Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01204/12
Data do Acordão:11/13/2014
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:DEPUTADO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
SUBVENÇÃO MENSAL VITALÍCIA
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário:I - O acórdão que, complementando outro, supre a nulidade neste existente impede que o recurso deduzido do primeiro proceda devido a essa nulidade.
II - Não peca por omissão de pronúncia o acórdão que, não incidindo embora sobre todas ou razões ou argumentos invocados pelas partes, conheceu da «quaestio juris» colocada no processo e alegadamente silenciada.
III - O art. 24º, n.º 4, da Lei n.º 4/85, de 9/4 (na redacção trazida pela Lei n.º 16/87, de 1/6), não permitia que o tempo de exercício das funções de governador civil acrescesse ao tempo do ulterior mandato da mesma pessoa como deputado à Assembleia da República para assim se obter o requisito temporal de que dependia a atribuição de uma subvenção mensal vitalícia.
IV - Essa solução legal, dotada de cariz abstracto, mostrava-se razoável, não ofendia os princípios da igualdade e da proporcionalidade, não restringia quaisquer direitos anteriores e não afrontava o art. 63º da CRP.
Nº Convencional:JSTA00068989
Nº do Documento:SAP2014111301204
Data de Entrada:05/07/2014
Recorrente:A.....
Recorrido 1:PRES DA AR
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:AC STA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM GER - FUNÇÃO PUBL / ESTATUTÁRIO.
Legislação Nacional:CONST76 ART13 ART18 N2 ART63.
CCIV66 ART9.
CPC13 ART608 N2 ART615 N1 D ART617 N1 N2.
L 4/85 DE 1985/04/09 ART24 N4.
L 16/87 DE 1987/06/01.
L 26/95 DE 1995/08/18.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, no Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
A………, identificado nos autos, interpôs o presente recurso do acórdão da Secção que julgou improcedente a acção administrativa especial em que ele, por considerar ilegal um despacho de indeferimento produzido pela Presidente da Assembleia da República, pedira que a entidade demandada fosse condenada a praticar o acto devido – que lhe reconhecesse o direito a uma subvenção mensal vitalícia.
O recorrente findou a sua minuta de recurso oferecendo as conclusões seguintes:
1 - Não existe uma “...nova redação dada ao n.º 4 daquele art. 24º pela Lei 16/87, de 1/06” como refere o douto Acórdão recorrido. O “n.º 4 daquele art. 24º” mantém nos seus precisos termos, a sua anterior redacção, a mesma, a qual, antes passou a ser o n.º 3 da mesma Lei. Não houve nova redacção, houve sim novo direito constituído.
2 - A Lei 16/87, de 1 de Junho, veio introduzir um novo preceito, acrescentando ao elenco dos cargos de exercício de funções políticas até aí nela previstas, também e mais o de Governador Civil.
3 - O novo preceito introduzido pela Lei 16/87, de 1 de Junho e não a nova redacção de qualquer outro preceito pré-existente, veio instituir o novo conteúdo do direito, a inclusão do cargo de Governador Civil, sendo-lhe indiferente o facto que lhe está subjacente e por isso a nova lei é imediatamente aplicável abrangendo as relações até aí constituídas, seja a relação do recorrente enquanto Deputado, seja enquanto Governador Civil.
4 - Porque se trata de Lei nova, de direito constituído, nenhuma “interpretação extensiva” se está a fazer de qualquer preceito já pré-existente. Está-se a aplicar a Lei.
5 - “A possibilidade de o tempo de exercício do cargo de Governador Civil aproveitar aos deputados eleitos, foi introduzida pela Lei nº 16/87 (com um novo nº 4 no artigo 24º da Lei nº 4/85)”.
6 - O tempo de exercício de funções políticas, no caso, as de Governador Civil, desempenhadas “após o 25 de Abril de 1974”, ainda que antes da eleição e do consequente exercício de funções de deputado, deve ser contado como tempo para a atribuição da subvenção mensal vitalícia.
7 - O novo preceito do n.º 4 do art. 24º, introduzido pela Lei 16/87, o que veio dizer, como consta dos trabalhos preparatórios e do dito Relatório da Comissão Parlamentar respectiva, foi que “com base na consideração de que o cargo de Governador Civil é, sem dúvida um cargo tipicamente político: e ainda na de que, à data da aprovação da lei n.º 4/85, de 9 de Abril, a referência ao cargo de Governador Civil foi retirada da respectiva proposta com base no facto de estar em preparação um diploma relativo ao estatuto do Governador Civil, e que não chegou a ser publicado, no qual era reconhecido aos titulares deste cargo o direito previsto no n.º 1 do artigo 24º”, e assim dar tratamento igual a todos os Deputados por razão alguma de diferenciação não existir, pois que, quer o cargo de Governador Civil, quer o cargo de Deputado, são funções eminentemente políticas e foi reconhecido aquando da aprovação inicial do diploma, o que só não foi então consagrado por estar em preparação o Estatuto de Governador Civil.
8 - À “...data da aprovação da Lei n.º 4/85, de 9 de Abril”, de cuja versão inicial foi retirada a referência ao cargo de Governador Civil, este cargo só não figurou no diploma aprovado, por uma questão de sistematização técnico-jurídica, ou seja, por “estar em preparação um diploma relativo ao estatuto do Governador Civil”, o que mais não significa do que o reconhecimento da dignidade da função, do “cargo de Governador Civil é, sem dúvida um cargo tipicamente político” para a sua contagem e para efeitos da atribuição da subvenção mensal vitalícia.
9 - A tese de que só poderiam beneficiar do disposto nesse novo n.º 4 do artigo 24º da Lei nº 4/85 os deputados eleitos (e, evidentemente, não há deputados que o não sejam) que renunciassem ao cargo para exercer as funções de governador civil, corresponde a uma interpretação restritiva da lei e proibida constitucionalmente.
10 - No fundo, optando-se pela interpretação mais restritiva da norma de extensão do n.º 4 do artigo 24º da Lei nº 4/85, introduzido pela Lei nº 16/87 está-se a ficcionar que o deputado eleito, ainda assim continuaria a sê-lo, mesmo tendo renunciado a esse cargo para assumir o de Governador Civil.
11 - A possibilidade de fazer relevar o tempo de exercício do cargo de Governador Civil para o preenchimento do requisito temporal necessário para a obtenção da subvenção mensal vitalícia, introduzida - embora em termos limitados - pelo legislador de 1987, baseou-se claramente na natureza política relevante do cargo (é o representante do Governo no distrito).
12 - Qualquer distinção não prevista na lei (ex-Governador Civil que vem a ser eleito Deputado; ex-deputado que vem a ser Governador Civil; deputado que renuncia ao mandato para ser nomeado governador civil), a mais de carecer de fundamento material bastante (e ser, portanto, desconforme com os princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade), constituiria uma injustificada transformação de uma norma geral e abstracta numa lei-medida, feita aprovar intuito personae e, como tal, inconstitucional.
13 - O intérprete deve presumir que o legislador consagrou na lei as melhores soluções, as mais acertadas, exprimindo o seu pensamento em termos adequados. E assim, se em sede de interpretação chegarmos a uma solução absurda e chocante, (como é a do douto Acórdão), temos de presumir que o legislador a não quis consagrar na lei (n.º 3 do art. 9º do CC), disposição que se mostra violada.
14 - E seria chocante e absurdo dar-se dignidade a determinado tipo de funções políticas (Governador Civil) para a contagem do tempo para atribuição de subvenção mensal vitalícia, quando desempenhadas no percurso de um mandato (suspenso) de deputado e não já quando essas mesmas funções tenham sido desempenhadas antes do início desse mesmo mandato de deputado.
15 - A restrição ou limitação na contagem do tempo de exercício de funções políticas para concessão da subvenção vitalícia é proibida pelo n.º 2 do art. 18º da C.R.P. e bem assim também do seu art.º 13º.
16 - As “subvenções vitalícias e por morte” introduzidas pela Lei nº 4/85 de 9 de Abril, são fundamentalmente uma medida de segurança social, de cariz compensatório e sendo assim, deverá por aqui também considerar-se na contagem todo o tempo de exercício de funções políticas nos diversos cargos definidos na Lei, onde se inclui quer o do tempo de exercício de funções políticas como de Governador Civil, prestado quer antes, quer durante, ou depois da eleição de deputado, quer o de deputado.
17 - A restrição temporal efectuada pelo Despacho da recorrida Presidente da Assembleia da República, revela-se inconstitucional, incompatível com o princípio que regula o sistema público de segurança social, ou os seus subsistemas de previdência ou os de natureza semelhante, como o aqui em causa, princípio este introduzido pela revisão constitucional de 1989 ao aditar o nº 5 ao art. 63º da C.R.P., que assim também se mostra violado.
18 - A Secção deste Venerando Tribunal não se pronunciou no douto Acórdão, sobre nenhuma das questões que foram colocadas à sua apreciação pelo recorrente e constantes dos números II, III, IV e V do presente recurso, pelo que é nulo o douto Acórdão por vício de omissão de pronúncia, mostrando-se igualmente violada a disposição da al. d) do artigo 615º e nº 2 do artº 660º do CPC.
19 - O douto Acórdão viola pois, entre outras, as disposições do art. 1º n.º 2 da Lei nº 4/85 de 9 de Abril e art. 24º n.º 4 e art. 26º, n.º 2 al. o) da Lei 16/87, de 1 de Junho, a al. d) do artigo 615º, n.º 2 do artº 660º do CPC e bem assim o n.º 3 do art. 9º do Código Civil e os arts. 13º, 18º ns.º 1 e 2 e 63º da CRP.

A entidade recorrida contra-alegou, concluindo do seguinte modo:
1) Tendo sido o Recorrente deputado à Assembleia da República durante 8 anos e 209 dias e limitando o artigo 24º da Lei n.º 4/85, de 9 de abril, a concessão da subvenção vitalícia a quem perfizesse 12 ou mais anos num cargo político, a única questão que o Tribunal tinha para resolver era a de saber se o cargo de governador civil também podia ser considerado como um cargo político e se, por essa razão, o tempo em que antes de ser eleito deputado foi governador civil (3 anos e 284 dias) podia ser contabilizado para esse efeito;
2) Questão que o Tribunal a quo resolveu ao decidir que o exercício de outras funções para além das taxativamente indicadas no artigo 24º, n.º 1, da Lei n.º 4/85, de 9 de Abril, mesmo que de cunho político, como era o caso das funções inerentes ao cargo de governador civil, era irrelevante para o preenchimento do requisito temporal de que a lei fazia depender a concessão da subvenção vitalícia, motivo pelo qual a pretensão do Autor em fundar o direito reclamado na nova redação dada ao artigo 24º, n.º 1, da Lei n.º 4/85, de 9 de Abril, pela Lei n.º 16/87, de 1 de Junho, era totalmente improcedente;
3) Não ocorre, portanto, a nulidade, por omissão de pronúncia, arguida pelo Recorrente e prevista nas disposições conjugadas dos artigos 685º, 666º, 615º, n.º 1, alínea d) e 608º do CPC, aplicáveis por força do artigo 1º do CPTA, e artigo 95º, n.º 1, do CPTA;
4) Por outro lado, ao julgar improcedente a pretensão formulada na ação, o acórdão recorrido fez correta interpretação e aplicação da lei aos factos dados como provados, não se mostrando por ele violados quaisquer preceitos legais, nomeadamente, os artigos 1º e 24º da Lei n.º 4/85, de 9 de Abril, o artigo 26º, n.º 2, alínea o) da Lei n.º 16/87, de 1 de Junho, e bem assim os artigos 9º do Código Civil e os artigos 13º, 18º ns.º 1 e 2, e 63º da Constituição da República Portuguesa;
5) Contrariamente ao defendido pelo Recorrente, a alteração introduzida ao n.º 4 do artigo 24º da Lei n.º 4/85, de 9 de Abril, pela Lei n.º 16/87, de 1 de Junho, apenas veio permitir que os deputados eleitos - e só eles - que vissem o seu mandato suspenso por terem aceitado a nomeação nos cargos de governador ou vice-governador civil pudessem incluir o tempo de exercício dessas funções no cômputo do tempo atendível para efeitos de aquisição do direito à subvenção mensal vitalícia;
6) E a menos que se entenda que o legislador utilizou uma expressão de conteúdo redundante, o que não parece compaginável com a presunção que deve nortear o intérprete na fixação do sentido e alcance da lei, nos termos do artigo 9º, n.º 3, do Código Civil, o uso da expressão «deputados eleitos», para mais conjugado com o que consta da aludida «exposição de motivos» do Projeto de Lei n.º 336/IV, apenas pode significar que o legislador não teve em mente alargar a contagem do tempo para aquisição daquela subvenção ao período de exercício das funções de governador ou governador civil verificado em momento anterior à eleição como deputado;
7) Daí que, como bem refere o acórdão recorrido, a intenção do legislador foi garantir que o deputado eleito não podia ser prejudicado na contagem daquele tempo se durante o exercício do seu mandato como deputado fosse eleito governador civil e, por força dessa nomeação, passasse a exercer as funções que lhe correspondiam;
8) Carece, pois, de fundamento o argumento do Recorrente de que a norma do n.º 4 do artigo 24º da Lei n.º 4/85, de 9 de Abril, com a redação dada pela Lei n.º 16/87, de 1 de Junho, é um novo preceito destinado a acrescentar o cargo de governador civil ao elenco dos titulares de cargos políticos constante do seu artigo 1º.
9) Não releva, assim, para efeitos da contagem do tempo a que se reportava o artigo 24º, n.º 1, da Lei n.º 4/85, de 9 de Abril, o período em que o Recorrente desempenhou as funções de governador civil em momento anterior à sua eleição como deputado à Assembleia da República;
10) Logo, ainda que abrangido pelo regime transitório a que se refere o artigo 8º da Lei n.º 52-A/2005, de 10 de Outubro, não tem o Autor direito à subvenção mensal vitalícia que requereu uma vez que a contagem do tempo de exercício legalmente atendível para o efeito não alcança o mínimo dos 12 anos previstos no artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 4/85, de 9 de Abril, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 26/95, de 18 de Agosto.

Mediante o acórdão de fls. 206 e ss., a Secção reconheceu que o acórdão sob recurso enfermava de nulidade, por não se ter pronunciado sobre «inconstitucionalidades» que haviam sido «alegadas» pelo autor. E esse segundo aresto, suprindo o vício de que o outro padecia, julgou que a legislação aplicada pelo acto impugnado não é inconstitucional.

Notificadas deste último acórdão, as partes nada disseram nos autos.

A matéria de facto pertinente é a dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui damos por integralmente reproduzida – como ultimamente decorre do estatuído no art. 663º, n.º 6, do CPC.

Passemos ao direito.
O autor e ora recorrente foi deputado à Assembleia da República durante 8 anos e 209 dias, ocorridos entre 2001 e 2011. Entre 1995 e 1999, ele exercera as funções de governador civil de Coimbra durante 3 anos e 284 dias. E, considerando que esses dois períodos temporais são cumuláveis por força do art. 24º, n.º 4, da Lei n.º 4/85, de 9/4 (na redacção introduzida pela Lei n.º 16/87, de 1/6), o recorrente requereu à Presidente da Assembleia da República que lhe fosse atribuída a subvenção mensal vitalícia prevista no n.º 1 desse art. 24º (na redacção dada pela Lei n.º 26/95, de 18/8) para os deputados – bem como para outros titulares de certos cargos políticos – que tivessem «exercido os cargos ou desempenhado as respectivas funções, após 25 de Abril de 1974, durante 12 ou mais anos, consecutivos ou interpolados».
Por despacho de 19/6/2012, a Presidente da Assembleia da República indeferiu o dito requerimento. E o autor interpôs a acção administrativa especial dos autos em que impugnou o despacho e pediu que a entidade demandada fosse condenada à prática do acto que ele crê ser devido – e que consiste no reconhecimento do seu direito à pretendida subvenção.
Através do acórdão de fls. 133 e ss., a Secção julgou a causa totalmente improcedente. E, inconformado com esse aresto, o autor deduziu dele o presente recurso, onde sustenta duas essenciais coisas: que o acórdão «sub specie» é nulo, por omissão de pronúncia; e que, para além disso, enferma de erro de julgamento, devendo este Pleno revogá-lo e pronunciar-se no sentido da procedência da acção.
Os assuntos relacionados com a nulidade do aresto «sub censura» são de conhecimento prioritário. Ora, o recorrente denuncia que a Secção silenciou as «questões» postas «in initio litis» e recolocadas nos ns.º II, III, IV e V deste recurso – as quais integram, afinal, tudo aquilo que o autor alegara em abono da sua tese.
Tais «questões» são basicamente duas: a de saber se o acto interpretou bem o aludido art. 24º, n.º 4; e a de saber se essa interpretação é inconstitucional.
Quanto a este segundo ponto, a Secção admitiu que caíra em omissão de pronúncia, motivo por que o acórdão de fls. 206 e ss. conheceu do assunto. E, dado o que se estabelece no art. 617º, ns.º 1 e 2 do CPC, a nulidade foi suprida, sendo agora certo que o aresto recorrido não é nulo por essa causa. Assinale-se, todavia, que esta conclusão não exclui que, na hipótese de considerarmos válido o aresto «sub specie» por não ocorrer o outro motivo de nulidade (a abordar «infra»), devamos conhecer da problemática, de índole substantiva, ligada à eventual existência das inconstitucionalidades.
Já quanto ao referido primeiro ponto, o recorrente está equivocado. A acção dos autos orbita em torno da «quaestio juris» de saber se, à luz do referido art. 24º, n.º 4, é atendível, «para efeitos da contagem do tempo referido no n.º 1» do artigo, o exercício das funções de governador civil por quem veio a ser, só depois delas, deputado à Assembleia da República. E é claro que o vício arguido só deveras existiria se concluíssemos que a questão fora silenciada na parte dispositiva do aresto.
Ora, relendo-se o acórdão recorrido, logo se constata que a sobredita questão foi por ele enfrentada e resolvida; pois a Secção interpretou e aplicou aquele art. 24º, n.º 4, de modo a recusar ao autor o direito à subvenção vitalícia. Portanto, o acórdão cumpriu correctamente o disposto no art. 608º, n.º 2, do CPC e não sofre, por isso, da nulidade prevista no art. 615º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do mesmo diploma.
Simplesmente aconteceu que o aresto «sub censura» não se debruçou sobre todos os argumentos usados pelo autor em prol da sua tese. Mas isso é processualmente irrelevante, dado que a Secção não estava obrigada a responder, ponto por ponto, às razões em que o autor suportara a pretensão. Esta diferença entre questões, por um lado, e razões ou argumentos, por outro, é básica e de todos conhecida – sendo absolutamente pacífico o entendimento de que as pronúncias judiciais não são nulas por falta de abordagem, seja ela total ou parcial, da mera argumentação das partes.
Improcede, assim, a conclusão 18.ª da minuta de recurso. E, assente que o aresto «sub censura», atento o «complemento» que consta de fls. 206 e ss., está imune aos vícios formais que o recorrente lhe atribui, há agora que apurar se nele se decidiu bem a questão de fundo.
A Lei n.º 4/85 aprovou o estatuto remuneratório dos titulares de cargos políticos, em cujo universo o art. 1º do diploma incluiu os deputados à Assembleia da República – mas não os governadores civis. Na sua versão original, o art. 24º, n.º 1, do mesmo estatuto previa que os membros do Governo, aqueles deputados e os juízes do Tribunal Constitucional que não fossem magistrados de carreira tivessem «direito a uma subvenção mensal vitalícia desde que» houvessem «exercido os cargos ou desempenhado as respectivas funções após 25 de Abril de 1974 durante 8 ou mais anos, consecutivos ou interpolados». Tal direito foi depois alargado aos Ministros da República e ao Governador e secretários adjuntos de Macau, estendendo-se ainda para 12 aquele período mínimo de 8 anos («vide» a Lei n.º 26/95, de 18/8). E, quanto aos deputados, o inicial n.º 4 do mesmo art. 24º previa que, «para efeitos de contagem dos anos de efectivo exercício das funções», não seriam tidas em linha de conta as suspensões do mandato de deputado que na totalidade não somassem em média mais de 15 dias por sessão legislativa. Donde, «a contrario sensu», logo se deduzia a regra de que quaisquer suspensões por tempo superior descontariam naqueles anos.
E foi também com o propósito de introduzir uma excepção a essa regra que surgiu a mudança do art. 24º, promovida pela Lei n.º 16/87, de 1/6. A circunstância deste diploma ter alterado a ordem dos vários números do art. 24º – de modo que o anterior n.º 4 passou a ser o n.º 3 do artigo, enquanto o novo n.º 4 foi intercalado entre os antigos ns.º 4 e 5 – mostra a preocupação do legislador da Lei n.º 16/87 de colocar o novo n.º 4 a seguir ao número donde se inferia a regra que acima divisámos; intuito compreensível porque – como melhor veremos «infra» – esse novo n.º 4, embora não começasse por uma adversativa, desviava-se realmente da regra acolhida no número anterior.
Assim, com a emergência da Lei n.º 16/87, o n.º 4 do art. 24º da Lei n.º 4/85 passou a ter a redacção seguinte: «para efeitos da contagem do tempo referido no n.º 1, é tido em conta o tempo de exercício, por deputados eleitos, das funções previstas na alínea o) do n.º 2, do art. 26º» – referindo-se esta última norma às funções de governador ou vice-governador civil.
Ora, a questão central dos autos passa pela interpretação desse transcrito n.º 4. E tudo se resume a saber se a relevância, aí conferida ao exercício das funções de governador civil, só operava se o cargo fosse assumido por um deputado actual – que, assim, imputaria o tempo de exercício daquelas funções no tempo, ficcionado, do seu próprio mandato; ou se, ao invés, o tempo de permanência no cargo de governador civil era livremente acumulável com o tempo, diferente, em que o mesmo agente político exercesse as funções de deputado à Assembleia da República.
E é claríssimo que a boa hermenêutica está do lado do acto e do acórdão «sub specie». Desde logo, salta à vista que a interpretação feita pelo recorrente corresponde a uma leitura truncada da norma. Com efeito, o aludido n.º 4 só nos diria o que o recorrente alvitra – e, aí sim, dir-nos-ia isso, sem dúvida alguma – se dele excluíssemos a expressão «por deputados eleitos». Mas o que flui do art. 9º do Código Civil, constituindo até uma evidência «per se nota», é a absoluta inadmissibilidade de que um segmento significativo de um texto legal seja desconsiderado e ignorado pelo intérprete.
Ora, é manifesto que aquela expressão ou fórmula – «por deputados eleitos» – assume um sentido restritivo relativamente ao que a precede. Assim, a relevância que, no preceito, se reconhece – para se adquirir o direito à subvenção mensal vitalícia – ao exercício das funções de governador civil não é geral e absoluta; pois está restringida, «ex lege», ao exercício dessas funções «por deputados eleitos» – e só por eles.
Mas falta ainda determinar o que tal locução significa. O recorrente vem assinalando, «ab initio litis», que todos os deputados são eleitos. Trata-se de um truísmo que, todavia, não aproveita ao recorrente. É que a adopção da fórmula inculca logo que o adjectivo «eleitos» não estava na norma por acaso, antes pretendendo vincar uma qualquer correspondência temporal entre a eleição do deputado e as «funções» seguidamente referidas. E assim se percebe que o legislador, ao utilizar aquele qualificativo, quis frisar que só os deputados à Assembleia da República – pois é deles que o preceito cura – poderiam integrar no tempo dos seus mandatos como deputados o tempo em que, no exacto período para que haviam sido eleitos, exercessem as funções de governador ou vice-governador civil.
Deste modo, e à luz do n.º 4 do art. 24º da Lei n.º 4/85, o período em que o recorrente desempenhou o cargo de governador civil de Coimbra é irrelevante «para efeitos da contagem do tempo referido no n.º 1» do mesmo artigo; o que se deve ao facto dele não ter sido, nesse período, um deputado eleito – como o n.º 4 insofismavelmente exigia.
E assim se vê que o recorrente claudica ao defender que a nova redacção do n.º 4 do art. 24º da Lei n.º 4/85 – e trata-se de uma nova redacção, ainda que a anterior permanecesse «in vita», transposta para o n.º 3 do artigo – quisera estender aos governadores civis (e, já agora, também aos vice-governadores civis) o direito à subvenção mensal vitalícia. Aliás, por uma outra via se detecta que a tese do recorrente é falsa: se fosse como ele diz, o n.º 4 do art. 24º passaria a brigar com o seu n.º 1 – onde se definiam os titulares do direito à subvenção, deles se excluindo os governadores e os vice-governadores civis. Temos, pois, que a lei não quis reconhecer aos titulares destes cargos um tal direito – o que correspondeu a uma escolha restritiva do legislador. E, ante uma restrição que está na própria lei, a interpretação que a veja e constate realiza-se plenamente «secundum litteram et rationem» – sendo absurdo qualificá-la como restritiva.
Portanto, o acto e o acórdão interpretaram bem e fielmente a norma aplicanda – o que traz a improcedência das onze primeiras conclusões da minuta de recurso. Porém, o recorrente censura ainda o aresto por ele não haver reconhecido que o regime legal convocado padece de inconstitucionalidades várias.
Assim, na sua conclusão 12.ª, o recorrente afirma que a desconsideração do seu tempo de exercício de funções como governador civil, acolhida no acto e no acórdão, carece de um fundamento material bastante e ofende os princípios da igualdade e da proporcionalidade; e acrescenta que o sentido dado pela Secção ao art. 24º, n.º 4, da Lei n.º 4/85 converte essa norma numa lei-medida, construída «intuitu personae» e, dessa forma, inconstitucional. Mas estes ataques estão desprovidos de base.
A circunstância do legislador não ter previsto, em qualquer das versões do art. 24º, n.º 1, da Lei n.º 4/85, que os governadores civis tivessem direito à subvenção mensal vitalícia em nada ofende os princípios da igualdade e da proporcionalidade. Com efeito, é evidente que a Assembleia da República dispunha de plena liberdade para estruturar o aludido regime legal por forma a que dele só beneficiassem os titulares de certos cargos políticos, e já não os de outros. Aqui, há que lembrar o óbvio: que os recortes deste género são inerentes a qualquer processo de escolha legislativa, o qual só é controlável pelos tribunais havendo uma ostensiva violação dos princípios regentes da actividade do legislador – o que não é o caso. Ora, quando o art. 24º, n.º 1, da Lei n.º 4/85 atribuiu o direito à subvenção a certos destinatários, excluindo dela os demais titulares de cargos políticos, fê-lo devido às diferenças específicas, mas reais, entre os cargos desse género; e, desde que a norma se ateve a tais diferenças específicas, é em vão que o recorrente as esquece e intenta superá-las mediante a invocação de uma igualdade apenas genérica – deduzida a partir da categoria, mais abstracta, da titularidade dum qualquer cargo político. Tenhamos presente que é no preciso plano em que a lei diferencie que tem de se averiguar da razoabilidade e acerto da diferenciação; e qualquer raciocínio sobre questões de proporcionalidade ou igualdade – no fundo, sobre problemas de analogia e de semelhança – que extravase desse campo através de um «ascensus» lógico é sofístico e inoperante.
Por outro lado, o recorrente excede-se ao clamar que o acórdão recorrido interpretou o art. 24º, n.º 4, da Lei n.º 4/85 de modo a transformá-lo numa lei-medida ou «intuitu personae». É que esse sentido interpretativo – que já vimos ser o exacto – deveria ser o assumido, desde o início da vigência da norma, por qualquer aplicador dela; e a norma seria assim aplicável, «in futurum», a todas as situações, necessariamente indeterminadas, que viessem a cair sob a sua previsão. Perante isto, a denúncia em apreço não tem o mínimo cabimento.
Nas conclusões 13.ª e 14.ª, o recorrente considera absurdo e chocante que o tempo de exercício das funções de governador civil não valha para a formação do direito à subvenção mensal vitalícia. E, a essas conclusões, vem ligada a conclusão 15.ª, onde o recorrente aponta as inconstitucionalidades advindas da ofensa dos arts. 18º, n.º 2, e 13º da CRP.
Mas a não atribuição aos governadores civis daquele direito não envolve um qualquer ilogismo – que, aliás, o recorrente não demonstra; nem há nisso algo que choque ou aflija a consciência do cidadão comum. Sucede até que a colocação do problema neste vaguíssimo plano, de contornos já pouco jurídicos, se articula mal com a opção legislativa (tomada na Lei n.º 52-A/2005, de 10/10) de acabar com tais subvenções vitalícias para o futuro. Neste ponto, o que sobretudo avulta é o seguinte: ao invés do que o recorrente imagina, o art. 24º da Lei n.º 4/85 não restringiu qualquer direito (e, muito menos, qualquer liberdade ou garantia) dele – designadamente o direito a auferir a subvenção relativamente ao tempo por que exercera as funções de governador civil; e isto pela razão elementar de que ele nunca teve legalmente esse direito, não se podendo restringir o que não existe. Por outro lado, e conforme explicámos «supra», a recusa legislativa de reconhecer tal direito aos governadores civis em nada ofende o princípio da igualdade. Soçobram, portanto, as três conclusões que estiveram ultimamente em apreço.
E as conclusões 16.ª e 17.ª também fracassam. Admitamos que as subvenções mensais vitalícias eram, como o recorrente diz, uma «medida de segurança social». Mesmo assim, estaríamos perante uma «medida», ou um direito, que só existia para os seus destinatários legais – em cujo número o recorrente, aliás à semelhança da generalidade das pessoas, não se incluía. Portanto, entre a natureza da «medida», ou do direito, e a pretensão do recorrente permanece um intransponível «non sequitur». Por outro lado, não se percebe por que motivo haveria o recorrente, por ter sido governador civil, de ser especialmente salvaguardado pelo art. 63º da CRP, ao ponto de se dever concluir pela inconstitucionalidade do art. 24º da Lei n.º 4/85. É que esta norma visa proteger a generalidade dos cidadãos; portanto, só tem sentido invocá-la para se colher o benefício advindo dessa generalização de vantagens – e nunca para se participar numa solução privilegiada. Quer isto dizer que não há qualquer medida comum entre o direito de todos à segurança social e o direito de alguns agentes políticos a uma subvenção mensal vitalícia; e, funcionando tais direitos em diferentes planos – mesmo que servissem fins assimiláveis «in genere» – é logicamente impossível que a previsão restritiva daquele art. 24º conflitue e brigue com o disposto no art. 63º da CRP.
E resta dizer que soçobra igualmente a conclusão 19.ª, onde o recorrente recapitula, por referência a preceitos legais, todos os ataques que antes movera ao aresto «sub specie». Donde se segue que o acto e o acórdão recorrido, agora complementado pelo aresto de fls. 206 e ss., andaram bem ao recusar ao recorrente o direito por ele invocado, visto faltar-lhe, para tanto, o requisito que se ligava ao tempo mínimo de exercício das funções de deputado à Assembleia da República.

Nestes termos, acordam em negar provimento ao presente recurso e em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.
Lisboa, 13 de Novembro de 2014. – Jorge Artur Madeira dos Santos (relator) – Alberto Augusto Andrade de Oliveira – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – António Bento São Pedro – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – José Augusto Araújo Veloso – José Francisco Fonseca da Paz.