Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0690/19.0BEALM
Data do Acordão:01/25/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
PROPOSTA
Sumário:A entidade adjudicante tem de formular um juízo autónomo e fundamentado no princípio da concorrência a respeito da concreta “fiabilidade” dos concorrentes à luz dos critérios enumerados no artigo 57.º, n.º 4 da Directiva 2014/24, o que incluiu a apreciação de infracções ao direito da concorrência cometidas em procedimentos anteriores, devendo, esse juízo, basear-se no procedimento de infracção que tenha sido concluído pela autoridade competente por fiscalizar aqueles comportamentos.
Nº Convencional:JSTA000P31839
Nº do Documento:SA1202401250690/19
Recorrente:INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A. E OUTROS
Recorrido 1:A..., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo


I - RELATÓRIO

1. A..., Lda. (de ora em diante apenas A...), com os sinais dos autos, intentou no TAF de Viseu acção de contencioso pré-contratual contra a INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A. e indicou como contra-interessada a B..., S.A. (de ora em diante apenas B...), ambas igualmente com os sinais dos autos. Pediu nessa acção a anulação do acto de adjudicação da proposta da B... praticado pelo Conselho de Administração da Entidade Demandada em 25 de Julho de 2019, a exclusão da referida proposta e a adjudicação da sua, no concurso para a aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas, pelo preço base de €2.979.200,00.
Fundamenou o pedido em diversas ilegalidades do acto de adjudicação impugnado, que identificou com: i) a violação dos artigos 57.º, n.º 4 e 72.º, n.º 3 do CCP; ii) a violação dos artigos 8.º, n.º 1 do Programa do Concurso, e 57.º, n.º 1, 146.º, n.º 2, alínea d), e 1.º-A do CCP; e ainda, iii) a violação da alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP.


2. Por sentença de 21 de Fevereiro de 2020, o TAF de Viseu "julgou totalmente improcedente a acção", tendo considerado, quanto à alegada violação da alínea g) do n.º 2 do artigo 70.° do CCP, que "os fortes indícios de eventual falseamento da concorrência deverão verificar-se em sede do próprio procedimento em análise".

3. Inconformada, a A... recorreu daquela sentença para o TCA Norte, que, por acórdão de 29 de Maio de 2020, conheceu da questão, limitada ao erro de julgamento de direito sobre a interpretação e aplicação da referida alínea g) do n.º 2 do artigo 70.° do CCP, revogando a sentença, julgando a acção procedente, e, condenando a Entidade Demandada a adjudicar o contrato àquela, por, em seu entender, tal corresponder à melhor interpretação e aplicação da referida alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP, em conformidade com a Directiva 2014/24/EU.

4. Inconformados com aquele acórdão, quer a contra-interessada B..., quer a Entidade Requerida INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A. vieram interpor recurso de revista para este STA, os quais foram admitidos. Com efeito, por acórdão de 22 de Abril de 2021, este STA concedeu provimento ao recurso da Entidade Requerida, por verificação de nulidade da decisão, anulou o acórdão recorrido, por falta de fundamentação, e determinou a baixa dos autos ao TCA Norte para efeitos de suprimento de tal nulidade.

5. Em 2 de Junho de 2021, o TCA Norte proferiu o acórdão agora recorrido, no qual concedeu provimento ao recurso da Autora, revogou a sentença de 1.ª instância, julgou a acção procedente e condenou a Entidade Requerida a praticar o acto devido: "o acto de adjudicação da aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho cresotado à Autora/Recorrente", com fundamentos semelhantes aos do acórdão que havia sido anulado.

6. Novamente inconformados com aquele acórdão, quer a contra-interessada B..., quer a Entidade Requerida INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A. vieram interpor novamente recurso de revista para este STA, os quais foram admitidos, essencialmente, pelas seguintes razões:
«[…]
o acórdão de 29.10.2020 desta Formação de Apreciação Preliminar apreciou o referido erro de julgamento de direito que entendeu nuclearizar-se na aplicação, neste caso concreto "em que a adjudicatária B... tinha sido condenada a pagar uma coima no âmbito de processo contra-ordenacional movido pela Autoridade da Concorrência, e relacionado com práticas anticoncorrenciais", da causa de exclusão prevista no artigo 70.°, n.º 2, alínea g) do CCP, juntamente com a previsão do artigo 55.°, n.º 1, al. f) do CCP, no sentido de que "bastará esta «questão», sobre a qual não é pacífica a doutrina, nem há jurisprudência concludente, para aconselhar esta Formação a admitir a revista. Efectivamente, trata-se de interpretação que envolve direito da UE e dita consequências práticas relevantes no âmbito dos concursos públicos, podendo, assim, ser repetível'.

E não há qualquer motivo que justifique que se divirja da admissão das revistas nos apontados termos, já que a questão de fundo a discutir nas revistas, permanece a identificada no acórdão de 29.10.2020.
[…]».
7. A Recorrente INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A. rematou as suas alegações com as seguintes conclusões:
«[…]
A) O Acórdão decidiu manifestamente mal, e contra o direito, a questão jurídica que foi objecto do recurso de apelação. Na verdade,

B) Invoca que a Sentença interpretou mal o disposto no art. 70.º n.º 2 alínea g) do CCP, pois que, no seu entender, e por força da sua consciência ético-jurídica e do direito comunitário, essa causa de exclusão específica abrange também necessariamente os casos passados de indícios de condutas anti-concorrenciais pelos concorrentes, ainda que de há vários anos, e não presentes ou indiciados na proposta do concorrente;

C) Todavia, e ao contrário do que acórdão recorrido aduz e defende, da lei portuguesa não deriva isso: tais factos, exteriores à proposta do procedimento em causa e sem que no seu teor (da proposta, e do concurso) se projectem ou tenham qualquer reflexo, apenas nesta relevam se tiverem dado azo a uma decisão sancionatória que determine uma “proibição de participação” em concursos públicos futuros durante determinado período de tempo (tal como se dispõe na alínea f) do n.º 1 do art. 55.º do CCP).

D) Sanção acessória esta, de participação, que não existe e nunca existiu no caso presente.

E) O legislador português nas duas normas referidas do CCP [o art. 55.º/1 f) – que prevê uma situação específica de “impedimento” para o concorrente apresentar propostas em concursos, por causa e factos passados; e o art. 70.º n.º 2 g) – que prevê a exclusão de “propostas” cuja análise revele indícios presentes de prática anti-concorrencial] deu aplicação plena às hipóteses consagradas na directiva europeia (art. 57.º da 2014/14/UE).

F) De resto, e como se sabe, a própria causa de exclusão prevista no n.º 4 do art. 57.º da Directiva, é uma causa não “obrigatória”, mas antes “facultativa”.

G) Não é preciso, pois, e nem sequer é minimamente correcto, interpretar a norma da alínea g) do n.º 2 do art. 70.º do CCP, com um alcance mais vasto do que aquele que resulta do seu sentido expresso e literal, e que se refere aos indícios de prática anti-concorrencial revelados na própria proposta (i.e., “resultantes da sua análise”).

H) A norma europeia não obriga a uma leitura diferente dessa norma específica; e para os casos antigos ou passados – que não resultem da análise de proposta actual, nem nela tenham qualquer incidência ou reflexo (viciante, pois) –, vale a regra e os mecanismos dos impedimentos de concorrer, previstos noutra sede.

I) De facto, quanto ao “desenho” da causa facultativa prevista na alínea d) do n.º 4 do art. 57.º da Directiva (2014/24/UE) – e que é invocado pelo acórdão –, é bom não esquecer que a própria directiva prevê, para ela, a necessidade de se fazer acompanhar tal previsão quando acolhida desse modo na legislação nacional, de eventuais mecanismos de minorar tais consequências (cf. considerando 102; e nºs 6 e 7 do mesmo art. 57.º: “Qualquer operador económico que se encontre numa das situações referidas nos n.ºs 1 e 4 pode fornecer provas de que as medidas por si tomadas são suficientes para demonstrar a sua fiabilidade não obstante a existência de uma importante causa de exclusão. Se essas provas forem consideradas suficientes, o operador económico em causa não é excluído do procedimento de contratação”; e “7. Os Estados-Membros devem (...) determinar o período máximo de exclusão no caso de o operador económico não ter tomado medidas, como as especificadas no n.º 6, para demonstrar a sua fiabilidade. … esse prazo não pode ser superior a … três anos a contar da data do facto pertinente nos casos referidos no n.º 4).

J) Aliás, quanto ao próprio alcance específico da alínea d) do n.º 4 do art. 57.º da Directiva, Autores têm-se pronunciado no sentido de que “este fundamento se aplica apenas a ilícitos concorrenciais praticados no âmbito do procedimento específico” (cf. PEDRO GONÇALVES, Direito dos Contratos Públicos, 2ª ed., Almedina, 2018, pág. 659). Também, a posição, neste mesmo sentido de SÁNCHEZ GRAELLS, “Prevention and decorrence of bid rigging”, in G.M. Racca/C. Yukins, Integrity and efficiency in sustainable public contracts”, p.194, apud anterior, op. cit.).

K) No fundo, e bem, o legislador português procedeu, como se tem escrito (e sem crítica, a não ser agora a alegação da recorrente), a uma dicotomia quanto a este tema previsto nas directivas, abrangendo todas as hipóteses nela possivelmente contempladas (mesmo facultativas, e não-obrigatórias), e foi claro:

a) - se condutas anti-concorrenciais anteriores, cometidas fora do procedimento adjudicatório em causa, e nele não reflectidas (não o viciando), são vistas pela Autoridade da Concorrência e podem acarretar, para o concorrente, o impedimento legal de participar em procedimentos como esse: nos termos do art. 55.º/1-f), do CCP;

b) - já se forem condutas, ou fortes indícios delas, reveladas na análise da própria proposta do concurso em causa, será motivo de decisão de exclusão dessa proposta e de comunicação para os devidos efeitos à autoridade da concorrência (art. 70.º/2-g), do CCP).

L) Com o devido respeito, a apelante/acórdão que a copia desvirtuou o sentido das citações que faz de PEDRO SÁNCHEZ, na obra Direito da Contratação Pública, AAFDL, 2020, Vol. II. Na verdade, em lado nenhum da referida obra (e até nos locais de texto a que se reportam as citações feitas) o ilustre Autor afirma ou sufraga a tese de que a causa de exclusão aqui em causa (da alínea g/ do n.º 2 do art. 70.º do CCP) diga respeito a outras condutas anti-concorrenciais tomadas fora do âmbito do procedimento adjudicatório concursal que está em causa [como diz a lei: …”propostas cuja análise revele” esses fortes indícios…].

M) Muito pelo contrário, nas páginas citadas da obra mencionada extrai-se claramente que o Autor sempre tem subjacente e se está a referir, quanto a essa hipótese legal de exclusão de propostas no concurso (da alínea g)), a condutas ocorridas no âmbito ou a propósito do procedimento concorrencial em causa.

N) Por outro lado, nos próprios termos da directiva (n.º 7 do artigo citado), e tal como nela vêm desenhados os efeitos das causas de exclusão, os Estados-Membros devem em particular, determinar o período máximo de exclusão no caso de o operador económico não ter tomado medidas… para demonstrar a sua fiabilidade. … esse prazo não pode ser superior a ….a três anos a contar da data do facto pertinente nos casos referidos no n.º 4.

O) Assim, mesmo que, por hipótese em que se não concede, a interpretação da norma portuguesa da alínea g) do nº 2 do art. 70º tivesse de ser feita nos termos muito vastos que a apelante/acórdão que a copia, preconiza por força de uma invocada “exigência” do direito europeu, mesmo em tal hipótese…, então, por força do disposto expressamente nesse no n.º 7, in fine, do mesmo artigo da Directiva, uma tal “exclusão” a decidir apenas pela entidade adjudicante no concurso nunca poderia derivar de factos outros, extra procedimento ocorridos em uma época distanciada de há mais de três anos...

P) Ora, os factos aludidos nos autos, e que a apelante/acórdão invocou, reportam- se a um caso de há mais de três e quatro anos. Pelo que também por aí soçobraria a alegação da apelante/e o acórdão que a copiou.

Q) A interpretação da apelante/acórdão é, pois, completamente forçada e inadequada. Se, como pretende ela/ele, o júri tivesse um dever de propor a exclusão de propostas, e a entidade adjudicante de as excluir, por indícios de factos anticoncorrenciais mas ocorridos fora do âmbito do procedimento adjudicatório em causa, então… como se delimitariam estes no tempo (e em que procedimentos)? … de até quando para o passado? … A casos de há mais de 3 ou 4 ou 5 anos? …ou de 10 anos?

R) E, em um tal cenário, que possibilidades de defesa, relativamente às consequências disso ou a remédios (de que fala expressamente a Directiva, como algo de previsão associada necessária) estaria o concorrente dotado? Nada se diz. O que é mais uma comprovação, inequívoca, do quão desajustada é, agora, a interpretação pretendida pela apelante/acórdão recorrido.

S) O princípio constitucional da certeza jurídica (art. 2.º CRP) opõe-se a umas tais construções (limitativas em “puzzle” integrativo, “em castelo” de segmentos diversos): de alargamento final da letra da norma, do seu campo de previsão explícito, em matéria sancionatória ou restritiva de acesso a concurso público ou liberdade de concorrer, por via de uma regra europeia que tem outros contornos e condicionamentos expressos (garantias do concorrente) e limites (direitos do ou a favor do concorrente afectado) aqui não previstos.

T) Ou seja, é e será inconstitucional a interpretação da regra do art. 70.º/ n.º 2 g) do CCP no sentido de que nela se abrangem também situações que nada têm a ver com a análise das propostas apresentadas, mas com o curriculum do concorrente ou com o seu passado fora deste procedimento.

U) Não se pode, na verdade, converter uma mera “causa facultativa” que o Direito Europeu faz acompanhar expressamente (e necessariamente) de garantias de segurança e de defesa (nomeadamente não podendo dizer respeito a factos ocorridos há mais de 3 anos: cf. supra) do operador económico concorrente, em uma causa de exclusão absoluta e obrigatória de proposta e, ainda por cima, sem qualquer possibilidade de defesa do seu autor…

V) …e causa essa (assim congeminada) sem um recorte mínimo ou delimitação qualquer conceptual na lei: podendo pois abranger indícios e factualidade de há vários anos… sem qualquer limite… E dizendo-se, para mais, que tem de ser assim, que só assim se consegue “um efeito útil” para a Directiva (pág. 26), como decorrência do primado ou primazia do Direito da União Europeia

W) Será caso para dizer que o direito da União Europeia muitas vezes “tem as costas largas”!...

X) Por outro lado, mesmo que a interpretação (ou “desenho”) da própria disposição comunitária específica em causa (o nº 4 alínea d) do art. 57º da directiva 2014/24/UE) fosse a mais ampla preconizada pela apelante/acórdão (e, como se viu, os Autores acima citados assim o não entendem), a verdade é que, seja como for, tal causa de exclusão europeia é meramente “facultativa”, e por isso, se “quem pode o mais, pode o menos”, também a norma interna do Estado-Membro pode perfeitamente prever uma tal possibilidade de exclusão da proposta ditada no concurso pela entidade adjudicante mas “reduzida” (na óptica da Recorrente) a situações em que os indícios anticoncorrenciais se verificam no próprio concurso em causa, revelados da análise da proposta nele apresentada.

Y) Para os demais casos, está a previsão do art. 55.º/ f) do CCP – e suas consequências.

Z) O douto acórdão ora recorrido, para além da adesão e cópia da maior parte das razões e conclusões da apelante (e até de contra-alegação na revista precedente), toma uma posição – após ter dito que a questão era apenas de Direito, e complexa, e que ambas as partes esgrimiram argumentação técnica muito válida, mas que o Tribunal não poderá razão a ambas as partes, tem de optar [cf supra 1.º- d)]–, desempata o assunto louvando-se num patamar (de argumentação) que apelida de consciência “ético-jurídica”. Não por construções técnico-jurídicas, mas por que – num plano mais “humano” (ou “popular”?), e de combate a práticas anti-concorrenciais, – lhe parece que não pode ser outra a solução: Seria até “indecoroso” – chega a afirmar! – o decidir-se de outra maneira!...

AA) Só que, mesmo a situarmo-nos em tal patamar (como que extra-técnico- jurídico, mais de uma “consciência social”) e nesse plano de reacção, são mesmo aí muito falíveis e contraditórios ou excessivos os argumentos usados: carecendo ou convocando para eles matizações necessárias e uma contradita manifesta.

BB) Ser contra as “más práticas”…, todos o são, e o Direito é: não há possibilidade de ser a favor; ou de as querer “compensar” positivamente ou “premiar”, como alguma vez retoricamente hipotiza/afirma o acórdão (v supra, 1.º pontos 7, 10, 19). A questão está depois – como quase sempre acontece – na “medida”, na “justa medida”, não na bondade dos princípios declarados e suas proclamações teóricas, mas na sua adequada concretização e proporcionada medida, na “justa aplicação”, no “detalhe”, enfim.

CC) Ora, as tiradas vastas como que “desempatantes” e autónomas do douto acórdão recorrido, afiguram-se, salvo o devido respeito, demasiado generalistas e condenatórias sem limite ou qualquer recorte, para poderem ser arvoradas em critério seguro, em regra adequada e princípio válido de decisão.

DD) Manifesto é, pois, que se trata em tais passagens (autónomas e decisivas, do acórdão) de “proclamações” excessivas e radicais, apontadas sem limites nem condicionalismos, assim erradas quando visadas aplicar-se, como se visou (“desempatando”), ao presente caso. Pois, não só está o – precisamente – o contrário dessa ilimitação sancionatória, assim irrestrita, absoluta e incondicionada) no espírito do legislador (cf. também a exposição de motivos: supra 11º), como o estão, tais limites e condicionamentos de aplicação, totalmente expressos na letra da própria lei : no art. 57.º, n.ºs 4-c), 6 e 7 da Directiva cit.; e no art. 55.º-A do CCP.

- ADMISSIBILIDADE DO RECURSO EXCEPCIONAL DE REVISTA:

(…)

TERMOS EM QUE, e com o Douto suprimento de V. Ex.ªs, deve ser admitido e julgado procedente o presente recurso de revista, devendo ao final revogar-se o douto acórdão recorrido confirmando-se a douta sentença do TAF de Viseu.

E assim far-se-á sã e plena JUSTIÇA!

[…]».


8. A Recorrente B... concluiu as suas alegações com as seguintes conclusões:
«[…]


Quanto à admissibilidade do recurso
(…)
Dos erros de julgamento do Tribunal a quo
J) O Acórdão recorrido - como base nalguma jurisprudência do TJUE, particularmente, o Acórdão de 18 de Dezembro de 2014 (proc. n.º 470/13) - entendeu que a alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP deveria ser interpretada em conformidade com a alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE, e que, portanto, a Contrainteressada B... deveria ser excluída do procedimento aqui em causa pelo facto de ter sido condenada em coima por infracção às regras da concorrência no âmbito de processo contraordenacional promovido pela AdC;
K) Conclusão que se tem por completamente errónea, desde logo, porque o artigo 70.º, n.º 2, alínea g), do CCP, não constitui transposição da causa de exclusão facultativa constante da alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE, nem pode ser interpretado com o sentido propugnado no Acórdão recorrido;
L) Com efeito, como se demonstrou nestas alegações, a Directiva 2014/24/UE - que veio substituir a Directiva 2004/18/CE, em 2014 -, no respectivo artigo 57.º, n.ºs 1, 2 e 4, conservou a dicotomia entre causas de exclusão obrigatória e causas de exclusão facultativa que se encontrava prevista nos n.ºs 1 e 2 do artigo 45.º da anterior Directiva;
M) No que respeita às causas de exclusão obrigatória dos n.ºs 1 e 2 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE, as mesmas devem encontrar-se transpostas nas legislações dos diversos ordenamentos nacionais. E se, por hipótese, um desses ordenamentos não contemple todas as causas de exclusão obrigatória, deve ser feita uma interpretação conforme à Directiva nesse ponto;
N) Já no que respeita à segunda categoria de exclusões (de natureza facultativa), e que actualmente constam do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE, a mesma sempre foi interpretada - e continua a sê-lo - no sentido de que os Estados-Membros não estavam obrigados a acolher estes fundamentos de exclusão no seu ordenamento jurídico interno, dispondo antes de uma liberdade para decidir sobre se estes fundamentos de exclusão devem ser colocados à disposição das suas autoridades adjudicantes;
O) Do mesmo modo, a jurisprudência do TJUE sempre entendeu que os diversos Estados-Membros tinham a faculdade de transpor estas causas para os respectivos ordenamentos em termos menos rigorosos - nesse sentido, entre outros, ver o Acórdão de 9 de Fevereiro de 2006 (La Cascina) e o Acórdão de 10 de Julho de 2014 (Consorzio Stabile Libor Lavori Pubblici);
P) Do exposto decorre que as causas de exclusão (impedimentos) de natureza facultativa previstas nas várias alíneas do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE não são de adopção obrigatória nos diversos ordenamentos e que, no caso de um determinado Estado-Membro optar por não incorporar essas causas de exclusão no seu ordenamento, não poderá, em circunstância alguma, ser invocado o efeito directo dessas normas;
Q) No caso de a causa de exclusão (facultativa) da alínea d) do n.º 4 da Directiva 2014/24/UE não ser transposta para o direito interno, poderá porventura entender-se — o que se admitiu nestas alegações, sem conceder, por mera cautela de patrocínio — que as entidades adjudicantes têm o direito de invocar directamente o mencionado preceito da Directiva para suscitar a questão da exclusão (impedimento) de um operador económico, mas a admitir-se este efeito directo, tratar-se-ia sempre de uma mera faculdade da entidade adjudicante e não de uma causa de exclusão (de impedimento) obrigatória;
R) O legislador nacional, em 2017, não incorporou no CCP a causa de exclusão (facultativa) da alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE no nosso ordenamento, mantendo antes como causa de impedimento apenas o caso de aplicação de sanção acessória de proibição temporária de participação em procedimentos de contratação pública, aplicada pela Autoridade da Concorrência por infracções às leis da concorrência (alínea f) do n.º 1 do artigo 55.º do Código) e mantendo nos seus exactos termos a norma da alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP;
S) Nem pode pretender-se que o legislador nacional, na transposição feita em 2017, tenha transformado o impedimento previsto na alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE numa causa de exclusão de propostas, vertendo-a na mencionada alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP; T) Desde logo, porque, como assinala PEDRO COSTA GONÇALVES no seu parecer, é legítimo sustentar que o próprio artigo 57.º, n.º 4, alínea d), da Directiva — enquanto causa de impedimento — se refere exclusivamente a factos praticados (acordos celebrados) no âmbito de um determinado procedimento ou em vista e na preparação da apresentação de propostas num certo procedimento;
U) Sendo, portanto, completamente deslocada a convocação por parte do Tribunal a quo do cânone de interpretação em conformidade com o direito da União Europeia, para, por essa via, "reescrever" o artigo 70.º, n.º 2, alínea g), do CCP;
V) Mas, mais importante ainda é que o artigo 70.º do CCP diz respeito à exclusão de propostas, sendo que está em causa, no caso da alínea d) do seu n.º 2, a exclusão de proposta "cuja análise revele": "a existência de fortes indícios de atos, acordos, práticas ou informações suscetíveis de falsear as regras da concorrência";
W) Ou seja, é a própria letra da lei que afasta radicalmente a solução no sentido da aplicação da norma aqui em causa a práticas anticoncorrenciais exteriores ao procedimento;
X) Conforme refere PEDRO COSTA GONÇALVES, a exclusão de propostas com fundamento no artigo 70.º, n.º 2, alínea g), do CCP (preceito anterior às diretivas de 2014), pressupõe a verificação da existência de fortes indícios em relação a situações ocorridas no desenvolvimento do procedimento; nos termos literais do preceito, a proposta tem de revelar esses indícios. Não é possível aplicar essa norma - para exclusão de uma proposta - num circunstancialismo alheio ao procedimento e, em especial, aos concretos termos em que a proposta se encontra formulada;
Y) Fica evidente, portanto, que não se trata no caso de um impedimento geral derivado de comportamentos exteriores ao procedimento concreto, mas antes de uma infracção da concorrência revelada na própria proposta apresentada, no contexto do procedimento concreto;
Z) Aliás, seria um verdadeiro absurdo que o legislador nacional, em 2017, mantivesse como causa de impedimento apenas o caso de aplicação pela AdC de sanção acessória de proibição de participar em procedimentos de contratação pública (cf. alínea f) do n.º 1 do artigo 55.º do CCP) e, depois, fosse prever como causa de exclusão de propostas toda e qualquer infracção à Lei da Concorrência, nomeadamente, por aplicação de coimas relativamente a infracções do passado;
AA) Resulta claro, portanto, de tudo o que se invocou, que a situação aqui em causa só poderia eventualmente levar a que a entidade adjudicante suscitasse a questão da exclusão de participação da ora Recorrente do procedimento - ou à exclusão da sua proposta - se o legislador tivesse incorporado no nosso ordenamento jurídico a causa de exclusão facultativa da alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE, nos exactos termos e com a amplitude sustentada no Acórdão a quo;
BB) Ficou também demonstrado nestas alegações que o caso decidido no Acórdão do TJUE de 18 de Dezembro de 2014, e que constitui o principal fundamento do Acórdão a quo, nada tem a ver com o caso dos autos;
CC) Pelo exposto, fica demonstrado o manifesto erro de direito do Acórdão Recorrido, ao considerar que a alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP deve ser interpretada em conformidade com o disposto na mencionada alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE;
DD) Por outro lado, ficou demonstrado que o Acórdão recorrido, ao considerar que a alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE impõe que a entidade adjudicante, no caso concreto — por aplicação da alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP —, deva excluir a proposta da ora Recorrente pelo facto de a mesma ter sido condenada em coima pela Autoridade da Concorrência, fez incorrecta aplicação das referidas normas, em clara violação do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 55.º do CCP e do Regime Jurídico da Concorrência contido na Lei n.º 19/2012;
EE) É que na verdade, nos termos da lei, é à Autoridade da Concorrência que compete aplicar a sanção acessória de proibição de participação em procedimentos de contratação pública por infracções em matéria de concorrência (cf. artigo 71.º, n.º 1, alínea b, da Lei n.º 19/2012) — opção do legislador nacional que também se encontra de forma expressa na alínea f) do n.º 1 do artigo 55.º do CCP;
FF) O que significa que, no direito português, uma prática anticoncorrencial (exterior ao procedimento) só pode relevar como causa de impedimento nos termos do artigo 55.º do CCP se e quando a autoridade competente para sancionar essa prática, para além da aplicação de uma coima, decretar também a sanção acessória de privação de participação em procedimentos de contratação pública;
GG) Demonstrou-se ainda, a este propósito, que a interpretação defendida pelo Tribunal a quo, no sentido em que considera um interessado impedido de apresentar uma candidatura ou uma proposta em procedimentos de contratação pública, por violação das regras da concorrência, quando esse interessado foi sujeito a aplicação de contra-ordenação punida com coima mas não com sanção acessória de proibição de participação em procedimentos de contratação pública, redunda numa evidente violação do princípio ne bis in idem, com assento no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição, como desde já se deixa arguido para todos os efeitos legais;
HH) Caso devesse interpretar-se a alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP em conformidade com o disposto na alínea d) do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE, nos termos acima assinalados - o que se admite aqui, sem conceder, por mera cautela de patrocínio —, isso não permitiria concluir, como se fez no Acórdão recorrido, que a ora Recorrente deveria ser imediatamente excluída do procedimento por força de tal decisão judicial, devendo o contrato ser atribuído à Autora;
II) Desde logo, porque o que o artigo 57.º, n.º 4, alínea d), da Directiva 2014/24/UE permite, no caso, é que a entidade adjudicante, com base na verificação de tal infracção às regras da concorrência, se assim o entender, faça um juízo sobre a necessidade (ou não) de excluir a ora Recorrente do procedimento;
JJ) Por outro lado, e mais importante ainda, é que, quer a Directiva (no n.º 6 do artigo 57.º), quer o CCP (no artigo 55.º-A) prevêem, para todas as situações do n.º 4 do mencionado artigo 57.º sem excepção, a possibilidade de relevação desses impedimentos;
KK) Significa isto que, mesmo que o artigo 70.º, n.º 2, alínea g), do CCP, devesse ser interpretado em conformidade com o artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE, deveria sempre compaginar-se com a observação do regime imperativo do respectivo n.º 6 e do n.º 2 do artigo 55.º-A do CCP que o transpôs;
LL) Ou seja, sempre a entidade adjudicantes se encontraria obrigada, por aplicação do disposto no artigo 55.º-A do CCP, a ponderar as circunstâncias que pudessem determinar a relevação do impedimento;
MM) Como fez a Autoridade da Concorrência no seio do procedimento contraordenacional, tendo decidido não aplicar à Recorrente a sanção acessória de proibição de participação em procedimentos de contratação pública, em face das medidas que a Recorrente se propôs adoptar no sentido de prevenir a ocorrência de quaisquer novas infracções à concorrência no futuro;
NN) Conclui-se assim que o Acórdão a quo, ao pura e simplesmente desconsiderar este regime imperativo da relevação de impedimentos, incorreu em novo erro de direito, neste caso, em violação do disposto no mencionado n.º 6 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE e no n.º 2 do artigo 55.º-A do CCP;
OO) Igualmente se demonstrou nestas alegações, por último, que uma interpretação como a que foi feita pelo Tribunal a quo - no sentido de que a alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP, permite considerar, sem mais, impedido um operador que tenha sido condenado numa coima por infracção às regras da concorrência-, também colidiria com o disposto no n.º 7 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE;
PP) É que, para que a tese do Acórdão a quo pudesse funcionar, era necessário que a lei – no caso, a alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP ou outra qualquer norma do nosso ordenamento jurídico - estabelecesse um prazo máximo de exclusão (ou de impedimento) à participação em concursos públicos para as situações em que foi aplicada uma coima por infracção às regras da concorrência;
QQ) Não constando esse prazo da citada norma do CCP, nem outra lei, necessariamente se terá de concluir que a decisão recorrida incorreu em novo erro de direito, em violação do disposto no n.º 7 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE.
Nestes termos, e nos demais de Direito aplicáveis:
A) Deve o presente Recurso de Revista ser admitido por este Venerando Tribunal, por se encontrarem manifestamente preenchidos os requisitos de que depende a sua interposição e, consequentemente,
B) Deve o Acórdão do Tribunal Central Administrativo (…) de 2 de Junho de 2021 ser parcialmente revogado, com todas as consequências legais;
Como é de,
DIREITO E JUSTIÇA!
[…]»
5. A Recorrida A..., Lda apresentou contra-alegações nas quais pugnou pela manutenção do julgado.

6. O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido do provimento dos recursos.

7. Por acórdão de 13.01.2022, este STA decidiu suspender a instância e formular ao TJUE as seguintes questões:
I. A causa de exclusão contemplada na alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE constitui uma “reserva de decisão” da autoridade adjudicante?
II. Pode o legislador nacional substituir completamente a decisão a tomar pela autoridade adjudicante ao abrigo da alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE por uma decisão (pelos efeitos de uma decisão) genérica da Autoridade da Concorrência de aplicação de uma sanção acessória de proibição de participação em concursos públicos durante um determinado período de tempo no âmbito da aplicação de uma coima por violação das regras da concorrência?
III. Deve a decisão da autoridade adjudicante sobre a “fiabilidade” do operador económico à luz do respeito (desrespeito) pelas regras do direito da concorrência fora do concreto procedimento contratual entender-se como a necessidade de ser proferido um juízo fundamentado sobre a idoneidade relativa desse operador económico, a qual se inscreve numa dimensão concretizadora do direito à boa administração, previsto no artigo 41.º, n.º 2, al. b) da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?
IV. Pode considerar-se conforme ao direito europeu e, em especial, ao disposto no artigo 57.º, n.º 4, al. d) da Directiva 2014/24/UE a solução adoptada pelo direito português no artigo 55.º, n.º 1, al. f) do CCP que faz depender a exclusão de um operador económico do procedimento contratual, com fundamento em violação das regras da concorrência fora do concreto procedimento contratual em questão, do que vier a ser decidido pela Autoridade da Concorrência em sede de aplicação da sanção acessória de proibição de participação em concursos públicos, procedimento no âmbito do qual é a Autoridade da Concorrência quem avalia nessa sede o modo como relevam as medidas de self-cleaning adoptadas?
V. E pode igualmente considerar-se conforme ao direito europeu e, em especial, ao disposto no artigo 57.º, n.º 4, al. d) da Directiva 2014/24/UE a solução adoptada pelo direito português no 70.º, n.º 2, al. g) do CCP de limitar a possibilidade de exclusão de uma proposta por existência de fortes indícios de actos, acordos, práticas ou informações susceptíveis de falsear as regras de concorrência ao concreto procedimento concursal em que aquelas práticas sejam detectadas?

8. Por acórdão de 21.12.2023, o TJUE proferiu a seguinte decisão:
1) O artigo 57.º, n.° 4, primeiro parágrafo, alínea d), da Diretiva 2014/24JUE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/IX/CE,
deve ser interpretado no sentido de que:
se opõe a uma legislação nacional que limita a possibilidade de excluir uma proposta de um concorrente devido à existência de fortes indícios de comportamentos deste último suscetíveis de falsear as regras da concorrência de um procedimento de contratação pública em cujo âmbito ocorreu este tipo de comportamentos.
2) O artigo 57.º, n.° 4, primeiro parágrafo, alínea d), da Diretiva 2014/24
deve ser interpretado no sentido de que:
se opõe a uma legislação nacional que atribui exclusivamente à Autoridade da Concorrência nacional o poder de decidir da exclusão de operadores económicos de concursos públicos por violação das regras da concorrência.
3) O artigo 57.º, n.° 4, primeiro parágrafo, alínea d), da Diretiva 2014/24, lido à luz do princípio geral da boa administração,
deve ser interpretado no sentido de que:
a decisão da autoridade adjudicante relativa à fiabilidade de um operador económico, adotada em aplicação do motivo de exclusão previsto nesta disposição, tem de ser fundamentada.

9. Notificadas para se pronunciarem sobre o teor do acórdão do TJUE:
- a A... veio pugnar pela improcedência do recurso de revista;
- a B... veio alegar discordância com a resposta dada pelo TJUE, sustentar que as mesmas não poderiam produzir efeitos na presente decisão por conduzirem a um efeito vertical invertido das Directivas, proibido pela própria jurisprudência do TJUE e, subsidiariamente, pugnar pela não condenação da Entidade Demandada a praticar o acto de adjudicação à A...; e
- a Entidade Demandada emitiu pronúncia no sentido de que o acórdão do TJUE em nada interfere com a decisão a proferir nos autos e pugnou pela revogação do acórdão recorrido.

Cumpre apreciar e decidir


II – FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. De facto
Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.

II. 2. Do Direito

2.1. Enquadramento e enunciado das questões
2.1.1. Os recursos foram interpostos para se analisar e decidir, fundamentalmente, se existia ou não erro de julgamento do Tribunal a quo na fundamentação expendida para condenar a Recorrida INFRA-ESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A. a adjudicar a aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas à A...

2.1.2. No recurso que interpôs, a INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, SA considera que o erro de julgamento da decisão recorrida resulta de uma equivocada interpretação do artigo 70.º, n.º 2, al. g) do CCP, a qual resulta, no essencial, de: i) erro na interpretação do disposto na alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE; e de ii) ampliação (ilícita) do âmbito normativo daquele preceito do CCP que se traduz numa violação do princípio fundamental da segurança jurídica e protecção da confiança, consagrado no artigo 2.º da CRP.

2.1.3. No recurso que apresentou, a B... aponta também como fundamento do erro de julgamento da decisão recorrida a incorrecta interpretação e aplicação do disposto no artigo 70.º, n.º 2, alínea g) do CCP.
Neste caso, a Recorrente aponta os seguintes erros: i) incorrecta interpretação do disposto no artigo 57.º, n.º 4, alínea d) e n.º 5 da Directiva 2014/24/UE; ii) incorrecta aplicação dos elementos da hermenêutica jurídica, maxime, do elemento sistemático, no resultado interpretativo que se alcançou por o mesmo não ser compaginável com o disposto no artigo 55.º, n.º 1, alínea f) do CCP; iii) aplicação ao caso de um segmento normativo interpretativo violador do princípio ne bis in idem, consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da CRP; iii) obtenção de um segmento interpretativo que não observa o juízo de ponderação prévia, legalmente exigido pelo n.º 2 do artigo 55.º-A do CCP, em conformidade com o disposto no artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE; e iv) violação do disposto no n.º 7 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE.

2.1.4. Lembramos que a norma em crise tem a seguinte formulação textual:
Artigo 70.º
Análise das propostas
(…)
2 - São excluídas as propostas cuja análise revele:
(…)
g) A existência de fortes indícios de actos, acordos, práticas ou informações susceptíveis de falsear as regras de concorrência.
(…)
E que segundo a tese que fez vencimento no acórdão recorrido, a mesma deve ser interpretada e aplicada à factualidade dos autos com o seguinte sentido:
«[…] face ao invocado Direito originário e derivado da UE e considerando que, de acordo com o TJUE, a concorrência é o valor mais destacado do Direito da Contratação Pública, da chamada interpretação conforme do art.º 70.º, n.º 2, alínea g), do CCP ao Direito da União resulta que a proposta da então concorrente B... tinha de ser excluída pelo júri do concurso em virtude de, repete-se, três semanas antes da elaboração do relatório final, ter a ora Recorrida particular sido condenada ao pagamento de uma coima pela prática de infrações muito graves à Lei 19/2012, de 08/5 […]».


2.1.5. Como resulta evidente das alegações recursivas e da enunciação dos argumentos em que ambos se apoiam, existe uma “sobreposição” e complementaridade de argumentos das alegações de ambos Recorrentes que justifica que se proceda a uma análise conjunta dos dois recursos.
Vejamos, então, cada um dos argumentos em que se estribam as partes para sustentar o alegado erro de julgamento decorrente da incorrecta interpretação do artigo 70.º, n.º 2, alínea g) do CCP.


2.2. Erros na interpretação e aplicação das normas

2.2.1. Os Recorrentes começam por sublinhar que o acórdão recorrido erra na interpretação do disposto no artigo 57.º, n.º 4, alínea d) e n.º 5 da Directiva 2014/24/UE e na alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP

2.2.2. As normas em causa dispõem o seguinte:
Artigo 57.º - Directiva 2014/24/UE
Motivos de exclusão
(…)
4. As autoridades adjudicantes podem excluir ou podem ser solicitadas pelos Estados-Membros a excluir um operador económico da participação num procedimento de contratação, numa das seguintes situações:

(…)

d) Se a autoridade adjudicante tiver indícios suficientemente plausíveis para concluir que o operador económico celebrou acordos com outros operadores económicos com o objectivo de distorcer a concorrência;

(…)

5. As autoridades adjudicantes devem, a qualquer momento do procedimento, excluir um operador económico quando se verificar que o operador económico em causa, tendo em conta actos cometidos ou omitidos antes ou durante o procedimento, se encontra numa das situações referidas nos n.ºs 1 e 2.

(…)

Artigo 70.º - CCP
Análise das propostas
(…)
2. São excluídas as propostas cuja análise revele:

(…)

g) A existência de fortes indícios de actos, acordos, práticas ou informações susceptíveis de falsear as regras de concorrência.

(…)


2.2.3. Na tese defendida pelos Recorrentes, cabe distinguir entre as causas de exclusão obrigatória, que constam do n.º 1 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE e que aí estão enunciadas sob a expressão “as autoridades adjudicantes devem excluir um operador económico…”, e as causas de exclusão de natureza facultativa, que constam do n.º 4 do artigo 57.º da referida Directiva 2014/24/UE, aí enunciadas sob a formulação “as autoridades adjudicantes podem excluir ou podem ser solicitadas pelos Estados-Membros a excluir um operador económico da participação num procedimento de contratação…”.
E daqui resultam duas consequências.
Em primeiro lugar – como alega a B... (pontos J a P das conclusões) – sendo a causa de exclusão prevista na alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE facultativa, os Estados-Membros podem decidir acolhê-la ou não, e acolhê-la em termos menos rigorosos do que os dispostos na regulação europeia, razão pela qual não pode invocar-se o efeito directo dessas normas, uma vez que elas não têm conteúdo imperativo para os Estados ou, a admitir-se a possibilidade de invocar o efeito directo, então ele teria de entender-se como uma faculdade da entidade adjudicante (essa causa de exclusão teria de ser invocada por ela) e não como um “elemento de legalidade”, o que inviabilizaria que pudesse ser o Tribunal a aplicá-la sem a sua prévia invocação pela entidade adjudicante.
Em segundo lugar – como alega a Infraestruturas de Portugal S.A. (ponto I das conclusões) – seria ilegal (por ser desconforme com o direito europeu) uma solução jurídica que acolhesse aquela causa de exclusão facultativa e não transpusesse os termos em que o concorrente/operador económico poderia “afastar” os seus efeitos e fazer sobrepor a sua “fiabilidade”, como resulta do disposto no n.º 6 do mesmo artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE.


2.2.4. No essencial, das peças processuais é possível inferir que as Recorrentes coincidem nos argumentos de que:
i) a causa de exclusão prevista na alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE não foi expressamente transposta para o direito interno, maxime para o CCP;
ii) por ser uma causa de exclusão facultativa, a não transposição da mesma pelo legislador nacional é uma opção legítima à luz do direito europeu;
iii) o disposto na referida alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE não pode considerar-se transposto para o direito interno pela norma da alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP, desde logo porque aquela norma europeia versa sobre um motivo de exclusão de um concorrente (um “impedimento” à luz do CCP, estando estes regulados no artigo 55.º do CCP) e a norma do CCP diz respeito a causas de exclusão das propostas, ou seja, a violações do direito da concorrência verificadas no âmbito do concreto procedimento concursal em que a questão se coloque;
iv) a causa de exclusão das propostas prevista na alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP, limitada aos casos em que a violação do direito da concorrência se apure no procedimento concursal em causa, consubstancia um sentido interpretativo que hermenêuticamente se retira dos elementos histórico e sistemático da interpretação jurídica, que é corroborado pelo elemento literal e não pode dissociar-se deles, pelo que não é juridicamente sustentável uma tentativa de ampliar o seu sentido interpretativo sob o argumento de uma alegada interpretação em conformidade com o direito europeu.

2.2.5. A esta tese a Recorrida contrapõe os seguintes argumentos essenciais:
i) não obstante estar prevista no n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE entre as causas facultativas de exclusão dos concorrentes, o disposto na alínea d) consubstancia, à luz da jurisprudência do TJUE, uma causa de exclusão que os Estados-membros estão “vinculados” a transpor para o ordenamento jurídico-nacional, na medida em que a violação (protecção) do direito da concorrência aí prevista consubstancia um valor-princípio fundamental do direito europeu e a sua “integração” no direito da contratação pública é “obrigatória, por decorrência dos princípios e regras do direito europeu dos tratados, maxime o princípio da efectividade do direito da União;
ii) a interpretação normativa das regras do CCP sufragada pelas Recorrentes — de que o direito português da contratação pública apenas contempla a possibilidade de exclusão de um concorrente (por verificação de um impedimento) quando ao mesmo tenha sido aplicada uma sanção acessória de proibição de participação em concurso público (artigo 55.º, n.º 1, al. f) do CCP) ou a possibilidade exclusão de uma proposta quando a entidade adjudicante conclua que existem forte indícios no procedimento de contratação em causa de actos, acordos, práticas ou informações susceptíveis de falsear as regras de concorrência (artigo 70.º, n.º 2, al. g do CCP) – é desconforme com o direito europeu da contratação pública e que o Tribunal tem a obrigação, à luz do princípio da interpretação conforme com o direito europeu, de optar pelo sentido do artigo 70.º, n.º 2, al. g) do CCP que assegure a correcta transposição daquele direito, maxime o efeito útil da referida norma do artigo 57.º, n.º 4, al. d) da Directiva 2014/24/UE, o que equivale a considerar que na referida norma do CCP também têm de considerar-se como causas de exclusão das propostas as violações comprovadas do direito da concorrência que ocorram fora do concreto procedimento de contratação pública em apreço;
iii) que a interpretação das normas do CCP sufragada pelos Recorrentes – o segmento interpretativo que se extrai da conjugação das interpretações antes enunciadas do artigo 55.º, n.º 1 al. f) e 70.º, n.º 2 al. g) do CCP, segundo o qual a violação das regras da concorrência fora de um procedimento concursal apenas consubstancia um impedimento (causa ou motivo de exclusão) quando a Autoridade da Concorrência aplique a sanção acessória de proibição de participação em concursos públicos – é também manifestamente violadora do direito europeu da contratação pública na medida em que priva (“expropria o seu poder”) a Entidade Adjudicante de formular um juízo sobre a “fiabilidade” do concorrente e da sua proposta, sendo esse juízo um poder-dever da Entidade Adjudicante em todos os concursos públicos.

2.2.6. Compulsados o direito e a jurisprudência europeia sobre o tema deles retiramos também algumas asserções importantes para a decisão do presente caso.
Com efeito, resulta evidente do teor do considerando 101 da Directiva 2014/24/UE que, à luz do novo regime jurídico europeu, as autoridades adjudicantes devem poder excluir os operadores económicos que se revelem pouco fiáveis por violação das regras da concorrência. E que o direito nacional deve prever uma duração máxima para essas exclusões. Ora, esta possibilidade não está expressamente consagrada no CCP, pois a exclusão de um concorrente com fundamento em falta de fiabilidade por violação do direito da concorrência fora do procedimento parece apenas ser admitida – como expressamente afirmam os Recorrentes – nos termos do disposto no artigo 55.º, n.º 1, al. f) do CCP, ou seja, por efeito de uma condenação expressa por parte da Autoridade da Concorrência que aplique a sanção acessória de proibição de participação em concursos públicos, cabendo também àquela entidade a determinação do tempo pelo qual há-de perdurar a referida exclusão.
E suscitam-se dúvidas quanto a saber se esta solução do direito nacional acolhe efectivamente as directrizes europeias, as quais parecem apontar para a necessidade de uma decisão autónoma, da entidade adjudicante, sobre a “fiabilidade” do concorrente. Acresce que esta desconformidade não parece reconduzir-se apenas a um problema de determinação da entidade responsável pela avaliação da “fiabilidade”. A solução do direito nacional parece estar também afectada pela natureza do próprio juízo a formular sobre a “fiabilidade”, pois não pode dizer-se que a racionalidade (as razões) que subjaz à determinação de aplicação de uma medida acessória genérica de proibição de participação geral em concursos públicos por um determinado período de tempo seja do mesmo tipo e natureza daquela que há-de estar implícita no juízo a formular por uma entidade adjudicante a respeito de um concreto concurso. Mais, pode e deve questionar-se se os princípios da integridade e da transparência, que hoje constituem dimensões concretizadoras do princípio do Estado de Direito Democrático na boa gestão dos recursos financeiros públicos, têm a efectividade mínima adequada nos procedimentos de contratação pública à luz das regras do CCP que antes enunciámos e segundo a interpretação das mesmas, proposta pelas Recorrentes, que é, efectivamente, a que parece corresponder melhor ao resultado da interpretação jurídica segundo os elementos histórico, sistemático e gramatical. Mais concretamente, deve questionar-se se a fundamentação do acto de adjudicação (ou mais rigorosamente, da decisão implícita de não exclusão de um concorrente) de um contrato a um concorrente que tenha sido condenado por violação do direito da concorrência, em procedimento anterior, aberto pela mesma entidade adjudicante, se pode considerar suficientemente fundamentada sem que essa entidade formule nesse procedimento um juízo autónomo sobre a “fiabilidade” do adjudicatário. Um juízo que possa ser sindicado pelos outros concorrentes, à luz, desde logo, do dever de fundamentação expressa das decisões administrativas, hoje também uma dimensão expressa do direito a uma boa administração segundo o artigo 41.º, n.º 2, al. c) da CDFUE.
Na verdade, a diferença entre o juízo subjacente à aplicação ou não de uma medida acessória de proibição de participação em concursos públicos formulado pela Autoridade da Concorrência e o juízo de “fiabilidade” formulado pela Entidade Adjudicante do contrato afigura-se especialmente relevante no caso em apreço, pois está aqui em causa um contrato de aquisição de bens para o sector das infra-estruturas ferroviárias, aberto pela empresa pública a quem, por concessão, foi delegado o serviço público de gestão de infra-estruturas, e uma decisão do conselho de administração dessa entidade que, na sequência da proposta do júri do concurso, deliberou, em 27.07.2019 (ponto N da matéria de facto), adjudicar aquele contrato a uma empresa que em 12.06.2019 (que se convolou em definitiva em 26/06/2019) havia sido condenada pela Autoridade da Concorrência em coima por violação do direito da concorrência em concursos públicos abertos em 2014 e 2015, para a prestação de serviços de manutenção de aparelhos e vias, na rede ferroviária nacional, uma infra-estrutura que era gerida pela REFER, E.P.E. (pontos U e V da matéria de facto assente); entidade pública empresarial entretanto integrada por fusão na INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S. A. (Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29 de Maio).
É verdade que a Entidade Adjudicante não mostra, nos presentes autos, interesse em formular um juízo próprio sobre a “fiabilidade” da concorrente a quem decidiu adjudicar o contrato de aquisição de bens aqui em apreço, pese embora a mesma ter sido condenada em coima por violação do direito da concorrência, em procedimento concursal anterior relativamente ao qual também ela (propriamente e por actuação da sua incorporada) era entidade adjudicante. Pelo contrário, defende a posição de que não tem de formular um tal juízo, pois ele esgota-se na decisão que foi tomada pela Autoridade da Concorrência. Porém, o que importa averiguar é se, no plano da legalidade, esta solução é compaginável com o direito europeu. Por outras palavras, importa apurar se esta solução adoptada pelo legislador nacional, segundo a qual a entidade adjudicante fica excluída de formular um juízo autónomo, no procedimento concursal, sobre a “fiabilidade” de um concorrente condenado por violação do direito da concorrência é conforme ao direito europeu, seja quanto à “gravidade da infracção” e a sua “projecção no concreto procedimento”, seja quanto à “adequação no âmbito do concreto procedimento” das medidas adoptadas pela empresa sancionada (o operador económico) para “remediar as consequências” da infracção cometida e pela qual foi sancionada. Também esta avaliação do “self-cleaning” fica, à luz do direito nacional, integralmente a cargo de um juízo genérico da Autoridade da Concorrência.
A solução jurídica adoptada pelo legislador nacional, como resulta a seu modo do argumentário vertido nas contra-alegações, parece não se coadunar com as exigências e preocupações do direito europeu expressas pela jurisprudência e vertidas na última Directiva 2014/24/UE, em especial no considerando 101, que está subjacente ao aditamento da alínea 4) do n.º 4 do artigo 57.º e, como vimos, também com a dimensão do direito a uma boa administração, vertido no artigo 42.º da CDFUE.
Efectivamente, do acórdão Meca (proc. C-41/18) parece inferir-se que o direito europeu se opõe a soluções ditadas pelo direito nacional que impeçam a entidade adjudicante de formular um juízo autónomo sobre a exclusão de um concorrente no âmbito da apreciação da idoneidade e fiabilidade do mesmo no âmbito do procedimento concursal (§ 29).
E na referida decisão Meca acolhe-se expressamente (§§ 30 e 33 do acórdão C-41/18) a posição do advogado-geral, que, nas suas conclusões afirma claramente não ser aceitável a tese de que, pelo facto de uma causa de exclusão ser facultativa – como é sucede com o artigo 57.º, n.º 4, al. d) da Directiva 2014/24/UE –, o Estado membro pode decidir acolhê-la de forma limitada, ou seja, restringindo a sua eficácia (§34 das conclusões do AG). Diz-se no §36 das conclusões que o direito europeu (no caso o n.º 7 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE) “obsta a que, com as suas disposições nacionais, os Estados-Membros desvirtuem os motivos facultativos de exclusão nele integrados ou que ignorem os objectivos e os princípios reguladores subjacentes a cada um desses motivos, no quadro homogéneo da própria Directiva 2014/24”.
Resulta ainda expresso das referidas conclusões do advogado-geral no acórdão Meca que a violação de regras em matéria de concorrência a que se refere o considerando 101 e que foram acolhidas na alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE tem um carácter essencialmente extracontratual (§39) e que por isso deve ser apreciado pela entidade adjudicante no quadro do requisito da “fiabilidade” (confiança que a entidade adjudicante pode depositar no concorrente e na proposta por ele apresentada), tal como o TJUE veio a indicar nos acórdãos La Cascina e o. (proc. C-226/04 e C-228/04), Connexxion Taxi Services (proc. C-171/15) e Comissão/Áustria (proc. C-187/16) e acabou por ser expressamente acolhido na Directiva 2014/24/UE. Em outras palavras, o elemento relevante para a decisão a tomar nestes autos que se parece poder retirar da argumentação do advogado-geral na citação que faz da jurisprudência europeia anterior, e que foi acolhido no acórdão Meca (proc. C-41/18), é o de que a violação das regras do direito da concorrência, fora do procedimento concursal em questão, constituiu actualmente, segundo o direito europeu, uma dimensão essencial do juízo sobre a “fiabilidade” do concorrente, que a autoridade adjudicante não pode deixar de formular por si no procedimento de modo devidamente fundamentado.
Ora, é isso que a lei portuguesa não contempla. Seja quando remete exclusivamente para a Autoridade da Concorrência o juízo sobre as consequências que uma violação das regras da concorrência pode vir a ter no âmbito dos procedimentos concursais futuros em geral (artigo 55.º, n.º 1, al. f) do CCP). Seja quando confia exclusivamente àquela entidade o poder para avaliar os termos em que devem relevar as medidas de self-cleaning adoptadas, impedindo que a entidade adjudicante formule um juízo sobre a matéria no âmbito do concreto procedimento concursal em que a questão surja (artigo 55.º-A do CCP).

Por essa razão, antes de prosseguir com um juízo sobre o caso, designadamente sobre a concreta interpretação das normas do CCP e a subsunção dos factos a esse regime jurídico, o STA entendeu que devia primeiro esclarecer, junto do TJUE, aspectos que contendem com a correcta interpretação do direito europeu.

Com efeito, existindo dúvidas sobre a interpretação do sentido e alcance do artigo 57.º, n.º 4, al. d) da Directiva 2014/24/UE e da conformidade das normas do artigo 55.º, n.º 1, al. f), 55.º-A e 70.º, n.º 2, al. g) do CCP com aquelas normas de direito da União, impunha-se, antes de proferir a decisão, submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia as seguintes questões:
I. A causa de exclusão contemplada na alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE constitui uma “reserva de decisão” da autoridade adjudicante?
II. Pode o legislador nacional substituir completamente a decisão a tomar pela autoridade adjudicante ao abrigo da alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE por uma decisão (pelos efeitos de uma decisão) genérica da Autoridade da Concorrência de aplicação de uma sanção acessória de proibição de participação em concursos públicos durante um determinado período de tempo no âmbito da aplicação de uma coima por violação das regras da concorrência?
III. Deve a decisão da autoridade adjudicante sobre a “fiabilidade” do operador económico à luz do respeito (desrespeito) pelas regras do direito da concorrência fora do concreto procedimento contratual entender-se como a necessidade de ser proferido um juízo fundamentado sobre a idoneidade relativa desse operador económico, a qual se inscreve numa dimensão concretizadora do direito à boa administração, previsto no artigo 41.º, n.º 2, al. b) da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?
IV. Pode considerar-se conforme ao direito europeu e, em especial, ao disposto no artigo 57.º, n.º 4, al. d) da Directiva 2014/24/UE a solução adoptada pelo direito português no artigo 55.º, n.º 1, al. f) do CCP que faz depender a exclusão de um operador económico do procedimento contratual, com fundamento em violação das regras da concorrência fora do concreto procedimento contratual em questão, do que vier a ser decidido pela Autoridade da Concorrência em sede de aplicação da sanção acessória de proibição de participação em concursos públicos, procedimento no âmbito do qual é a Autoridade da Concorrência quem avalia nessa sede o modo como relevam as medidas de self-cleaning adoptadas?
V. E pode igualmente considerar-se conforme ao direito europeu e, em especial, ao disposto no artigo 57.º, n.º 4, al. d) da Directiva 2014/24/UE a solução adoptada pelo direito português no 70.º, n.º 2, al. g) do CCP de limitar a possibilidade de exclusão de uma proposta por existência de fortes indícios de actos, acordos, práticas ou informações susceptíveis de falsear as regras de concorrência ao concreto procedimento concursal em que aquelas práticas sejam detectadas?


No seguimento desta consulta, o TJUE veio confirmar que do “artigo 57.°, n.° 4, primeiro parágrafo [da Directiva 2014/24] (…) resulta que a opção de decidir excluir ou não um operador económico de um procedimento de contratação pública por um dos motivos enumerados nesta disposição cabe à autoridade adjudicante, a menos que os Estados-Membros decidam transformar esta faculdade de exclusão numa obrigação” e que “(..) contrariamente ao que a B... e o Governo Português alegaram, um Estado-Membro não se pode abster de incorporar estes motivos na sua legislação nacional de transposição da Diretiva 2014/24 e privar assim as autoridades adjudicantes da possibilidade, que tem, pelo menos, de lhes ser reconhecida por força da mesma disposição, de aplicar estes motivos” (§51). E acrescenta que “não é razoável sustentar que a faculdade prevista neste artigo 57.°, n.° 7, possa ser utilizada pelos Estados-Membros para não transporem estes motivos de exclusão para o seu direito interno”(§54).
Para o TJUE é claro que “o legislador da União entendeu atribuir à autoridade adjudicante, e apenas a esta, na fase da selecção dos proponentes, a tarefa de apreciar se um candidato ou um proponente deve ser excluído de um procedimento de contratação pública” (§55) e que “A faculdade, ou inclusivamente a obrigação, de a autoridade adjudicante aplicar os motivos de exclusão enunciados no artigo 57.°, n.° 4, primeiro parágrafo, da Diretiva 2014/24 destina-se especialmente a permitir-lhe apreciar a integridade e a fiabilidade de cada um dos operadores económicos que participam num procedimento de contratação pública” (§56).
E por isso o TJUE conclui que “no que respeita aos motivos de exclusão enumerados no artigo 57.°, n.° 4, da Diretiva 2014/24, os Estados-Membros devem (…), prever a possibilidade de as entidades adjudicantes incluírem estes motivos de exclusão entre os critérios objetivos de exclusão nos procedimentos abrangidos pelo âmbito de aplicação desta última diretiva”.
E o TJUE acrescenta também que, no caso de ao procedimento em questão ser aplicável o regime jurídico da Directiva 2014/25 (relativa aos contratos públicos celebrados pelas entidades que operam nos sectores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais), a solução jurídica antes indicada não se altera. Com efeito, conclui o Tribunal que “no que respeita aos motivos de exclusão enumerados no artigo 57.°, n.° 4, da Diretiva 2014/24, os Estados-Membros devem, por força da sua obrigação de transpor o artigo 80.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2014/25, prever a possibilidade de as entidades adjudicantes incluírem estes motivos de exclusão entre os critérios objetivos de exclusão nos procedimentos abrangidos pelo âmbito de aplicação desta última diretiva, sem prejuízo da eventual decisão destes Estados, tomada com base no artigo 80.°, n.° 1, terceiro parágrafo, da referida diretiva, de impor a estas entidades que incluam os referidos motivos entre estes critérios” (§61).
Por último, o TJUE conclui que também não pode prevalecer neste caso, face ao circunstancialismo provado, a tese de que a entidade adjudicante pode, legitimamente, não apreciar a “fiabilidade” da B... à luz do critério previsto no artigo 57.º, n.º 4, primeiro parágrafo, alínea d), da Diretiva 2014/24, a pedido da A..., pois do respeito pelo direito à acção, previsto no artigo 47.º da CDFUE resulta que “a decisão de uma entidade adjudicante que recusa, ainda que implicitamente, excluir um operador económico de um procedimento de contratação pública por um dos motivos facultativos de exclusão previstos no artigo 57.°, n,° 4, da Diretiva 2014/24 tem necessariamente de poder ser impugnada por qualquer pessoa que
tenha ou tenha tido um interesse em obter um determinado contrato e que tenha sido ou possa ser lesada por uma violação dessa disposição (Acórdão de 7 de setembro de 2021, Klaipêdos regiono atliekq tvarkymo centras, C-927/1 9, EU:C:2021:700, n.° 143), sendo a solução idêntica se se considerar aplicável o artigo 80.º da Directiva 2014/25. (§§ 62, 63).
Muito relevante é também o facto de o TJUE esclarecer que o direito nacional (no caso, as disposições do CCP) não pode ser interpretado no sentido de que a entidade adjudicante apenas pode excluir uma proposta de um concorrente com fundamento na existência de fortes indícios de comportamento deste último susceptível de falsear as regras de concorrência no procedimento de contratação pública em que isso ocorre. O Tribunal considera que, não sendo esse o regime jurídico consagrado nas Directivas (2014/24 e 2014/25), os Estados-membros não podem restringir o âmbito de aplicação dos motivos de exclusão previstos no direito da UE (§§ 69 a 72).
Por último, o TJUE afirma também, de modo claro e expresso que o juízo sobre a “fiabilidade” do concorrente no procedimento de contratação em causa e, consequentemente, da proposta que nele venha a presentar, deve basear-se no resultado do procedimento de infracção instaurado pela Autoridade da Concorrência (§ 78), mas não é substituível pela decisão que ali venha a ser proferida, pois uma eventual decisão condenatória pode levar a autoridade adjudicante a excluir esse operador económico do procedimento de contratação pública em causa, mas a inexistência de tal decisão “não pode impedir, nem dispensar, a autoridade adjudicante de proceder a essa apreciação”, a qual “deve ser efetuada a luz do principio da proporcionalidade e deve tornar em conta todos os elementos pertinentes para verificar se se justifica a aplicação do motivo de exclusão previsto no artigo 57.°, n.° 4, primeiro paragrafo, alínea d), da Diretiva 2014/24” (§§ 79 e 80). E o mesmo é válido no âmbito da Directiva 2014/25, ou seja, “os Estados-Membros não podem (…) restringir o poder de apreciação de que a autoridade adjudicante tem de gozar neste âmbito (§83).

Resulta, portanto, evidente do aresto do TJUE o seguinte:
i) é incompatível com o direito europeu (Directivas 2014/24 e 2014/25) a interpretação do artigo 70.º, n.º 2, alínea g) do CCP no sentido de que a entidade adjudicante apenas pode excluir uma proposta com fundamento na existência de fortes indícios de actos, acordos, práticas ou informações susceptíveis de falsear as regras de concorrência, se tais indícios se reportarem ao procedimento em causa; e
ii) ii) é incompatível com o direito europeu (Directivas 2014/24 e 2014/25) a interpretação do artigo 55.º, n.º 1, alínea f) do CCP no sentido de que a violação das regras da concorrência apenas pode constituir fundamento de exclusão de um concorrente (impedimento) se o mesmo tiver sido objecto de aplicação de sanção acessória de proibição de participação em procedimentos de contratação pública, durante o período fixado na decisão condenatória.
E do mesmo aresto resulta ainda de forma expressa que as normas do direito europeu (artigo 57.º, n.º 4, alínea d) da Directiva 2014/24 e 80.º da Directiva 2014/25) exigem que a entidade adjudicante formule um juízo fundamentado sobre a concreta “fiabilidade” do concorrente à luz dos critérios enumerados no artigo 57.º, n.º 4 da Directiva 2014/24, o que incluiu a apreciação de infracções ao direito da concorrência cometidas em procedimentos anteriores, devendo, esse juízo, basear-se no procedimento de infracção que tenha sido concluído pela autoridade competente por fiscalizar aqueles comportamentos, mas tendo que formular um juízo autónomo e fundamentado no princípio da proporcionalidade. E a decisão do TJUE é também clara ao dizer que esta apreciação visa a exclusão do concorrente qualificado como “não fiável”, mas, por maioria de razão, também abrange a exclusão da respectiva proposta. Assim, face à deficiente redacção das normas do CCP na correcta transposição da solução prevista (imposta) pelo direito europeu, e impondo-se uma interpretação das mesmas em conformidade com as regras das Directivas, cabe sublinhar que não pode excluir-se a admissibilidade de que o juízo de “não fiabilidade” do concorrente se tenha de formular em sede de eventual exclusão da proposta nos termos do artigo 70.º, n.º 2, al. g) do CCP. Até porque esta norma já comporta critérios de exclusão que não são exclusivos da proposta, antes contendem com o comportamento dos proponentes.

Tendo por base esta correcta interpretação do direito aplicável ao caso, cabe concluir pela improcedência dos argumentos veiculados nos recursos interpostos, quer pela B..., quer pela Infra-Estruturas de Portugal, S.A. quanto à interpretação das normas do CCP e à necessidade de a entidade adjudicante (a Infra-Estruturas de Portugal, S.A.) proceder à ponderação no âmbito do procedimento da “fiabilidade” da B... apenas em sede de apreciação de impedimentos e limitada pelo teor da decisão condenatória proferida pela Autoridade da Concorrência (pontos U e V da matéria de facto assente).

Contudo, tem razão a Infra-estruturas de Portugal, S.A. quando alega que a decisão recorrida não podia ter condenado a entidade adjudicante a praticar o acto de adjudicação da aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho cresotado à Autora/Recorrente (conclusões II a NN). Com efeito, os poderes de pronúncia do tribunal em matéria de condenação à prática de acto devido não podem neutralizar o espaço de valoração próprio da administração, nem a decisão judicial se pode substituir à Administração na formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa.
Neste caso, e como resulta também do aresto do TJUE, é necessário que a decisão sobre a “fiabilidade” ou “não fiabilidade” da B... para a exclusão ou não da proposta que apresentou neste procedimento concursal (no caso, da exclusão da proposta apresentada, dadas as insuficiências e incongruências das normas do direito nacional com o direito da UE supra identificadas e a necessidade de assegurar, in casu, uma interpretação conforme), por força da condenação constante dos pontos U e V da matéria de facto, repouse num juízo que atente no princípio da proporcionalidade. Juízo no âmbito do qual se hão-de ponderar (a existirem) eventuais fundamentos de relevação daquela causa de exclusão. Ora, tal juízo é inerente à função administrativa e só pode ser formulado pela entidade adjudicante, pelo que o tribunal não pode, ex vi do disposto no artigo 71.º, n.º 2 do CPTA, determinar o conteúdo do acto praticar e, consequentemente, não pode condenar a Infra-estruturas de Portugal, S.A. a praticar o acto de adjudicação à A...
Neste caso, tal como se prevê no artigo 71.º, n.º 2 in fine do CPTA: o tribunal anula o acto de adjudicação por do mesmo não constar, como exige o direito da UE, a fundamentação a respeito da “fiabilidade” da B... para a adjudicação deste contrato reflectida na proposta apresentada, atenta a sua condenação por práticas anticoncorrenciais em procedimento concursal anterior e condena a entidade adjudicante a praticar um novo acto de adjudicação, que pondere, para efeitos do artigo 70.º, n.º 2, al. g) do CCP a referida “fiabilidade” da B..., de acordo com os critérios impostos pelo direito da UE e antes mencionados, tomando por base a decisão da autoridade da concorrência que condenou a agora concorrente, e sustentando, para este efeito, autonomamente, uma decisão quanto à admissão da sua proposta face àqueles elementos, decisão sustentada no princípio da proporcionalidade.



III. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em:
· julgar totalmente improcedente o recurso da B...;
· julgar parcialmente procedente o recurso da Infra-estruturas de Portugal;
· revogar o acórdão recorrido na parte em que condena a Entidade Demandada a praticar o acto de adjudicação da aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho cresotado à A... e, em substituição, condenar a Entidade Demandada a praticar novo acto de adjudicação em que sejam observados e respeitados os parâmetros jurídicos supra mencionados.


Custas
· No recurso interposto pela B...: custas pela Recorrente;
· No recurso interposto pela Infra-estruturas de Portugal, S.A.: custas a repartir pelas partes, em percentagem que se fixa em 80% para a Recorrente e 20% para a Recorrida, tendo em conta a medida do decaimento.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2024. – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) - José Augusto Araújo Veloso - Ana Paula Soares Leite Martins Portela.