Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02887/12.5BEPRT
Data do Acordão:05/13/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:PESSOAL EM REGIME DE REQUISIÇÃO
CEDENCIA
INTERESSE PÚBLICO
CONTRATO DE CONCESSÃO
Sumário:I – Por força do artigo 102.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27.02, os trabalhadores que se encontravam em regime de requisição nas Águas de Gondomar, SA, transitaram ope legis para o regime da cedência de interesse público.
II – O n.º 1 do artigo 18.º (“Conversão das situações de mobilidade”) do DL n.º 209/2009, de 09.03, estabeleceu que “Os trabalhadores que a 1 de Janeiro de 2009 se encontravam em situação de mobilidade para, ou de, entidade excluída do âmbito de aplicação objectivo da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, transitaram, por força do artigo 102.º da mesma lei e sem outras formalidades, para a situação jurídico-funcional de cedência de interesse público”. No seu n.º 2 pode ler-se: “A manutenção do estatuto de origem dos trabalhadores referidos no número anterior depende do acordo celebrado entre as partes ao abrigo do regime do instrumento de mobilidade aplicável antes da conversão”.
Nº Convencional:JSTA00071152
Nº do Documento:SA12021051302887/12
Data de Entrada:12/04/2019
Recorrente:SINDICATO NACIONAL DOS TRABALHADORES DA ADMINISTRAÇÃO LOCAL
Recorrido 1:ÁGUAS DE GONDOMAR, SA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAN
Decisão:PROVIDO
Legislação Nacional:L 21-A/2008, DE 27/02 ART 58.º
L 21-A/2008, DE 27/02 ART 102.º
DL 209/2009, DE 09/03 ART 18.º, 1 e 2
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1. Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local (STAL), devidamente identificado nos autos, recorre para este Supremo Tribunal do acórdão do TCAN, de 03.05.2019, que concedeu provimento ao recurso que a demandada Águas de Gondomar, SA (AdG, SA) interpôs da sentença proferida pelo TAF do Porto, revogou esta última e julgou a acção por si intentada improcedente.

Na origem do recurso interposto para o TCAN esteve, pois, a sentença do TAF do Porto, de 20.11.2015, que julgou totalmente procedente a acção administrativa intentada pelo ora recorrente e, em consequência, decidiu:

a) Anul[o]ar o acto proferido pela Ré, em 28/06/2012, na parte em que fixa o período de prestação de trabalho semanal de 40 horas e o regime de férias de 22 dias úteis por ano;

b) Conden[o]ar a Ré a fixar aos representados do Autor, o período de prestação de trabalho semanal de 35 horas, sem prejuízo do novo regime introduzido pela Lei n.º 68/2013, de 29 de Agosto;

c) Conden[o]ar a Ré a pagar aos representados do Autor, a partir de 01/08/2012, a retribuição referente a horas extraordinárias prestadas para além das 35 horas semanais, a liquidar em execução de sentença;

d) Conden[o]ar a Ré a conceder aos representados do Autor o período de férias previsto para os funcionários com contrato de trabalho em funções públicas, não atribuídas e não gozadas, a liquidar também em execução de sentença;

e) Conden[o]ar o R. a pagar aos representados do Autor, juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias referidas na alínea c), que deveriam ter sido pagas, desde a citação até efectivo e integral pagamento”.

2. Inconformado, o STAL recorreu para este STA, apresentando as respectivas alegações, concluindo do seguinte modo (cfr. alegações de fls. 359 a 382 – paginação SITAF):

“1- Em 28/06/2012 foi publicitada uma deliberação do Conselho de Administração da Recorrida com o seguinte teor “Face ao exposto, o Conselho de Administração deliberou proceder ao pagamento dos subsídios de férias e de Natal e estabelecer as seguintes regras, com efeitos a 1 de Agosto de 2012 – período de prestação de trabalho semanal de 40 horas; – regime de férias de 22 dias úteis por ano; – pagamento do subsídio de alimentação no valor de €5,75/dia útil de trabalho”, sem qualquer fundamentação legal ou contratual que justificasse tal decisão.

2- Os representados do Recorrente, todos com vínculo laboral com o Município de Gondomar, prestavam actividade na Recorrida desde 2001, por assim o terem aceite dado que foi fixado que mantinham todos os direitos e regalias fixadas por lei para os trabalhadores das autarquias locais e demais funcionários públicos (nomeadamente, e entre outros os regimes de férias, faltas, licenças, retribuições, etc) quer no Caderno de Encargos (artº. 47), quer no Contrato de Concessão da Exploração e Gestão dos Serviços Públicos Municipais de Abastecimento de água e Saneamento no Município de Gondomar (Cláusula 22º.), respectivamente, que tal actividade era exercida “no total respeito pelos direitos, retribuições e regalias dos funcionários transferidos. (...) que “os trabalhadores em regime de requisição permanecerão submetidos ao regime de carreiras e categorias da administração local (...) bem como em matéria de licenças, justificação de faltas (...)”.

3- A vontade das partes se reportava, de facto, à manutenção do estatuto de origem dos ora representados.

4- A Recorrida cumpriu desde 2001 até 2012, isto é, até à deliberação impugnada (objecto da presente acção) com o estabelecido naqueles documentos, fixando o horário de trabalho de 35 horas aos representados, praticando em relação a estes o regime de férias, feriados e faltas e licenças e demais direitos e regalias fixados por lei para os trabalhadores com contrato em funções públicas.

5- O douto acórdão considerou improcedente a acção decidindo, com erro de direito, que o estatuto de origem dos representados se encontrava suspenso e lhes era aplicável o regime do contrato individual de trabalho com a consequente improcedência dos demais pedidos.

6- De facto, o douto acórdão ao assim decidir violou o disposto no n.º 2 do art.º 58 da Lei 12-A/2008, bem como o disposto no artº. 18 do DL 209/2009 de 9/3, bem como os à data em vigor, artigos 126º. e 173º. da Lei 59/2008 de 11 de Setembro e alínea d) do art.º 89 da Lei 59/2008 (à data em vigor), violando mesmo o princípio de igualdade de tratamento.

7- Foi entendimento do douto Acórdão que com a entrada em vigor da Lei 12-A/2008 o estatuto de origem dos representantes tinha ficado suspenso, o que viola o disposto no n.º 2 do art.º 58 da Lei 12-A/2008, porque, e na verdade, para que o regime ficasse suspenso seria necessário que não houvesse disposição em contrário e que os representados tivessem celebrado novo acordo de cedência, revogando o anterior.

8- O douto Acórdão viola quer o disposto no n.º 1 e 2 do artigo 58.º, quer o disposto no artigo 102 e 103 da Lei 12-A/2008 ao decidir que aquando da entrada em vigor deste diploma ou os trabalhadores permaneciam cedidos, sujeitando-se ao regime do contrato de trabalho privado, ou faziam cessar a cedência voltando ao quadro do Município.

9- Na verdade, para os trabalhadores permanecerem cedidos de forma diferente à que detinham, teriam que celebrar novo acordo de cedência e não o contrário.

10- E, tal interpretação vem a ser confirmada pelo artigo 18.º do DL 209/2009 de 2/9, violado, também, pelo douto Acórdão.

11- Sendo que, não foi celebrado qualquer acordo de cedência com os trabalhadores ora representados, porque no contrato de exploração já se encontravam salvaguardados todos os direitos e regalias dos funcionários públicos ou trabalhadores com contratos de trabalho em funções públicas, que assim foram respeitados até ao despacho objecto da presente acção.

12- Por outro lado, o estatuto de origem dos representados não se encontrava suspenso, pois existia disposição em contrário em relação à suspensão do estatuto de origem, face ao caderno de encargos do concurso e do respectivo contrato de exploração.

13- Como resulta dos factos provados, o estatuto aplicável aos representados pela Recorrida era, e é, o estatuto público, que esta se tinha obrigado a cumpri-lo, tal como foi previsto no Contrato de Concessão de Exploração.

14- Sem prejuízo do que acima foi referido, na hipótese de ser entendido que o estatuto ficasse suspenso, certo é que a Recorrida se encontrava obrigada a cumprir para com os representados todos os direitos e regalias dos trabalhadores com contrato de funções públicas, nomeadamente férias, feriados, duração convencionada de horário de trabalho, entre outros, face ao disposto no Caderno de Encargos e Contrato de Concessão, e o douto Acórdão ao assim não entender errou de direito, com errada interpretação da lei e aplicação desta aos factos.

15- Sendo certo que, e como se vem referindo, existe uma errada interpretação, com o devido respeito, por parte do douto Acórdão, quando decide que a recorrida deliberação em recurso não violou o princípio da boa-fé contratual.

16- De facto, a recorrida vinculada que estava ao cumprimento do contrato de concessão em que se obrigou a manter todos os direitos e regalias que os trabalhadores ora representados detinham como trabalhadores do Município, e que originou à data a opção dos trabalhadores a exercer funções na Recorrida (o que cumpriu até à data da deliberação impugnada, proferida em 2012), violou o princípio da boa-fé contratual.

17- Pelo que tal deliberação sempre constituiria uma manifesta ofensa do princípio constitucional da tutela da confiança e do princípio da proporcionalidade, por implicar a supressão de uma prática acordada com os trabalhadores que durou mais de 11 anos e que continua a vingar após a entrada em vigor da Lei 12-A/2008.

18- Ainda que por mera tese se ficcionasse que era aplicável o Código do Trabalho, sempre a Recorrida estaria a violar o disposto no artigo 102, alínea d) do nº. 1 do artigo 129 e 226 do Código do Trabalho, entre outros, porquanto a entidade empregadora não pode diminuir a retribuição, nem alterar a carga horária contratualmente acordada, nem os dias de férias acordados.

19- Foi violado o disposto no nº. 2 do artº. 58 da Lei 12-A/2008, bem como o disposto no artº. 18 do DL 209/2009 de 9/3, bem como os à data em vigor, artigos 126º. e 173º. da Lei 59/2008 de 11 de Setembro e alínea d) do artº. 89 da Lei 59/2008 (à data em vigor), bem como o princípio da igualdade e da boa-fé contratual, ocorrendo, assim, claro erro de julgamento de direito”.

A final, pugna pela revogação da decisão recorrida, “com a consequente anulação do acto e condenação da Recorrida nos pedidos deduzidos na petição inicial”.


3. AdG, SA, ora recorrida, apresentou as suas contra-alegações, formulando as seguintes conclusões (cfr. contra-alegações de fls. 388-395 – paginação SITAF):

1.ª A Recorrida celebrou com o Município de Gondomar um contrato de Concessão de Exploração e Gestão dos Serviços Públicos Municipais de Abastecimento de Água e Saneamento no Município de Gondomar em que se obrigou a integrar, até ao termo do período de transição, os trabalhadores afetos aos SMAS e os trabalhadores da Câmara Municipal de Gondomar que constem do anexo XVII e que solicitassem tal integração.

2.ª A referida integração que poderia ser feita por diversas modalidades, podendo os trabalhadores optar, livre e pessoalmente, pela que entendessem, sendo a respetiva opção obrigatória para a concessionária.

3.ª Ora os representados pelo Recorrente optaram pelo regime de requisição, sujeitando-se ao regime estabelecido na cláusula 22.ª do Contrato de Concessão.

4.ª Em 2008, este regime de requisição teve de passar a respeitar as normas previstas no novo diploma legal, que veio estabelecer os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas - Lei n.º 12-A/2008 de 27 de fevereiro.

5.ª Sendo que, por força de tal regime jurídico, aqueles funcionários passaram a estar abrangidos pelo regime da mobilidade geral em cedência de interesse público (vide Art.º 102.º, n.º 1 da Lei n.º 12-A/2008 de 27 de fevereiro) desde 1 de janeiro de 2009.

6.ª Em 28 de junho de 2012 foi publicitada uma deliberação do Conselho de Administração das Águas de Gondomar, S.A., na qual foi decidido: 1.º Fixar aos representados um horário de 40 horas semanais; 2.º Fixar um regime de férias de 22 dias úteis; 3.º Pagar subsídio de alimentação no valor de €5,75/dia útil.

7.ª Tal deliberação foi tomada tendo em conta as normas legais à data em vigor, pelo que o Douto Acórdão decidiu sem qualquer erro de interpretação de direito.

8.ª A deliberação da Recorrida está em total consonância com o Contrato de Concessão e de acordo com a Lei, especificadamente, com o disposto no art.º 58.º, n.ºs 3, 4, 5 e 6, da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro.

9.ª Os representados pelo Recorrente não têm com a Recorrida uma relação jurídica de emprego público, gozando de um estatuto jurídico especial, pois apesar de estarem assegurados alguns direitos e regalias decorrentes do respetivo vínculo de origem, certo é que estão sob a autoridade e direção de uma entidade privada, excluída do setor de emprego público.

10.ª Assim, à relação jurídico-funcional estabelecida entre a Recorrida e os trabalhadores em cedência de interesse público, aplicam-se as regras de direito laboral privado (Vide acórdão proferido pelo Tribunal Administrativo de Almada no âmbito do Proc. n.º 1120/10.9BEALM).

11.ª Ademais reitera-se que: a estes colaboradores não foram aplicadas as normas estabelecidas pela Lei de Orçamento de Estado que suspende os pagamentos dos subsídios de férias e de natal; a estes colaboradores também não é aplicado o Regime Jurídico da Responsabilidade Civil e Criminal da Função Pública, nem o Regime de Avaliação e estão sujeitos ao Poder Disciplinar da Ré.

12.ª Mais recentemente, no mesmo sentido pronunciou-se o douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte no Proc. n.º 28/15.6BEPRT-A, acompanhando a sentença proferida no Processo n.º 2888/12.3BEPRT, em conformidade com o Acórdão ora recorrido, cuja argumentação aqui se invoca “Assim, a cedência de interesse público prevista pelos artigos 58º, nº 2, da LVCR e 241º, nº 3, da LTFP originou um novo vínculo jurídico transitório estabelecido com a entidade concessionária Águas de Gondomar, S.A. (coexistente com o vínculo originário) e, tendo em conta o efeito suspensivo, a sujeição ao regime jurídico-laboral aplicável à entidade concessionária, configurando assim um vínculo laboral de Direito privado, regulado pelo Código do Trabalho, de acordo com o disposto nos artigos 58º, nº 3, da LVCR e 242º, nº 1, da LTFP”.

A final, pugna pela improcedência da presente revista e pela confirmação da decisão recorrida, “com todas as suas consequências legais”.


4. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 12.11.2019, veio a ser admitida a revista, na parte que agora mais interessa, nos seguintes termos:

“(…)

3. A questão que suscita nos autos é a de saber se os trabalhadores do Município réu que, sob o regime de requisição, foram transferidos para uma sociedade de direito privado, em resultado da concessão de um servico público que aquele explorava, continuam sujeitos ao estatuto do funcionalismo público ou se passam a ficar sujeitos ao regime do direito privado, maxime ao Código do Trabalho. As partes fizeram depender a resposta a essa interrogação da circunstância deles terem, ou não, celebrado um acordo de cedência que formalizasse sua transferência e as instâncias, como se viu, também divergiram sobre esse aspecto do que resultaram julgamentos contraditórios.

Com efeito, enquanto o TAF, louvando-se na cláusula 22.2 do Contrato de Concessão – que estatuía que trabalhadores requisitados permaneciam submetidos ao regime do funcionalismo público independentemente da inexistência de acordo aquando da transferência – deu razão ao Autor, o TCA entendeu que a não celebração desse acordo implicava que os trabalhadores transferidos passavam a ficar sujeitos ao regime da entidade que os acolhia, o que, no caso, significava que ao período de férias e duração do período de trabalho se lhes aplicava o Código de Trabalho e não o regime constante do RCTFP.

Ora, esta é uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental e sobre a qual este Supremo, ainda, não teve a oportunidade de esclarecer”.


5. O Digno Magistrado do MP junto deste Supremo Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, não emitiu parecer.

6. Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para decidir.

II – Fundamentação

1. De facto:

Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.


2. De direito:

2.1. Cumpre apreciar a questão suscitada pelo ora recorrente, delimitado que está o objecto do respectivo recurso pelas conclusões das correspondentes alegações – sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha nos termos do art. 608.º, n.º 2, ex vi dos arts. 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC).
Analisada a mesma, o thema decidendum circunscreve-se à apreciação do alegado erro de julgamento relacionado com o problema de saber qual o regime jurídico aplicável aos direitos e regalias dos trabalhadores que, mantendo vínculo de emprego público, passaram, a partir de 2001, a trabalhar nas Águas de Gondomar, SA (empresa a quem foi concessionado o serviço de exploração e gestão dos Serviços Públicos Municipais de Abastecimento de Água e Saneamento no Município de Gondomar) em regime de requisição. Segundo o recorrente, “19- Foi violado o disposto no nº. 2 do artº. 58 da Lei 12-A/2008, bem como o disposto no artº. 18 do DL 209/2009 de 9/3, bem como os à data em vigor, artigos 126º. e 173º. da Lei 59/2008 de 11 de Setembro e alínea d) do artº. 89 da Lei 59/2008 (à data em vigor), bem como o princípio da igualdade e da boa-fé contratual, ocorrendo, assim, claro erro de julgamento de direito”.
Vejamos.

2.2. Em 2001 foi celebrado contrato de concessão de exploração e gestão dos Serviços Públicos Municipais de Abastecimento de Água e Saneamento no Município de Gondomar entre a Câmara Municipal de Gondomar (CMG) e a sociedade Águas de Gondomar, SA (AdG, SA), operando-se a transformação dos mencionados serviços autárquicos em empresa, in casu, empresa privada.

No contrato de concessão em questão, a AdG, SA, que, em função do contrato celebrado é considerada uma empresa concessionária de serviço público local, obrigava-se a “integrar na sua estrutura, até ao termo do período de transição, os trabalhadores afectos aos SMAS, e os trabalhadores do quadro da Câmara Municipal de Gondomar que constem do anexo XVII e que solicitem tal integração”, sendo que sempre havia a possibilidade de o trabalhador se manter em funções no empregador público, mas com reafectação a outro serviço do município, eventualmente com algum reajustamento da sua situação jurídica – cfr. Cláusula 21.ª do Contrato de Concessão).
A integração poderia ser feita, mediante opção livre do trabalhador, por diferentes modalidades (a mudança de empregador, in casu, de empregador público para privado, sempre deveria fazer-se com o consentimento do trabalhador). Os trabalhadores poderiam optar entre rescindir o contrato com a CMG e celebrar novo contrato com a empresa concessionária ou manter o vínculo de emprego público e passar a exercer funções na empresa concessionária mediante requisição – sendo que a empresa concessionária se obrigava a respeitar a opção dos trabalhadores (cfr. Cláusula 21.ª do Contrato de Concessão).
Resulta dos autos que os trabalhadores representados pelo STAL optaram pela figura da requisição (ponto 6) da matéria de facto)

Regia o estatuto de requisição dos trabalhadores em causa o estipulado na Cláusula 22.ª do Contrato de Concessão. Seguidamente, serão reproduzidos alguns dos seus parágrafos que agora mais interessam:

1. As retribuições e os encargos dos trabalhadores em regime de requisição deverão ser assegurados pela Concessionária, enquanto serviço de destino, devendo ainda as transferências de tais trabalhadores ser feitas no total respeito pelos direitos, retribuições e regalias dos funcionários transferidos, nomeadamente quanto à assistência médica e medicamentosa e quanto ao estatuto de aposentação dos funcionários públicos aplicável à data da aposentação.
2. Os trabalhadores em regime de requisição permanecerão submetidos ao regime de carreiras e categorias da administração local no que respeita a promoções, progressões, concursos e em tudo o mais que se relacionar estritamente com a carreira de funcionário público, bem como em matéria de licenças, justificação de faltas e ilícito disciplinar, devendo a Concessionária, nestes últimos casos, informar previamente a entidade a quem cabe o controlo de faltas, licenças e termos disciplinares, nos termos da legislação aplicável.
3. Os funcionários requisitados, à semelhança de todos os trabalhadores da Câmara Municipal e dos actuais SMAS, manterão o regime de beneficiários da ‘Caixa de Previdência da Câmara Municipal de Gondomar e Serviços Municipalizados’; a Concessionária será assim obrigada à comparticipação para aquela entidade, em moldes idênticos aos que actualmente vigoram para os SMAS.
(…)
6. A todo o momento, ao longo do período de Concessão, todos os funcionários requisitados, desde que o requeiram, poderão ser integrados no quadro de pessoal da Câmara Municial de Gondomar”.

A possibilidade da opção pela requisição estava consagrada no DL n.º 147/95, de 21.07 (diploma que criava “o observatório nacional dos sistemas multimunicipais e municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos e regulamenta o regime jurídico da concessão dos sistemas municipais”. No seu artigo 10.º dispunha-se que “Os funcionários das autarquias locais podem ser autorizados a exercer quaisquer cargos ou funções, em regime de requisição, nas empresas concessionárias dos sistemas referidos no n.º 1 do artigo 4.º

Em 2008 foi aprovada a Lei n.º 12-A/2008, de 27.02, que regulamentava os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações – funções públicas. No seu artigo 58.º, sob a epígrafe “Cedência de interesse público”, foi consagrado o respectivo regime. Eis o seu teor:

1 - Há lugar à celebração de acordo de cedência de interesse público quando um trabalhador de entidade excluída do âmbito de aplicação objectivo da presente lei deva exercer funções, ainda que a tempo parcial, em órgão ou serviço a que a presente lei é aplicável e, inversamente, quando um trabalhador de órgão ou serviço deva exercer funções, ainda que no mesmo regime, em entidade excluída daquele âmbito de aplicação.
2 - O acordo pressupõe a concordância escrita do órgão ou serviço, do membro do Governo respectivo, da entidade e do trabalhador e implica, na falta de disposição em contrário, a suspensão do estatuto de origem deste.
3 - A cedência de interesse público sujeita o trabalhador às ordens e instruções do órgão ou serviço ou da entidade onde vai prestar funções, sendo remunerado por estes com respeito pelas disposições normativas aplicáveis ao exercício daquelas funções.
4 - O exercício do poder disciplinar compete à entidade cessionária, excepto quando esteja em causa a aplicação de penas disciplinares expulsivas.
5 - Os comportamentos do trabalhador cedido têm relevância no âmbito da relação jurídica de emprego de origem, devendo o procedimento disciplinar que apure as infracções disciplinares respeitar o estatuto disciplinar de origem.
6 - O trabalhador cedido tem direito:
a) À contagem, na categoria de origem, do tempo de serviço prestado em regime de cedência;
b) A optar pela manutenção do regime de protecção social de origem, incidindo os descontos sobre o montante da remuneração que lhe competiria na categoria de origem;
c) A ocupar, nos termos legais, diferente posto de trabalho no órgão ou serviço ou na entidade de origem ou em outro órgão ou serviço.
7 - No caso previsto na alínea c) do número anterior, o acordo de cedência de interesse público caduca com a ocupação do novo posto de trabalho.
8 - O acordo pode ser feito cessar, a todo o tempo, por iniciativa de qualquer das partes que nele tenham intervindo, com aviso prévio de 30 dias.
9 - Não pode haver lugar, durante o prazo de um ano, a cedência de interesse público para o mesmo órgão ou serviço ou para a mesma entidade de trabalhador que se tenha encontrado cedido e tenha regressado à situação jurídico-funcional de origem.
10 - No caso previsto na primeira parte do n.º 1, o exercício de funções no órgão ou serviço é titulado através da modalidade adequada de constituição da relação jurídica de emprego público.
11 - As funções a exercer em órgão ou serviço correspondem a um cargo ou a uma carreira, categoria, actividade e, quando imprescindível, área de formação académica ou profissional.
12 - Quando as funções correspondam a um cargo dirigente, o acordo de cedência de interesse público é precedido da observância dos requisitos e procedimentos legais de recrutamento.
13 - O acordo de cedência de interesse público para o exercício de funções em órgão ou serviço a que a presente lei é aplicável tem a duração máxima de um ano, excepto quando tenha sido celebrado para o exercício de um cargo ou esteja em causa órgão ou serviço, designadamente temporário, que não possa constituir relações jurídicas de emprego público por tempo indeterminado, casos em que a sua duração é indeterminada.
14 - No caso previsto na alínea b) do n.º 6, o órgão ou serviço ou a entidade comparticipam:
a) No financiamento do regime de protecção social aplicável em concreto com a importância que se encontre legalmente estabelecida para a contribuição das entidades empregadoras;
b) Sendo o caso, nas despesas de administração de subsistemas de saúde da função pública, nos termos legais aplicáveis.
15 - Quando um trabalhador de órgão ou serviço deva exercer funções em central sindical ou confederação patronal, ou em entidade privada com representatividade equiparada nos sectores económico e social, o acordo pode prever que continue a ser remunerado, bem como as correspondentes comparticipações asseguradas, pelo órgão ou serviço.
16 - No caso previsto no número anterior, o número máximo de trabalhadores cedidos é de quatro por cada central sindical e de dois por cada uma das restantes entidades”.

Já no seu artigo 102.º, sob a epígrafe “Conversão das situações de mobilidade para, ou de, outras entidades”, podia ler-se o seguinte:

1 - Os actuais trabalhadores em situação de mobilidade para, ou de, entidade excluída do âmbito de aplicação objectivo da presente lei transitam para a situação jurídico-funcional de cedência de interesse público.
2 - Considera-se termo inicial da cedência referida no número anterior a data da entrada em vigor do diploma referido no n.º 5 do artigo 118.º”.

Não consta da matéria de facto que os trabalhadores representados pelo STAL tenham, então, acordado em qualquer alteração ao estatuto jurídico de que beneficiavam em virtude da Cláusula 22.ª do contrato de concessão em apreço (estatuto de origem).

Conforme consta do ponto 7) da matéria de facto, “Em 28.06.2012, o Conselho de Administração da Ré emitiu deliberação com o seguinte teor: «Face ao exposto, o Conselho de Administração deliberou proceder ao pagamento dos subsídios de férias e de Natal e estabelecer as seguintes regras, com efeitos a 1 de Agosto de 2012: - período de prestação de trabalho semanal de 40h; - regime de férias de 22 dias úteis por ano; - pagamento do subsídio de alimentação no valor de € 5,75/dia útil de trabalho”. No documento 2 anexo aos autos, de onde se extraiu este excerto, pode ler-se na parte inicial: “Na sequência dos Despachos de Suas Excelências os Secretários de Estado do Orçamento e da Administração Pública (532/2012/SEO e 2254/2012/SEAP), sobre a aplicação da suspensão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal, prevista na Lei do Orçamento de Estado, aos trabalhadores em regime de cedência de interesse público, em empresas de capital exclusivamente privado, comunica-se o seguinte: De acordo com os referidos Despachos, o exercício de funções daqueles trabalhadores em empresas privadas ou concessionárias de serviço público de capital exclusivamente privado, em regime de cedência de interesse público, implica a suspensão do seu estatuto jurídico de origem, devendo os mesmos cumprir e respeitar as disposições normativas vigentes na empresa ou entidade onde passaram a exercer funções. Face ao exposto, o Conselho de Administração deliberou proceder ao pagamento dos subsídios de férias e de Natal e estabelecer as seguintes regras, com efeitos a 1 de Agosto de 2012: (…)”.

Do que foi dito, e mais concretamente da actuação da AdG, SA, entre 2008 e 2012, resulta que esta entendeu que a passagem do regime da requisição para o da cedência de interesse público, operada pela Lei n.º 12-A/2008, não afectou a situação juslaboral dos trabalhadores que em 2001 passaram a exercer funções na AdG, SA, em situação de mobilidade externa, mais especificamente, em regime de requisição. E entendeu bem. A norma contida no artigo 102.º deste diploma, que consta do Título VII (“Disposições finais e transitórias”) determinou a aplicação ope legis do regime jurídico da cedência de interesse público aos trabalhadores representados pela ora recorrente, não mencionando a necessidade de qualquer (novo) acordo com a entidade cessionária, o qual poderia determinar a suspensão do estatuto de origem (o dos trabalhadores que exercem funções públicas). O artigo 18.º do DL n.º 209/2009, de 09.03 (que adapta a Lei n.º 12-A/2008, “com excepção das normas respeitantes ao regime jurídico da nomeação, aos trabalhadores que exercem funções públicas na administração autárquica e procede à adaptação à administração autárquica do disposto no Decreto-Lei n.º 200/2006, de 25 de Outubro, no que se refere ao processo de racionalização de efectivos”) reforça esta interpretação. No n.º 1 do seu artigo 18.º (“Conversão das situações de mobilidade”) dispunha da seguinte forma: “Os trabalhadores que a 1 de Janeiro de 2009 se encontravam em situação de mobilidade para, ou de, entidade excluída do âmbito de aplicação objectivo da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, transitaram, por força do artigo 102.º da mesma lei e sem outras formalidades, para a situação jurídico-funcional de cedência de interesse público”. No n.º 2 pode ler-se: “A manutenção do estatuto de origem dos trabalhadores referidos no número anterior depende do acordo celebrado entre as partes ao abrigo do regime do instrumento de mobilidade aplicável antes da conversão”. Não só a transição se opera “sem outras formalidades”, como a manutenção do estatuto jurídico aplicável depende do acordo celebrado pelas partes, em 2001 ao abrigo do regime de requisição. A recorrida, no entanto, resolveu extrair dos supra mencionados despachos ministeriais (aos quais é apenas feita uma menção genérica e não constam da matéria de facto provada) uma obrigatória suspensão do estatuto jurídico de origem dos trabalhadores em causa – com a consequente aplicação do estatuto de destino fundado no regime do contrato individual de trabalho. Ora, qualquer alteração que fosse feita ao acordo inicial nunca poderia ser imposta unilateralmente pelo Conselho de Administração da recorrida e justificada a sua decisão em despachos ministeriais, qualquer que seja o seu conteúdo. Vale isto por dizer que, em relação aos trabalhadores representados pela ora recorrente, não cessou nem se suspendeu o vínculo de emprego público e nem se suspendeu o respectivo estatuto jurídico por força dos despachos convocados pela recorrente, cujo conteúdo se desconhece. E é, pois, o estatuto de origem que se aplica aos trabalhadores representados pelo ora recorrente à luz da Cláusula 22.ª do Contrato de Concessão, sendo que a entrada em vigor da Lei n.º 12-A/2008, de 27.02, atenta a factualidade provada, não alterou a sua situação em termos de vínculo juslaboral e de estatuto.
Em face de todo o exposto, deve ser anulada a deliberação do Conselho de Administração da recorrida objecto de impugnação nos presentes autos.

III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em conceder provimento ao recurso jurisdicional, e, consequentemente, em revogar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 13 de Maio de 2021. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) - Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha - Carlos Luís Medeiros de Carvalho.