Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0664/19.1BESNT
Data do Acordão:11/24/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ANA PAULA PORTELA
Descritores:INTERPRETAÇÃO
CADERNO DE ENCARGOS
EFEITO
ANULAÇÃO
CONTRATO
Sumário:I - Não é admissível a junção de documentos que mais não é do que a atualização relativamente a momento posterior do que já constava do documento anterior, não sendo, por isso, possível alegar que aquela decisão criou, pela primeira vez, a necessidade da sua junção.
II - As regras da interpretação das peças do caderno de encargos devem ser essencialmente objetivas (no sentido da natureza normativa ou conformadora do Caderno de Encargos) já que é com base nelas que os concorrentes apresentam as suas propostas e ao abrigo dos quais todas as propostas devem ser analisadas e classificadas.
III - Resultando da legislação em vigor que os bancos rebatíveis não contam como lugares sentados, os mesmos não podiam ter sido considerados como tais na interpretação do caderno de encargos, o que significa que não existe qualquer dúvida na interpretação da cláusula a que tal diz respeito, devendo ser excluída, a proposta que não o considere, com base no artigo 72°/2, alínea b), do CCP.
IV - Só a total omissão dos fundamentos ou a completa ausência de motivação da decisão pode conduzir à nulidade suscitada.
V - Não se coloca o afastamento do efeito anulatório previsto no n.º 4 do artigo 283.º do CCP quando o contrato existente não assegura os serviços tal como previstos no caderno de encargos, sob pena de tal contender com os princípios da boa-fé e da proporcionalidade.
VI - Admitido o recurso de revista, deve o Tribunal conhecer de todos os vícios invocados, independentemente de terem ou não sido os fundamentos para a admissão do recurso de revista.
Nº Convencional:JSTA00071611
Nº do Documento:SA1202211240664/19
Data de Entrada:10/13/2022
Recorrente:CÂMARA MUNICIPAL DE CASCAIS E OUTROS
Recorrido 1:A............, LDA.
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:CCP ART72, N2, ALÍNEA B), ART283 N4
CPC ART615, N1, AL.B)
Aditamento:
Texto Integral: Relatório
1.O MUNICÍPIO DE CASCAIS e A EMPRESA B............, S.A. vêm, em separado, interpor recurso jurisdicional de revista para este STA, nos termos do art. 150º CPTA, do acórdão do TCAS, de 05.05.2022 que negou provimento aos recursos que haviam interposto da sentença, proferida em 19.03.2021, pelo TAC de Lisboa – no âmbito da ação de contencioso pré-contratual relativa ao Concurso Público de Transporte Rodoviário Regular de Passageiros no Concelho de Cascais, intentada por A…………, LDA. contra o Município e contrainteressada a Empresa B............, ora Recorrentes, que julgou a ação procedente e, em consequência, anulou «o ato de adjudicação praticado no âmbito do Concurso Público de Prestação do Serviço Público de Transporte Rodoviário Regular de Passageiros no concelho de Cascais…[bem como anulou] o contrato celebrado entre a Entidade Demandada e a Contrainteressada … [condenando] a Entidade Demandada a praticar novo ato de adjudicação, mediante o qual adjudique a proposta apresentada pela Autora ao Concurso Público de Prestação do Serviço Público de Transporte Rodoviário Regular de Passageiros no concelho de Cascais … [condenando ainda] a Entidade Demandada e a Contrainteressada em custas processuais.».

2. Foi proferido no TCAS o Despacho de 27.06.2022, que sustentou o acórdão recorrido, julgando improcedente a reclamação deduzida pelo Município de Cascais, com fundamento na inexistência da suscitada nulidade por total falta de fundamentação do acórdão recorrido e admitiu os recursos sub judice.

3.O MUNICÍPIO DE CASCAIS conclui as suas alegações da seguinte forma:

“ (...) K) O presente recurso de revista tem como objeto (i) o erro de julgamento quanto à aplicação dos princípios da contratação pública na decisão de admissão de uma proposta quando o caderno de encargos suscite dúvidas, pretendendo-se que esse Supremo Tribunal esclareça o que deve a entidade adjudicante fazer perante incertezas interpretativas do caderno de encargos e uma proposta que acolhe uma interpretação admissível e razoável do mesmo à luz do conjunto dos elementos disponíveis, desde logo porque «razoável à luz do elemento literal».

L) E tem ainda como objeto (ii) o erro de julgamento na aplicação dos critérios do artigo 283.º, n.º 4, do CCP, em especial a questão da relevância do vício e do julgamento desta questão com base em presunções (bem como, quanto a esta matéria, nulidade por falta de fundamentação, à cautela já arguida junto do Tribunal a quo, conforme se verá), e a questão das consequências do prévio levantamento do efeito suspensivo na decisão sobre o afastamento do efeito anulatório.(...)

IV.3. Do recurso

IV.3.a. Do contributo dos princípios da contratação pública para uma correta interpretação das cláusulas dos cadernos de encargos

X) O princípio da boa-fé, na vertente de tutela da confiança e os princípios da igualdade e da concorrência, e o princípio do favor do procedimento determinam o dever de admissão de todas as propostas que se conformem com uma interpretação admissível e razoável do caderno de encargos, sempre que este suscite dúvida e permita várias interpretações.

Y) A exigência vertida na cláusula 4.2 do caderno de encargos e acima citada é suscetível de criar dúvidas ao intérprete.

Z) Essas dúvidas surgem, desde logo, como se disse acima:

(i) por um lado, da circunstância de o requisito 2+1 sugerir a existência de um corredor que, no léxico comum, é identificado como uma zona de passagem (ou seja, que admite uma interpretação em que a última fila não tem de ter corredor, precisamente porque este não leva a lado nenhum); e,

(ii) por outro, e no que diz respeito ao lugar para cadeira de rodas, como se demonstrou, da circunstância de existir um quadro legal (como se viu) que legitima um entendimento segundo o qual os lugares para cadeira de rodas não têm de estar exclusivamente reservados para o efeito.

AA) Em face das dúvidas suscitadas impõem os princípios da contratação pública - que são, na verdade, princípios gerais de direito administrativo - que se admita qualquer proposta que tenha uma interpretação admissível e razoável do caderno de encargos, pelo que andou bem a entidade adjudicante quando admitiu a proposta da Empresa B............, S.A.

BB) Também um cânone interpretativo in dubio pro libertate milita no sentido proposto.

CC) Uma interpretação normativa, como aquela a que procedeu o Tribunal a quo, do artigo 10º, n.º 2, alínea b) e do artigo 146.º, n.º 2, alínea o), do CCP segundo a qual, em caso de dúvida quanto à conformidade de uma proposta com o caderno de encargos, deve a proposta ser excluída é inconstitucional, por violação dos princípios fundamentais da atuação administrativa, vertidos no artigo 266.º, n.ºs 1 e 2 Constituição da República Portuguesa.

DD) Deve, por isso, o Acórdão do Tribunal a quo ser revogado, por erro de julgamento, e substituído por outro, que decida pela validade do ato de adjudicação praticado no procedimento n.º 893/DCOP/2018 - Concurso Público de Prestação de Serviço Público de Transporte Rodoviário Regular de Passageiros no Concelho de Cascais.

IV.3.b. Da nulidade na aplicação do artigo 283.º, n.º 4

EE) O Tribunal a quo não afasta o efeito anulatório do contrato, com base no artigo 283.º, n.º 4, por (i) entender que o vício gerador da invalidade é fundado em ofensa grave; e (ii) se impor particular cautela no levantamento na aplicação do artigo 283.º, n.º 4, do CCP nos casos em que tenha ocorrido levantamento do efeito suspensivo.

FF) Tendo entendido manter a Sentença que anulara o ato de adjudicação à Empresa B............, S.A. por considerar haver uma violação do caderno de encargos, ao fazer a ponderação prevista no n.º 4 do artigo 283.º do Código dos Contratos (“CCP”), sobre o eventual afastamento do efeito anulatório, o Acórdão recorrido entende estarmos «perante uma ilegalidade que não é de somenos importância, tanto mais que afeta o conteúdo material da proposta e que tem um impacto financeiro significativo no contrato celebrado» (destaque nosso), sendo essa consideração decisiva para não afastar o efeito anulatório.

GG) Essa decisão padece de falta de fundamentação de facto, o que determina a nulidade do Acórdão nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC.

HH) Nem sequer houve contraditório relativamente a esta questão, que se acabou por revelar central na decisão de não afastamento do efeito anulatório, uma vez que tal facto apena foi alegado nas contra-alegações de recurso.

II) Sempre se dirá por isso que qualquer interpretação dos artigos 283.º, n.º 4, do CCP e do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC no sentido de que, para efeitos do juízo a fazer, o Tribunal pode atender a factos não sujeitos ao contraditório sempre será inconstitucional, por violação das exigências constitucionais de acesso à justiça e de respeito pela tutela jurisdicional efetiva, constante do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, o que desde já se alega.

JJ) O «impacto financeiro» não constitui um facto público e notório, uma vez que a configuração do autocarro e o número de lugares sentados, fixos ou rebatíveis, nada permitem concluir a um não perito quanto ao seu custo.

KK) Não estando assim perante um facto que dispense prova, e não podendo o «impacto financeiro» ser presumido apenas porque a A…………, Lda. o alegou, se o Tribunal entendia que se tratava de um facto novo relevante, não tinha outra opção que não fosse, nos termos previstos no artigo 662.º, n.º 1, alínea c), do CPC, anular a sentença recorrida, fazer baixar o processo para ampliar a matéria de facto e, para que nesse sede, o mesmo fosse sujeito a prova (sendo que, nos termos do n.º 3, da mesma disposição «se for determinada a ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições»),

LL) Quando a lei comina com a nulidade a não especificação dos «fundamentos de facto e de direito», temos de ter em conta o exigido nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º. Os fundamentos de facto, são precisamente compostos pelos factos objeto de decisão de provado ou não provado e a respetiva motivação, mediante análise crítica da prova.

MM) No Acórdão recorrido, relativamente ao tema que nos ocupa, simplesmente não há fundamentação de facto, há uma conclusão, uma decisão, que prescinde totalmente da enunciação de factos provados, o que resulta na respetiva nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, que expressa e imediatamente se argui.

NN) Deve, em consequência, o Acórdão recorrido ser anulado e substituído por outro, que determine descida dos autos para produção de prova quanto à alegação do facto: «a ilegalidade da proposta da Empresa B............, S.A. permite- lhe uma poupança de cerca de 20% por minibus, o que tem um impacto muito sensível na proposta de preço a apresentar pelo operador».

IV.3.C. Do erro de julgamento quanto à aplicação do artigo 283.º, n.º 4.

OO) Além da nulidade do Acórdão recorrido por falta de fundamentação de facto - e para que se remete é evidente que a tese sufragada pelo Tribunal a quo relativamente à gravidade da ofensa geradora do vício sempre será de rejeitar, porque fundada num pressuposto que não se pode ter por verificado: o de que o alegado vício da proposta da Empresa B............, S.A., ora Contrainteressada, teve impacto no preço proposto.

PP) Deve o Supremo Tribunal Administrativo reconhecer que há um erro de julgamento grave, que o Tribunal de recurso não pode presumir factos alegados por uma das partes sem contraditório e sem produzir prova, dando-se aqui por reproduzido o que se alegou a propósito da nulidade desta decisão.

QQ) Aliás, repete-se: qualquer interpretação dos artigos 283.º, n.º 4, do CCP e do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC no sentido de que, para efeitos do juízo a fazer, o Tribunal pode atender a factos não sujeitos ao contraditório sempre será inconstitucional, por violação das exigências constitucionais de acesso à justiça e de respeito pela tutela jurisdicional efetiva, constante do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, o que desde já se alega.

RR) Independentemente disso, em matéria de gravidade da ofensa geradora do vício esse Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se já em termos - totalmente ignorados pelo Tribunal a quo - que impõem decisão diametralmente oposta àquela que foi tomada pelo Tribunal a quo.

SS) Trata-se do relevante Acórdão de 24.9.2020, proferido no âmbito do processo n.º 0278/17.0BECTB, em que a circunstância de somente estar em causa um vício foi considerada na análise levada a cabo pelo Supremo Tribunal Administrativo, no sentido de militar pelo afastamento do efeito anulatório.

TT) Ora no nosso caso está em causa também um único vício (a disposição de bancos em 17 minibuses) e um vício que, num contrato e operação com a dimensão e características daqueles que aqui está em causa, apresenta uma relevância indesmentivelmente marginal (para dizer o menos).

UU) Se se concluísse - como pretende o Tribunal a quo - que sempre que a modificação subjetiva do contrato (porque a ofensa resulta numa perturbação da concorrência pré-contratual e numa alteração da ordenação das propostas) a ofensa deve ser qualificada como grave e, como tal, não deve haver lugar à aplicação do artigo 283.º, n.º 4, isso significaria concluir que, numa parcela muito significativa dos casos em que o artigo 283.º, n.º 4, do CCP é convocado, a sua aplicação estaria, à partida, afastada.

VV) Na verdade, significaria confundir um requisito de anulabilidade - previsto no artigo 283.º, n.º 2 - com um requisito de não afastamento da anulabilidade - sobre o qual rege o artigo 283.º, n.º 4., o que é, obviamente, de rejeitar.

WW) Em matéria de gravidade da ofensa geradora do vício do ato procedimental (se tivesse ocorrido, no que não se concede), o juízo é totalmente favorável ao afastamento do efeito anulatório, nos termos do artigo 283.º, n.º 4, do CCP.

XX) Os factos provados na presente ação são suficientes para se ter de alcançar, em sede de aplicação do artigo 283.º, n.º 4, do CCP, um resultado diferente daquele a que chegou o Tribunal a quo.

YY) Deve ser retificado o erro de julgamento que resulta de, depois de se ter considerado que o vício é grave (no que não se concede), se ter considerado como suficiente para não afastar o efeito anulatório o facto de ter sido levantado o efeito suspensivo.

ZZ) Na verdade, esse facto milita precisamente no sentido contrário ao entendido pelo Tribunal a quo.

AAA) O Tribunal recorrido erra ao (i) dar ao levantamento do efeito suspensivo o significado que dá e (ii) ao prescindir de fazer a ponderação que o n.º 4 do artigo 283.º determina, ou seja, que se pondere se face aos «interesses públicos e privados em presença, a anulação do contrato se revele desproporcionada ou contrária à boa-fé».

BBB) O Supremo Tribunal Administrativo já considerou como central a circunstância de a anulação do contrato implicar a suspensão de um contrato já em execução, com consequências que entende não serem compatíveis com a manutenção do efeito anulatório.

CCC) A circunstância de ter sido levantado o efeito suspensivo não constitui um facto que aduza especial excecionalidade ao afastamento do efeito anulatório - como pretende o Tribunal — mas, no quadro de «válvula de escape» que esta norma representa, determina precisamente a ponderação contrária.

DDD) A questão da aplicação do artigo 283.º, n.º 4, do CCP colocar-se-á o mais das vezes em casos em que tenha ocorrido levantamento do efeito suspensivo, porque esses serão os casos em que se iniciou já a execução do contrato e, como tal, poderá haver inconveniente na respetiva declaração de invalidade. Foi aliás isso mesmo que esse Supremo Tribunal já considerou.

EEE) O próprio facto de o Tribunal ter já considerado que o interesse público exigia o início da execução do contrato (e por essa razão ter levantado o efeito suspensivo) revela que estamos perante um contrato que prossegue interesses públicos essenciais cuja execução não se compadece com um atraso. E por isso mesmo não se compadece com interrupções como aquela a que o não afastamento do efeito anulatório conduz.

FFF) E que o levantamento do efeito suspensivo não pode deixar de se sustentar no grave inconveniente para o interesse público que resulta da falta da prestação que determinada entidade adjudicante pretende adquirir através de determinado contrato público.

GGG) Ou seja, é precisamente por a entidade adjudicante precisar (indispensavelmente) de determinado contrato que o efeito suspensivo automático é levantado.

HHH) Anda, por isso, mal o Tribunal a quo quando pretende que a circunstância de ter ocorrido o levantamento do efeito suspensivo recomenda o não afastamento do efeito anulatório nos termos do artigo 283.º, n.º 4, do CCP.

III) E anda mal quando, com essa conclusão, prescinde de fazer a ponderação a que o n.º 4 do artigo 283.º obriga. Ora essa ponderação determina que se deva concluir precisamente no sentido do afastamento do efeito anulatório.

JJJ) O contrato a celebrar visa a aquisição de serviços de transportes públicos rodoviários de passageiros para todo o concelho de Cascais (cf. § B. dos factos provados).

KKK) Levantado o efeito suspensivo automático em 17.3.2020, foi o contrato entre o Município de Cascais e a Empresa B............, S.A. assinado a 9.4.2020 (cf. §P. dos factos provados).

LLL) O visto do Tribunal de Contas foi aposto em sessão diária de 22.9.2020, e notificado no dia seguinte, iniciando-se a execução do contrato, mais concretamente do período transitório de 8 meses (cf. §R. dos factos provados).

MMM) O que significa que a operação se iniciou plenamente em maio de 2021, tal como foi informado pelo ora Recorrente ao Tribunal Central Administrativo.

NNN) É evidente que a consequência da anulação do contrato e da celebração de um novo contrato com o novo adjudicatário significaria (i) a retoma do procedimento, que implicaria a prática de um conjunto de atos, como fosse a adjudicação, aprovação da minuta do contrato, habilitação e celebração do contrato; (ii) sujeição do novo contrato a fiscalização prévia pelo Tribunal de Contas; e (iii) o início de um novo período transitório que, no caso, tendo em conta a proposta da A., ora Recorrida, seria de 6 meses (cf. proposta da A…………, Lda).

OOO) Se se mantivesse a decisão do Tribunal a quo - no que não se concede, mas aqui se admite a benefício de raciocínio -, os munícipes de Cascais ver-se-iam privados (durante um período mais ou menos longo de tempo) do acesso a transporte público rodoviário de passageiros.

PPP) É consequência intolerável e, por conseguinte, inevitavelmente desproporcional.

QQQ) Por outro lado, o interesse que a A., ora Recorrida, pretende fazer valer na presente ação é, evidentemente, um interesse com expressão meramente financeira, eventualmente ressarcível em sede indemnizatória (se lhe assistisse razão quanto à invalidade do ato de adjudicação, no que, sublinha-se sempre, não se concede), estando, aliás, isso mesmo estabelecido no artigo 45.º-A, n.º 1, alínea b) do CPTA.

RRR) Na decisão que acima se mencionou Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou de forma categórica no sentido de a continuidade da prestação de um determinado serviço público constituir fundamento relevantíssimo para o tribunal decidir no sentido do afastamento do efeito anulatório do contrato (mesmo que não existisse período transitório).

SSS) É inequívoco que o Supremo Tribunal Administrativo rejeita, também nessa decisão, o recurso a contratação provisória (através de ajustes diretos) como forma de contornar a suspensão do serviço até à plena implementação do serviço a adjudicar na sequência de decisão judicial.

TTT) E evidente que o interesse público prejudicado pela manutenção do efeito anulatório suplanta em larguíssima medida o interesse privado da A., ora Recorrida.

UUU) Tudo isto resulta em erro de julgamento na decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto à ponderação a levar a cabo nos termos do artigo 283.º, n.º 4, do CCP.

VVV) Deve, por conseguinte, o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, a manter-se a anulação do ato de adjudicação, no que não se concede, ser a Acórdão recorrido substituído por outro, que afaste o efeito anulatório do contrato, nos termos do artigo 283.º, n.º 4, do CCP.”

4. A EMPRESA B............, S.A. conclui as suas alegações da seguinte forma:

“I. Os presentes autos suscitam quatro questões que denotam especial relevância jurídica e justificam a admissão deste recurso de revista para melhor aplicação do direito, nos termos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA.

II. A primeira questão diz respeito aos critérios de interpretação a adotar para as cláusulas de cadernos de encargos em procedimentos de contratação pública: deve um caderno de encargos ser interpretado à luz dos critérios fixados no artigo 9.º ou, ao invés, nos artigos 236.º e seguintes do CC?

III. Contrariamente ao que sucede quanto ao programa do procedimento, o CCP não esclarece qual a natureza jurídica do caderno de encargos. A doutrina e a jurisprudência divergem nesta matéria.

IV. A complexidade e a necessidade de clarificação na jurisprudência são de tal ordem que, até mesmo no caso sub judice, o próprio Tribunal a quo recorre ao artigo 238.º do CC para interpretar a conformidade das propostas com o ponto 4.1 do caderno de encargos (cfr. fls 112).

V. A questão da aplicação dos artigos 236.º e seguintes do CC à hermenêutica desta peça do procedimento é premente para uma melhor aplicação do direito, pois que exige a ponderação da sua natureza jurídica (híbrida) e do complexo funcional (contratual e regulamentar) por elas desempenhado – uma operação que não se presta a simplicidades.

VI. A interpretação do caderno de encargos constitui uma operação-tipo reprodutível tanto no âmbito de processos lidados em sede da jurisdição administrativa como, a montante, no âmbito de procedimentos administrativos pré-contratuais.

VII. Há aqui dois regimes jurídicos potencialmente aplicáveis, seja de forma alternativa, seja de forma adjuntiva, mas que, em todo o caso, carecem de compatibilização: por um lado, um regime jurídico em que pontua o artigo 9.º do CC, naturalmente vocacionado e epigrafado para a “Interpretação da lei”, com exclusão dos artigos 236.º e seguintes daquele Código; por outro, um regime jurídico em que estes artigos justificam uma compatibilização ou uma prevalência sobre aqueloutro normativo.

VIII. A segunda questão concerne aos critérios de aplicabilidade do n.º 4 do artigo 283.º do CCP: para o efeito deste preceito, será a identificação de uma (suposta) ilegalidade grave num contrato administrativo suficiente para precludir – para não chegar sequer a realizar – a ponderação de quaisquer interesses favoráveis à manutenção desse contrato e para desconsiderar quaisquer danos decorrentes da sua anulação, por mais acentuados ou dramáticos eles possam ser?

IX. A interpretação normativa que o Tribunal recorrido propôs para o n.º 4 do artigo 283.º do CCP teve um impacto tal que implica a obrigação de interrupção, pelo menos durante vários meses, da operação do Sistema de Transportes Coletivos que serve a população de um dos maiores municípios portugueses (mais de 200.000 cidadãos), deixando igualmente desprotegido o património financeiro da Contrainteressada em face dos custos superiores a 25 milhões de euros que deixou inutilizados.

X. A interpretação normativa feita pelo Tribunal a quo é também flagrantemente violadora dos princípios da proporcionalidade e da prossecução do interesse público previstos nos artigos 2.º e 266.º, n.º 1 e n.º 2, da Constituição.

XI. O afastamento da invalidade consequente de atos procedimentais inválidos, fazendo recair sobre a decisão judicial ou arbitral a contaminação ou a salvação da relação jurídica contratual, reconduz-se a um caso-tipo e pode ocorrer nos procedimentos adotados por qualquer entidade adjudicante portuguesa.

XII. A resolução da questão de saber se um órgão jurisdicional pode não afastar o efeito anulatório de um contrato administrativo, nos termos do artigo 283.º do CCP, sem a ponderação de interesses consagrada no n.º 4 desta norma, afigura-se decisiva para uma melhor aplicação do regime jurídico da invalidade consequencial dos atos administrativos, abrangendo, designadamente, a definição do objeto da ponderação do órgão jurisdicional necessário à pronúncia sobre aquele afastamento.

XIII. A terceira questão diz respeito à interpretação do disposto na parte final do n.º 4 do artigo 485.º do CPC: será que esse preceito legal possibilita que o juiz determine oficiosamente a prestação de esclarecimentos sem fundamento nos vícios a que se refere o n.º 2 do mesmo artigo?

XIV. A relevância jurídica deste assunto é notória, pois que obriga a um confronto entre os artigos 411.º e 485.º, n.º 4, do CPC.

XV. O regime jurídico das reclamações contra o relatório pericial é aplicável a uma pluralidade indeterminável – mas decerto reprodutível – de casos, em várias jurisdições, não apenas administrativa, outrossim civil.

XVI. A melhor aplicação do n.º 4 do artigo 485.º justifica uma intervenção deste Supremo Tribunal Administrativo para determinar se, à luz do princípio do inquisitório, o juiz pode extravasar o âmbito de aplicação daquele preceito – circunstância em que, afinal, ele deixaria de ter qualquer sentido útil -, ou se, ao invés, ele constitui lex specialis em casos como o dos autos.

XVII. A quarta questão diz respeito à exclusão de propostas com fundamento em normas procedimentais dúbias ou obscuras: pode uma regra dúbia constante de um programa do concurso ou de um caderno de encargos ser invocada por uma entidade adjudicante para fundamentar uma causa de exclusão de uma proposta apresentada no âmbito de um procedimento de contratação pública sujeito à Parte II do CCP? Será essa exclusão compatível com os princípios da transparência e do mais amplo acesso à concorrência, bem como com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, designadamente com a doutrina resultante dos Acórdãos Pippo Pizzo e Lavorgna?

XVIII. Está em causa saber se, em face do enunciado polissémico do caderno de encargos, é talqualmente possível aos concorrentes formular um percurso hermenêutico diverso e chegar a uma conclusão distinta, sem com ela desvirtuar o disposto naquela peça concursal. E, sobretudo, saber se, tendo-o feito, podem ser penalizados com a exclusão por uma entidade adjudicante (ou por um Tribunal) que adote um sentido interpretativo distinto das mesmas normas procedimentais.

XIX. A solução sustentada pelo Tribunal a quo coloca-se em rota de colisão frontal com a jurisprudência consolidada do TJUE, que tem, consistentemente, imposto a solução contrária.

XX. Esta é também uma situação jurídica potencialmente repetível, sempre que as peças concursais apresentarem conteúdo dúbio, polissémico ou indeterminado. Em tais casos, o órgão jurisdicional é chamado à realização de uma operação de conciliação entre o disposto no artigo 70.º, n.º 2, do CCP e o artigo 1.º-A, n.º 1, do mesmo Código, obrigando a verificar se foi ou não possível aos candidatos ou concorrentes uma correta formação da sua vontade.

(B) XXI. Uma vez admitido o recurso, deve, antes do mais, verificar-se o erro de julgamento em que incorreu o Tribunal a quo, ao não declarar a nulidade do pedido de esclarecimentos aos peritos, em violação do disposto no n.º 4 do artigo 485.º do CPC.

XXII. Não pode um Tribunal, nos termos desse preceito, colocar novas questões aos peritos, distintas das originárias, nem solicitar esclarecimentos adicionais aos peritos que já se haviam pronunciado devidamente, após a produção de prova testemunhal.

XXIII. Sendo demonstrado que o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa cometeu um erro de julgamento ao dar provimento à ação em decorrência da prova pericial ilicitamente produzida, daí resulta a nulidade da sua Sentença, com a consequente desconsideração dos segundos esclarecimentos prestados pelos peritos e com uma nova valoração da prova produzida em juízo, por força do n.º 1 do artigo 195.º do CPC.

XXIV. O artigo 411.º do CPC nunca poderia constituir uma norma de competência neste caso, já que, tanto para o pedido de esclarecimentos do relatório pericial quanto para a solicitação de uma nova peritagem, o CPC dispõe de regras e delimites próprios, que devem ser respeitados, funcionando o artigo 411.º como uma norma que parametriza a concreta operatividade daquelas regras, e não como norma que, sem mais, permite desrespeitá-las.

XXV. Se valesse o entendimento do Tribunal recorrido e o juiz pudesse determinar a prestação de esclarecimentos ou aditamentos à perícia, ao abrigo do artigo 411.º do CPC, fora dos casos previstos no n.º 2 do artigo 485.º daquele Código, então o n.º 4 deste último preceito não teria qualquer conteúdo normativo próprio.

XXVI. Nos termos da regra interpretativa fixada no n.º 3 do artigo 9.º do CC, não pode deixar de presumir-se que o legislador consagrou, no n.º 4 do artigo 485.º do CPC, a solução mais acertada, ao reportar-se, apenas, aos relatórios periciais dos quais caiba reclamação das partes, por apresentarem “deficiência, obscuridade ou contradição”.

XXVII. Em segundo lugar, o próprio Tribunal a quo reconheceu que o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa errou quando indeferiu, por extemporaneidade, a reclamação apresentada pelo Réu quanto aos esclarecimentos prestados pelos peritos, constante da notificação expedida em 19 de janeiro de 2021, para exercício do contraditório sobre os esclarecimentos prestados pelos peritos; o Douto Acórdão recorrido admite que tal indeferimento acabou por “atentar, designadamente, contra o princípio da cooperação e da boa fé processual” (cfr. páginas 105 e 106 do Acórdão recorrido).

XXVIII. Porém, contrariamente ao que foi sustentado pelo Douto Acórdão recorrido, esse indeferimento não se reduziu a uma mera irregularidade: não há nulidade apenas quando a irregularidade possa influir na decisão, mas também quando aquela possa influir no exame da causa (cfr. artigo 195.º do CPC).

XXIX. Com esse indeferimento, o Tribunal, simultaneamente:

i) Proferiu decisão surpresa sobre a gestão processual anteriormente decidida (isto é, o prazo processual que ele próprio havia anteriormente fixado);

ii) Impediu por essa via o exercício do contraditório por parte do Município de Cascais, em contradição com o seu despacho anterior, de 19 de janeiro de 2021.

iii) Praticou, assim, um ato nulo, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – que, como é claro, teve interferência no modo como a matéria de facto veio a ser julgada.

(D) XXX. Em terceiro lugar, o Tribunal a quo errou ao não julgar provada a exceção de ilegitimidade ativa da Autora, considerando-a prejudicada unicamente em virtude das declarações que ela mesma prestou no processo, ao arrepio do disposto no n.º 3 do artigo 30.º do CPC.

XXXI. Para aferir a ilegitimidade da Autora, não importa se a mesma afirma, subjetivamente, que “mantém o interesse na prossecução da lide”, mas sim se, de acordo com a configuração que a mesma faz das ações por si intentadas, esse interesse se mantém objetivamente, ou se, pelo contrário, deixa de existir.

XXXII. A legitimidade ativa tem de ser mantida, continuamente, ao longo de todo o processo: se a Autora a perde, a instância extingue-se devido à absolvição do demandado. Uma vez perdida a legitimidade ativa, a Autora não a pode ressuscitar através de declarações no processo.

XXXIII. Sem prescindir, permanece por esclarecer a questão fundamental de saber porque razão é que a Autora peticiona, no processo sub judice, a anulação do ato de adjudicação, quando vem peticionar, noutro processo, a anulação ou a declaração de nulidade do Contrato por vícios próprios do procedimento pré-contratual. Ao “atacar” o objeto da relação jurídica contratual em curso, a Autora denuncia que, afinal, não pretende ser, ela própria, parte naquele Contrato.

(E) XXXIV. Em quinto lugar, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao não considerar verificada a exceção de ilegitimidade da Autora em virtude da existência de uma causa de exclusão da sua própria proposta, nos termos do artigo 95.º, n.º 3, do CPTA, porque:

i) Considerando o disposto no artigo 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e), do CPTA, não seria possível recusar conhecer a ilegitimidade da Autora, com fundamento na não invocação desta mesma causa de ilegitimidade, pela ora Recorrente, perante o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa;

ii) No próprio relatório preliminar do concurso, o Júri reconheceu que a proposta da Autora efetivamente previa um plano de renovação de frota que era diferente do exigido no Caderno de Encargos;

iii) A Autora nunca propôs substituir veículos Euro V por Euro VI, antes prevendo expressamente a possibilidade da sua substituição por outros veículos Euro V;

iv) Ao admitir que não previa cumprir o Caderno de Encargos, a Autora teria de ver a sua proposta excluída, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP;

v) Aliás, os esclarecimentos prestados pela Autora, na fase de audiência dos interessados, não visaram aclarar, explicitar, clarificar nenhum elemento da proposta, mas alterar a proposta e suprir uma violação do Caderno de Encargos que, necessariamente, teria de levar à exclusão, nos termos do n.º 2 do artigo 72.º do CCP.

(F) XXXV. Ainda que a exceção de ilegitimidade ativa da Autora fosse improcedente (o que não se admite), o Tribunal a quo sempre teria de apreciar e declarar a inutilidade superveniente da lide, extinguindo a instância, nos termos dos artigos 177.º, alínea e), e 652.º, n.º 1, alínea h), do CPC. Incorreu, pois, em erro de julgamento ao recusar a verificação dessa causa de extinção da instância.

(G) XXXVI. O Douto Acórdão recorrido padece de um novo erro de julgamento por proceder à interpretação do ponto 4.2 das Cláusulas Técnicas do Caderno de Encargos como se de um ato normativo legal se tratasse, socorrendo-se expressamente do artigo 9.º do CC.

XXXVII. Contudo, a interpretação dos cadernos de encargos não pode prescindir dos cânones vertidos nos artigos 236.º e seguintes do CC: se é verdade que o artigo 238.º do CC coloca um limite claro aos resultados interpretativos que sejam extraídos a partir do artigo 236.º do mesmo Código, o que não permite é que a vontade real das partes, mais do que limitada pela natureza formal do texto (cfr. artigo 238.º), seja puramente ignorada como irrelevante, como se estivesse em causa um texto legal que fosse perfeitamente alheio a uma cláusula do contratual (cfr. artigo 9.º do CC).

XXXVIII. Tal tese é inaceitável em face da solução positivada pelo legislador, à qual o aplicador deve obediência, que tomou a iniciativa de impor uma definição legal de Caderno de Encargos no n.º 1 do artigo 42.º do CCP, qualificando-o como “a peça do procedimento que contém as cláusulas a incluir no contrato a celebrar”.

XXXIX. Está em causa, portanto, um documento que, embora dotado de uma natureza vinculativa para todos os participantes no procedimento, tem um conteúdo que consiste no contrato a celebrar pelas partes no final do procedimento. É à luz das suas cláusulas que será regida a relação entre as partes.

XL. Por ser assim, não se compreende como se poderia propor interpretar um documento que regula uma relação negocial sem levar em conta as regras de interpretação de declarações negociais – substituindo-as pelas regras de interpretação de atos legislativos.

XLI. A insistência numa interpretação legalista dos Cadernos de Encargos teria como efeito paradoxal que, nos casos em que a celebração de um contrato escrito fosse inexigível ou dispensável (cfr. o n.º 3 do artigo 95.º do CCP), a relação contratual se regesse por um binómio que resultaria de uma proposta adjudicada (declaração negocial interpretada de acordo com os artigos 236.º e seguintes do CC) e um Caderno de Encargos que, aparentemente seria interpretado de acordo com o artigo 9.º do CC. Portanto, o mesmo contrato previsto no n.º 3 do artigo 95.º do CCP resultaria de dois documentos sujeitos a critérios interpretativos opostos, redundando num texto esquizofrénico suscetível de impor soluções contraditórias entre si.

XLII. Assim, é claro que a averiguação da vontade real da entidade adjudicante — desde que correspondente a um dos sentidos possíveis decorrentes do teor do Caderno de Encargos — não podia ser ignorada na interpretação do ponto 4.2 das Cláusulas Técnicas, em cumprimento da diretriz interpretativa prevista no n.º 2 do artigo 236.º do CC.

XLIII. Ora, essa vontade real, confirmada pela prova testemunhal produzida em 5 de janeiro de 2021 – que o Tribunal a quo apenas considerou como irrelevante nas páginas 127 e 130 do Acórdão recorrido em virtude do seu erro de julgamento quanto à inaplicabilidade dos artigos 236.º e seguintes do CC –, inequivocamente confirmou que a entidade adjudicante pretendeu incluir lugar fixo ou rebatível no número de lugares sentados fixados no ponto 4.2 das Cláusulas Técnicas.

XLIV. E é evidente que essa vontade real corresponde inteiramente a um dos sentidos interpretativos possíveis decorrentes da cláusula 4.2 das Cláusulas Técnicas do Caderno de Encargos; mais do que isso: ele é, na verdade, o único sentido interpretativo viabilizado pelo nosso ordenamento jurídico, na medida em que:

a) Confirma a natureza funcional ou de desempenho que foi atribuída aos requisitos do Caderno de Encargos, justamente em respeito da ordem de preferência legal, fixada nas alíneas a) e c) do n.º 7 do artigo 49.º do CCP, para a enunciação de qualquer especificação técnica;

b) Salvaguarda o limite à exclusão de propostas imposto pela parte final da alínea b) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP;

c) Assegura a aplicação do princípio da concorrência, consagrado no n.º 1 do artigo 1.º-A do CCP, no seu sentido, declarado pelo Tribunal de Justiça, como impondo “a maior abertura possível do concurso à concorrência”;

d) Impede a entidade adjudicante e o Tribunal de incorrerem numa violação frontal do princípio da transparência, consagrado no mesmo n.º 1 do artigo 1.º-A do CCP, tal como também perspetivado pelo Tribunal de Justiça;

XLV. Subsidiariamente, ainda que assim se não entendesse, ainda então se encontraria um outro fundamento para a revogação do Douto Acórdão recorrido: paradoxalmente, a proposta adjudicada da Contrainteressada teria de ser considerada compatível com o Caderno de Encargos ainda que se recorresse exclusivamente às regras interpretativas preferidas pelo Tribunal a quo, decorrentes dos cânones fixados no artigo 9.º do CC;

XLVI. No ponto 4.2 das Cláusulas Técnicas, apenas é exigido que o veículo proposto tenha “18 lugares sentados” e que esses lugares sejam “bancos de passageiros fixos, em plástico, almofadados e forrados a tecido no assento e costas” (cfr. facto provado C)).

XLVII. À luz dessa redação, o conceito de “lotação” de uma viatura – em que repousa a conclusão do relatório pericial apresentado em juízo, como fundamento para alegar uma suposta incompatibilidade da proposta adjudicada – nunca foi definido (nem sequer mencionado!) no Caderno de Encargos; aliás, não se trata de um termo comum no setor dos automóveis pesados de passageiros.

XLVIII. Reitere-se: este erro de julgamento já não viola apenas os artigos 236.º e 238.º do CC, mas agora também o artigo 9.º do CC, para quem insistisse na sua aplicação, dado que ambos sempre imporiam um mínimo de correspondência verbal com a letra do Caderno de Encargos – e não há como argumentar que o clausulado do Caderno de Encargos encontra alguma correspondência verbal com um conceito de “lotação” que jamais foi referido nessa peça do procedimento.

XLIX. Ademais, ainda que o conceito de “lotação” pudesse ser utilizado neste caso, os ordenamentos jurídicos nacional (Decreto-Lei n.º 58/2004), europeu (Diretiva n.º 2001/85/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de novembro) e internacional (Regulamento n.º 107 da UNECE) apontariam então no sentido – não refutado no Acórdão do Tribunal a quo – de que o conceito de “lotação” se pode referir a “lotação fixa” ou a “lotação variável”. O mesmo é dizer que, juridicamente, o conceito engloba dois sentidos: portanto, admite mais do que uma aceção possível.

L. De acordo com o n.º 2 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 58/2004, de 19 de março, e com o ponto 7.2.2.4 do Anexo 3 do Regulamento n.º 107 da UNECE, a aceção de “lotação variável” admite que lugares rebatíveis sejam contabilizados como lugares sentados.

LI. Assim, a proposta da Recorrente cumpre as exigências do ponto 4.2. das Cláusulas Técnicas do Caderno de Encargos quanto à existência de 18 lugares sentados.

LII. Paralelamente, o veículo proposto pela Autora também cumpre os requisitos funcionais e de desempenho visados com o requisito “3 filas longitudinais, 2+ 1”.

LIII. Com efeito, é a lei, e não um juízo baseado num relatório pericial, que esclarece as funções do corredor que as linhas longitudinais visam criar: sobre este corredor, o n.º 23 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 58/2004, de 19 de março, dispõe que se destina a permitir “aos passageiros terem acesso, a partir de qualquer banco ou fila de bancos, a qualquer outro banco ou fila de bancos, ou a qualquer passagem de acesso a ou de uma porta de serviço ou escada de intercomunicação ou área destinada a passageiros de pé”.

LIV. Donde o Tribunal recorrido cometeu um erro de julgamento ao entender que a proposta da Recorrente violou o ponto 4.2 das Cláusulas Técnicas do Caderno de Encargos.

(J) LV. A douta Sentença recorrida procedeu à aplicação de uma interpretação normativa inconstitucional do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 174/2019 e na alínea a) do artigo 1.º da Portaria n.º 121/2020, por violação do disposto nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 268.º, n.º 4, da Constituição.

LVI. O direito fundamental a um processo equitativo proíbe que as partes não tenham a possibilidade de realizar devidamente o seu papel na fase instrutória do processo e, ainda, se o órgão jurisdicional não a tiver em conta (artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 268.º, n.º 4, da Constituição).

LVII. Salvo o devido respeito, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa só admitiu a produção de prova requerida pelo Réu para manter uma aparência de legalidade. Tal é comprovável pelo teor do Despacho de 21 de outubro de 2020, que depois deu “sem efeito” apenas em face do recurso que lhe foi dirigido, nos termos do qual qualquer prova adicional seria “irrelevante”.

LVIII. O Tribunal a quo considerou que a redistribuição do processo determinada pelo n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 174/2019 e pela alínea a) do artigo 1.º da Portaria n.º 121/2020 poderia ter o efeito de reformular os temas e os meios de prova previamente fixados pelo Tribunal original, autorizando o Tribunal destinatário a desconsiderar o teor do Despacho Saneador e os temas e meios de prova nele previstos.

LIX. Daqui resulta que a interpretação normativa atribuída pelo Tribunal a quo ao n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 174/2019 e à alínea a) do artigo 1.º da Portaria n.º 121/2020 é insuscetível de ser compatibilizada com o direito fundamental à tutela jurisdicional efetivo e a um processo equitativo, na sua vertente probatória, protegido pelos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 268.º, n.º 4, da Constituição.

LX. Ao perfilhar uma interpretação do ponto 4.2 cujo sentido só é apreensível na sequência de um juízo complexo de conjugação de elementos legislativos, procedimentais, técnicos e periciais, fundamentando nessa interpretação possível do Caderno de Encargos uma alegada causa de exclusão da proposta da Autora, o Tribunal a quo incorreu numa violação do princípio da transparência, previsto no artigo 1.º-A, n.º 1, do CCP.

LXI. No caso concreto, sem (i) o apelo a lugares-paralelos providos por atos legislativos que o Tribunal considerou relevantes, (ii) duas solicitações consecutivas a peritos, cujo relatório inicial não foi suficientemente esclarecedor e exigiu a solicitação de esclarecimentos adicionais e (iii) a produção de um juízo (aliás equivocado) de preferência das afirmações desses peritos sobre pareceres técnicos contrários e sobre a prova testemunhal produzida em audiência, que permitia alcançar as conclusões opostas, não poderia o Tribunal alcançar qualquer conclusão quanto ao significado a atribuir à cláusula 4.2 das Cláusulas Técnicas do Caderno de Encargos.

LXII. Porém, em caso de dúvida relativamente ao sentido das normas do caderno de encargos, a jurisprudência do TJUE e deste Supremo Tribunal têm entendido, consistentemente, que à luz do princípio da transparência – em conexão com o princípio da igualdade concorrencial –, pode até determinar a revogação da decisão de contratar nos casos em que a entidade adjudicante é incapaz de formular um conteúdo claro para as peças do procedimento.

LXIII. Quando uma exclusão assenta – na terminologia do juiz europeu – na “interação” entre vastos elementos normativos e técnicos, de natureza jurídica e extrajurídica, a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça declara a ilicitude dessa amputação artificial do universo concorrencial, sendo vedada, designadamente, pela doutrina decorrente dos Acórdãos Cartiera dell’Adda, Pippo Pizzo ou Lavorgna.

LXIV. Além disso, na medida em que essa interpretação complexa, não imediata ou necessariamente decorrente do Caderno de Encargos, reduziu o universo potencial de concorrentes e impediu a obtenção da adjudicação por quem subscrevesse uma interpretação mais flexível – igualmente possível do Caderno de Encargos –, ela também prejudicou a aplicação do princípio da concorrência, na dimensão que exige à entidade adjudicante “a maior abertura possível do concurso à concorrência”; daí decorreu a violação do próprio princípio da concorrência, igualmente previsto no n.º 1 do artigo 1.º-A do CCP.

(L) LXV. Paralelamente, do princípio da segurança jurídica decorrente do artigo 2.º da Constituição emerge a obrigação de cada ente público assegurar aos cidadãos “a possibilidade, juridicamente garantida, de poder calcular e prever os possíveis desenvolvimentos da atuação dos poderes públicos suscetíveis de se repercutirem na sua esfera jurídica”.

LXVI. No caso presente, a entidade adjudicante inscreveu no Caderno de Encargos uma exigência técnica que, comprovadamente, foi objeto de interpretações distintas por diferentes concorrentes, as quais – de acordo com a prova produzida em juízo e não segundo meras especulações criativas – são simultaneamente apoiadas por distintos peritos e especialistas técnicos.

LXVII. Um dos concorrentes — a aqui Recorrente — depositou a sua confiança no texto do Caderno de Encargos e creu na viabilidade de uma das interpretações que dele decorrem e que são suportadas por especialistas do sector. Em face dessa confiança, investiu tempo e recursos na elaboração de uma proposta, a qual mereceu a adjudicação e, em consequência, após a celebração do contrato, iniciou a sua execução.

LXVIII. Porém, a Recorrente confronta-se agora com uma interpretação normativa que impõe um entendimento rígido do ponto 4.2 das Cláusulas Técnicas do Caderno de Encargos, apoiando-se num juízo complexo de conjugação de elementos jurídicos e extrajurídicos para perfilhar essa interpretação e rejeitar o sentido em que a Recorrente confiou; e, com base nesse entendimento do Caderno de Encargos, o Tribunal a quo conclui que é possível resolver a dúvida quanto ao seu teor por impor aos concorrentes um dos seus sentidos possíveis, sendo ele o sentido mais rígido ou exigente, e não o seu sentido mais flexível.

LXIX. Esta interpretação normativa da alínea b) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP – segundo a qual uma proposta pode e deve ser excluída quando desrespeita um dos sentidos possíveis de uma cláusula do Caderno de Encargos, ainda que essa cláusula seja suscetível de ser interpretada num sentido oposto, no qual um ou mais concorrentes depositaram razoavelmente a sua confiança – é frontalmente contrária ao princípio da segurança jurídica protegido pela ideia de Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.

LXX. Portanto, a interpretação normativa da alínea b) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP perfilhada pelo Tribunal a quo é inconstitucional por violação do princípio da segurança jurídica protegido pela ideia de Estado de Direito consagrada no artigo 2.º da Constituição.

LXXI. A alínea a) do n.º 7 do artigo 49.º do CCP (bem como a alínea a) do n.º 3 do artigo 42.º da Diretiva 2014/24) fixa uma preferência legal em benefício de requisitos que apenas digam respeito ao desempenho do bem, serviço ou obra a executar ou que apenas enunciem exigências funcionais a satisfazer pelas prestações a adquirir.

LXXII. É isso que explica o fenómeno observado na parte final da alínea b) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP: a causa de exclusão decorrente de uma eventual violação do Caderno de Encargos é bloqueada ou neutralizada pelo cumprimento dos requisitos funcionais ou de desempenho por soluções alternativas àquelas previstas no Caderno de Encargos.

LXXIII. Visto que a proposta adjudicada da Recorrente satisfez integralmente o disposto na cláusula 4.2 das Cláusulas Técnicas do Caderno de Encargos, a alínea b) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP nunca poderia ser aplicável à proposta da Recorrente; assim, a exclusão dessa proposta, tal como exigida pelo Tribunal a quo no presente processo, constitui um (outro) erro de julgamento.

LXXIV. Com a sua decisão de afastamento do disposto no n.º 4 do artigo 283.º do CCP, o Tribunal a quo:

i) Incorreu num erro de julgamento ao confundir os juízos – distintos e autónomos – previstos nos n.ºs 2 e 4 daquele artigo 283.º;

ii) Preteriu a ponderação prevista neste último preceito legal, que nem sequer chegou a ser realizada;

iii) Desconsiderou em absoluto os prejuízos decorrentes da anulação do contrato que fixou para o caso concreto, julgando que a ilegalidade do contrato – mesmo que existisse, o que não se admite – justificaria a interrupção da operação do Sistema de Transporte Rodoviário Regular de Passageiros do Concelho de Cascais, que serve as necessidades diárias de mais de 200.000 cidadãos;

iv) Desconsiderou igualmente os prejuízos decorrentes da inutilização dos custos superiores a 25 milhões de euros, em que a Contrainteressada e ora Recorrente incorreu, na execução do contrato cuja operação se iniciou em 25 de maio de 2021 – custos esses que a Recorrente não pode utilizar em qualquer outro sector de atividade;

v) Sustentou uma interpretação normativa do n.º 4 do artigo 283.º do CCP segundo a qual a identificação (real ou putativa) de uma ilegalidade grave de um contrato seria suficiente para eliminar a ponderação de quaisquer interesses favoráveis à manutenção desse contrato e para desconsiderar quaisquer danos decorrentes da anulação do contrato – o que explica a decisão de interrupção do referido Sistema de Transportes e de destruição de um investimento superior a 25 milhões de euros;

vi) Com isso, incorreu na aplicação de uma interpretação normativa inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade e da prossecução do interesse público, nos termos do n.º 4 do artigo 283.º do Código dos Contratos Públicos e dos artigos 2.º e 266.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição;

vii) Adicionalmente, incorreu no paradoxo de sustentar também que o n.º4 do artigo 283.º do CCP não pode ser aplicado quando “os prejuízos potencialmente advenientes do início da execução do contrato terão a sua génese no levantamento do efeito suspensivo”, esquecendo que um contrato público cujo ato pré-contratual tenha sido impugnado só estará a produzir efeitos na data da prolação de uma eventual Sentença de provimento – só então se colocando a hipótese de aplicar o n.º 4 do artigo 283.º – se o efeito suspensivo automático tiver sido levantado ou nenhumas medidas provisórias tiverem sido requeridas, nos termos (respetivamente) dos artigos 103.º-A e 103.º-B do CPTA, o que implica que nenhum caso restaria em que o n.º 4 do artigo 283.º do CCP pudesse ser aplicado;

viii) Como lapso adicional, invocou o “impacto financeiro considerável” da manutenção do contrato celebrado com a Contrainteressada como motivo adicional para considerar justificada a anulação do contrato, sem se recordar que, com isso, ordenou a adjudicação da proposta classificada em segundo lugar (da Autora), que apresentou um preço muitíssimo superior ao da proposta adjudicada e resultaria, em consequência, num impacto financeiro muito maior no caso de anulação do contrato.

LXXV. Portanto, ainda que o ato de adjudicação da proposta da Recorrente fosse reputado de inválido – o que não se concede –, sempre teria de concluir-se, a título subsidiário, que o contrato celebrado entre a Recorrente e a Entidade Demandada não poderia ser anulado, sob pena de violação dos princípios da proporcionalidade e da prossecução do interesse público, nos termos do n.º 4 do artigo 283.º do CCP e dos artigos 2.º e 266.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.

Nestes termos e nos melhores de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Ex.as, deve o presente recurso de revista ser admitido e considerado procedente, sendo, consoante se entenda:

a) Ser declarada nula a Sentença do Tribunal do Administrativo de Círculo de Lisboa que julgou procedente a presente ação e, em consequência, revogado o Douto Acórdão recorrido que recusou verificar essa nulidade;

b) Quando assim não se entenda, ser julgada procedente, por provada, a exceção de ilegitimidade ativa superveniente e, consequentemente, determinar-se a absolvição da instância;

c) Quando assim não se entenda, ser julgada procedente, por provada, a inutilidade superveniente da lide e, em consequência, ser determinada a extinção da instância;

d) Quando assim não se entenda, ser julgada procedente, por provada, a invalidade da decisão impugnada quanto à não exclusão da proposta apresentada pela Autora, concluindo-se consequentemente pela respetiva ilegitimidade ativa e pela absolvição da instância;

e) Quando assim não se entenda, ser a presente acção julgada totalmente improcedente;

f) Quando assim não se entenda, ser afastado o efeito anulatório do contrato, nos termos do artigo 283.º,n.º 4, do Código dos Contratos Públicos, Como é de Direito e de Justiça!”

5. Uma vez notificados das alegações, A…………, LDA. veio deduzir contra-alegações, respeitantes aos dois recursos, concluindo:

“A. O caso é este: o Caderno de Encargos (ponto 4.2. das cláusulas técnicas) estabelece certas exigências técnicas que os minibus tinham de cumprir:

4.2. Minibus/Semiurbanos (viaturas entre 7 a 9,5 metros homologadas para serviço de transporte público urbano em Portugal, na categoria europeia M3, classe I)

• 17 minibus/semiurbanos, novos [entre 0 (zero) a 500 (quinhentos) quilómetros], com a seguinte disposição:

os 18 lugares sentados, dispostos segundo 3 filas longitudinais (2+1), dos quais 4 devem ser reservados a pessoas com mobilidade reduzida (PMR);

o 1 lugar para cadeiras de rodas;

• Espaço para cadeiras de rodas na traseira do veículo;

B. No Relatório Pericial aprovado unanimemente pelos 3 peritos, considerou-se que o minibus da proposta da B............ (imagem abaixo) não cumpre três dessas exigências: não tem (i) 18 lugares sentados, (ii) segundo três filas longitudinais (2+1); (iii) e, adicionalmente, um lugar para cadeira de rodas.

C. As características do minibus proposto pela B............ são, como se vê pela imagem, as seguintes:

(i) 15 lugares sentados (não 18, porque os de trás, sendo rebatíveis, não contam nos termos da lei)

(ii) 15 lugares dispostos segundo três filas longitudinais (2+1)

(iii) 3 bancos rebatíveis no espaço destinado a cadeira de rodas (ou vice-versa)

(iv) 1 lugar para cadeira de rodas, que, situado na parte traseira do veículo, inviabiliza necessariamente a utilização dos bancos rebatíveis quando haja algum utente portador de cadeira de rodas (além de também inviabilizar a utilização da totalidade dos bancos rebatíveis durante a entrada e saída no veículo da referida cadeira de rodas), sendo que, claro, se os bancos estiverem a ser utilizados, não haverá lugar para a cadeira de rodas.

A inadmissibilidade da revista

D. A ilegalidade sancionada pelo Tribunal, conjugando o Relatório Pericial e o CCP, não suscita dúvidas, não cabendo revista do Acórdão (claro e escorreito) do TCA Sul. "Não pode admitir-se o recurso se o recorrente invoca como pressuposto específico do seu recebimento o erro em que incorreram as instâncias no julgamento e não se evidencia a verificação do mesmo erro" (acórdão do STA de 08.09.2021) e, por outro lado, "não podem considerar-se verificados os invocados requisito de relevância jurídica fundamental e de melhor aplicação do direito [...] se a solução a que chegaram as instâncias se mostra alicerçada numa interpretação coerente e acertada das normas jurídicas aplicáveis" (acórdão do STA de 10.11.2021).

E. No recurso de revista não cabe a discussão de contornos específicos de um caso concreto ou pormenores que não sejam replicáveis noutros casos e que não tenham relevância jurídica ou social fundamental. E também não cabe nela a análise de questões teoricamente muito interessantes, mas não tenham relevância para o caso concreto (como decidiu o STA, “na determinação da importância fundamental poderá ter[-se] em atenção a vantagem na clarificação de determinada matéria", mas "essa vantagem ou finalidade não transforma o recurso em instrumento de discussão jurídica à margem ou com abstração da lide de que se cuida" (acórdão do STA de 24.05.2011, proc. 01047/10).

F. É irrelevante para o caso a questão sobre os critérios da interpretação de cláusulas do caderno de encargos (saber se se aplica o artigo 9.° do CC, conforme decidido na primeira instância e em sede de recurso, ou os artigos 236.° e seguintes do CC) e o que fazer quando elas sejam pouco claras ou dúbias.

G. O ponto 4.2 das cláusulas técnicas do Caderno de Encargos não suscita quaisquer dúvidas: os Peritos foram unânimes, a testemunha C………… - Diretor na D………… GmbH, a maior subsidiária europeia da E………… AG, que comercializa a marca ………, marca dos minibuses propostos pela B............ - foi clara e as duas decisões judiciais foram assertivas.

H. A questão sobre as regras de interpretação do caderno de encargos não assume relevância para a resolução do caso — e ela só é levantada pelos Recorrentes porque, a determinada altura do processo, o Município de Cascais queria provar que a vontade psicológica dos autores materiais do caderno de encargos afinal não ia no sentido de que os minibuses tinham de ter as características definidas no caderno de encargos (!).

I. As regras da interpretação das peças do procedimento não suscitam grandes dúvidas e devem ser essencialmente objetivas (no sentido da natureza normativa ou conformadora do Caderno de Encargos, cf., designadamente, Pedro Costa Gonçalves, Direito dos Contratos Públicos, p. 615 e 616, Pedro Fernández Sanchez, em Direito da Contratação Pública, p. 614, e Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e Outros Procedimentos de Contratação Pública, p. 357).

J. O que se compreende: os concorrentes não têm "acesso" à vontade psicológica da entidade adjudicante, apenas conhecem os documentos e demais textos que compõem o procedimento e que foram preparados e aprovados por ela, sendo com base neles que apresentam as suas propostas e ao abrigo dos quais todas as propostas devem ser analisadas e classificadas. A vontade da entidade adjudicante opera objetivamente, de acordo com o texto e contexto dos documentos disponibilizados.

K. No entanto, mesmo atendendo à vontade real da entidade adjudicante, a verdade é que se concluiu em sede de produção de prova que o resultado seria o mesmo. Por um lado, porque os conceitos utilizados no ponto 4.2 das cláusulas técnicas do caderno de encargos são técnicos, de um setor de atividade específico, e, por outro lado, porque as testemunhas do Município de Cascais confirmaram que era sua intenção utilizar esses conceitos com o seu sentido técnico, esclarecendo que as expressões do Caderno de Encargos têm o sentido com que são entendidos no contexto setorial relevante.

L. Veja-se, por exemplo, o que respondeu a testemunha F………… à pergunta do Ilustre Advogado do Município de Cascais relativa aos conceitos utilizados no Caderno de Encargos [gravação da audiência de julgamento de 05.01.2021, 01:38:40]: Pergunta: "são conceitos que correspondem ao sentido corrente destas expressões no mercado automóvel?"; Resposta: "eu julgo que o que eu expliquei diz respeito exatamente a isso, são termos mais técnicos usados neste meio de transportes públicos de passageiros [...]. Havia [para efeitos de elaboração do Caderno de Encargos] uma equipa com várias especialidades que também nos ajudaram a perceber e a melhor conhecer estes conceitos. E também eu cheguei a ir com os meus colegas a empresas da área que nos deram a conhecer estes conceitos e outros [...]".

M. Em relação ao outro grupo de questões levantadas pelas Recorrentes relativas à aplicação (ou não) do artigo 283.°/4 do CCP, importa esclarecer que, não sendo tais questões passíveis de ser replicadas noutros casos, já que se trata de saber se se afasta ou não o efeito anulatório da ilegalidade neste caso, também não se justifica a revista.

N. Só se fosse por erro de julgamento notório, mas o Acórdão do TCA Sul não é merecedor de um juízo de censura (muito menos, tão grave quanto esse).

O. Além disso, e como se decidiu no acórdão do STA de 20.06.2017, proc. 0267/17, o afastamento do efeito anulatório é uma "prerrogativa jurisdicional, algo de cariz excecional e de ponderação casuística [...]. Estamos perante uma «válvula de escape» do sistema, não podendo ser a regra nos contratos públicos, sob pena de as ilegalidades cometidas poderem ser facilmente escamoteadas e pervertendo-se as «regras do jogo». Apenas em casos de séria desproporção ou que ponham seriamente em causa a boa-fé se poderá lançar mão de alternativa tendo por base aquele preceito".

P. Por outro lado, "à apreciação do afastamento do efeito anulatório [...] deve presidir uma ampla discricionariedade jurisdicional, cabendo ao julgador efetuar uma ponderação de todos os interesses em presença, devendo o mesmo ter em conta uma realística relevância da gravidade do vício e considerar não apenas o ocorrido na fase de formação do contrato, mas, de igual forma, o ocorrido já após a adjudicação do contrato" (acórdão do STA de 20.06.2017, proc. 0267/17, com destaque nosso). No mesmo sentido, Pedro Fernández Sánchez: "o legislador é inequívoco ao permitir, em matéria contratual, uma ampla margem de apreciação judicial quanto à produção do efeito anulatório («o efeito anulatório [...] «pode ser afastado» por decisão judicial ou arbitral») (Direito da Contratação Pública, Volume II, 2020, p. 905).

Q. Acresce que a ilegalidade aqui em causa é grave porque viola três parâmetros base do caderno de encargos e tem impacto na operação e no transporte dos utentes.

R. Sendo certo que não podem vir as Recorrentes, em sede de recurso de revista, alegar factos novos (ou concretizá-los), para justificar o alegado erro de julgamento em que incorreu o TCA Sul...

S. A questão da suposta vantagem financeira resultante da ilegalidade (que os Recorrentes consideram que era um facto que não foi dado como provado) surgiu em sede de instrução e foi colocada pelo próprio Município de Cascais na audiência de julgamento (sessão de 14.12.2020, minutos 00:40:03), na qual a testemunha C………… - Diretor na D………… GmbH, a maior subsidiária europeia da E………… AG, que comercializa a marca ………, marca dos minibus propostos pela B............ - disse, na sequência de questão colocada pelo Ilustre Advogado do Município, que um veículo que cumprisse os termos e condições do Caderno de Encargos teria sempre de ser "maior, mais comprido e mais caro" [minutos 40:38 e seguintes da sessão de 14.12.2020]. Em concreto, à pergunta sobre se o autocarro "teria de ser maior, mais comprido?", respondeu: "o autocarro tinha que ser obrigatoriamente maior, mais comprido e mais caro, por esse motivo. Custa mais dinheiro um autocarro maior. Traz maior custo ao operador, porque tem que o comprar por um valor superior para acomodar essa linha de três lugares adicionais, para que ficassem então os dezoito mais PMR cá atrás".

T. Em qualquer caso, nos termos do artigo 150.º/4 do CPTA, o eventual (que não existiu) "erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova" - o que não é aqui o caso.

U. Não havendo, por isso, necessidade de o STA se pronunciar sobre qual deverá ser a conduta do Tribunal em consequência da "presunção de factos alegados por uma das partes (sem contraditório)", uma vez que isso não aconteceu (foram juízos tirados da experiência comum e assentes em testemunhas especialmente autorizadas) e, como tal, a resposta a essas questões são irrelevantes para o caso.

V. Em terceiro lugar, o TCA Sul também não decidiu a questão do efeito anulatório apenas com base no facto de ter sido determinado o levantamento do efeito suspensivo no processo de contencioso pré-contratual, tendo, a pp. 137 e 138 do Acórdão, referido outras várias razões.

W. Disse, por exemplo, quanto aos prejuízos alegados pela B............ - valor (não provado em parte relevante) do investimento feito -, que "resulta dos autos que esta última [A............] se comprometeu formalmente perante a B............ a assumir todos os custos comprovadamente por ela incorridos com os recursos (frota, pessoal e serviços associados) da operação que possam ser concretamente afetados ao cumprimento do contrato a celebrar entre a A............ e o Município de Cascais".

X. E também disse, por exemplo, é verdade, que "os Recorrentes pretendem usar, agora, a mesma argumentação que serviu para justificar o levantamento do efeito suspensivo automático, para pretender postergar os efeitos invalidantes de uma decisão judicial adversa, invocando a desproporção da sua execução. A colher tal argumentação, tal poderia acarretar uma conclusão pela falibilidade do sistema. Ao admitir-se o levantamento do efeito suspensivo, numa fase inicial, estar-se-ia a votar, quase invariavelmente, a decisão final, a uma vitória pírrica, porquanto uma qualquer Autora, a ter sucesso, sempre estaria votada a ver a sua pretensão postergada pelo vencido, com recurso ao disposto no art° 283°, n° 4 do CCP".

Y. É uma forma ponderada e muito sensata de, entre outras várias razões, olhar para o problema.

Z. Por outro lado, o TCA Sul ponderou, na decisão a tomar, a gravidade do vício e os prejuízos concretamente alegados pelas Recorrentes, como manda o 283.°/4 do CCP, tendo concluído — numa ponderação a que "deve presidir uma ampla discricionariedade jurisdicional", e tendo "em conta uma realística relevância da gravidade do vício" (acórdão do STA de 20.06.2017, acima citado) —, não ser de afastar o efeito regra das ilegalidades invalidade.

AA. Em suma, não cabe revista.

BB. A questão relativa à aplicação do artigo 485.º/4 do CPC, sobre as reclamações contra o relatório pericial, também não é merecedora de revista.

CC. De qualquer modo, não deixa de ser no mínimo estranho que seja a B............ a insistir nesta questão, quanto ela:

(i) compareceu apenas numa das 7 sessões presenciais que tiveram lugar ao longo de todo o processo

(ii) nunca compareceu à audiência de julgamento

(iii) não inquiriu (ou contra inquiriu) testemunhas

(iv) não se pronunciou sobre as questões a colocar aos peritos - que foram sempre elaboradas pelo Tribunal depois de ouvidas as partes (no caso, a A............ e o Município)

(v) não se pronunciou sobre os relatórios dos peritos.

(vi) Zero...

DD. No entanto, e para o que releva para a (in)admissibilidade da revista quanto a este ponto, basta dizer que, tal como foi decidido pelo TAC de Lisboa e pelo TCA Sul, se existisse qualquer nulidade quanto ao despacho que determinou a prestação dos esclarecimentos pelos peritos, ela deveria ter sido invocada atempadamente perante o Tribunal a quo dentro do prazo legal de 5 dias [artigo 199.°/1 do CPC e 102.5/2, alínea c), do CPTA] - o que não sucedeu.

A improcedência dos recursos

EE. Há dois pontos prévios que devem ser referidos quanto à improcedência dos recursos.

FF. Os erros de julgamento apontados pela B............ ao Acórdão do TCA Sul que não foram indicados e tratados como questões justificativas da admissibilidade da revista não podem ser conhecidos, uma vez que é pressuposto da ponderação da admissibilidade da revista "que o recorrente não só identifique com clareza a questão sobre a qual pretende que o STA se pronuncie, como também que alegue em que medida o conhecimento dessa questão cumpre os requisitos do n.º 1 do art. 150.º do CPTA" (acórdão do STA de 20.04.2020).

GG. As questões que não foram indicadas como justificativas da revista, mas que depois aparecem como fundamento do recurso, são as seguintes: (i) ilegitimidade da A............, (ii) indeferimento da reclamação apresentada pelo Município de Cascais e (iii) inconstitucionalidade relativa à redistribuição do processo.

HH. Segundo, é pacífico na jurisprudência do STA que "as questões de constitucionalidade não constituem objeto próprio dos recursos de revista, já que podem ser autonomamente colocadas junto do Tribunal Constitucional" (cf., designadamente, acórdãos do STA de 01.07.2020, proc. 01423/11.5, de 18.11.2020, proc. 085/17.0, e de 24.03.2021, proc. 01078/04.3).

A alegada ilegitimidade da A............

II. A A............ tem legitimidade para esta ação e não a perdeu pelo facto de ter intentado uma ação de impugnação do Contrato relativa às suas invalidades próprias, além do mais, porque desistiu desta última ação.

JJ. Quanto ao suposto erro de julgamento relativo à exclusão da proposta da A............, trata-se de questão, tal como a anterior, que não se subsume no elenco das questões que a B............ indicou como justificativas da revista, além de que tal questão não foi objeto do processo de instância e não foi sequer invocada nas contestações do Município e da B............ — não podendo assim admitir-se (não sendo sequer facto superveniente) que venha a ser colocada apenas em sede de recurso (assim, Acórdão do STA de 29.11.2018, proc. 0481/16.0).

As supostas nulidades imputadas ao Relatório Pericial

KK. São improcedentes os vícios imputados ao relatório pericial: as questões submetidas aos Peritos foram sempre elaboradas em colaboração com as partes que participaram na fase de produção de prova (Município e A............); as questões colocadas são todas do foro técnico, respeitantes a conceitos que se encontram no ponto 4.2 das cláusulas técnicas do caderno de encargos; os peritos esclareceram, de forma objetiva e sem suscitar quaisquer dúvidas de interpretação o sentido de tais conceitos e pronunciaram-se, do ponto de vista técnico, sobre se aquilo que tinha sido proposto pela B............ era compatível com o que era tecnicamente exigido. Coube depois ao Tribunal formular as proposições jurídicas necessárias à decisão sobre se a proposta da B............ deveria ter sido excluída à luz do CCP.

LL. O Tribunal pode, depois de recebido o Relatório, e ao abrigo do inquisitório, pedir novos esclarecimentos aos peritos, se eles forem considerados relevantes para o bom julgamento da causa.

MM. De resto, se existisse qualquer nulidade quanto ao Despacho que determinou a prestação dos esclarecimentos pelos peritos, ela deveria ter sido invocada atempadamente perante o Tribunal a quo dentro do prazo legal de 5 dias [cf. artigo 199.°/1 do CPC e 102.°/2, alínea c), do CPTA] - o que não sucedeu.

NN. E o mesmo vale para a suposta nulidade resultante do indeferimento da reclamação apresentada pelo Município de Cascais.

A inconstitucionalidade relativa à redistribuição do processo

OO. Não há qualquer inconstitucionalidade relativa à redistribuição do processo (!), nem se percebe como pode a B............, ausente em toda a fase de produção de prova, invocar que a atuação do Tribunal resultou numa violação de direitos processuais.

O ponto 4.2 das cláusulas técnicas do caderno de encargos

PP. Em primeiro lugar, a vontade real da entidade adjudicante não pode relevar, salvo sob apertadíssimas condições, no âmbito de documentos conformadores de um procedimento administrativo, que têm natureza normativa (cf. Pedro Costa Gonçalves, Direito dos Contratos Públicos, p. 615 e 616, Pedro Fernández Sanchez, em Direito da Contratação Pública, p. 614, e Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e Outros Procedimentos de Contratação Pública, p. 357).

QQ. Conforme decidiu o TCA Sul no Acórdão recorrido, "a empreender-se uma interpretação desse ponto do Caderno de Encargos, conivente com a que os Recorrentes pretendem fazer valer, aí sim, estar-se-ia a pôr em causa os princípios da segurança jurídica, da concorrência, da transparência, porquanto se estaria a permitir uma «flexibilização interpretativa» do Caderno de Encargos, introduzida a posteriori, sob pretexto de assim se reconstituir a «vontade real» da Entidade Adjudicante" (p. 134 do Acórdão).

Sic et simpliciter, apetece dizer!

RR. Por outro lado, o TAC de Lisboa em momento algum desconsiderou o tema da prova fixado pelo TAF de Sintra relativo à vontade real do Município de Cascais. O que o TAC de Lisboa acabou por concluir foi pela irrelevância dos depoimentos prestados pelas testemunhas para a boa decisão da causa, uma vez que, no essencial, eles versaram sobre questões técnicas e sobre conceitos - como bancos fixos, rebatíveis ou reclináveis - laterais e irrelevantes para a decisão da causa (ver pp. 62 e 66 da sentença).

SS. Em terceiro lugar, as testemunhas do Município de Cascais tiveram oportunidade de esclarecer no seu depoimento que as expressões/conceitos que constam do caderno de encargos são precisamente os utilizados no contexto técnico e setorial relevante.

A testemunha F………… respondeu nos seguintes termos à pergunta do Ilustre Advogado do Município de Cascais relativa aos conceitos utilizados no Caderno de Encargos [gravação da audiência de julgamento de 05.01.2021, 01:38:40], a saber, "são conceitos que correspondem ao sentido corrente destas expressões no mercado automóvel?'': "Eu julgo que o que eu expliquei diz respeito exatamente a isso, são termos mais técnicos usados neste meio de transportes públicos de passageiros [...]. Havia [para efeitos de elaboração do Caderno de Encargos] uma equipa com várias especialidades que também nos ajudaram a perceber e a melhor conhecer estes conceitos. E também eu cheguei a ir com os meus colegas a empresas da área que nos deram a conhecer estes conceitos e outros [...]".

TT. A proposta da B............ não cumpria o ponto 4.2. das cláusulas técnicas do caderno de encargos, o que foi atestado pelo Relatório Pericial.

UU. A interpretação feita pelo TAC de Lisboa e confirmada pelo TCA Sul sobre o ponto 4.2. das cláusulas técnicas do caderno de encargos, ancorada diretamente no relatório pericial unânime e nos esclarecimentos prestados pelo peritos [e que também foi corroborada pela testemunha C………… - Diretor na D………… GmbH, a maior subsidiária europeia da E………… AG, que comercializa a marca ………, marca dos minibus propostos pela B............ - [minuto 40:38 e ss. da gravação da audiência de julgamento de 14.12.2020] e pela testemunha F…………, do Município de Cascais [minuto 01:38:40 e ss. da gravação da audiência de julgamento de 05.01.2021], é irrepreensível (não suscitando, portanto, quaisquer dúvidas).

VV. A jurisprudência tem entendido - mesmo se esta fórmula possa parecer um pouco excessiva - que "o juízo técnico e científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador; o julgador está amarrado ao juízo pericial, sendo que sempre que dele divergir deve fundamentar esse afastamento, exigindo-se um acrescido dever de fundamentação" [cf. Acórdão do TRL de 11.03.2010 (proc. n.° 949/05.4)].

WW. A interpretação feita pelo Município de Cascais e pela B............ (mas que não foi acompanhada pelo depoimento das suas próprias testemunhas) não tem o mínimo de correspondência com a letra da cláusula.

XX. Aliás, inconstitucional seria uma interpretação do artigo 70.°/2, alínea b), e do artigo 146.°/2, alínea o), do CCP, segundo a qual uma proposta que apresente termos ou condições que violem aspetos da execução do contrato a celebrar por aquele não submetidos à concorrência não deva ser excluída, por violação dos princípios da concorrência e da igualdade entre operadores (artigo 266.°/2 da CRP).

YY. A viatura proposta pela B............ no concurso para a categoria minibus não cumpre três dos requisitos do ponto 4.2. das cláusulas do caderno de encargos, qualquer que seja o cenário que se pondere.

ZZ. O tipo de minibus proposto não tem 18 lugares sentados, mas apenas 15 lugares sentados.

Com efeito, os últimos três bancos são rebatíveis - o que é pacífico para todas as partes. A lei não podia ser mais clara e os Peritos também não: os lugares rebatíveis não contam para o número de lugares sentados (cf. artigo 12.°/1 do DL n.º 58/2004 e ponto 7.2.2.3. do Anexo 3 do Regulamento n.º 107 da UNECE), resultando expressamente desse preceito da lei (que tem por epígrafe "Lugares sentados") e desse Anexo 3 que "deve existir no veículo um número (P) de lugares sentados, excluindo os bancos rebatíveis".

AAA. O tipo de minibus proposto (mesmo se hipoteticamente fosse de acolher o argumento contra legem de que os bancos rebatíveis contam para efeitos de 18 lugares sentados) não tem "18 lugares sentados, dispostos segundo 3 filas longitudinais (2+1)", mais um "lugar para cadeira de rodas". O problema não é o veículo da B............ ter 3 lugares rebatíveis no lugar da cadeira de rodas, mas sim não ter 18 lugares sentados mais um lugar para cadeira de rodas. Como esclareceram os Peritos, "os bancos «rebatíveis» não são considerados lugares sentados [...] e, se interferirem com o espaço destinado a cadeira de rodas, como é o caso, não poderão ser ocupados na presença de um passageiro em cadeira de rodas" (cf. ponto 2 dos esclarecimentos).

BBB. O tipo de minibus proposto não cumpre a exigência de dispor de "18 lugares sentados, dispostos segundo 3 filas longitudinais (2+1)". O layout da viatura proposta (conclusão A. acima) revela bem que os três lugares rebatíveis não estão dispostos em 2+1.

CCC. Além de não respeitar o caderno de encargos, a proposta da B............ saiu beneficiada com a ilegalidade que ela mesma cometeu, uma vez que um veículo que cumprisse os termos e condições do caderno de encargos teria sempre de ser "maior, mais comprido e mais caro" [minutos 40:38 e seguintes da gravação da sessão de 14.12.2020 da audiência de julgamento].

DDD. Não é aplicável ao caso qualquer das exceções do artigo 49.º do CCP.

EEE. Assim, a proposta da B............ era ilegal, devendo ter sido excluída com base no artigo 72°/2, alínea b), do CCP, não merecendo qualquer censura o Acórdão do TCA Sul.

FFF. Por fim, não existem motivos para acionar a "válvula de escape" do sistema consagrada artigo 283.º/4 do CCP (eliminação do efeito contratual anulatório), como bem decidiu o TCA Sul - entendendo-se que a essa ponderação "deve presidir uma ampla discricionariedade jurisdicional" (acórdão do STA de 20.06.2017);

GGG. A lei é para valer, as "regras do jogo" são para cumprir e as decisões judiciais são para executar. Este é o pilar do nosso sistema. Sendo certo que a anulação de uma adjudicação e de um contrato já celebrado trazem sempre um inconveniente administrativo, um dano para o contraente público (ou entidade adjudicante), só em casos excecionais pode ser afastado o efeito anulatório. Era às Recorrentes que cabia demonstrar que a anulação do contrato se revelava desproporcionada ou contrária à boa-fé. E elas não o fizeram.

HHH. Uma interpretação do artigo 283.º/4 do CCP segundo a qual deve afastar-se o efeito anulatório do contrato, mesmo quando não esteja provada no processo a desproporção de interesses, seria inconstitucional por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 268.°/4 da CRP).

III. O que determinou o não afastamento do efeito anulatório pelo TCA Sul foi o facto de (i) haver um vício grave, (ii) que afeta o conteúdo material da proposta, (iii) que tem um impacto financeiro significativo no contrato celebrado, (iv) as Recorrentes não terem alegado (tempestivamente) factos que permitissem concluir existir uma violação do princípio da proporcionalidade associada à anulação do contrato, (v) os prejuízos alegados pela B............ poderem ser minimizados, tendo em consideração a proposta formulada pela A............, e (vi) o levantamento do efeito suspensivo (ou as razões do seu levantamento) não pode justificar necessariamente o afastamento do efeito anulatório do contrato.

JJJ. Não há dúvidas que a ilegalidade é grave, porque viola três parâmetros base do caderno de encargos e tem ainda impacto na proposta de preço a apresentar.

KKK. Na ponderação de interesses que foi feita pelo Tribunal (e foi feita), o Tribunal não presumiu quaisquer factos, sem contraditório. A questão da suposta vantagem financeira surgiu em sede de instrução e, além de não ser um facto essencial, foi colocada pelo próprio Município de Cascais na audiência de julgamento (sessão de 14.12.2020, minutos 00:40:03) e tirada pelo Tribunal com base em juízos de experiência comum.

LLL. Entrando agora num aspeto muito relevante, deve dizer-se que, ao contrário do que afirmam as Recorrentes, não haverá qualquer interrupção do serviço durante o período transitório do contrato até a A............ começar a operar.

MMM. Aliás, essa interrupção também não existiu quando, em maio de 2021, a B............ substituiu a A............ na operação do transporte coletivo de passageiros, tendo esta assegurado o serviço durante o período transitório de que aquela dispôs.

NNN. Depois da celebração do contrato entre o Município de Cascais e a B............, esta dispunha de um período transitório de 6 meses para iniciar a operação. Quem operava a essa data a operação ao abrigo de uma licença era a A............, que expirava no final do ano de 2019. Ora, a operação não ficou suspensa ou interrompida durante esses meses. O que o Município fez foi justamente aquilo que agora diz não poder fazer: celebrou, em 25.10.2019, um contrato temporário, por ajuste direto, com a A............, que vigoraria desde 01.12.2019 até um prazo máximo de 2 anos ou até que se iniciasse a operação da B............ (documento já junto aos autos e que, por comodidade, se junta como Documento 3).

OOO. Assim, não terá de haver hoje interrupção do serviço. Se os tribunais, como se espera, condenarem o Município a celebrar o contrato com a A............, a B............ continuará em operação, a assegurar o serviço, se necessário, através de um ajuste direto, até a A............ começar a executar o contrato. De qualquer forma, e em alternativa, a A............ poderá assumir a operação nos mesmos termos em que hoje a B............ o executa, até entrar em efetiva execução do contrato, que envolve um período transitório (ver Documento 1).

PPP. A jurisprudência do STA não rejeita o recurso a contratação provisória através de ajustes diretos como forma de evitar a suspensão do serviço até à plena implementação do serviço a adjudicar na sequência de decisão judicial.

QQQ. O que se julga dever evitar-se é tornar tudo dependente da lógica dos factos. A operação da B............ está a ser feita ao abrigo de um contrato ilegal, mas como já está em execução, então talvez deva manter-se para assim o Município de Cascais não ter de assumir os inconvenientes e incómodos que uma sanção da ilegalidade sempre acarreta.

RRR. O STA é o último reduto do Direito Administrativo. É nele, sobretudo nele, que os particulares depositam a sua confiança no que respeita ao funcionamento do sistema (e à garantia da tutela jurisdicional efetiva). Se os incómodos públicos, que são também incómodos políticos, se sobrepõem aos valores do Direito, então não serve para muito pedir justiça administrativa...

SSS. Quanto aos alegados prejuízos da B............, que não estão provados na sua larguíssima maioria, deve dizer-se que a A............ se comprometeu (e compromete-se) formalmente a assumir, mediante o pagamento de um preço justo, todos os ativos da B............ (frota, pessoal e serviços associados) que possam ser concretamente afetados ao cumprimento do contrato a celebrar entre a A............ e o Município de Cascais.

TTT. À carta da A............, a B............ respondeu dizendo que "reconhece positivamente a iniciativa de V. Exas. e manifesta que está naturalmente disponível para receber e analisar as propostas que V. Exas. venham a formular" (cf. carta enviada pela A............ à B............, com conhecimento do Município, e respetiva resposta da B............, que se juntaram como Documentos 9 e 10 do requerimento de alteração do efeito dos recursos e que, por comodidade, se voltam a juntar como Documento 2).

UUU. Desta forma, eliminam-se em medida significativa os prejuízos que a B............ (e o Município de Cascais) sofrerá com a anulação do seu Contrato.

Nestes termos e nos melhores de Direito que os Senhores Conselheiros doutamente suprirão, devem ser rejeitados os recursos interpostos pelo Município de Cascais e pela B............ ou, caso assim não se entenda, ser julgados totalmente improcedentes e, em consequência, confirmar-se o Acórdão do TCA Sul recorrido.”

6.EMPRESA B............, S.A. veio apresentar resposta às referidas contra-alegações, nos termos seguintes:

“EMPRESA B............, S.A., contrainteressada devidamente identificada nos autos acima referenciados (‘EMPRESA B............’, ‘Contrainteressada’ ou ‘Recorrente’) em que é autora a A............, LDA. (‘A............’, ‘Autora’ ou ‘Recorrida’), e entidade demandada o MUNICÍPIO DE CASCAIS, tendo sido notificada da apresentação das contra-alegações pela Autora, vem, no exercício do direito ao contraditório previsto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil (CPC),aplicável ex vi artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), expor e requerer o seguinte:

1. A Recorrida A............ aproveita o exercício do seu direito processual de apresentação de contra-alegações para junção de três documentos – o que implica, só por si, na esfera da aqui Recorrente EMPRESA B............, o incontornável direito ao contraditório decorrente do n.º 3 do artigo 3.º do CPC.

2. Em primeiro lugar, convoca-se o disposto no artigo 150.º, n.ºs 2 a 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, de que resulta que o Supremo Tribunal Administrativo não julga matéria de facto, muito menos nova, em sede de recurso de revista.

3. Deve, assim, ser ordenado o desentranhamento de tais documentos, bem como ser dada por não escrita a matéria de facto nova que foi alegada, sob pena de nulidade de decisão contrária, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o que se requer.

4. Em segundo lugar, verifica-se que dois dos três documentos juntos são datados de 2019 e de 2021.

5. Tal como resulta do disposto no artigo 680.º do CPC, no recurso de revista apenas “podem juntar-se documentos supervenientes”.

6. Trata-se, aliás, de uma regra paralela à que resulta, para os recursos em geral, do n.º 1 do artigo 651.º do CPC, segundo o qual apenas é admissível a junção de documentos com as alegações de recurso no caso previsto no artigo 425.º do CPC; ou seja, só são admissíveis os documentos, em caso de recurso, cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.

7. Seguramente não será esse o caso com documentos datados de 2019 e de 2021.

8. Razão adicional esta pela qual se requer o seu desentranhamento, nos termos acima enunciados.

9. Quando assim não se entenda, não pode deixar de verificar-se, em todo o caso, a Recorrida junta os três referidos documentos exclusivamente para o seu esforço de alegar que a anulação do contrato celebrado entre a Contrainteressada e o Município de Cascais em 9 de abril de 2020, cuja plena operação já se iniciou em 25 de maio de 2021, não causaria especiais prejuízos ao interesse público, não havendo motivos para o afastamento do efeito anulatório ao abrigo do n.º 4 do artigo 283.º do Código dos Contratos Públicos (CCP).

10. Para tanto, de forma supostamente inocente, a Recorrida junta uma Carta dirigida ao Município de Cascais, em 18 de maio de 2022, onde assevera ter “inteira disponibilidade para assumir, o quanto antes, a operação de Cascais” (Doc. 1 junto às Contra-Alegações).

11. Assim, pretende a Recorrida fazer crer ao Tribunal que não existiriam motivos para temer a interrupção da operação do sistema de transporte coletivo de passageiros do Município de Cascais.

12. A Recorrida só esquece, curiosamente, que o novo contrato que ainda teria de celebrar com o Município de Cascais – o que em si mesmo dependeria da prática do ato de adjudicação e das diversas diligências pós-adjudicatórias previstas nos artigos 81.º e seguintes do CCP, as quais têm sempre inerente alguma demora –, não teria outras consequências senão aquelas que se encontram previstas no n.º 2do artigo 5.º e no artigo 7.º do Caderno de Encargos:

i) Primeiro, aguardar-se-ia pela sua submissão à fiscalização prévia do Tribunal de Contas, nos termos do artigo 46.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 98/97, de 26 de agosto;

ii) Depois, a produção de efeitos contratuais iniciar-se-ia após a notificação da concessão do visto pelo Tribunal de Contas, cuja demora poderia estimar-se em 30 dias úteis, mas acrescido das suspensões de prazos resultantes de quaisquer pedidos de esclarecimentos solicitados pelo Tribunal (cfr. artigo 85.º da Lei n.º 98/97);

iii) Essa produção de efeitos limitar-se-ia a dar início a um período transitório destinado à reunião de todos os meios necessários do adjudicatário para o início efetivo da operação

iv) Somente após o termo do período transitório – que a própria A............ indicou na sua proposta como sendo de 6 meses (cfr. proposta da A............ junta aos autos) – é que se iniciaria efetivamente a operação no âmbito do novo contrato a celebrar pelo MUNICÍPIO DE CASCAIS.

13. Tudo isto terá sido esquecido pela Recorrida, fazendo crer que a anulação do contrato atualmente em vigor implicaria, através de um curioso efeito automático, o início imediato da sua operação.

14. É claro que assim não é: e por esse motivo é que a Recorrida, logo em seguida, se preocupa em juntar – embora de modo processualmente inadmissível – um Doc. 3, que se traduz num contrato celebrado em 25 de outubro de 2019 com o Município de Cascais, no âmbito de um ajuste direto que, naquela época em que nenhum contrato havia sido celebrado ao abrigo deste procedimento pré-contratual colocado em crise nos autos, teve o preciso propósito de viabilizar a continuidade da operação do sistema de transportes que, de outro modo, teria sido interrompido.

15. Daí que alegue, nos pontos 184 e seguintes das suas Contra-Alegações, que nada impediria o Município de Cascais de, “com toda a calma”, fazer agora o mesmo.

16. Numa palavra: para a Recorrida, a anulação do contrato hoje em vigor, ignorando a providência prevista no n.º 4 do artigo 283.º do CCP, só não implicaria uma dramática interrupção da operação de um sistema de transportes que serve diariamente mais de 200.000 cidadãos porque o Município de Cascais deveria então recorrer a um procedimento de ajuste direto para assegurar a continuidade do serviço.

17. Sucede que, quanto a tal argumento, não precisa a aqui Recorrente de prover qualquer resposta: a resposta – rotunda e inequívoca – já foi provida pelo próprio Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão de 20 de junho de 2017 (Processo 0267/17).

18. Em suma: o Supremo Tribunal Administrativo já confirmou – como não poderia deixar de ser ao abrigo do princípio da concorrência – que o recurso a um procedimento não concorrencial de ajuste direto não pode ser considerado adequado para afastar os prejuízos decorrentes da anulação de um contrato e da interrupção de um serviço público.

19. Por outro lado, mesmo que se abstraísse dessa jurisprudência, sempre será caricato, para não dizer mais, que a Recorrida lance mão desse argumento de recurso a um procedimento de ajuste direto para evitar a interrupção da operação do sistema de transportes, quando ela própria reconhece que tal contrato transitório teria de ser celebrado com a entidade que atualmente gere o sistema – isto é, a aqui Recorrente (cfr. Ponto 184 das Contra-alegações da Recorrida).

20. Por outras palavras: a Recorrida assegura ao Tribunal que ele deve ficar tranquilizado com os possíveis efeitos da anulação do contrato que actualmente permite a operação do sistema de transportes de Cascais, porque a Contrainteressada e o Município de Cascais podem entabular uma nova relação contratual.

21. Sem prejuízo de ser paradoxal que a resposta sugerida para a anulação de um contrato que se julga ilegal entre a Contrainteressada e o Município de Cascais consista na celebração de um novo contrato (ainda para mais por ajuste direto) entre as mesmas duas partes,…

22. …não pode a Contrainteressada deixar de manifestar a sua surpresa quanto à circunstância de a Recorrida julgar poder garantir ao Tribunal o que é que a própria Contrainteressada fará no futuro, nomeadamente se a Contrainteressada aceitará ou não aceitará celebrar um novo contrato para gerir um sistema de transportes por um período transitório, de cuja gestão seria privada seguidamente quando a Recorrida iniciasse a sua operação.

23. Tudo isto num cenário em que – como é público e notório – os custos pela operação de um sistema de transportes se incrementaram de forma gigantesca, o que implicaria que nenhum operador aceitaria encetar uma nova relação contratual sem a implementação de condições financeiras muitíssimo diferentes das atuais.

24. Em suma, o cenário em que a Recorrida labora para fazer crer o Tribunal de que nenhum prejuízo resultaria da anulação do contrato hoje vigente constitui uma pura ficção que não tem qualquer correspondência com a realidade.

25. Ficção essa cuja falsidade já foi provada pela Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra em 18 de março de 2020, constante dos autos (cfr. fls. 2823 e segs. do SITAF), que considerou provada a imprescindibilidade do contrato para a manutenção do serviço de transporte público rodoviário de passageiros sem interrupções, quando afastou o efeito suspensivo automático da impugnação no presente processo (cfr., v.g., páginas 64 e 65 da Sentença).

26. Factualidade essa que a Recorrida nunca pôde contestar, não sendo agora o recurso de revista o lugar processualmente adequado para a sua contestação.

27. Por último, a Recorrida junta ainda, como Doc. 2, uma carta dirigida à própria Contrainteressada, na qual se disponibilizou – e, no seu dizer, “comprometeu-se formalmente” – a suportar os custos da Contrainteressada.

28. Sucede que, obviamente, a A............ não explica em que termos a sua declaração de intenções, nos termos em que foi realizada, assumirá um carácter vinculativo para a sua esfera jurídica, revelando pouca valia no quadro jurídico aplicável e não oferecendo qualquer garantia à Contrainteressada quanto à assunção desses prejuízos.

29. Portanto, nenhuma salvaguarda existe de que os prejuízos que para a EMPRESA B............ decorreriam da atribuição de efeito devolutivo ao presente recurso – prejuízos cuja existência a mesmíssima A............ reconhece no ponto 89 das suas Contra-Alegações – seriam de alguma forma minorados ou eliminados por qualquer via juridicamente fiável.

30. Em suma: sem prejuízo de a Recorrida A............ recorrer à junção processualmente inadmissível de prova documental no âmbito de um recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo e à alegação de factos novos insuscetíveis de julgamento nesta sede, não logra, nem mesmo assim:

a) Negar que a anulação do contrato atualmente em vigor implicaria a interrupção da operação do Sistema de Transporte Rodoviário Regular de Passageiros do Concelho de Cascais, que serve as necessidades diárias de mais de 200.000 cidadãos;

b) Negar que a referida operação só poderia ter a sua continuidade assegurada através do disposto no n.º 4 do artigo 283.º do CCP, tal como resulta da factualidade provada nos presentes autos, em primeira instância, através da Sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra de 18 de março de 2020 (cfr. fls. 2823 e segs. do SITAF) – factualidade essa que a Recorrida não pôde contestar, não sendo o recurso de revista o lugar processualmente adequado para a sua contestação;

c) Negar que a única alternativa ao recurso ao n.º 4 do artigo 283.º do CCP, como consequência da anulação do contrato que se julga ilegal entre a Contrainteressada e o Município de Cascais, consistiria na paradoxal celebração de um novo contrato (ainda para mais por ajuste direto) entre as mesmas duas partes – o que é frontalmente negado pelo Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão de 20 de junho de 2017 (Processo 0267/17);

d) Negar que a anulação do contrato atualmente em vigor implicaria prejuízos decorrentes da inutilização dos custos superiores a 25 milhões de euros, em que a Contrainteressada e ora Recorrente incorreu, na operação que se iniciou em 25 de maio de 2021 – custos esses que não são suscetíveis de reembolso, que a Recorrente não pode utilizar em qualquer outro sector de atividade e que a Recorrida não se comprometeu a compensar de qualquer forma juridicamente vinculativa.

Termos em que se requer o desentranhamento dos documentos juntos às Contra-Alegações da Recorrida, bem como a consideração como não escrita da matéria de facto nova que foi alegada pela Recorrida, seguindo-se os demais termos processuais com a admissão do presente recurso de revista.”

7.A............, notificada da resposta às contralegações, ora transcrita, veio requerer o seguinte:

“A…………, Lda. (“A............”), Autora no processo acima identificado, tendo sido notificada do requerimento apresentado pela Empresa B............, S.A. (“B............”) no dia 27.06.2022, vem expor e requerer o seguinte:

1. A B............, na sequência das contra-alegações de revista da A............, vem exercer o seu (suposto) direito ao contraditório sob o seguinte pretexto: “A Recorrida A............ aproveita o exercício do seu direito processual de apresentação de contra-alegações para junção de três documentos”.

2. Não é verdade:

(i) O Documento 2 foi junto pela A............ com o requerimento das contra-alegações de recurso da sentença do TAC de Lisboa (números dos documentos no sitaf: 004194985 e 004194986). Ele já constava do processo, portanto. Foi só junto agora por comodidade.

(ii) O Documento 3 foi junto aos autos pelo Município de Cascais ainda em primeira instância, em 21.11.2019 (número do documento no sitaf: 004194638). Ele já constava do processo, portanto. Foi só junto agora por comodidade.

3. Só o Documento 1 (carta enviada pela A............ ao Município de Cascais a 18.05.2022, na sequência do acórdão do TCA Sul de 05.05.2022) é que, sendo posterior ao acórdão do TCA Sul, só foi junto agora.

4. No que respeita aos supostos novos factos alegados pela A............, a B............ não indica nem um(!)…

5. A única coisa que diz é que “pretende a Recorrida fazer crer ao Tribunal que não existiriam motivos para temer a interrupção da operação do sistema de transporte coletivo de passageiros do Município de Cascais” (ponto 11 do requerimento).

6. Para depois dizer que “a Recorrida só esquece, curiosamente, que […]” (ponto 12 do requerimento) – e, assim, dedicar 6 páginas a contestar a posição da A............ (!).

7. Note-se que, como é natural, o que a A............ pretende é precisamente isso: “fazer crer ao Tribunal que não existiriam motivos para temer a interrupção da operação do sistema de transporte coletivo de passageiros do Município de Cascais”.

8. Posição, aliás, que foi desde sempre – desde que a questão foi suscitada pelas Recorrentes no processo – defendida pela A............. E não só agora, de forma inovatória, em sede de recurso de revista (ver pontos 149 a 153 das contra-alegações de recurso da sentença do TAC de Lisboa).

9. Como se referiu nas contra-alegações de recurso de revista apresentadas (ver, em particular, o ponto 174), era às Recorrentes que cabia demonstrar que a anulação do contrato se revelava desproporcionada ou contrária à boa-fé. E elas não o fizeram.

10. Razão pela qual vieram em sede de recurso de revista (primeiro, nas alegações e, agora, neste requerimento), alegar diversos factos novos (não supervenientes) para fundamentar a sua tese – numa alegação que é manifestamente extemporânea.

11. Por fim, e por ser uma alegação “caricata” (na expressão que a B............ se sentiu à vontade para utilizar), refira-se apenas que é juridicamente razoável o argumento do “recurso a um procedimento de ajuste direto para evitar a interrupção da operação do sistema de transportes, quando ela própria reconhece que tal contrato transitório teria de ser celebrado com a entidade que atualmente gere o sistema” (ponto 19 do requerimento).

12. E tanto é juridicamente razoável que já aconteceu quando se tratou de dar sequência à adjudicação da B............, com todos os trâmites referidos no ponto 12 do requerimento da B.............

13. Agora que se trata de dar sequência à adjudicação a favor da A............ já é dramático.

14. Isso, sim, é caricato e só serve para perpetuar a lógica dos factos (ilegais) sobre a razão do Direito.

15. Como se disse nas contra-alegações do recurso de revista, se as coisas são assim - levantamento do efeito suspensivo em sede de contencioso pré-contratual e depois, porque houve celebração e execução de 1 ano do contrato (que está previsto vigorar pelo menos 7 anos), afastamento do efeito anulatório do contrato -, então algo vai menos bem no “reino” da lei e da justiça administrativas.

Termos em que se requer a V. Exas. se dignem ordenar o desentranhamento do requerimento da B............ de 27.06.2022 ou, subsidiariamente, sejam julgados improcedentes os pedidos aí formulados.”

8. O recurso de revista foi admitido pela formação deste STA por acórdão de 22.09.2022.

9. O MP, notificado em 14.10.2022, nos termos e para efeitos dos art.s 146º, nº 1, e 147º, nº 2, CPTA não emitiu qualquer parecer.

10. Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo (art.36º, nº 1, al. c) e nº 2 CPTA), cumpre decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

Dá-se aqui a matéria de facto fixada pelas instâncias. (art. 663.º, n.º 6, do CPC/2013).


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O DIREITO

O Município de Cascais e Empresa B............ recorrem do acórdão do TCAS de 05.05.2022 invocando erro na consideração de que houve violação de cláusula contratual já que existindo dúvidas suscitadas pelo caderno de encargos a aplicação dos princípios da contratação pública na decisão de admissão de uma proposta exigia uma interpretação mais razoável daquela peça do concurso “à luz dos elementos disponíveis”, desde logo porque «razoável à luz do elemento literal» e nulidade e erro de julgamento na aplicação dos critérios do art. 283º, nº 4 do CCP.

Como se extrai do acórdão que admitiu a revista:

“Município de Cascais e Empresa B............, SA, respetivamente réu e contra-interessada vêm interpor recurso de revista do acórdão do TCA Sul de 05.05.2022, que negou provimento aos recursos que interpuseram da sentença proferida pelo TAC de Lisboa em 19.03.2021 que julgou procedente a ação de contencioso pré-contratual intentada por A............, Lda, anulando o ato de adjudicação e o contrato celebrado, no âmbito do Concurso Público de Prestação do Serviço Público de Transporte Rodoviário Regular de Passageiros no concelho de Cascais, condenando ainda o Recorrente Município a adjudicar o contrato à Autora.

Entendem que, contrariamente ao decidido, a proposta apresentada pela Empresa B............, S.A. não viola o disposto no ponto 4.2 das cláusulas técnicas do caderno de encargos, sendo, também, de afastar o efeito anulatório nos termos previstos no n.º 4 do artigo 283.º do CCP.

O TAC de Lisboa na sentença proferida em 29.09.2021, entendeu, nomeadamente, que a proposta da CI, no que concerne ao minibus proposto não cumpre com o disposto na cláusula técnica 4.2 do caderno de encargos, pelo que deveria ter sido excluída, por violação do disposto nos arts. 70º, nº 2, al. a) e 146º, nº 2, al. o) do CCP, art. 15º, al. d) do Programa do Procedimento e cláusula 4.2 do Caderno de Encargos, o que gera a anulabilidade do acto de adjudicação (art. 163º, nº 1 do CPA).

Concluiu, assim, que, nos termos do disposto no art. 283º, nº 3 do CCP, em face da anulação do acto de adjudicação, deverá ser anulado o contrato entretanto celebrado, “não se verificando, neste caso, justificação para a aplicação do regime previsto no Artigo 283.º, n.º 4 do CCP, desde logo, porque a anulação do acto de adjudicação implica uma alteração subjectiva do contrato.

Ao que acresce o facto de, dado o período de execução do contrato, e o período, entretanto decorrido, não se afigurar que a sua anulação seja desproporcional.”

O TCA Sul no acórdão recorrido confirmou o entendimento da 1ª instância quanto à interpretação do ponto 4.2 do Caderno de Encargos (a qual conduziu à anulação do ato de adjudicação).

Quanto ao afastamento do efeito anulatório, previsto no nº 4 do art. 283º do CCP, considerou o acórdão, além do mais, que: “Neste caso, em particular, conforme se concluiu acima, perante uma ilegalidade que não é de somenos importância, tanto mais que afeta o conteúdo material da proposta e que tem um impacto financeiro significativo no contrato celebrado, sobretudo se tivermos em conta que o critério de adjudicação era o da proposta mais vantajosa.

A proposta de veículos com as características que têm os da B............ permitir-lhe-ia perverter as normas concursais, com uma inevitável vantagem sobre os demais concorrentes que tivessem apresentado veículos com os 18 lugares sentados exigidos no ponto 4.2 do Caderno de Encargos.

O que significa que a ilegalidade aqui em causa tem um impacto financeiro considerável e, por essa via, defraudar-se-iam os princípios da concorrência e da igualdade quando contrapostas as propostas da B............ e pelos demais concorrentes, mormente a contrainteressada A…………”

Assim, negou provimento aos recursos interpostos pelos aqui Recorrentes.”


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Recurso da B............ e Município de Cascais

1. Erro na interpretação das cláusulas dos cadernos de encargos

Alega o recorrente que foi preterido o princípio da boa-fé, na vertente de tutela da confiança assim como os princípios da igualdade e da concorrência, e o princípio do favor do procedimento que determinam o dever de admissão de todas as propostas que se conformem com uma interpretação admissível e razoável do caderno de encargos, sempre que este suscite dúvida e permita várias interpretações.

A seu ver, a exigência vertida na cláusula 4.2 do caderno de encargos e acima citada é suscetível de criar dúvidas ao intérprete já que, por um lado, da circunstância de o requisito 2+1 sugerir a existência de um corredor que, no léxico comum, é identificado como uma zona de passagem (ou seja, que admite uma interpretação em que a última fila não tem de ter corredor, precisamente porque este não leva a lado nenhum) mas, por outro, e no que diz respeito ao lugar para cadeira de rodas, como se demonstrou, da circunstância de existir um quadro legal (como se viu) que legitima um entendimento segundo o qual os lugares para cadeira de rodas não têm de estar exclusivamente reservados para o efeito.

Pelo que, os princípios da contratação pública imporiam que se admita qualquer proposta que tenha uma interpretação admissível e razoável do caderno de encargos, pelo que andou bem a entidade adjudicante quando admitiu a proposta da Empresa B............, S.A.

Sendo inconstitucional uma interpretação que, em caso de dúvida quanto à conformidade de uma proposta com o caderno de encargos, a exclua, por violação dos princípios fundamentais da atuação administrativa, vertidos no artigo 266.°, n.°s 1 e 2 Constituição da República Portuguesa.

Então vejamos.

1.1.A primeira questão de que cumpre tratar é a de saber se estamos perante alguma interpretação que suscite dúvidas.

A disposição controvertida (ponto 4.2 das cláusulas técnicas do caderno de encargos) refere:

«4.2. Minibus/Semiurbanos (viaturas entre 7 a 9,5 metros homologadas para serviço de transporte público urbano em Portugal, na categoria europeia M3, classe I

«•17 minibus/semiurbanos, novos [entre 0 (zero) a 500 (quinhentos) quilómetros], com a seguinte disposição:

«° 18 lugares sentados, dispostos segundo três filas longitudinais (2+1), dos quais 4 devem ser reservados a pessoas com mobilidade reduzida (PMR);

«° 1 lugar para cadeira de rodas; «(…);»

Ou seja, este preceito estabelece certas exigências técnicas que os minibuses tinham de cumprir.

Claro que as regras de interpretação estão sempre imanentes a qualquer interpretação, e é através delas que se coloca a questão de qualquer dúvida existente.

Desde logo as regras da interpretação das cláusulas do caderno de encargos devem ser essencialmente objetivas (no sentido da natureza normativa ou conformadora do Caderno de Encargos, cf., designadamente, Pedro Costa Gonçalves, Direito dos Contratos Públicos, p. 615 e 616, Pedro Fernández Sanchez, em Direito da Contratação Pública, p. 614, e Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e Outros Procedimentos de Contratação Pública, p. 357).

O que se compreende já que os concorrentes não têm "acesso" à vontade psicológica da entidade adjudicante, apenas conhecem os documentos e demais textos que compõem o procedimento e que foram preparados e aprovados por ela, sendo com base neles que apresentam as suas propostas e ao abrigo dos quais todas as propostas devem ser analisadas e classificadas. A vontade da entidade adjudicante opera objetivamente, de acordo com o texto e contexto dos documentos disponibilizados.

Como resulta do Manual Prático de Contratação Pública de Isabel Ferreira e Sandra Cunha:

“Neste sentido, o caderno de encargos pode conceber-se como um documento de definição dos termos em que a entidade adjudicante pretende contratar: é verdade que se pode dizer que essa dimensão se mostra conciliável com uma leitura contratualista. Reconhecendo-o, parece-nos, porém, que a definição do conteúdo contratual, que está efetivamente presente no caderno de encargos não deixa de encerrar uma dimensão normativa ou regulamentar, uma vez que tem o propósito de orientar e condicionar a apresentação de propostas pelos concorrentes: no caso de não respeitarem as disposições injuntivas ou os limites estabelecidos naquele documento, as propostas devem ser excluídas [cr. artigo 70º, n.º 2, alíneas a,), b) e d)]. Por Causa deste valor paramétrico consistente em limitar e conformar a prática de atos jurídicos, o caderno de encargos deve considerar-se um regulamento administrativo.

Na sua dimensão processual (meios processuais de impugnação), a questão da natureza jurídica do caderno de encargos está resolvida na maior parte dos casos, uma vez que o artigo 103.º do CPTA o qualifica expressamente como documento conformador do procedimento (nos mesmos termos do programa do procedimento) e indica o regime da respetiva impugnação.

Mas, admitindo-se que esse regime se aplica apenas aos cadernos de encargos de procedimentos de formação dos contratos indicados no artigo 100.º, n.º 1, do CPTA, o tema da natureza jurídica do caderno de encargos acaba por reemergir para os procedimentos não abrangidos por esse regime, pois, em caso de impugnação, vai-se colocar a questão de saber se as disposições nele inseridas são “normas” para os efeitos do artigo 72 e segs., do CPTA [sobre isto, cf. ponto 88].

Como refere Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira em “CONCURSOS E OUTROS PROCEDIMENTOS DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA - OS ELEMENTOS DO PROCEDIMENTO” pág. 357:

“47.1.3. Âmbito e natureza jurídica: a sua convolação

O caderno de encargos, como resulta do art. 40.º do Código, é a única peça que integra a documentação de todas as modalidades de procedimentos de contratação — o que, dado dispor sobre o conteúdo do contrato a celebrar, não admira.

E existirá também em relação aos contratos a celebrar no âmbito dos sistemas de aquisição dinâmicos, do sistema de qualificação e ao abrigo de quaisquer acordos quadro, só não o havendo no caso dos concurso de conceção, incluindo-se as menções aos parâmetros substantivos das respetivas propostas ou trabalhos denominados “termos de referência”, como se prevê na alínea b) do art.º. 226.º/1 do Código.

Como não podia deixar de ser, o caderno de encargos (e qualquer seu esclarecimento ou, retificação) tem como particularidade, face às restantes peças do procedimento, dada a função que neste desempenha, o facto de ir constituir futuramente parte integrante do contrato a celebrar (art. 96.°/2), devendo assacar-se às suas cláusulas, a partir do momento em que adjudicante e adjudicatário ficam contratualmente comprometidos, uma natureza contratual 94 [94 Veja-se quanto a esta matéria o que dizemos em “Concursos...”, cit., pp. 139 e ss.] — em vez da natureza normativa que enquanto peça do procedimento de formação do contrato, lhe atribuímos.”

Assim, e atenta a referida objetividade que há-de resultar das referidas cláusulas do caderno de encargos temos de concluir que não existem quaisquer dúvidas quanto à interpretação das mesmas da existência de três exigências:(i) 18 lugares sentados, (ii) segundo três filas longitudinais (2+1); (iii) e, adicionalmente, um lugar para cadeira de rodas.

E resulta também objetivamente da matéria de facto que s características do minibus proposto pela B............:

(i) 15 lugares sentados (não 18, porque os de trás, sendo rebatíveis, não contam nos termos da lei)

(ii) 15 lugares dispostos segundo três filas longitudinais (2+1)

(iii) 3 bancos rebatíveis no espaço destinado a cadeira de rodas (ou vice-versa)

(iv) 1 lugar para cadeira de rodas, que, situado na parte traseira do veículo, inviabiliza necessariamente a utilização dos bancos rebatíveis quando haja algum utente portador de cadeira de rodas (além de também inviabilizar a utilização da totalidade dos bancos rebatíveis durante a entrada e saída no veículo da referida cadeira de rodas), sendo que, claro, se os bancos estiverem a ser utilizados, não haverá lugar para a cadeira de rodas.

Dispõe o artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 58/2004, de 19 de março que :

“Lugares sentados

1 - Deve existir no veículo um número (P) de lugares sentados, excluindo os bancos rebatíveis, conforme com os requisitos constantes do artigo 39.º do presente Regulamento, e, tratando-se de veículos das classes I, II ou A, o número de lugares sentados em cada piso deve ser, pelo menos, igual ao número de metros quadrados de piso disponível para passageiros e tripulação, caso exista, no piso em causa, arredondado por defeito ao número inteiro mais próximo, podendo o número exigido ser reduzido de 10% no caso dos veículos da classe I, excluindo o piso superior.

2 - No caso dos veículos com lotação variável em lugares sentados, a área disponível para passageiros de pé (S (índice 1)) e os requisitos constantes do artigo seguinte devem ser determinados para cada uma das seguintes situações, consoante for aplicável:

a) Com todos os bancos possíveis ocupados, e seguidamente com a área que restar para passageiros de pé e, se ficar espaço, com as zonas destinadas a cadeiras de rodas igualmente ocupadas;

b) Com todo o espaço possível para passageiros de pé ocupado, e seguidamente com os lugares sentados que restarem e, se ficar espaço, com as zonas destinadas a cadeiras de rodas igualmente ocupadas;

c) Com todos os espaços possíveis para cadeiras de rodas ocupados, e seguidamente com a área que restar para passageiros de pé e os lugares sentados que ficarem disponíveis igualmente ocupados, e com o ponto 7.2.2.4 do Anexo 3 do Regulamento n.º 107 da UNECE, a aceção de “lotação variável” admite que lugares rebatíveis sejam contabilizados como lugares sentados.”

E, no mesmo sentido o ponto 7.2.2.3. do Anexo 3 do Regulamento n.º 107 da UNECE relativamente aos lugares rebatíveis.

Assim, resulta da legislação em vigor que os bancos rebatíveis não contam como lugares sentados, pelo que não podiam ter sido considerados com tais na interpretação do caderno de encargos.

Não estando em causa quaisquer dúvidas na interpretação da referida cláusula fica prejudicado o conhecimento dos vícios invocados na situação da mesma existir.

Em suma, o ponto 4.2 das cláusulas técnicas do Caderno de Encargos não suscita quaisquer dúvidas.

E, a proposta da B............ era ilegal, devendo ter sido excluída, como o foi, com base no artigo 72°/2, alínea b), do CCP, não merecendo qualquer censura o Acórdão do TCA Sul que assim o entendeu.

2.Nulidade na aplicação do artigo 283.º, n.º 4 DO CCP

Alega o recorrente que o Tribunal a quo não afasta o efeito anulatório do contrato, com base no artigo 283.º, n.º 4, por entender que o vício gerador da invalidade é fundado em ofensa grave e se impor particular cautela no levantamento do efeito anulatório na aplicação do artigo 283.º, n.º 4, do CCP nos casos em que tenha ocorrido levantamento do efeito suspensivo, sem que tenha havido contraditório e sem que a mesma esteja devidamente fundamentada.

E que, o «impacto financeiro» não constitui um facto público e notório, já que a configuração do autocarro e o número de lugares sentados, fixos ou rebatíveis, nada permitem concluir a um não perito quanto ao seu custo pelo que se impunha prova sobre o mesmo, determinando a baixa do processo para ampliação da matéria de facto não abrangendo a repetição do julgamento a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições.

Conclui que no acórdão recorrido não há fundamentação de facto mas apenas uma conclusão, uma decisão, que prescinde totalmente da enunciação de factos provados, pelo que ocorre nulidade, nos termos do artigo 615.°, n.º 1, alínea b), do CPC.

E que, em consequência, deve o acórdão recorrido ser anulado e substituído por outro que determine a descida dos autos para produção de prova quanto à alegação do facto: «a ilegalidade da proposta da Empresa B............, S.A. permite-lhe uma poupança de cerca de 20% por minibus, o que tem um impacto muito sensível na proposta de preço a apresentar pelo operador».

Então vejamos.

Resulta do artigo 615º nº 1 al b) do CPC que ocorre nulidade da sentença, quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão.

O dever de fundamentar as decisões com expressão no artigo 154º do CPC visa revelar às partes os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respetivo fundamento ou fundamentos (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 9.12.1987, in BMJ 372/369).

Não pode, porém, confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, sendo que só a falta absoluta de motivação constitui a causa de nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artigo 615º citado.

Como referem A. Varela, M. Bezerra e S. Nora (Manual de Processo Civil, 2ª ed.,1985, p.670/672): “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.

Em suma, só a total omissão dos fundamentos ou a completa ausência de motivação da decisão pode conduzir à nulidade suscitada.

O que não é o caso dos autos.

3. Erro no afastamento do efeito anulatório previsto no n.º 4 do artigo 283.º do CCP.

Alega o recorrente que o Tribunal de recurso não pode presumir factos alegados por uma das partes sem contraditório e sem produzir prova, dando por reproduzido o que se alegou a propósito da nulidade desta decisão.

E que, resulta do acórdão de 24.9.2020, proferido no âmbito do processo n.º 0278/17.0BECTB, que foi relevante estar em causa um único vício para o afastamento do efeito anulatório.

Sendo que também está aqui em causa um único vício (a disposição de bancos em 17 minibuses) e um vício que, num contrato e operação com a dimensão e características daqueles que aqui está em causa, apresenta uma relevância marginal.

E que, se se concluísse - como pretende o Tribunal a quo - que sempre que ocorre modificação subjetiva do contrato a ofensa deve ser qualificada como grave e sem lugar à aplicação do artigo 283.º, n.º 4, isso significaria concluir que, numa parcela muito significativa dos casos em que o artigo 283.º, n.º 4, do CCP é convocado, a sua aplicação estaria, à partida, afastada.

Acrescenta que a circunstância de ter sido levantado o efeito suspensivo não constitui um facto que aduza especial excecionalidade ao afastamento do efeito anulatório porque esses serão os casos em que se iniciou já a execução do contrato e, como tal, poderá haver inconveniente na respetiva declaração de invalidade.

E o facto de o Tribunal ter já considerado que o interesse público exigia o início da execução do contrato (e por essa razão ter levantado o efeito suspensivo) revela que estamos perante um contrato que prossegue interesses públicos essenciais cuja execução não se compadece com um atraso. E por isso mesmo não se compadece com interrupções como aquela a que o não afastamento do efeito anulatório conduz.

Ou seja, é precisamente por a entidade adjudicante precisar (indispensavelmente) de determinado contrato que o efeito suspensivo automático é levantado.

Pelo que, a ponderação determina que se deva concluir precisamente no sentido do afastamento do efeito anulatório.

Então vejamos

Dispõe o artigo 283.º

“Invalidade consequente de atos procedimentais inválidos

1 - 2 - Os contratos são anuláveis se tiverem sido anulados ou se forem anuláveis os atos procedimentais em que tenha assentado a sua celebração, devendo demonstrar-se que o vício é causa adequada e suficiente da invalidade do contrato, designadamente por implicar uma modificação subjetiva do contrato celebrado ou uma alteração do seu conteúdo essencial. (...)

4 - O efeito anulatório previsto no n.º 2 pode ser afastado por decisão judicial ou arbitral, quando, ponderados os interesses públicos e privados em presença e a gravidade da ofensa geradora do vício do ato procedimental em causa, a anulação do contrato se revele desproporcionada ou contrária à boa-fé.”

Ora, e como se extrai do acórdão deste STA 0267/17 de 06/20/2017:

“Antes de tudo, cabe sublinhar que, no que concerne à ponderação judicial das condições assinaladas no n.º 4 do artigo 283.º do CCP, existe já jurisprudência deste STA a sustentar uma “ampla discricionariedade” do julgador. Veja-se o sumário do acórdão do STA de 09.05.12, Proc. n.º 0760/11, onde se esclarece no seu ponto VII que “A apreciação da consequência da invalidação do contrato à luz dos princípios da proporcionalidade e da boa-fé traduz uma ampla discricionariedade jurisdicional, onde há lugar a uma ponderação de todos os interesses em presença e a uma realística relevância dos diferentes níveis de gravidade”. É importante também reter que a ponderação a realizar pelo julgador deve considerar não apenas o ocorrido na fase de formação do contrato, mas, de igual forma, o que sucedeu já após a adjudicação do contrato: a circunstância de, por exemplo, o contrato já ter sido celebrado; de, inclusivamente, já estar a ser executado; o tempo que já decorreu desde o início da execução do contrato (ponderado o factor tempo com o tipo de contrato em causa).

Prestado este esclarecimento, cabe dizer que (...) relativa ao investimento inicial que efetuou, não parece haver dúvidas de que os serviços contratados exigem uma série de equipamentos e infra-estruturas para que os serviços possam ser prestados logo de início. E também não parece haver dúvidas de que apenas o afastamento do efeito anulatório está em condições de assegurar a continuidade sem falhas da prestação dos serviços de recolha e limpeza. E, diga-se ainda, parece não haver dúvidas de que o retomar do procedimento concursal na fase da elaboração do relatório de avaliação e o eventual recurso a contratos temporários a celebrar por ajuste direto têm implicações e custos e entraves financeiros e administrativos que não podem ser negligenciados. Parece-nos, por isso, desproporcionado anular um contrato público que assegura os serviços de recolha de resíduos urbanos e limpeza nos termos previstos no CE, quando a alternativa é retomar o procedimento concursal com a exclusão da proposta adjudicada impugnada, sujeitando a população aos inconvenientes e perigos resultantes da descontinuidade, ainda que não muito significativa, da prestação dos serviços contratualizados, ou, em alternativa, recorrendo à celebração de contratos temporários por ajuste direto, o que, além de aumentar os custos para o erário público, dificilmente alcançará o objetivo de assegurar a continuidade sem falhas dos serviços de recolha e limpeza. De facto, ponderados os interesses da Administração, da concorrente a quem foi adjudicado o contrato de prestação de serviços e da contra-interessada autora da presente ação, a solução do afastamento do efeito anulatório é a que melhor se coaduna com as exigências da necessidade ou exigibilidade e da proporcionalidade em sentido restrito, subdimensões do princípio da proporcionalidade, na medida em que, respetivamente, se afigura a solução menos onerosa do ponto de vista pessoal e material, e porque, com base num juízo de ponderação custos-benefícios, pode concluir-se que os benefícios colhidos com essa solução superam, ou pelo menos equivalem-se aos prejuízos ou inconvenientes que dela decorrem. Vale isto por dizer, porque, feitas as contas, seriam maiores os prejuízos para a Administração (...) e para a adjudicatária (...) do que os benefícios para a concorrente preterida (…).

Resta salientar, por último, que, por um lado, e em relação à recorrida (...) não basta afirmar de forma genérica que a sua proposta é economicamente mais vantajosa porque pagou um melhor preço pelos contentores ou porque muitos dos preços unitários por si apresentados eram significativamente inferiores aos apresentados pelo adjudicatário.

(...) em nada interessa para a discussão acerca da aplicação do n.º 4 do artigo 283.º do CCP ao caso dos autos, em que está em causa o vício do acto de adjudicação, e em que, se fosse possível a sua sanação, não teria sentido falar no afastamento do efeito anulatório.”

Como é jurisprudência dominante e supra vem referido o que está em causa é a apreciação da consequência da invalidação do contrato tendo presente os princípios da proporcionalidade e da boa-fé, ponderando todos os interesses em presença.

No caso dos autos o contrato a celebrar visa a aquisição de serviços de transportes públicos rodoviários de passageiros para todo o concelho de Cascais tendo sido levantado o efeito suspensivo automático em 17.3.2020, tendo o contrato sido celebrado entre o Município de Cascais e a Empresa B............, S.A. e assinado a 9.4.2020.

Temos, também, de ter presente que está em causa um contrato para vigorar durante 7 anos a que acresce o período transitório e que o contrato objeto do contrato foi celebrado em 9 de Abril de 2020, portanto há cerca de dois anos e meio, faltando ainda quatro anos e meio para o seu términus.

E temos de ter presente que a invalidade em causa tem a ver com o próprio objeto do concurso que não corresponde à materialidade exigida.

Isto é, o contrato existente não assegura os serviços tal como previstos no caderno de encargos, diferentemente do que acontecia no acórdão supra citado, pelo que a situação é diversa.

É evidente que a consequência da anulação do contrato e da celebração de um novo contrato com o novo adjudicatário significaria (i) a retoma do procedimento, que implicaria a prática de um conjunto de atos, como fosse a adjudicação, aprovação da minuta do contrato, habilitação e celebração do contrato; (ii) sujeição do novo contrato a fiscalização prévia pelo Tribunal de Contas; e (iii) o início de um novo período transitório que, no caso, tendo em conta a proposta da A., ora Recorrida, seria de 6 meses (cf. proposta da A............, Lda).

Mas, daí não significa que os munícipes de Cascais se veriam privados (durante um período mais ou menos longo de tempo) do acesso a transporte público rodoviário de passageiros.

Na verdade, existem meios previstos no CCP para solucionar quaisquer necessidades imediatas e indispensáveis com que as autarquias se possam confrontar, sendo que a própria recorrida já manifestou, como vimos, colaboração na resolução das mesmas.

Por outro lado, também não se diga que o interesse que a A., ora recorrida, pretende fazer valer na presente ação é um interesse com expressão meramente financeira, por isso ressarcível em sede indemnizatória.

E, não se pode concluir do acórdão do STA chamado à colação pela aqui recorrente que a continuidade da prestação de um determinado serviço público constituiu fundamento relevantíssimo para o tribunal decidir no sentido do afastamento do efeito anulatório do contrato.

Por outro lado, e como se diz na decisão recorrida:

“Neste caso, em particular, conforme se concluiu acima, estamos perante uma ilegalidade que não é de somenos importância, tanto mais que afeta o conteúdo material da proposta e que tem um impacto financeiro significativo no contrato celebrado, sobretudo se tivermos em conta que o critério de adjudicação era o da proposta economicamente mais vantajosa.

A proposta de veículos com as características que têm os da B............ permitir-lhe-ia perverter as normas concursais, com uma inevitável vantagem sobre os demais concorrentes que tivessem apresentado veículos com os 18 lugares sentados exigidos no ponto 4.2. do Caderno de Encargos.

O que significa que a ilegalidade aqui em causa tem um impacto financeiro considerável e, por essa via, defraudar-se-iam os princípios da concorrência e da igualdade, quando contrapostas as propostas apresentadas pela B............ e pelos demais concorrentes, mormente a contrainteressada A.............

Mais a mais, os prejuízos potencialmente advenientes do início execução do contrato terão a sua génese no levantamento do efeito suspensivo, oportunamente requerido pelos próprios Recorrentes.

Basicamente, os Recorrentes pretendem usar, agora, a mesma argumentação que serviu para justificar o levantamento do efeito suspensivo automático, para pretender postergar os efeitos invalidantes de uma decisão judicial adversa, invocando a desproporção da sua execução.

A colher tal argumentação, tal poderia acarretar uma conclusão pela falibilidade do sistema. Ao admitir-se o levantamento do efeito suspensivo, numa fase inicial, estar-se-ia a votar, quase invariavelmente, a decisão final, a uma vitória pírrica, porquanto uma qualquer Autora, a ter sucesso, sempre estaria votada a ver a sua pretensão postergada pelo vencido, com recurso ao disposto no artº 283º, nº 4 do CCP.

In casu, atendendo aos circunstancialismos acima elencados, não se verificarão condicionalismos que justifiquem a postergação do juízo invalidante feito pelo tribunal de 1ª instância, em nome de quaisquer considerações de proporcionalidade ínsito ao nº 4 do artº 283º do CCP, acima transcrito.”

Sendo assim, e em nome dos referidos princípios da boa-fé e da proporcionalidade entende-se que não estamos perante a situação de recurso ao efeito invalidade previsto no art. 283º nº 4 do CCP.


*

Recurso da B............

Desde logo, admitido o recurso de revista, deve o Tribunal conhecer de todos os vícios invocados, independentemente de terem ou não sido os fundamentos para a admissão do recurso de revista.

Uma coisa são os motivos para se admitir o recurso de revista, outra é, admitido o mesmo, conhecer-se de todos os vícios invocados.

1.Alega a recorrente que ocorre nulidade da sentença do TAC por nulidade do pedido de esclarecimentos aos peritos em violação do n.º 4 do artigo 485.º do CPC.

Para tanto refere que, nos termos do n.º 4 do artigo 485.º do CPC, não se poderiam colocar novas questões aos peritos, distintas das originárias, nem solicitar esclarecimentos adicionais aos peritos que já se haviam pronunciado devidamente, após a produção de prova testemunhal.

E que nem o art. 411º do mesmo CPC o permite já que, se valesse o entendimento do Tribunal recorrido e o juiz pudesse determinara prestação de esclarecimentos ou aditamentos à perícia, ao abrigo do artigo 411.º do CPC, fora dos casos previstos no n.º 2 do artigo 485.º daquele Código, então o n.º 4 deste último preceito não teria qualquer conteúdo normativo próprio.

Pelo que, o TAC de Lisboa cometeu um erro de julgamento ao dar provimento à ação em decorrência da prova pericial ilicitamente produzida, daí resultando a nulidade da sentença com a consequente desconsideração dos segundos esclarecimentos prestados pelos peritos e com uma nova valoração da prova produzida em juízo, por força do n.º 1 do artigo 195.º do CPC.

Desde logo o que está a ser aqui sindicado é o acórdão do TCAS e não a sentença do TAC de Lisboa a quem vem imputada a nulidade de sentença.

De qualquer forma constitui jurisprudência pacífica deste STA que, atento o carácter extraordinário da revista excecional prevista no artigo 150.º do CPTA, não pode este recurso ser utilizado para arguir nulidades de acórdão, devendo as mesmas ser arguidas em reclamação para o tribunal recorrido, nos termos do artigo 615.º n.º 4 do Código de Processo Civil (cfr., entre muitos outros, os Acórdãos do STA de 26 de Maio de 2010, rec. n.º 097/10, de 12 de Janeiro de 2012, rec. n.º 0899/11, de 8 de Janeiro de 2014, rec. n.º 01522/13 e de 29 de Abril de 2015, rec. n.º 01363/14).

2. Alega também a recorrente que o TAC de Lisboa errou quando indeferiu, por extemporaneidade, a reclamação apresentada pelo Réu quanto aos esclarecimentos prestados pelos peritos, constante da notificação expedida em 19 de janeiro de 2021, para exercício do contraditório sobre os esclarecimentos prestados pelos peritos.

E que, contrariamente ao que foi sustentado pelo acórdão recorrido, esse indeferimento não se reduziu a uma mera irregularidade já que não há nulidade apenas quando a irregularidade possa influir na decisão, mas também quando possa influir no exame da causa (cfr. artigo 195.º do CPC), o que, a seu ver, acontece na situação dos autos.

Contudo, se existisse qualquer nulidade proveniente da irregularidade do despacho que determinou a prestação dos esclarecimentos pelos peritos, ela deveria ter sido invocada atempadamente perante o Tribunal a quo dentro do prazo legal de 5 dias [artigo 199.°/1 do CPC e 102.5/2, alínea c), do CPTA] - o que não sucedeu.

Pelo que, sempre fica ultrapassado o argumento invocado.

3_Alega a recorrente que o Tribunal a quo errou ao não julgar provada a exceção de ilegitimidade ativa da autora, considerando-a prejudicada unicamente em virtude das declarações que ela mesma prestou no processo, ao arrepio do disposto no n.º 3 do artigo 30.º do CPC.

E que, se a autora peticiona, no processo sub judice, a anulação do ato de adjudicação e noutro processo vem pedir a anulação ou a declaração de nulidade do contrato por vícios próprios do procedimento pré-contratual denuncia que, afinal, não pretende ser, ela própria, parte naquele contrato.

A este propósito disse a decisão recorrida:

“Os Recorrentes pretendem radicar tal arguição no facto de a A............ ter proposto uma segunda ação, já depois de prolatado despacho saneador nestes autos, através da qual peticionaria, entre o mais, a anulação ou a declaração de nulidade do contrato celebrado ente a EMPRESA B............ e o MUNICÍPIO DE CASCAIS por vícios próprios.

Através desta segunda ação a A............ teria manifestado que não pretendia ser adjudicatária no procedimento pré-contratual tramitado, nem celebrar o contrato objeto desse procedimento porque o consideraria nulo ou anulável.

Alegam os Recorrentes que, como tal, o interesse da A............ na presente ação deixou de ser direto, pessoal ou legítimo, pelo que ocorre a ilegitimidade ativa superveniente, ilegitimidade, essa, que dará lugar à absolvição da instância.

A não se entender assim, sempre existiria uma situação de inutilidade superveniente da lide que deverá conduzir à extinção da instância, uma vez que a A............ já não careceria da tutela judicial que motivou a propositura da ação, visto que já não pretende ser adjudicatária nem celebrar o contrato.

No entanto, nessa sequência, veio a A............ manifestar e informar que, não só mantém interesse na prossecução da lide, como já desistiu da ação que havia proposto e que tinha motivado a arguição de legitimidade/inutilidade superveniente por banda dos Recorrentes.

A A............ é parte legítima e mantém interesse na prossecução da presente lide, pois.

Tal bastará para, desde já, julgarmos improcedentes as arguidas ilegitimidade e inutilidade superveniente da lide.”

Ora, na verdade, deixando de existir os motivos alegados para a ilegitimidade, decorrentes de a A............ ter manifestado noutra ação que não pretendia ser adjudicatária no procedimento pré-contratual tramitado, nem celebrar o contrato objeto desse procedimento porque o consideraria nulo ou anulável, por esta ter desistido dessa ação, deixam de se colocar os fundamentos para a referida ilegitimidade.

E, também não se vê como, na relação controvertida, tal como é configurada pelo autor, o autor não seja titular de interesse relevante para efeitos de legitimidade.

Refere, também, a recorrente, que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao não considerar verificada a exceção de ilegitimidade da Autora em virtude da existência de uma causa de exclusão da sua própria proposta, nos termos do artigo 95.º, n.º 3, do CPTA.

Dispõe este preceito que:

“3 - Nos processos impugnatórios, o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o ato impugnado, exceto quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito, assim como deve identificar a existência de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas, ouvidas as partes para alegações complementares pelo prazo comum de 10 dias, quando o exija o respeito pelo princípio do contraditório.”

Ora, este preceito pressupõe que o tribunal tenha identificado outra causa de invalidade diversa da alegada o que não ocorreu.

O que se trata é que a recorrente quer sim, ela, invocar intempestivamente motivos para a exclusão da autora da ação e que embora levem também à anulação do ato de adjudicação o fazem baseados num ato anterior diverso que é o ato que admitiu a autora quando a devia ter excluído quando o que está aqui em causa são os vícios relativos à admissão da contrainteressada por se pretender que a sua proposta devia ter sido excluída.

Para daí concluir pela ilegitimidade da então autora.

O que a contrainteressada pretende é que a proposta da A............ devia ter sido excluída quando não interpôs em qualquer momento, nem subordinadamente, recurso do ato que admitiu aquela proposta.

4_Erro de Julgamento por falta de declaração de inutilidade superveniente da lide, e inerente extinção da instância, nos termos dos artigos 177.º, alínea e), e 652.º, n.º 1, alínea h), do CPC.

Pretende a recorrente B............ que com os fundamentos anteriores também devia ter sido declarada a inutilidade superveniente da lide.

Não havendo nada a conhecer, nomeadamente quaisquer eventuais vícios do ato que admitiu a proposta da A............ não se coloca quaisquer questões de inutilidade da lide.

5_Inconstitucionalidade relativa à redistribuição do processo.

Pretende a recorrente que o Tribunal a quo ao considerar que a redistribuição do processo determinada pelo n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 174/2019 e pela alínea a) do artigo 1.º da Portaria n.º 121/2020 poderia ter o efeito de reformular os temas e os meios de prova previamente fixados pelo Tribunal original, autorizando o Tribunal destinatário a desconsiderar o teor do Despacho Saneador e os temas e meios de prova põe em causa o direito fundamental à tutela jurisdicional efetivo e a um processo equitativo, na sua vertente probatória, protegido pelos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 268.º, n.º 4, da Constituição.

E conclui que o TACL só admitiu a produção de prova requerida pelo Réu para manter uma aparência de legalidade, o que se comprova pelo teor do Despacho de 21 de outubro de 2020, que depois deu “sem efeito” apenas em face do recurso que lhe foi dirigido, nos termos do qual qualquer prova adicional seria “irrelevante”.

A este propósito diz-se na decisão recorrida:

“Pretendem os Recorrentes que a decisão em crise procedeu a uma interpretação inconstitucional do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 174/2019 e na alínea a) do artigo 1.º da Portaria n.º 121/2020, por violação do disposto nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 268.º, n.º 4, da Constituição, que impõem o processo equitativo, com a possibilidade de preparar a atividade probatória e a garantia de que a prova produzida será devidamente apreciada e valorada;

Uma vez mais, este argumento prende-se com o mesmo. Os Recorrentes manifestam o seu dissenso em relação à decisão em crise, por entenderem que quer a factualidade dada como provada quer a motivação subjacente à mesma deveria ser alterada, dando-se prevalência ao depoimento/“opinião” das testemunhas por si arroladas e que pretendiam, supostamente, reconstituir aquela que era a real vontade da Entidade Demandada, no que respeita ao ponto 4.2. do Caderno de Encargos.

Como vimos acima, esta pretensão não teve acolhimento junto do tribunal a quo.

Nem, tão-pouco, pode ter agora.

De qualquer forma, não se compreende qual a conexão de tal questão, ubíqua e transversal a toda a argumentação dos Recorrentes, com os artigos 20º, nºs 1 e 4 e 268º, nº 4 da CRP.

O artº 20º da CRP, com a epígrafe “acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva”, diz-nos que:

1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.(…)

4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. (…)”(:..)

Concluindo (sumário elaborado nos termos e para os efeitos previstos no artº 663º, nº 7 do CPC):

I. A faculdade concedida no artº 485º do CPC não deixa de ser uma forma de exercício do contraditório.

II. Se o juiz concede às partes 10 (dez) dias para exercerem o contraditório sobre os esclarecimentos prestados pelos Peritos é expectável que a parte possa beneficiar desse prazo para apresentar a reclamação prevista no artº 485º, nº 2 do CPC....”

Claro que do entendimento veiculado nas instâncias de aplicação aos autos do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 174/2019 e na alínea a) do artigo 1.º da Portaria n.º 121/2020 não ocorre qualquer violação do disposto nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 268.º, n.º 4, da Constituição.

Na verdade não resulta dos autos que a referida redistribuição tenha impedido as partes de realizar devidamente o seu papel na fase instrutória do processo violando qualquer preceito constitucional e nomeadamente os artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 268.º, n.º 4, da Constituição.


*

Em face de todo o exposto acordam os juízes deste STA em negar provimento aos recursos e manter a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 24 de Novembro de 2022. – Ana Paula Soares Leite Martins Portela (relatora) - Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha – José Augusto Araújo Veloso.