral de Depósitos [fls. 768 135].
Procedi à análise contabilística dos documentos de receitas e despesas apresentados pela Arguida e pelos referidos funcionários.
Elaborada a Acusação a 18 de Novembro [fls. 144 a 149], notifiquei pessoalmente a Arguida da mesma, a 19 do mesmo mês [fls. 150].
Regista-se que a Arguida teve direito de consulta do processo que exerceu, conforme consta do mesmo [fls. 153].
Dentro do prazo concedido para a Defesa, a Arguida apresentou-a por escrito a 14 de Dezembro, tendo arrolado várias testemunhas [fls. 1558 150].
Designada data para inquirição das mesmas, iniciou-se esta nas instalações do B... em ... a 7 de Janeiro do corrente ano, tendo prosseguido e sido finalizada a 10 do mesmo mês [fls 173 a 181].
A requerimento ainda da Defesa, foi solicitada a apresentação do duplicado do talão de receita n.º 21335, o que lhe foi deferido, tendo sido por mim pessoalmente constatada a sua inexistência em deslocação ao ICN [fls. 182].
Como nessa mesma ocasião verifiquei a inexistência de vários outros duplicados, requeri à Direcção dos Serviços Administrativos e Financeiros, através da Presidência do ICN, um apuramento de todos os duplicados dos talões referentes ao período entre Janeiro de 1998 e Junho de 1999, por despacho fundamentado de 19 de Janeiro [fls. 184].
Do resultado dessas diligências complementares foi a Arguida ouvida no âmbito da garantia do seu direito de defesa, tendo-a entregue por escrito a 3 de Fevereiro, acompanhada de 89 duplicados de talões de receita, que até aí esta vem na sua posse [fls. 202 a 291].
Realça-se que um desses duplicados é o n.º 21335, o mesmo que a Arguida pediu anteriormente a sua apresentação pelo ICN.
Não foi arguida nesta fase qualquer nulidade ou irregularidade.
II – Factos provados
De toda a prova recolhida, documental e testemunhal, no decurso da Instrução, e da própria audição da Arguida, resultaram provados os seguintes factos com relevância para este processo, e que passam a constar do RELATÓRIO FINAL:
1.º A Arguida trabalha no B... desde 1 de Janeiro de 1990, em regime de aquisição de serviço, tendo sido integrada no quadro do ICN a 30 de Outubro de 1998.
2.º Tem actualmente a categoria profissional de Assistente Administrativa, cabendo-lhe, entre outras, as funções de venda de publicações e materiais de divulgação do B..., com o consequente depósito das receitas, assim como a realização de pagamentos diversos de valor reduzido, como sejam taxas municipais de água e saneamento, fotocópias, portes de correio e outras.
3.º A quando da substituição temporária da Arguida por curtos períodos ou por situação de férias, as colegas de trabalho procediam a tais tarefas, entregando-lhe o dinheiro se os ditos períodos fossem curtos, ou procedendo ao seu depósito se a substituição ocorresse no período de férias.
4.º Verifica-se por parte da Arguida a omissão de actividades várias no preenchimento dos talões de receita, designadamente 3 talões sem rubrica, com os números 21139, 21492 e 21494; um talão em branco, com o n.º 21335; e 33 talões sem data, com os números 21139, 21145, 21302 21303, 21318 a 21320, 21323, 21328 a 21333, 21337 a 21346, 21466, 21467, 21469, 21470, 21490 e 21493 a 21496.
5.º A gaveta da secretária onde a Arguida trabalhava e guardava o dinheiro estava sempre fechada à chave, ficando esta na posse dela.
6.º Nos períodos de ausência prolongada da Arguida por motivo de férias, os depósitos foram sempre regularmente realizados pelas suas colegas de trabalho.
7.º Ao invés, no período compreendido entre Janeiro de 1998 e Junho de 1999, a Arguida, em efectividade de funções, não procedeu a depósitos regulares.
Com efeito,
8.º Tendo havido receitas que, de acordo com os documentos disponíveis, se cifram em Esc. 529.049$00, apenas foram depositados Esc. 157.966$00, não apresentando a Arguida justificação total para tal facto.
Com efeito,
9.º A Arguida apenas justificou despesas do B... no valor de Esc. 99.986$00, sendo Esc. 95.658$00 referentes a gastos diversos e Esc. 4.328$00 de inspecção de uma viatura, dinheiro este que adiantou e não lhe foi efectivamente devolvido, no primeiro caso por não ter apresentado os respectivos documentos de despesa e no segundo por o não ter reclamado.
10.º Alguns dos pagamentos referidos no artigo anterior, designadamente referentes a taxas municipais de água e saneamento, foram em parte efectuados já com taxas de relaxe e juros de mora, sendo que onze deles foram liquidados todos a 28 de Junho de 1999.
11.º Por tais pagamentos atempados era a Arguida responsável no normal exercício das suas funções.
12.º Apurou-se ainda a existência do valor de Esc. 57.883$00 a título de receita, que foi depositado pela Arguida sem qualquer registo em termos de vendas realizadas, o que lhe incumbia.
13.º Do valor acima referido constam quinze cheques, referentes a 1998 e 1999, que foram depositados pela Arguida somente a 28 de Junho de 1999, a mesma data em que, de acordo com o artigo 10 efectuou diversos pagamentos em atraso.
14.º Verifica-se não haver no ICN nenhum duplicado de todos os talões cujas receitas não foram objecto de depósito pela Arguida, para o período compreendido entre Janeiro de 1998 e Junho de 1999, num total de 97 documentos [fls. 138 a 140 e 197 a 198].
15.º Estes duplicados eram de envio obrigatório pela Arguida para a contabilidade em ..., de onde eram remetidos para o /CFV, constatando-se que aquela não os enviou. Com efeito,
16.º A Arguida entregou apenas a 3 de Fevereiro, e após o meu Despacho de 28 de Janeiro [fls. 200], 89 duplicados de talões de receita que até esta data reteve na sua posse sem qualquer justificação razoável
17.º De igual modo, a Arguida não depositou a receita correspondente.
18.º A Arguida dispôs-se a repor as quantias em falta, mas não confessou os factos, nem mostrou qualquer arrependimento.
19.º Embora reconhecendo algumas falhas não relevantes, tentou defender-se imputando injustamente responsabilidades a colegas de trabalho, como resulta da própria Defesa.
20.º Não justificou como era seu dever, o destino do dinheiro público em falta.
21.º A Arguida é casada, tem duas filhas menores e está grávida de um terceiro.
III – Factos não provados
Todos os outros constantes da Acusação e da Defesa.
IV – Suspensão preventiva
Foi por mim enquanto instrutor solicitada a suspensão preventiva da Arguida, a qual foi decidida favoravelmente por despacho de 12 de Janeiro de 2000 do Senhor Secretário de Estado do Ordenamento do Território da Conservação da Natureza.
V – Pena proposta
Face aos factos apurados, resulta provada a matéria de facto relevante
As funções da Arguida são predominantemente relacionadas com movimentação de dinheiros públicos.
Exige-se assim um comportamento laboral diligente, zeloso, com procedimento regular e documentalmente suportado para aqueles fins específicos.
O facto da Arguida não ter procedido a depósitos de receitas apuradas como realizadas e não ter justificado a sua não existência, sabendo que tal era da sua responsabilidade, traduz-se num comportamento gravemente culposo, tanto mais que igualmente não constam daquelas receitas os respectivos duplicados no ICN.
A quase totalidade desses duplicados foi retida indevidamente pela Arguida até à fase final da Instrução, só os apresentando após diligências complementares promovidas por mim na qualidade de Instrutor. Verifica-se ainda, injustificadamente, a falta de oito duplicados.
A quantia que a mesma reputa de insignificante e que se encontra em falta, no valor de Esc. 271.097$00, é correspondente a um período prolongado, como se refere acima, pelo que ao invés do que a mesma afirma, tal quantitativo é relevante para o deteriorar irremediável da relação de confiança que se exige em qualquer relação laboral e que deve ser reforçada num funcionário público.
Como qualquer funcionário, a Arguida conhecia e devia conhecer as normas e orientações hierárquicas superiores e acatá-las com rigor.
Anote-se por relevante que não obstante ter completado 10 anos de serviço, só é funcionária pública há pouco mais de 2 anos, altura em que foi integrada no quadro do ICN, pelo que não beneficia dessa atenuante especial, bem como de nenhuma outra.
Pelo contrário, há circunstâncias agravantes especiais, tais como a premeditação – dada a repetição prolongada e repetida – e a acumulação de infracções, tal como se refere nas alíneas c) e g) do n.º 1 do artigo 31.º do referido Estatuto.
Foram violados pela Arguida os deveres de isenção, zelo, obediência e lealdade referidos nas alíneas a), b), c) e d) do artigo 30 do mesmo Estatuto, tendo a mesma agido voluntariamente, com consciência da ilicitude da sua conduta e com o propósito conseguido de retirar vantagens directas da mesma, sendo-lhe aquela imputável a título doloso.
De facto, a Acusação provou os factos imputados à Arguida dentro do ónus de prova que lhe competia, sendo certo que àquela cabia provar que o dinheiro em falta não foi utilizado em proveito próprio, tanto assim que foi apurado que os depósitos a ela competiam e não foram realizados.
Pelo que tudo indica o dito proveito próprio, que a Arguida refutou mas não provou e antes confirmou ao disponibilizar-se para repor «o valor que se apurar estar em falta».
Tal quantitativo em falta, por questões de evidência notória, é lesivo dos interesses do ICN, como qualquer valor que a ele se destine, pelo que ainda mais agrava o facto da Arguida considerar tal verba como não significativa.
A Arguida conhecia e devia conhecer as regras que lhe exigiam o depósito regular das receitas, os pagamentos atempados das despesas e a elaboração devida da documentação referente a esses movimentos.
Não o fazendo, violou também o dever de obediência e ainda o de lealdade, este por não desempenhar as suas funções na perspectiva da prossecução do interesse público.
O comportamento da Arguida é grave, reiterado – de Janeiro de 1998 até Junho de 1999 – e culposo, propondo-se como adequada a pena de demissão com cessação do vínculo funcional, dado que todas as outras legalmente previstas se consideram desajustadas umas e insuficientes as outras, face à conduta da Arguida.
Com efeito, estamos perante um caso nítido de subsunção ao princípio geral de inviabilidade de manutenção da relação funcional com a falta de competência profissional e até de idoneidade para o exercício das funções.
Não se trata aqui da não prestação de contas nos prazos legais a que se refere a alínea b) do n.º 2 do artigo 25.º do referido Estatuto, mas sim de alcance e desvio de dinheiros públicos a que se refere a alínea d) do n.º 4 do artigo 26.º do mesmo diploma legal.Concluindo, propõe-se:
A) Que seja ordenada a reposição pela Arguida do valor em falta de Esc. 271.097$00, por depósito na conta do ICN.
B) A aplicação à Arguida da pena de demissão prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 11, n.º 8 do artigo 12, n.º 4 do artigo 26.º do referido Estatuto.
Este relatório final, conjuntamente com todo o processo, á remetido no prazo de 24 horas para o Presidente da Comissão Directiva do B...” [cfr. fls. 292 a 302 do processo instrutor apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].
VII. Em 11-2-2000, o processo disciplinar foi remetido ao Presidente do Instituto da Conservação da Natureza.
IX. A coberto da Informação n.º 19/00-ASS-PR, de 22-2-2000, o Presidente do INC remeteu o relatório e o processo disciplinar para o membro do Governo com competência para aplicar a pena de demissão proposta [cfr. fls. 2 e 3 do Volume 3 do processo instrutor apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].
X. Em 23-5-2000, o Núcleo de Apoio ao Auditor Jurídico do, então, Ministério do Ordenamento do Território, emitiu parecer de anuência ao proposto no relatório final do processo disciplinar [cfr. fls. 37/45 dos autos – Informação n.º 49NAAJ/00, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].
XI. Sobre a Informação mencionada em ix., o Secretário de Estado do Ordenamento do Território e da Conservação da Natureza, proferiu em 8-6-2000, o seguinte despacho:
“Concordo e determino a aplicação do proposto no relatório final do processo disciplinar.
Ao ICN para notificar a interessada e dar cumprimento ao disposto no artigo 8.º do Estatuto Disciplinar” [Idem].
XII. Na sequência da participação indicada x. e do processo crime que se lhe seguiu foi a recorrente pronunciada pelo crime de peculato, sob a forma continuada, vindo a ser absolvida em 1ª instância, por acórdão do Tribunal de Circulo Judicial de ..., de 19-10-2005, ainda não transitado, por dele ter o Ministério Público interposto recurso em 8-11-2005 (cfr. fls. 125/138 e 140].
XIII. Em 10-7-2000, a recorrente depositou à ordem do Instituto de Conservação da Natureza a quantia de Esc. 271.097$00 (duzentos e setenta e um mil e noventa e sete escudos – cfr. fls. 47 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
3 – A arguida foi condenada na pena disciplinar de demissão.
A primeira questão colocada no seu recurso jurisdicional é a de o acto impugnado ser nulo, por a Recorrente se encontrar grávida quando foi instaurado o processo disciplinar e correram os seus trâmites.
No seu douto parecer, o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público defende que não resulta dos autos que, na data em que foi praticado o acto punitivo a Recorrente se encontrasse nas situações de «grávida, puérpera ou lactante, no sentido que a estes conceitos é dado pelo art.º 2.º da Lei n.º 4/84, de 31 de Agosto, redacção da Lei n.º 142/99, de 31 de Agosto».
A Recorrente teve um filho em 13-3-2000, como se comprova pelos documentos de fls. 46 (juntos com petição de recurso) e de fls. 258 e 259 (juntos com a resposta ao parecer do Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público) que não foram impugnados.
Por outro lado, tendo a Recorrente estado de baixa por parto, com internamento hospitalar, como se demonstra pelos documentos de fls. 258 e 259, é de presumir, naturalmente, com base nas regras da vida e da experiência comum, que tenha usufruído de licença de maternidade e tenha sido efectuada a respectiva prova perante a entidade empregadora, já que seria dificilmente concebível, por ser absolutamente anormal, que pudesse não ter gozado de tal licença, nem feito a respectiva prova documental.
Assim, é de concluir que o nascimento daquele filho foi do conhecimento da entidade empregadora e feita a prova documental perante a entidade empregadora.
Para além disso, a Recorrente afirma no art.º 17.º da petição de recurso que, na data em que foi proferida decisão se encontrava a amamentar o seu filho e que tal facto era do conhecimento dos serviços do Instituto da Conservação da Natureza, designadamente a Comissão Directiva do B..., e a veracidade de tal facto não é contestada, pelo que, estando provado o parto e sendo a situação referida normal, é de dar como provado o afirmado.
Assim, ao abrigo do disposto no art.º 712.º, n.º 1, alínea a), do CPC, adita-se a seguinte matéria de facto;
XIV. Em 13-3-2000, nasceu E..., filho da Recorrente.
XV. Na sequência do nascimento e, pelo menos, até 8-6-2000 a Recorrente esteve a amamentar o seu filho referido em XIV.
XVI. A Comissão Directiva do B... teve conhecimento do nascimento referido em XIV e da situação referida em XV.
4 – A primeira questão colocada no presente recurso jurisdicional é a de a decisão dever ser precedida de parecer prévio, nos termos do art.º 18.º-A da Lei n.º 4/84, de 5 de Abril (introduzido pela Lei n.º 17/95, de 9 de Junho), na redacção dada pela Lei n.º. 142/99, de 31 de Agosto.
Esta nova redacção do art.º 18.º-A aplica-se aos processos iniciados depois da sua entrada em vigor (art.º 3.º, n.º 2, da Lei n.º 142/99)
O processo disciplinar em causa foi iniciado na sequência de despacho proferido em 8-10-1999 (ponto ii. da matéria de facto fixada) depois da entrada em vigor da Lei n.º 142/99.
Este art.º 24.º estabelece o seguinte:
Artigo 24.º
Protecção de despedimento
1 – A cessação do contrato de trabalho de trabalhadoras grávidas, puérperas ou lactantes, promovida pela entidade empregadora, carece sempre de parecer prévio da entidade que, no âmbito do Ministério do Trabalho e da Solidariedade, tenha competência na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres.
2 – O despedimento de trabalhadoras grávidas, puérperas ou lactantes presume-se feito sem justa causa.
3 – O parecer referido no n.º 1 deve ser comunicado à entidade empregadora e à trabalhadora nos 30 dias subsequentes à recepção do processo de despedimento pela entidade competente.
4 – Se o parecer referido no n.º 1 for desfavorável ao despedimento, este só pode ser efectuado após decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo.
5 – É nulo o despedimento de trabalhadora grávida, puérpera ou lactante caso não tenha sido solicitado o parecer referido no n.º 1, cabendo o ónus da prova deste facto à entidade empregadora.
6 – A suspensão judicial do despedimento de trabalhadora grávida, puérpera ou lactante só não será decretada se o parecer referido no n.º 1 for favorável e o tribunal considerar que existe probabilidade séria de verificação do motivo justificativo.
7 – Sendo decretada a suspensão judicial do despedimento de trabalhadora grávida, puérpera ou lactante, se a entidade empregadora não pagar a retribuição devida é aplicável o disposto no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 69-A/87, de 9 de Fevereiro.
8 – Se o despedimento de trabalhadora grávida, puérpera ou lactante for considerado inválido, esta tem direito, em alternativa à reintegração, a uma indemnização em dobro da prevista na lei geral ou em convenção colectiva aplicável, sem prejuízo, em qualquer caso, de indemnização por danos não patrimoniais.
9 – O disposto nos números anteriores aplica-se, com as necessárias adaptações, no âmbito das relações públicas de emprego.
De harmonia com a alínea b) do art.º 2.º da Lei n.º 4/84, na redacção dada pela Lei n.º 142/99, considera-se «Trabalhadora puérpera» toda a trabalhadora parturiente, e durante os 98 dias imediatamente posteriores ao parto, que informe o empregador do seu estado, por escrito e mediante apresentação de atestado médico».
No caso em apreço, constata-se que a decisão punitiva foi proferida em 8-6-2000, dentro do período de 98 dias posterior ao nascimento referido naquela alínea b) do art.º 2.º da Lei n.º 4/84, pelo que tem de se entender que a Recorrente se encontrava na situação prevista na referida alínea b).
Como se vê pelo n.º 9 do transcrito art.º 24.º, a exigência de parecer prévio que se faz no seu n.º 1, é aplicável no âmbito das relações públicas de emprego.
Visando-se neste art.º 24.º a cessação da relação laboral por despedimento, a adaptação evidente desta disposição às relações de emprego público, conduz a aplicá-la às formas legais de cessação desta relação, designadamente a aplicação de penas expulsivas (art.º 28.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro), como é o caso da de demissão.
Por outro lado, não há qualquer suporte legal para fazer depender de regulamentação posterior a extensão deste regime às relações públicas de emprego, pois os termos em que está redigido aquele n.º 9 do art.º 24.º não deixam margem para qualquer interpretação restritiva.
Para além disso, ao contrário do que se entendeu no acórdão recorrido, a Lei n.º 143/99 não prevê a regulamentação pelo Governo das alterações que introduziu na Lei n.º 4/84, pois o art.º 33.º, em que se um prazo para regulamentar, não é uma disposição da própria Lei n.º 143/99, mas sim uma mera reprodução do texto do art.º 24.º da redacção inicial, com a renumeração determinada no art.º 4.º daquela Lei n.º 142/99. Isto é, a obrigação de regulamentar que se refere naquele art.º 33.º é a inicialmente prevista, a que foi dada execução pelo Governo, primeiramente, através dos Decretos-Lei n.º s 135/86 e 136/85, ambos de 3 de Maio, e, depois, através do DL n.º 154/88, de 29 de Abril e do DL n.º 194/96, de 16 de Outubro.
Aliás, não foi emitida qualquer regulamentação em execução da referida Lei n.º 142/99, o que confirma que a aplicação das alterações legislativas dele constantes não necessitava nem estava dependente de regulamentação.
Assim, é de concluir que aplicação da pena de demissão à Recorrente carecia de parecer prévio da entidade que, no âmbito do Ministério do Trabalho e da Solidariedade, tinha competência na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres.
A omissão de solicitação de tal parecer prévio implica a nulidade da decisão que fez terminar a relação de emprego público, nos termos do n.º 5 do referido art.º 24.º, adaptado a esta relação, ao abrigo do preceituado no n.º 9 do mesmo artigo.
5 – A Recorrente discorda do acórdão recorrido também no que concerne à apreciação que fez da matéria de facto, salientando que, no processo criminal que foi movido pelos mesmos factos foi absolvida.
Como é jurisprudência assente «... em princípio, torna-se irrelevante em processo disciplinar a invocação do facto de o processo crime ter sido arquivado. O invocado arquivamento ou uma eventual absolvição em processo criminal, não é factor impeditivo de a mesma conduta vir posteriormente a ser dada como demonstrada em procedimento disciplinar e se apresente violadora de determinados deveres gerais ou especiais decorrentes do exercício da actividade profissional exercida e, por isso, susceptível de integrar um comportamento disciplinarmente punível». (( ) Essencialmente neste sentido, entre outros, podem ver-se os seguintes acórdãos deste Supremo Tribunal Administrativo:
– de 25-9-1997, recurso n.º 38658, AP-DR de 12-6-2001, 6304;
– de 25-2-1999, recurso n.º 37235, AP-DR de 12-7-2002, 1367;
– de 15-1-2002, recurso n.º 47261, AP-DR de 18-11-2003, 93
– de 24-1-2002, recurso n.º 48147, AP-DR de 18-11-2003, 471;
– de 9-10-2003, recurso n.º 856/03;
– de 11-2-2004, recurso n.º 42203;
– do Pleno de 6-12-2005, recurso n.º 42203; e
– de 13-2-2007, recurso n.º 47555, )
No acórdão recorrido fez-se uma pormenorizada apreciação dos pontos indicados pela Recorrente, em que discordava do juízo probatório efectuado pela Autoridade Recorrida, com base no relatório do instrutor do processo disciplinar, concluindo-se que ele não merece censura.
No presente recurso jurisdicional, a Recorrente não demonstra que haja incorrecção da apreciação feita no acórdão recorrido, sobre cada um dos pontos que indicou, limitando-se a afirmar, genericamente, no essencial, que não se pode dar como provado que tenha usado em proveito próprio as quantias cuja falta foi considerada demonstrada e que tenha agido com dolo e consciência da ilicitude.
Não há, nesta matéria, um ónus da prova da Recorrente, pois, em matéria sancionatória, a essência do direito à defesa, reconhecido pelo art.º 32.º, n.º 10, da CRP, impõe que as dúvidas sejam processualmente valoradas a favor dos arguidos e não contra eles.
Porém, na apreciação da prova podem usar-se presunções naturais, fundadas nas regras da vida e da experiência comum.
No caso em apreço, o facto de se ter provado que era a Recorrente quem estava encarregada da venda de publicações do B..., de receber receitas e de as depositar semanalmente na conta do Instituto da Conservação da Natureza (com excepção das suas ausências temporárias em que era substituída por colegas que lhe entregavam o dinheiro proveniente das vendas ou o depositavam, se a substituição corresse em férias), aliado ao facto de se ter provado que durante o período de 1-1-1998 a Junho de 1999 não foi depositada a quantia global de 271.097$00, justifica que se formule um juízo probatório no sentido de a ora Recorrente se ter apropriado da quantia em causa, uma vez que não se vislumbra qualquer outra explicação aceitável para o respectivo depósito não ter sido efectuado.
Por isso, o acto recorrido não enferma do vício de erro sobre os pressupostos de facto que a Recorrente lhe imputa.
6 – A Recorrente defende ainda que a pena de demissão é excessiva e grosseiramente desproporcional, ilegal e injusta.
No entanto, tal afirmação é feita no pressuposto de que não se demonstrou uma actuação dolosa, com apropriação das quantias referidas, e esse pressuposto não corresponde à realidade, pelo que se referiu.
Uma actuação do tipo da referida, com apropriação reiterada de dinheiros públicos, perdurando por um período de tempo considerável (cerca de um ano e meio), sem demonstração de qualquer circunstância exógena que explique a prática da infracção, é idónea a afectar indelevelmente a confiança que tem de merecer quem exerce funções no âmbito das quais tem em seu poder dinheiros públicos, com o fim de lhes dar um determinado destino.
Por isso, está-se perante uma situação em que é inviável a manutenção da relação funcional, o que justifica a aplicação de uma pena expulsiva.
Por outro lado, a situação em causa enquadra-se na previsão da alínea d) do n.º 4 do art.º 26.º do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo DL n.º 24/84, de 16 de Janeiro, em que se prevê a aplicação da pena de demissão para os funcionários que «forem encontrados em alcance ou desvio de dinheiros públicos», pelo que, à face da lei, é esta a pena adequada.
Assim, a pena aplicada não pode considerar-se desproporcionada, nem ilegal, nem injusta.
Termos em que acordam em
– conceder provimento ao recurso;
– revogar o acórdão recorrido na parte em que se entendeu que não ocorre o vício de omissão de solicitação do parecer prévio referido no ponto 4 deste acórdão e na parte em que condenou em custas a Recorrente;
– confirmar o acórdão recorrido, na parte restante;
– conceder provimento ao recurso contencioso;
– declarar nulo o acto recorrido por enfermar do vício referido no ponto 4 deste acórdão.
Sem custas, por a Autoridade Recorrida estar isenta (artº. 2.º da Tabela das Custas).
Lisboa, 21 de Maio de 2008. – Jorge Manuel Lopes de Sousa (relator) – António Políbio Ferreira Henriques – Rosendo Dias José.