Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0353/08
Data do Acordão:06/26/2008
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:COSTA REIS
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
PERDA DE MANDATO
VEREADOR
DECLARAÇÃO DE RENDIMENTOS
CULPA
MATÉRIA DE DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
JUÍZO DE FACTO
JUÍZO DE VALOR
Sumário:I - Os factos são realidades apreendidas pelos sentidos que se inscrevem na zona empírica da vida e, por isso, que os mesmos abrangem principalmente, ainda que não exclusivamente, as ocorrências concretas da vida real e o direito encontra-se relacionado com a normatividade legislada.
II - Há que distinguir entre os juízos de facto (juízos de valor sobre matéria de facto) aqueles cuja formulação se há-de apoiar em simples critérios próprios do bom pai de família e aqueles que apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formulação especializada do julgador. Os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto e a última palavra acerca deles, por isso mesmo, deve caber à Relação. Os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei e, por isso, o Supremo pode e deve, como Tribunal de revista, controlar a sua aplicação.
III - O juízo de culpa - juízo de valor sobre uma determinada conduta - sendo um conceito jurídico, só será atingido através do apelo à sensibilidade ou intuição do jurista ou aos conhecimentos especializados do julgador.
IV - No regime da Lei n.º 4/83, de 2/4, alterada pela Lei n.º 25/95, de 18/8, se o titular de cargo político não apresentar a declaração dos seus rendimentos e património após início do exercício das suas funções, será notificado para o fazer no prazo de trinta dias sob pena de, «em caso de incumprimento culposo», incorrer na perda de mandato.
V - O que quer dizer que o legislador não quis que a perda de mandato decorresse apenas da omissão do dever de diligência que recai sobre o eleito e, portanto, de mera culpa mas, ao contrário, quis que aquela só pudesse ser decretada quando a referida omissão significasse também o desrespeito pela referida notificação. Isto é, quando essa conduta evidenciasse uma culpa grave.
VI - Só se verifica culpa grave quando o agente tendo previsto a possibilidade da sua conduta produzir o resultado ilícito e danoso a adopta por, temerariamente, se convencer que ele não se produzirá, o que quer dizer que tal tipo de culpa está associada a um grau de imprudência e leviandade impróprio do bonus pater famílias.
Nº Convencional:JSTA00065081
Nº do Documento:SA1200806260353
Data de Entrada:04/28/2008
Recorrente:A...
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC.
Objecto:AC TCA NORTE.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM GER.
Legislação Nacional:CPTA02 ART150.
CPC96 ART722 ART729.
L 4/83 DE 1983/04/02 NA REDACÇÃO DA L 25/95 DE 1995/08/18 ART1 ART3.
CCIV66 ART487 ART500 ART800.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC21136 DE 1997/02/05.; AC STA PROC908/07 DE 2007/12/20.; AC STA PROC48394 DE 2002/01/09.; AC STA PROC44576 DE 1999/03/11.; AC STA PROC871/07 DE 2007/12/05.; AC STJ PROC07P1487 DE 2007/07/15.; AC STJ PROC07P820 DE 2007/09/20.
Referência a Doutrina:ALBERTO DOS REIS CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO V6 PAG30.
ANTUNES VARELA IN RLJ ANO122 PAG220.
ANTUNES VARELA IN RLJ N3784 PAG219-220.
ANTUNES VARELA E OUTROS MANUAL DE PROCESSO CIVIL 2ED PAG408-410.
ANTUNES VARELA DAS OBRIGAÇÕES EM GERAL 10ED V1 PAG571-573.
MANUEL DE ANDRADE NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL PAG186-195.
Aditamento:
Texto Integral: A… inconformado com o Acórdão do TCAN que, revogando a sentença proferida no TAF de Braga, julgou procedente a acção administrativa especial de perda de mandato proposta pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público, interpôs o presente recurso de revista – a coberto do disposto no art.º 150.º do CPTA - o qual foi admitido por ter sido entendido que a matéria aqui controvertida tinha a relevância jurídica suficiente para justificar a intervenção deste Supremo Tribunal.
Nele se formulam as seguintes conclusões:
1. O art.° 3° n.º 1 da Lei n.º 4/83, de 2/04, estabelece que a "perda de mandato" de titular de cargo político decorrente da omissão de remessa ao Tribunal Constitucional no prazo de 30 dias após notificação para o efeito, da "declaração de rendimentos e património..." resultará dos seguintes elementos factuais: incumprimento e culpa.
2. O incumprimento traduzir-se-á, como é evidente, na apontada omissão, atempada, da remessa da "declaração";
3. A culpa há-de resultar de factos que traduzam ou, pelo menos, indiciem conduta dolosa ou meramente negligente do titular do cargo político,
4. de forma a se poder afirmar que é merecedor daquela sanção cominada na lei.
5. Trata-se, pois, de dois elementos factuais que integram a causa de pedir na acção a propor pelo M.P. e destinada a obter decisão condenatória de "perda de mandato".
6. Na falta de alegação e prova da factualidade que integra algum desses elementos, a acção não pode proceder.
7. Ora, da sentença proferida em 1.ª Instância, não consta como provado qualquer facto que traduza ou indicie imputação de culpa (dolosa ou negligente) ao Réu/recorrente e, muito menos, a sua natureza e grau em que deverá ser avaliada.
8. Daí que, ao invés do entendimento seguido pelo Tribunal "a quo", a acção não pode ser julgada procedente, por carência de demonstração de um dos pressupostos essenciais que integram a causa de pedir.
Em todo o caso e sem prescindir
9. Deu-se como provado um elemento factual que constitui matéria de defesa alegada pelo Réu/recorrente: que a omissão da remessa da dita "declaração" resultou de conduta imputada, directamente, a B… a qual, no exercício da sua actividade de "contabilista", fora incumbida pelo Réu, de enviar a apontada "declaração" ao Tribunal Constitucional.
10. Tal facto resultou do depoimento desta testemunha que se encontra nos autos, reduzido a escrito.
11. No entanto, esta testemunha refere, no mesmo depoimento, que o Réu lhe entregara tal "declaração" parcialmente preenchida e pelo mesmo assinada.
12. A considerar-se que este elemento factual é relevante para a decisão de mérito, o Tribunal "a quo" poderia (e deveria) ter feito uso do disposto no art.° 712° n.º 1, a), do CPC e modificar, naquela medida, a decisão de facto,
13. ou então, caso não sentisse a necessária segurança para decidir (p.e. por carecer de imediação na produção da prova), fazer uso do preceituado no n.º 3 do mesmo preceito e remeter o processo, para tal fim, ao Tribunal de 1.ª Instância.
14. Espera-se que, na eventualidade de esse Supremo Tribunal vir a concluir ser necessária a demonstração desse facto (repete-se: suficientemente indiciado no depoimento reduzido a escrito) faça uso do disposto no art.º 729.°, n.º 3 do CPC (norma esta aplicável por força das disposições dos art.°s 1° e 140° do C.P.T.A.), remetendo o processo, para o efeito, ao Tribunal "a quo".
Ainda, em todo o caso e sem prescindir:
15. Não se vislumbra em que medida se pode censurar o Réu por (como se sustenta no acórdão recorrido) ter omitido um "pretenso" dever de fiscalizar/confirmar o envio da dita "declaração" ao Tribunal Constitucional, quando a pessoa incumbida da prática desse acto o exerceria no âmbito da sua actividade profissional, com as vestes de confiança e credulidade que a condição de contratada para a prestação, legal e regular, desse e de outros serviços inerentes à contabilidade, mereceram.
Por último e, ainda, sem prescindir:
16. Mesmo que se viesse a entender que a apontada conduta do Réu é censurável, nomeadamente por ter omitido o indicado e "pretenso" dever de averiguar se a "contabilista" remetera ou não a dita "declaração", não se afigura admissível que lhe possa ser imputado um grau de culpa superior ao da negligência e dentro desta, num plano da "culpa leve".
17. O Réu, embora fora do prazo previsto na lei, cumpriu a obrigação de remeter a "declaração de rendimentos" ao Tribunal Constitucional, mostrando vontade de satisfazer aquele comando legal e demonstrando que a omissão se deveu a causa estranha à sua actuação directa.
18. A jurisprudência desse Supremo Tribunal tem-se pronunciado no sentido de considerar que a "culpa prevista no mencionado art.º 3° n.º 1 da Lei n.º 4/83, de 2/04, há-de revestir suficiente gravidade para fundamentar o entendimento de que o titular de cargo político não dispõe de, perfil adequado à função que desempenha
19. O que, manifestamente, não é o caso do Réu/recorrente.
O Ilustre Magistrado do Ministério Público contra alegou e, se bem que não formulasse conclusões, defendeu a manutenção do julgado
FUNDAMENTAÇÃO
I. MATÉRIA DE FACTO:
A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. O Réu foi eleito como Vereador membro da Câmara Municipal de Caminha, nas eleições autárquicas realizadas em 09.10.2005 (vide doc. a fls. 6 a 8 do autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
2. O Réu foi notificado por ofício do Tribunal Constitucional, datado de 05.12.2006, para "nos termos do n.º 1 do art.º 3.º e da al.ª n) do n.º 1 do art.º 4.º da Lei n.º 25/95, de 18/08, apresentar neste Tribunal, no prazo de trinta dias consecutivos, a declaração de património, rendimentos e cargos sociais, conforme estabelecem os art.ºs 1.º e 2.º da referida lei, ou, no mesmo prazo, fazer prova de a já ter entregue. Mais fica advertido (a) para a parte final do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto: «...sob pena de...incorrer em declaração de perda de mandato demissão ou destituição judicial» (vide doc. a fls. 9 a 11 dos autos que aqui se dá como integralmente reproduzido).
3. O Réu recebeu o ofício referido no n.º anterior em 06.12.2006 (vide doc a fls. 9 a 11 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
4. O Réu incumbiu a sua contabilista, B… em Dezembro de 2006, de enviar ao Tribunal Constitucional, a declaração sobre o valor do património e rendimentos de cargos políticos e equiparados por ele assinada.
5. A Sra. contabilista referida admitiu o extravio do documento referido n.º anterior aquando da realização de obras de remodelação do respectivo escritório.
6. A petição inicial da presente acção deu entrada neste Tribunal a 23.05.2007, tendo sido o Réu citado por meio de carta registada com aviso de recepção e 24.05.2007.
7. O Réu remeteu ao Tribunal Constitucional um impresso preenchido assinado, designado por "Declaração sobre o valor do património e rendimentos dos titulares de cargos políticos e equiparados", tendo a mesma sido recebida naquela entidade em 31.05.2007 (vide doc.s a fls. 23 a 31 e 55 dos autos que aqui se dão, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzidos).
II O DIREITO.
O Ilustre Magistrado do Ministério Público deduziu, no TAF de Braga, contra A… acção administrativa especial pedindo a declaração de perda do seu mandato de vereador na Câmara Municipal de Caminha, para que fora eleito nas eleições realizadas em 9/10/2005, alegando que o mesmo, apesar de ter tomado posse desse cargo, não apresentou a declaração de património, rendimentos e cargos sociais e que essa falta determinava a perda do seu mandato.
Aquele Tribunal julgou a acção improcedente por ter entendido que, muito embora fosse verdade não ter o Réu apresentado a referida declaração nos 60 dias seguintes ao início de funções nem nos 30 dias imediatos à notificação que lhe foi feita pelo Tribunal Constitucional, certo era que essa falta, por si só, não bastava para a procedência da acção já que essa procedência dependia da prova de que aquele agira com culpa e esta demonstração não fora feita. Na verdade, provara-se que o Réu tinha encarregado a sua contabilista de enviar a referida declaração ao Tribunal Constitucional e esta, por negligência sua ou da pessoa que para ela trabalhava, não cumpriu essa ordem. Daí que tivesse concluído que “ao incumbir a terceiro a tarefa de entregar a referida declaração, o Réu não infringiu qualquer ditame legal ou dever de prudência a que estivesse especialmente obrigado” e que, por isso, inexistia o «incumprimento culposo» determinante da perda de mandato de que fala o n.º 1 do art.º 3.º da Lei 4/83.
Esta decisão foi, no entanto, revogada pelo Acórdão recorrido e a acção julgada procedente com a consequente declaração de perda de mandato do Recorrente por ter sido entendido que o facto deste ter incumbido a sua contabilista de enviar a sua declaração de rendimentos e desse envio não ter sido feito por facto imputável a esta era insuficiente para excluir a sua culpa. E isto porque ficara por provar que aquela declaração estivesse já preenchida e assinada quando foi entregue à contabilista como também estava por saber a razão porque ele próprio a não enviara. “Mas independentemente da situação fáctica em concreto, o certo é que não entendemos como justificada a omissão do recorrido, pois que, pese embora tenha incumbido a sua contabilista de enviar a Declaração dos seus rendimentos, bem como do seu património e cargos sociais para o TC, não estava dispensado de averiguar o cumprimento efectivo e atempado dessa sua obrigação, até porque não podia ignorar as cominações legais e que lhe foram feitas constar da notificação enviada pelo TC e que ele recebeu - pontos 2 e 3 dos factos provados.” De resto, o legislador não erigiu em requisito necessário da perda de mandato uma conduta/omissão dolosa por parte do titular do cargo político, bastando-lhe o «incumprimento culposo» e este ocorria “pois que ao agir com agiu, o recorrido incorreu em negligência quanto ao cumprimento dos seus deveres legalmente previstos e que ele não podia ignorar, em especial, depois de notificado pessoa e expressamente dessa obrigação e das respectivas sanções”.
É contra este julgamento que esta revista se dirige onde se sustenta estar provado que o Recorrente incumbiu a sua contabilista de enviar a declaração de rendimentos para o Tribunal Constitucional e não ser ajustado censurá-lo por não ter fiscalizado esse envio. De todo modo, ainda que se considerasse que esta falta de fiscalização constituía um comportamento culposo, certo é que a jurisprudência do STA tem considerado que a falta sancionada no art.º 3.º/1 da lei 4/83 pressupõe a existência de culpa grave e é manifesto que o Recorrente não agiu com esse grau de culpa. No entanto, e para a hipótese de se entender que esse ponto não estava suficientemente esclarecido e que para tanto era necessária a ampliação da matéria de facto, cumpria fazer uso dos poderes conferidos pelo art.º 712.º/1/a) do CPC e fixar a factualidade relevante ou ordenar a remessa dos autos ao Tribunal de 1.ª Instância para esse efeito a coberto do disposto no art.º 729.º/3 do mesmo Código.
Vejamos, pois, começando-se pela sindicância feita ao julgamento da matéria de facto.
1. É sabido que nos recursos de revista a divergência com o julgado terá de se cingirà violação da lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável” e na “violação ou errada aplicação da lei de processo”. – Alíneas a) e b), do n.º 1, do art. 722.º do CPC.
Deste modo, e porque o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos não pode ser fundamento da revista o Recorrente só poderá lograr a alteração da materialidade relevante se demonstrar que o seu julgamento ocorreu com “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.” (n.º 3 do citado art.º 722.º do CPC. Vd. também o n.º 2 do art.º 729 deste Código). Mas mesmo quanto a estas duas excepções o Prof. A. Reis ensina que elas “não constituem desvios da regra geral de que não é lícito ao Supremo conhecer de matéria de facto. Se bem atentarmos na natureza do erro cometido pela Relação nos casos apontados, havemos de reconhecer que se trata rigorosamente de erro de direito e não de erro de facto. Há erro na fixação dos factos da causa, mas o erro traduz-se na violação de determinada norma jurídica. É, portanto, erro de direito”. – CPC Anotado, vol. VI, pg. 30.
Nesta conformidade, havendo divergência quanto ao julgamento da matéria de facto este Tribunal só se poderá debruçar sobre o invocado erro se vier alegado (1) que se fixou um facto sem que existisse a espécie de prova que a lei considerou necessária para esse efeito e (2) se houver violação da norma que fixou a força de determinado tipo de prova.
Para além destas hipóteses a factualidade fixada no Tribunal a quo só pode ser alterada “quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito” (n.º 3 do citado art.º 729.º), devendo neste caso o processo ser remetido para tais efeitos ao Tribunal recorrido Vd. a este propósito e a título meramente exemplificativo, os Ac. deste STA de 5/2/97 (rec. 21.136), de 21/1/98 (rec. 21.679), de 25/2/98 (rec. 21.829) e de 11/3/98 e Ac.s do STJ de 26/1/94, de 27/10/94 e de 14/12/94 in Colectânea, Ano II, tomo 1º, pg. 59 e tomo 3º, pg. 105 e 173 e Antunes Varela, RLJ, 122/220..
Sendo assim, e sendo que não vem alegado que o Tribunal a quo tenha incorrido em qualquer dos apontando tipos de erro e não nos parecendo que a factualidade fixada seja insuficiente para julgar a causa ou contenha contradições que inviabilizem a decisão jurídica do pleito, cumpre avançar para se conhecer da questão central desta revista a qual, como se decidiu na formação que a admitiu, “consiste em determinar se deve qualificar-se o incumprimento do Recorrente como culposo.”
2. Nos termos do art.º 1 da Lei n.º 4/83, de 2/4 (na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 25/95, de 18/8) «Os titulares de cargos políticos apresentam no Tribunal Constitucional, no prazo de 60 dias contado da data do início do exercício das respectivas funções, declaração dos seus rendimentos, bem como do seu património e cargos sociais», sendo certo que se tal não for feito «a entidade competente para o seu depósito notificará o titular do cargo a que se aplica a presente lei para a apresentar no prazo de 30 dias consecutivos, sob pena de, em caso de incumprimento culposo …. incorrer em declaração de perda de mandato, demissão ou destituição judicial, consoante os casos …» (n.º 1 do art.º 3.º da mesma Lei).
O que quer dizer que as consequências cominadas no transcrito art.º 3.º da Lei 4/83 dependem da reunião cumulativa de três requisitos: (1) a não apresentação voluntária da referida declaração e a notificação do faltoso para o fazer em 30 dias; (2) a persistência no incumprimento dessa obrigação apesar desta notificação; (3) e a culpa nessa não apresentação sendo que esta, nos termos gerais do direito, pode ser afastada se o notificado provar que agiu sem culpa.
Deve, assim, ter-se por seguro que a acção de perda de mandato procederá se for provado que o obrigado foi notificado para apresentar a sua declaração de rendimentos no assinalado prazo de 30 dias e não a apresentou nem invocou (e demonstrou) justificação para afastar a sua culpa nessa falta.
3. O Acórdão recorrido, como sabemos, julgou a acção procedente e decretou a perda do mandato do Recorrente na convicção de que o facto deste ordenado à sua contabilista o envio da declaração de rendimentos e dela não o ter feito por, presumivelmente, a mesma se ter extraviado em resultado das obras realizadas no seu escritório era insuficiente para excluir a sua culpa, visto que ele “não estava dispensado de averiguar o cumprimento efectivo e atempado dessa sua obrigação, até porque não podia ignorar as cominações legais e que lhe foram feitas constar da notificação enviada pelo TC e que ele recebeu”. O que significa que, no entender do Aresto sob censura, a falta de fiscalização do cumprimento da ordem transmitida à contabilista era suficiente para se poder concluir que o incumprimento do Recorrente era culposo e que tal bastava para decretar a perda do seu mandato.
Sendo assim, a primeira dificuldade que se nos apresenta é a de saber se este juízo de culpa feito no Tribunal a quo – juízo de valor sobre a factualidade fixada - pode ser sindicado nesta revista ou se aquele se trata de um juízo de facto definitivo e, por isso, insusceptível de ser alterado nesta fase do julgamento.
Trata-se de questão delicada cuja resposta, como se verá, pode não ser pacífica.
4. A distinção entre matéria de facto e matéria de direito vem sendo abordada na doutrina e na jurisprudência desde há longos anos e, apesar desse labor, está ainda por definir de forma segura e inquestionável se os juízos de valor sobre os factos integram ainda matéria de facto ou se pertencem já à matéria de direito.
Com efeito, e muito embora seja teoricamente pacífico considerar que os factos são realidades apreendidas pelos sentidos que se inscrevem na zona empírica da vida e, por isso, que os mesmos abrangem principalmente, ainda que não exclusivamente, as ocorrências concretas da vida real e que o direito se encontra relacionado com a normatividade legislada, as dificuldades surgem quando se sai dessa dicotomia estática e se avança para a «zona imediatamente contígua» dos juízos de valor sobre a matéria de facto e na fixação desses juízos se tem de apelar a critérios não exclusivamente relacionados com a conduta exigível ao bonus pater famílias. E essa dificuldade surge porque, como ensinava o Prof. Antunes Varela, esses juízos de valor se situam “a meia encosta entre os puros factos (que ocorrem na planície terrena da vida) e as questões de direito (situadas nas cumeadas das normas jurídicas)”, isto é, porque os mesmos resultando directamente da mera materialidade factual não são apreensíveis se os termos em que se sustentam resultarem unicamente da comparação com o comportamento próprio do homo prudens e, portanto, não apelarem à normatividade jurídica. – Vd. Revista de Legislação e Jurisprudência n.º 3.784, pg. 219.
Há que distinguir nesses juízos de facto (juízos de valor sobre matéria de facto) entre aqueles cuja emissão ou formulação se há-de apoiar em simples critérios próprios do bom pai de família, do homo prudens, do homem comum e aqueles que, pelo contrário, na sua formulação apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formulação especializada do julgador. Os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto e a última palavra acerca deles, por isso mesmo, deve caber à Relação. Os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei e, por isso, o Supremo pode e deve, como Tribunal de revista, controlar a sua aplicação.” Sendo sempre certo que “a distinção, deste modo assente sobre a maior ou menor ligação do juízo de valor com a matéria fáctica ou com as regras jurídicas, presta-se naturalmente a divergência de resultados na sua aplicação prática, por nem sempre ser fácil medir e comparar a força da ligação do juízo de facto com uma ou outra das testas de pontes que o liga à solução do litígio.” – A. Varela na citada Revista a fls. 220. Sobre esta matéria podem ver-se ainda “Manual de Processo Civil”, 2.ª ed., pg.s 408/410 de A. Varela, M. Bezerra e S. e Nora e “Noções Elementares do Processo Civil”, n.ºs 93 e 97 (pg.s 186/190 e 194/195) de Manuel de Andrade.
Sendo assim, e sendo que o que ora está em causa é saber se o juízo de culpa formulado no Tribunal a quo é definitivo e se, por isso, tem de aqui ser acatado ou se, no âmbito desta revista, tal juízo pode ser objecto de crítica e de reponderação importa saber se a formulação desse juízo, que é um juízo de valor sobre um determinado comportamento, foi feita unicamente com apelo a simples critérios do bom pai de família ou se o mesmo resultou também do apelo à sensibilidade ou intuição do jurista ou à formulação especializada do julgador, pois que será em função dos elementos de que o mesmo se socorreu que se dará resposta à mencionada interrogação.
5. A culpa é, como se sabe, um conceito que exprime um juízo de censura ou reprovação sobre uma determinada conduta que parte do pressuposto de que o agente, nas concretas circunstâncias em que se encontrava, podia e devia fazer diferente. “Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.” A. Varela, “Das Obrigações em Geral”, I, pg. 571. Por isso afirmar a existência de culpa numa conduta significa emitir um juízo de reprovação jurídica o qual resulta da consideração de que o agente podia e devia não praticar o facto danoso e que o não fez.
Todavia, e este é um aspecto fundamental da questão, tal juízo não se funda em considerações ou valores morais, éticos ou filosóficos e, por isso, não se traduz num juízo moral ou ético sobre a conduta do agente visto que o mesmo, sendo conceito jurídico, só poderá ser alcançado com apelo aos princípios jurídicos e à normatividade legislada ainda que, na maioria das vezes, possa haver sobreposição entre os valores éticos e as normas legais. E, porque assim, o juízo de culpa, ou de não culpa, será atingido através do apelo à sensibilidade ou intuição do jurista ou aos conhecimentos especializados do julgador.
O que fica dito é melhor apreendido se se recordar que a culpa integra vários graus e que, em cada caso, importará apurar o grau de censurabilidade que incide sobre o comportamento do agente pois que daí resultam efeitos muito relevantes. Assim, e por ex., tendo o lesado contribuído para a produção do dano e, portanto, havendo concorrência de culpas é imprescindível conhecer o grau de culpa de cada um dos intervenientes pois que tal interfere decisivamente no cálculo da indemnização a atribuir (vd. art.º 570.º do CC); como também é fundamental saber se a responsabilidade se funda em mera culpa ou em culpa grave pois que no primeiro caso, ao contrário do segundo, o julgador pode fixar a indemnização em montante inferior ao valor dos danos efectivamente causados (vd. art.º 494.º do CC) ou, estando em causa o direito de regresso, apurar a medida da culpa de cada um dos responsáveis é fundamental pois que tal condicionará a fixação da comparticipação nessa responsabilidade (n.º2 do art.º 497.º do mesmo código). Ao que acresce que, por via de regra, o apuramento da culpa obriga a conhecer a jurisprudência uma vez que a solução dada a cada caso não deve ser desligada do que vem sendo decidido nos casos análogos.
Deste modo, e muito embora a culpa seja, “na falta de outro critério legal, apreciada pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso” (art.º 487.º/2 do CC, com sublinhado nosso), certo é que o juízo de culpa – juízo de valor sobre uma determinada factualidade - só pode ser correctamente formulado com apelo à sensibilidade do jurista e à formação jurídica do julgador pois que mesmo quando a mesma é apreciada em função da conduta exigível ao bonus pater famílias essa conduta tem de ser aferida de acordo com a normatividade legal.
Tanto basta para que, seguindo-se o ensinamento do Prof. A. Varela, se possa concluir que o Supremo, como Tribunal de revista, pode e deve controlar o juízo de culpa fixado nas instâncias quando o mesmo, como é o caso, se faça com recurso ao conhecimento da lei e à formação do julgador. – Vd. Ac.s do STJ de 15/07/2007 (proc. 07P1487) e de 20/09/2007 (proc. 07P2820)
6. No caso dos autos, o Tribunal recorrido considerou que o Recorrente agiu com culpa e daí ter julgado a acção procedente e ter decretado a perda do seu mandato.
E não merece censura a conclusão de que o Recorrente agiu com culpa, uma vez que nos parece censurável do ponto de vista jurídico que aquele, tendo sido notificado para apresentar a sua declaração de rendimentos, tenha incumbido terceiro para o fazer e não tenha fiscalizado o seu cumprimento, tanto mais quanto era certo tratar-se de uma obrigação pessoal. O que significa estar fora de dúvida que a falta do Recorrente integra o «incumprimento culposo» de que fala o art.º 3.º da Lei 4/83.
A questão está em saber se esse «incumprimento culposo» basta para se decretar a perda de mandato ou se é de considerar que o mesmo integra culpa leve e que é de exigir a culpa grave para essa perda.
6. 1. A lei não nos esclarece qual o tipo de culpa indispensável para desencadear a prolação de decisão que determine a perda de mandato e, portanto, não nos diz se a mesma terá de ser grave ou se bastará a culpa leve, pelo que nos cabe essa tarefa. E nesse labor a primeira observação a fazer é a de que a perda de mandato não decorre, imediata e automaticamente, da falta de apresentação por iniciativa própria da declaração de rendimentos uma vez que ela só pode ser decretada depois de se ter provado que o interessado ignorou a notificação que, nesse sentido, lhe foi feita pelo Tribunal Constitucional. O que, por si só, evidencia que o legislador quis que a perda de mandato só ocorresse quando houvesse culpa grave já que terá de se considerar que age com este grau de culpa quem, notificado para cumprir uma determinada obrigação, ignora essa notificação e persiste num comportamento que sabe ser ilegal. De resto - como se assinala no Acórdão de 20/12/2007 (rec. 908/07) – as acções de perda de mandato de alguém que foi democraticamente eleito, porque ordenadas a um resultado de séria gravidade e extremo melindre, impõem que se exija uma adequação e uma proporcionalidade entre a falta cometida e a sanção que lhe corresponde “até porque seria constitucionalmente questionável uma interpretação da norma que nela lobrigasse a possibilidade de emitir declarações de perda de mandato fundadas em lapsos mínimos e, portanto, destituídas de razoabilidade.
E, porque assim, é que a jurisprudência deste Supremo vem afirmando que, apesar do dolo não ser exigível na configuração da infracção, a perda do mandato só pode ser decretada se o fundamento legal que a justifica for imputável a título de culpa grave e não mera culpa ou simples negligência no cumprimento de um dever ou duma obrigação legal Vejam-se, por exemplo, os casos em que está em causa a violação da norma que proíbe o autarca de intervir em procedimento, acto ou contrato onde possa obter vantagem patrimonial para si ou para terceiro, onde tem sido decidido que a violação desse impedimento legal só é determinante da perda do mandato quando se mostre que aquele tinha interesse directo, pessoal e relevante nessa intervenção e que o mesmo era impeditivo duma actuação rigorosa, isenta e imparcial na defesa do interesse público posto a seu cargo. E isto porque “efectivamente, só um grau de culpa relativamente elevado sustentará a suspeição ou a reprobabilidade social da conduta, de tal modo que tornem o visado indigno do cargo. (Acórdão de 9/01/2002, rec. 48.349, com sublinhado nosso ).
Do mesmo modo - num caso em que a perda do mandato resultava do incumprimento de decisão judicial - foi entendido que “pode ser decretada a perda de mandato ao abrigo do art.º 9.º A da Lei 27/76 ainda que não haja dolo do agente, mas negligência. Todavia pode aproveitar-se para adiantar o entendimento num aspecto essencial para a decisão da causa: não basta um qualquer grau de culpa é necessário que a actuação mereça um forte juízo de censura (culpa grave ou negligência grosseira). Na verdade, atendendo: (i) à natureza sancionatória da medida da perda de mandato, (ii) à intrínseca gravidade desta medida, equivalente às penas disciplinares expulsivas, com potencialidade destrutiva de uma carreira política, iii) a que a conduta dos titulares de cargos políticos electivos é periodicamente apreciada pelo universo dos respectivos eleitores, há que concluir que a aplicação de tal medida só se justifica a quem tendo sido eleito membro de um órgão de uma autarquia local, no exercício das respectivas funções «violou os deveres do cargo em termos tais que o seu afastamento se tornou imperioso» (cfr. Acórdão STA de 21/03/96). Violaria o princípio da proporcionalidade das medidas sancionatórias que restrinjam direitos políticos aplicar uma tal sanção a incumprimentos veniais”.» - Acórdão deste Tribunal de 11/03/99 (rec. 44.576).
No mesmo sentido podem ver-se, ainda, os Acórdãos de 22/08/2007 (rec. 690/07), de 25/09/2007 (rec. 693/07), de 28/11/2007 (rec. 734/07) e de 5/12/2007 (rec. 871/07).
6. 2. Nesta conformidade, e ainda que se admita que um bonus pater famílias cuidadoso fiscalizaria o cumprimento da ordem transmitida à sua contabilista e, portanto, que essa falta de fiscalização possa ser qualificada como culposa certo é que, nas presentes circunstâncias, não nos parece que a mesma possa ser qualificada como uma culpa grave.
Com efeito, no âmbito da mera culpa ou negligência “cabem, em primeiro lugar os casos (excluídos do conceito do dolo) em que o autor prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar. Este é o recorte psicológico dos casos que integram a culpa consciente.
Ao lado destes, há as numerosíssimas situações da vida corrente, em que o agente não chega sequer, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, a conceber a possibilidade de o facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida. ….. Fala-se nestes casos em culpa inconsciente.
A mera culpa (quer consciente quer inconsciente) exprime assim uma ligação da pessoa com o facto menos incisiva do que o dolo, mas ainda assim censurável. O grau de reprovação ou censura será tanto maior quanto mais ampla for a possibilidade de a pessoa ter agido de outro modo, e mais forte ou intenso o dever de o ter feito.” – A. Varela, “Das Obrigações em Geral”, 10.ª ed., vol. I, pg. 573. Vd. também Almeida e Costa “Direito das Obrigações”, 9.ª ed., pg. 531/536.
Sendo assim, e sendo que a incumbência feita pelo Recorrente à sua contabilista no sentido de enviar a declaração de rendimentos é revelador do seu desejo de cumprir a referida obrigação legal e não vindo provado de que aquela fosse uma profissional incompetente e desleixada não era razoável prever que ela não iria cumprir a ordem que lhe foi transmitida. E, porque assim, é forçoso concluir que o Recorrente não agiu com culpa grave.
De resto, se é verdade, como acima se escreveu, que a declaração da perda de mandato é uma consequência de extrema gravidade já que vai contra a escolha dos eleitores e se a conduta dos eleitos é periodicamente apreciada por aqueles, é forçoso concluir que não se deve decretar essa perda sem que haja fundamento sério e proporcional à falta cometida e, in casu, a perda do mandato seria manifestamente desproporcional à falta cometida. A não ser assim impõe-se que se questione a constitucionalidade das apontadas normas da Lei 4/83.
Face ao exposto o juízo formulado no Tribunal a quo no sentido de que o Recorrente tinha obrigação de fiscalizar o cumprimento da ordem transmitida à sua contabilista e de que não o tendo feito se terá de concluir que o referido incumprimento foi culposo e que basta este grau de culpa para a perda de mandato não é de aceitar.
Ou seja, e dito de forma diferente, a culpa existente na conduta do Recorrente em resultado da não fiscalização do cumprimento de uma ordem, só pode qualificar-se como culpa leve a qual é insuficiente para determinar, ao abrigo dos citados normativos, a perda do seu mandato.
Termos em que acordam os Juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento ao recurso e, revogando-se a decisão recorrida, julgar improcedente esta acção.
Sem custas.
Lisboa, 26 de Junho de 2008. – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) - Luís Pais BorgesJorge Artur Madeira dos Santos. (vencido nos termos da declaração junta).
VOTO DE VENCIDO
O art. 3°, n.° 1. da Lei n.° 4/83, de 2/4, não distingue entre graus de culpa – embora, por razões de proporcionalidade, se deva excluir a possibilidade de perda do mandato quando a culpa do obrigado seja levíssima ou ínfima (neste exacto sentido, cfr. o acórdão do STA de 20/12/2007, proferido no rec. n.° 908/07).
Por outro lado, a culpa fundada na inobservância de deveres gerais de conduta integra matéria de facto, por o juízo acerca dela partir da comparação entre o que o agente fez e o que hipoteticamente um «homo prudens» faria naquelas mesmas circunstâncias concretas; pelo que a culpa só é uma questão de direito quando decorrer da inobservância de preceitos legais ou regulamentares. Aliás, é essa a linha de entendimento adoptada no texto do Prof. Antunes Varela que o projecto cita e afirma seguir para, inexplicavelmente, julgar depois ao invés.
Ora, saber-se se, «in concreto», foi culposa a acção do titular do cargo político traduz uma questão de facto, da exclusiva competência das instâncias, pois há apenas que contrastar a conduta realizada com aquela que um «bom pai de família» (art. 487°, n.° 2, do Código Civil) realizaria em tais circunstâncias («vide», v.g., o acórdão acima citado). É que a matéria de facto abrange factos objectivos e subjectivos, reais e hipotéticos; e o pormenor de a culpa se averiguar em abstracto não remete esse assunto para o plano do direito mas antes para o hipotético comportamento de facto que um homem diligente então assumiria.
Portanto, e não ocorrendo a situação prevista no art. 722º, n.° 2, do CPC, este STA não podia questionar o julgamento de facto por que o TCA entendeu haver culpa do ora recorrente e, simetricamente, inexistir uma qualquer causa da justificação dessa culpa.
Ademais, considero inadmissível que o juízo sobre a culpa se merecesse enunciação neste STA - tenha omitido a ponderação da ideia que genericamente se acolhe nos arts. 800° e 500° do Código Civil.
Pelo exposto, negaria a revista e confirmaria o acórdão recorrido.
Lisboa, 26 de Junho de 2008. - Madeira dos Santos.