Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0735/22.7BEBRG
Data do Acordão:04/10/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
Sumário:I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 150.º do CPTA não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.
II - A revista não pode ser admitida se, em face dos termos em que foi invocado o requisito da necessidade da admissão do recurso para melhor aplicação do direito, sempre se exigiria a comprovação de que as instâncias trataram a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, a demandar a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo na qualidade de órgão de regulação do sistema, o que não ocorre no caso sub judice.
Nº Convencional:JSTA000P32114
Nº do Documento:SA2202404100735/22
Recorrente:AA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 735/22.7BEBRG
Recorrente: AA
Recorrida: Administração Tributária e Aduaneira (AT)

1. RELATÓRIO

1.1 O acima identificado Recorrente, inconformado com o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte em 23 de Novembro de 2023 ( Disponível em https://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/-/474ee28f27875a3680258a74005b78c4.) – que negou provimento ao recurso interposto do saneador/sentença proferido em 30 de Janeiro de 2023 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que julgou verificadas as excepções dilatória da inimpugnabilidade do acto e da «falta de um dos pressupostos de que depende a propositura de uma acção de condenação à prática de acto administrativo - a saber um “requerimento que constitua o órgão competente no dever de decidir» e, em consequência, absolveu a AT da instância na acção administrativa interposta pelo ora Recorrente –, dele interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no art. 150.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), apresentando as alegações de recurso, com conclusões do seguinte teor:

«i) O Acórdão recorrido confirma a sentença apelada que julgou verificada (a) a excepção da não verificação do acto impugnado e (b) a excepção dilatória inominada de falta de um requerimento que constitua o órgão competente no dever de decidir. Todavia,

ii) a realidade do acto administrativo sindicado é mais que evidente: este é, positivamente, lesivo dos interesses e direitos legais do Autor,

iii) e a própria lei invocada nos dois julgados prevê expressamente a desnecessidade de formulação de qualquer requerimento administrativo para efeitos de acção do tipo da in casu concretamente instaurada;

iv) Visto isto, a admissibilidade do recurso de revista sub judice impor-se-á, desde logo, em ordem à recuperação do prestígio da judicatura no plano precípuo da lúcida análise da factualidade jurídica controvertida e, mormente, da sã exegese da lei vigente.

21. Fazendo, por consequência, no caso, como cumpre, sã e inteira justiça, deverá esse Supremo Tribunal:

A) Admitir definitivamente o presente recurso excepcional,

B) consequentemente revogando a decisão recorrida,

C) com todas as legais consequências,

tudo conforme vai expressamente REQUERIDO».

1.2 A Recorrida não contra-alegou.

1.3 O Desembargador relator no Tribunal Central Administrativo Norte, tendo verificado os requisitos formais de admissibilidade do recurso, ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo.

1.4 Dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal proferiu parecer no sentido da não admissão da revista. Isto, após enunciar os termos do recurso e os requisitos da admissibilidade da revista excepcional, com fundamentação da qual nos permitimos salientar os seguintes excertos: «[…]

6. No caso […] o ora Rcte. não aduz quaisquer motivos (circunstâncias, razões ou argumentos) passíveis de caracterizar, ainda que prima facie, os conceitos legais indeterminados constantes de qualquer dos dois referidos pressupostos deste tipo de recurso – por conseguinte, há absoluta e insanável inobservância do correspondente ónus processual, que inelutavelmente determina a inadmissibilidade do presente recurso.

7. De outro ponto de vista, lida e ponderada a motivação e conclusões da alegação de recurso, bem se poderia dizer que o ora Rcte. figurou e estruturou o presente meio processual como um “recurso ordinário de revista”, para reparar um (pretenso) comum “erro de julgamento”, pelo que também deste ângulo o presente recurso é inviável.

8. Em qualquer caso, ex abundanti cautela e sempre seguindo o mencionado precedente jurisprudencial (n.º 3), sempre se dirá que na motivação e conclusões apresentadas pela Rcte. não é possível descortinar qualquer questão jurídica da qual se possa verdadeiramente predicar:

a) assinável complexidade de decisão (a definição estipulativa de acto administrativo, está legalmente estabelecida e a classificação de acto meramente informativo profusamente trabalhada, na jurisprudência e na doutrina, não se afigurando, em primeira análise, que caso em apreço comprometa esse manancial sedimentado de saber prático e teórico);

b) ser objecto de soluções divergentes na jurisprudência, com a decorrente desigualdade de tratamento e insegurança decisória (nada vem aduzido, ou se conhece, a este propósito);

c) com implicações ou gerador de controvérsia social (está em causa, em essência, a “caracterização da actividade de perito independente”, do ora Rcte., matéria que não extravasa do caso concreto do respectivo “estatuto profissional individual”, é um caso individual).

d) eivada de erro de julgamento, que seja de qualificar como “manifesto” ou “grosseiro” (nada vem aduzido este propósito);

9. Finalmente, sempre se dirá que, embora formalmente esteja “vencido” no douto aresto a quo, todavia, uma vez que em essência a razão de decidir da douta pronúncia a quo radica no juízo segundo o qual «a Informação sindicada não configura um acto administrativo impugnável, na medida em que não alterou a situação jurídico-tributária do Autor» (p. 14), o ora Rcte., materialmente não ficou impedido de mais tarde, eventualmente, porfiar na reivindicação da sua tese de que «passará[ ] a registar a actividade de perito independente com o código 1519, quadro n.º 9 e como um acto isolado para efeitos de IRS e que o IVA continuará a ser liquidado à taxa normal» (idem, p. 9).

10. Em suma, não está caracterizada, e menos ainda verificada, qualquer uma das condições de admissibilidade do presente recurso de revista excepcional (art. 285.º, n.º 1).».

1.5 Cumpre apreciar, preliminar e sumariamente, e decidir da admissibilidade do recurso, nos termos do disposto no n.º 6 do art. 150.º do CPTA.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2.1.1 Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do art. 150.º do CPTA, a excepcionalidade do recurso de revista. Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental, ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Resulta do próprio texto legal e a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem repetidamente sublinhado, que se trata de um recurso excepcional, como o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n.ºs 92/VIII e 93/VIII, considerando-o como uma «válvula de segurança do sistema», que só deve ter lugar naqueles precisos termos.

2.1.2 Como a jurisprudência tem vindo a salientar, não basta ao recorrente invocar a existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, incumbindo-lhe também alegar e demonstrar a excepcionalidade susceptível de justificar a admissão do recurso, i.e., que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista, que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito (cfr. art. 144.º, n.º 2, do CPTA).

2.1.3 Na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória – nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema» ( Cfr., por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 1853/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/aa70d808c531e1d580257cb3003b66fc.).

2.1.4 Vejamos, pois, se a revista pode ser admitida à luz do requisito de admissibilidade invocado pelo Recorrente, qual seja o da necessidade da admissão do recurso «para uma melhor aplicação do direito».

2.2 O CASO SUB JUDICE

2.2.1 Estamos perante recurso de acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte que, negando provimento ao recurso interposto pela AT, manteve a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que, mediante decisão proferida em sede de saneador/sentença, absolveu a AT da instância no âmbito da acção administrativa interposta pelo ora Recorrente por ter julgado verificadas as excepções dilatória da inimpugnabilidade do acto e da «falta de um dos pressupostos de que depende a propositura de uma acção de condenação à prática de acto administrativo - a saber um “requerimento que constitua o órgão competente no dever de decidir».
Isto, porque as instâncias entenderam, em síntese, o seguinte: o acto impugnado não tem a natureza de acto administrativo, tal como definida pelo art. 148.º do Código de Processo Administrativo, mas de mera informação; contrariamente ao que invoca o ora Recorrente, essa informação não foi prestada em resposta a qualquer pedido deste que obrigasse a AT a pronunciar-se ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 56.º da Lei Geral Tributária (LGT), mas foi prestada, ao abrigo do princípio da colaboração consagrado no art. 59.º da mesma Lei, na sequência de uma exposição apresentada à AT pelo ora Recorrente; essa exposição «não configura um requerimento que constitua o órgão competente no dever de decidir, nos termos do artigo 67.º, n.º 1, alínea b) do CPTA, pois o Autor apenas informa que continuará, no presente ano, a exercer a função de eventual perito independente, inclusivamente, na área de competência territorial da Direcção de Finanças de Leiria. Mais informa a Administração do enquadramento, em sede de IVA e IRC, que seguirá quanto à sua remuneração, nada peticionando à Administração»; a informação prestada pela AT «não inscreve oficiosamente o Autor em nenhum enquadramento tributário, seja para efeitos de IRS, seja para efeitos de IVA, assim como não impede que o Autor exerça a actividade de Perito Independente, em função do enquadramento que o mesmo referiu que iria fazer» – para o que a Direcção de Finanças de Leiria nem sequer seria competente, uma vez que a residência fiscal do ora Recorrente é em ... (cfr. art. 10.º, n.º 2 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares) – motivo por que a sua situação jurídica fiscal não foi alterada; assim, inexiste acto administrativo impugnável, atento o disposto no art. 51.º do Código do Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), e, porque o ora Recorrente nada requereu à AT nem esta emitiu qualquer acto, também não lhe é possível usar a condenação à prática de acto administrativo, em face do teor do art. 67.º do mesmo CPTA.
O presente recurso vem interposto do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte ao abrigo do art. 150.º do CPTA.
Desde logo, porque o Recorrente invocou a necessidade da admissão do recurso para melhor aplicação do direito, competia-lhe, em face dos termos em que invocou esse requisito, demonstrar que as instâncias trataram a matéria em causa nos autos de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, a demandar a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo na qualidade de órgão de regulação do sistema. Ora, tal não ocorre no caso sub judice.
Na verdade, apesar de o Recorrente afirmar que «[r]esulta […] absolutamente insustentável a tese jurisprudencial das instâncias propugnando que não se deu no caso uma alteração da situação tributária do contribuinte aqui recorrente», a verdade é que nada autoriza essa conclusão e, muito menos, que o erro assacado ao julgamento possa caracterizar-se como manifesto, ostensivo ou juridicamente insustentável, a justificar a clara necessidade de admissão do recurso para melhoria do direito.
Assim, e porque a mera discordância relativamente ao entendimento adoptado pelas instâncias quanto à natureza do acto impugnado não pode erigir-se em fundamento do recurso excepcional de revista, o qual, como bem salientou o Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal, não constitui um terceiro grau de jurisdição que o legislador tenha posto indiscriminadamente à disposição das partes, mas antes um recurso excepcional, cuja admissibilidade fica estritamente dependente da verificação dos respectivos requisitos legais.
A revista não pode, pois, ser admitida.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 150.º do CPTA não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.

II - A revista não pode ser admitida se, em face dos termos em que foi invocado o requisito da necessidade da admissão do recurso para melhor aplicação do direito, sempre se exigiria a comprovação de que as instâncias trataram a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, a demandar a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo na qualidade de órgão de regulação do sistema, o que não ocorre no caso sub judice.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em não admitir o presente recurso.

Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

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Lisboa, 10 de Abril de 2024. - Francisco Rothes (relator) - Isabel Marques da Silva - Aragão Seia.