Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0211/11
Data do Acordão:06/01/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:VALENTE TORRÃO
Descritores:DETERMINAÇÃO DA MATÉRIA TRIBUTÁRIA
MÉTODOS INDIRECTOS
FUNDADA DÚVIDA
ÓNUS DE PROVA
PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
MATÉRIA DE FACTO
Sumário:I - Tendo o Mmº Juiz recorrido entendido que existia fundada dúvida sobre a quantificação da matéria tributável apurada por métodos indirectos com fundamento no art º 88º, alínea d) da LGT, não cabe na competência deste Supremo Tribunal apreciar a bondade dessa decisão, visto que isso significaria imiscuir-se no conhecimento da matéria de facto.
II - Nada impede, no entanto, que este Supremo Tribunal conheça da alegação da recorrente de que a decisão recorrida violou normas sobre a repartição do ónus da prova.
III - Em caso de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respectiva quantificação (artº 74º, nº 3 da LGT).
IV - Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado (artº 100º, nº 1 do CPPT).
V - Em caso da quantificação da matéria tributável por métodos indirectos não se considera existir dúvida fundada, para efeitos do número anterior, se o fundamento da aplicação daqueles consistir na inexistência ou desconhecimento, por recusa de exibição da contabilidade ou escrita e demais documentos legalmente exigidos ou a sua falsificação, ocultação ou destruição ainda que os contribuintes invoquem razões acidentais (artº 100º, nº 2 do CPPT).
VI - Uma vez que, no caso dos autos, o fundamento para o recurso a métodos indirectos foi o da alínea d) do artº 88º da LGT, - existência de manifesta discrepância entre o valor declarado e o valor de mercado de bens ou serviços - nenhum obstáculo legal existia à aplicação do nº 1 do citado artº 100º.
Nº Convencional:JSTA00067005
Nº do Documento:SA2201106010211
Data de Entrada:03/07/2011
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF LOULÉ PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR FISC - IRC.
DIR PROC TRIBUT CONT - IMPUGN JUDICIAL.
Legislação Nacional:LGT98 ART74 ART88.
CPPTRIB99 ART74 N3 ART100.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC3/2010 DE 2010/04/28.
Referência a Doutrina:ELISABETE LOURO MARTINS ÓNUS DA PROVA EM DIREITO FISCAL PAG268.
JORGE DE SOUSA CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO ANOTADO E COMENTADO 5ED PAG723.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo
I – A Fazenda Publica, veio recorrer da decisão do Mmº Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida pela sociedade A…, Ldª, melhor identificada nos autos, contra as liquidações adicionais do IRC relativas aos anos de 2002 e 2003 apresentando, para o efeito, alegações nas quais conclui:
1ª) — A douta sentença recorrida ofende a regra do ónus de prova estabelecida no n° 3 do artigo 74 da LGT e o preceito do n° 2 do artigo 100º do CPPT,
2ª) — Uma vez que na situação questionada houve recurso aos métodos indirectos com apoio no artigo 88º da LGT.
3ª) — E, perante a dúvida sobre a quantificação do facto tributável o juiz a que julgou procedente a impugnação, socorrendo-se do disposto no artigo 100º, nº 1 do CPPT.
4ª) — Quando nestas circunstâncias, o recto entendimento do regime formulado no artigo 100º do CPPT, impunha ao tribunal recorrido resolver a situação de dúvida a favor da Fazenda Pública.
5ª)— Com efeito, o texto do n° 2 do artigo 100º do CPPT obsta a que a disposição inserta no seu nº 1 releve nos casos de determinação indirecta da matéria tributável; introduz uma excepção à regra geral de que a incerteza tem como consequência a anulação do acto impugnado.
6º) — Em correlação com o estabelecido no nº 3 do artigo 74º da LGT.
Pelo exposto, mais dos autos e max. ex. supl., deve julgar-se a impugnação improcedente.
II – Em contra alegações, a entidade recorrida veio a concluir da seguinte forma:
A) Na sua petição de impugnação a aqui recorrida, entre outras, tinha como causa de pedir o erro nos pressupostos da avaliação indirecta e a falta de fundamentação e inadequação do critério utilizado para a quantificação da matéria tributável por métodos indiciários, pugnando pelo exagero da mesma;
B) O objecto do presente recurso interposto pela Fazenda Pública está limitado à impugnação da douta sentença recorrida na parte em que esta se pronunciou pela anulação dos actos tributários de liquidação de IRC nos termos do nº 1 do artigo 100º do CPPT com fundamento na existência de findada dúvida;
C) Ademais, nas suas doutas alegações a Fazenda Pública advoga que a aludida dúvida fundada deveria ser resolvida a favor da Administração Tributária por força da inversão do ónus da prova consagrado no nº 3 do artigo 74° da LGT:
D) Que o nº 1 do artigo 100° do CPPT não é aplicável ao caso concreto por força do disposto no n°2 do mesmo artigo que exclui a sua aplicação;
E) Ora, a douta sentença recorrida deu por assente um conjunto de factos no seu julgamento da matéria de facto sobre os quais desenvolveu o seu julgamento de direito, considerando que de tais factos decorre uma fundada dúvida quanto à quantificação dos actos tributários (de liquidação), merecedora de anulação dos mesmos nos termos do artigo 100° do CPPT;
F) Sendo certo que a questão do ónus da prova contida no artigo 74° da LGT é anterior à do julgamento de direito e apenas releva para disciplina tal matéria quanto à respectiva incumbência do ónus da prova quanto a cada uma das matérias aí versadas;
G) Não sendo aquele artigo 74° da articulável com o disposto no artigo 100º do CPPT que se limita a consagrar a consequência jurídica relativa à existência de fundada dúvida quanto à quantificação do acto tributário em que se pronuncia pela sua anulação;
H) Ou seja, a aplicação do artigo 74° da LGT situa-se no âmbito do julgamento de facto e o artigo 100° do CPPT aplica-se no âmbito do julgamento de direito;
I) Já que este último normativo deve ser interpretado no sentido de que para a anulação do acto tributário é suficiente que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a quantificação da matéria tributável (sem que se tenha que fazer a prova directa e cabal da inadmissibilidade do critério utilizado ou do exagero dessa mesma quantificação).
J) Acresce que, ao contrário do alegado pela Fazenda Pública, o disposto no nº 2 deste artigo 100° apenas afasta a existência de dúvida fundada quando em sede de aplicação da avaliação indirecta, esta tiver por fundamento “a inexistência ou desconhecimento, por recusa de exibição, da contabilidade ou escrita e demais documentos legalmente exigidos ou a sua falsificação, ocultação ou destruição”;
L) O que não é manifestamente o caso dos autos em apreço onde o recurso a métodos indirectos não teve qualquer dos indicados fundamentos.
M) Ou seja. O nº 2 do artigo 100° não se aplica ao caso concreto sub judice;
N) Pelo que, em suma, deverá improceder o douto recurso interposto pela Fazenda Pública e manter-se a douta decisão recorrida.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Excelências mui doutamente suprirão, deverá a douta decisão recorrida ser mantida, negando-se provimento ao recurso, com todas as consequências legais daí decorrentes, como é de inteira JUSTIÇA
III. O MP não emitiu parecer.
IV. Colhidos os vistos legais, cabe decidir.
V. Com interesse para a decisão foram dados como provados em 1ª instância os seguintes factos:
A)- A impugnante encontra-se colectada pelo exercício da actividade de “Construção Edifícios” CAE “045211” desde 1986.01.01, estando enquadrada do regime de isenção de IVA conforme art.º 9 CIVA e os rendimentos da actividade exercida estão sujeitos, em sede de IRC, a tributação nos termos dos artigos 1º e 3º do CIRC., cfr. fls. 38 do processo administrativo apenso.
B)- A coberto da Ordem de serviço nº 01200501842/01200501843, com início em 2006.06.20, e o fim em 2006.10.02, a Administração Fiscal procedeu a inspecção à actividade da Impugnante, cfr. fls. 35 do processo administrativo apenso.
C)- O motivo da inspecção foi o PNAIT 222.22 - Empresa do sector da construção civil — Despacho do Sr. Director de Finanças de 2005.09.26, cfr. fls. 38 do apenso.
D)- A inspecção abrangeu os exercícios de 2002 e 2003 e foi de âmbito geral, cfr. fls. 38 do apenso.
E)- Em 25/10/2006, os serviços de inspecção elaboraram o relatório de fls. 35 e segs., do processo administrativo apenso, que aqui se dá por integralmente reproduzido e donde resulta com interesse para a decisão:
RELATÓRIO DE INSPECÇÃO TRIBUTÁRIA
I. CONCLUSÕES DA ACÇÃO DE INSPECÇÃO
Face aos motivos descritos no presente relatório estamos perante a impossibilidade de determinação directa e exacta da matéria tributável, indo-se assim proceder para os exercícios de 2002 e 2003, à realização da avaliação indirecta nos termos da alínea b) art.º 87º e alínea d) art.º 88 e de acordo com o art.º 90, todos da Lei Geral Tributária (LGT).
São desta forma fixados os lucros tributáveis presumidos nos montantes de € 930.700,87 e € 4.451,00 para 2002 e 2003 respectivamente, tendo implícitas correcções com recurso a avaliação indirecta nos montantes de € 545.753,64 e de € 23.896,74 respectivamente.
II OBJECTIVOS, ÂMBITO E EXTENSÃO DA ACÇÃO INSPECTIVA.
II. 3 - CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES FISCAIS
O sujeito passivo tem a sede na Av. … FARO, e vem exercendo a actividade na área deste concelho.
Pelo sistema de consultas de IRC e de IVA bem como da Declaração Anual verifica-se que não existem faltas declarativas.
(...)
IV. MOTIVOS E EXPOSIÇÃO DOS FACTOS QUE IMPLICAM O RECURSO A MÉTODOS INDIRECTOS
1. Na acção preparatória da acção de inspecção e através do “Sistema informático do Património” foi possível identificar as fracções transaccionadas pelo s.p. nos exercícios em questão:
2002


(*) Venda efectuada ao sócio gerente
2. Em 2005-11-02, foram remetidas notificações para os adquirentes das diversas fracções alienadas pela empresa no ano de 2002 e 2003, nas quais foram solicitados:
- Fotocópia do contrato promessa de compra e venda, respeitante à aquisição da fracção ao sujeito passivo A…, Lda.
- Fotocópia dos comprovativos das importâncias pagas, com identificação das datas de pagamento, n.º dos cheques emitidos e respectivos bancos, referente à referida aquisição;
- Comprovativo do pagamento da SISA adicional, se for caso disso.
Analisadas as respostas, verificamos:
A correspondência entre os valores dos Contratos Promessa de Compra e Venda (C. P. C. V.) com as respectivas Escrituras de Compra e Venda (E. C. V).
Que os pagamentos coincidem grosso modo com as datas estipuladas no C.P.CV e que existem elevados pagamentos em numerário (Anexo 1)
Verificou-se que em referência à fracção H foram efectuadas 2 escrituras. A primeira no dia 31/01/2003 registada no livro 301-A fls. 83 em que foi registada a venda por € 69.831,71 que foi rectificada pela escritura do dia 16-04-2003 registada no livro 311-A fls. 47 onde foi corrigido a valor da venda para € 84.795,64.
3. Em conformidade com o disposto n.º art.º 9 do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributário (RCPIT) e artº 49 do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), foi solicitada à Conservatória do Registo Predial de Faro, em 2005-11-14, o envio das certidões de teor de matrícula e seus averbamentos de todas as fracções descritas naquela conservatória sob os n.º 615/19851007 da freguesia de S. Pedro.
Foi possível, verificar que alguns compradores contraíram, no mesmo momento, empréstimos bancários de montante superior ao da escritura, através da contratualização de vários mútuos com hipoteca sobre as mesmas fracções, por períodos e taxas idênticas (Anexo 2).
4. Em 2006-06-19, foram remetidas notificações para que os adquirentes justificassem a existência dos segundos contratos de mútuo com hipoteca das fracções em causa.
Nas respostas recebidas, poucos foram as que conseguiram justificar cabalmente os montantes dos empréstimos, quer por ausência de documentação quer por justificarem empréstimos obtidos para obras de beneficiação com outro tipo de despesa (ex. mobiliário, electrodomésticos, tapetes etc.).
5. Analisada a contabilidade do SP, verificou-se:
- A existência de um saldo de caixa credor em 31-08-2002.
- Verificou-se no exercício de 2002 que o saldo inicial na conta de cliente n.º 211024 referente à aquisição da fracção “B “, era de € 109.735,52 quando a valor da E. C. V. foi de 87.289,63 (o cliente teria já pago mais que o valor da escritura). Verificou-se no entanto o estorno parcial (débito da conta 211024— Cliente e crédito da conta 255121- Suprimento de sócio), no montante de € 24.939,89, do lançamento 822 do ano 2000; analisado o lançamento original verifica-se que é uma entrada em numerário de montante global de € 27.433,88 (2 depósitos bancários em 28/12/2000 valor de € 22.445,91 e 1 depósito em 05/12/2000 de € 4.987,98), totalizando o valor que a cliente estaria obrigada a pagar ao SP de acordo com o C.P.C.V.
6. Foi criada uma base de dados de valores de venda de fracções em Faro, através da recolha de todas as fracções vendidas no exercício de 2002, e cujo valor real foi declarado e corrigido pelos s.p. compradores e/ou vendedores em processos de inspecção a Empresas dos sector da construção civil no âmbito da acção especial a este sector.
Para elaboração da base de dados foram recolhidos dados de 118 fracções, 11 TI, 33 T2, 59 T3 e 15 T4 (Anexo 3).
Da análise efectuada e comparando os dados com o s.p., o foi possível concluir quais os valores de venda por m2 praticados em Faro:


Verifica-se assim a existência de manifesta discrepância entre o valor declarado pelo SP e o valor de mercado, o que de acordo com a alínea d) do art.º 88 da Lei Geral Tributária (LGT) consubstancia um do casos de impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável, assim de acordo com o nº 1 artº 52 do CIRC, iremos nos termos da al. b) artº 87, proceder à avaliação indirecta da mesma por aplicação do critério previsto na al. h) do art.º 90 da LGT.

V. CRITÉRIOS E CÁLCULOS DOS VALORES CORRIGIDOS COM RECURSO A MÉTODOS INDIRECTOS

Iremos aplicar às fracções vendidas em 2002 e 2003 os preços médios de venda praticados em Faro para 2002 (excluem-se a fracção A art.º 1043 pela tipologia e a fracção P artº 4144 adquirida pela sociedade em 2001 e vendida ao sócio gerente em 2003)




(…)
IX DIREITO DE AUDIÇÃO
O s.p. exerceu, no dia 2006-10-23, por escrito o direito de audição, que de seguida se analisa.
Ponto 16º
Afirma o s.p. “Estas situações eram normais até ao fim do ano de 2003...”
Referindo-se ao facto de os contribuintes deliberadamente no indicarem quais os verdadeiros fins dos seus empréstimos.
Considerando que normal significa “conforme norma ou regra; que serve de modelo; exemplar”
Não poderemos considerar que a falsidade intelectual seja normal, quando muito poderá considerar o s p. que será muito frequente.
E de salientar a coincidência de datas entre o fim dessas situações ditas normais, de acordo com o s.p. e o início da acção especial âmbito da acção especial a este sector referida no ponto 6 do capitulo IV.
Ponto 26°
Afirma o s.p. “Não se diz quais são esses valores de mercado e como é que estes foram obtidos ou onde é que os mesmos existem ou estão publicados. “Ignorando em absoluto o ponto 6 do capítulo IV.
Acrescente-se ainda que considerando que em Faro foram construídos 710 fogos (fonte INE - Estatísticas da Construção e da Habitação 2002) a amostra recolhida representa 16,62% do mercado.
De referir que o conceito de preço de mercado não se aplica a um preço único de plena concorrência, inexistente, mas sim a um intervalo de preços com uma comparabilidade razoável.
No que respeita à publicação de valores são apresentados pelo INE (Estatísticas da Construção e da Habitação 2002 — Inquérito à Avaliação Bancária na Habitação) os seguintes:
Apartamento Euros/m2


Assim face aos valores publicados por entidade de referência (INE) e os valores aplicados no relatório, poderá alegar o s.p. que foram consideravelmente inferiores.
Ponto 27°
Afirma o sp. “Será que esta empresa ou outra qualquer terá de solicitar à Administração Fiscal os preços de mercado a praticar nas vendas antes de iniciar estas, a fim de serem aceites para efeitos tributários?”
Informa-se o s.p. da alteração efectuada pelo legislador ao Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), pelo DL 287/2003 de 11 de Novembro, ao introduzir o artº. 58-A.
De acordo com o Despacho do Director-Geral dos Impostos de 3 de Junho de 2005
• tem a natureza de uma cláusula especial anti-abuso, que se destina a dar resposta a situações de flagrante e manifesta sub-declaração dos valores das transacções que envolvem direitos reais sobre bens imóveis, o seu objectivo último é o de induzir os contribuintes a adaptar sua conduta em ordem a que os valores constantes dos contratos de compra e venda de direitos reais sobre bens imóveis reflictam os valores de mercado efectivamente praticados pelas partes.”
Ponto 29º
O s.p. afirma ter a “contabilidade organizada nos termos da lei comercial e fiscal”
Não comenta o s.p. as situações verificadas no capitulo IV ponto 5, nomeadamente a existência do saldo credor da conta caixa mencionado no relatório.
Num fundo de caixa no se podem verificar descobertos, considerando que todos os movimentos são reflectidos na contabilidade, não se pode gastar o que não se tem. “o saldo de caixa é sempre devedor ou nulo, nunca credor.” (Elementos de Contabilidade Geral —13.° Edição Rei dos Livros pág. 140.
Ponto 39º
O s.p. afirma “De facto, a adopção do Método Comparável do Preço de Mercado requer o grau mais elevado de compatibilidade com incidência tanto no objecto como nos demais termos e condições e condições das operações...”
Aqui o s.p. faz a transcrição do nº1 art.º 6 da Portaria 1446/2001 de 21 de Dezembro que regida os preços de transferência previstos no art.º 58 do CIRC. Em parte alguma no presente relatório foi levantada a questão dos preços de transferência, apesar de afirma manter relações comerciais com o seu sócio gerente (ver capítulo V).
Repare-se que as expressões “valor de mercado” e “Método Comparável do Preço de Mercado” não são inequivocamente sinónimas, pois cada uma delas corresponde realidades distintas.
Relembre-se ao s.p. que os preços de transferência como descreve sucintamente Eduardo Goldszal (in “As Novas Regras dos Preços de Transferência Em análise “) “ de um modo geral, por preços de transferência, entende-se os preços pagos por bens e serviços e direitos transferidos entre empresas associadas e pertencentes ao mesmo grupo” ou outras entidades que as dominem. Que claramente não é o caso.
Esclarecido o facto de não se tratar de preços de transferência, e apenas num exercício argumentativo vejamos o art.º 5 da mesma portaria onde se indicam alguns dos factores de comparabilidade.
1-As características especificas dos bens, a qualidade e fiabilidade
2- Os termos contratuais que definem o modo como se repartem as responsabilidades.
3- As circunstancias económicas prevalecentes no mercado, incluindo a sua localização geográfica e os custos do mercado.
Quanto ao 3° ponto o mercado geográfico é restrito à cidade de Faro onde os custos dos factores produtivos são em princípio comuns.
Quanto ao 2º ponto a garantia prestada pelas entidades construtoras é regulada e portanto comum a todos os operadores, não mencionando o s.p. nos contratos efectuados qualquer extensão as garantias legalmente exigíveis.
Quanto ao ponto 1º as características específicas dos bens, são na sua generalidade idênticos, apartamentos de habitação não incluídos em urbanizações de luxo ou condomínios fechados.
No critério utilizado foi efectuado uma selecção de variados construtores de Faro para se determinar a valorização do m2.
Afirmará o s.p. que a qualidade da sua construção é inferior à média? E que no caso contrário o valor peca por escasso.
Face ao exposto não são apresentados motivos no direito de audição para uma alteração ao relatório efectuado, pelo que se propõem a sua manutenção,
Deixa-se no entanto à consideração superior que melhor decidirá
Faro 25 de Outubro de 2006»
F) — Sobre o relatório a que se refere a alínea anterior recaiu, em 31/10/2006, o seguinte parecer (fls. 35 do apenso):
«Os factos expostos no ponto IV do relatório determinaram a aplicação de métodos indirectos no apuramento da matéria tributável dos ano de 2002 e 2003, cujos cálculos e critérios descritos no ponto V conduziram a que nos termos ao art.º 54.° do CIRC o lucro tributável seja fixado em € 930.700 e € 4451,00, respectivamente.
O S.P. exerceu o direito de audição cuja análise não originou qualquer alteração dos valores propostos no projecto de relatório.
Foi elaborado relatório de faltas nos termos do n.º 3, do artº 29º do R.G.I. T.. »
G) — Sobre o relatório parecer a que se refere as alíneas anteriores recaiu o seguinte despacho (fls. 35 do apenso):
«Concordo.
Proceda como se propõe.
2006.11.03»
H) — Em 12/12/2006, a Impugnante requereu a revisão da matéria tributável, cfr. fls. 72 e segs.
I)— Os peritos reuniram, mas não chegara a acordo, cfr. fls. 85.
J) — O perito da Impugnante apresentou o laudo de fls. 87 e segs. .
K) — O perito da Administração Fiscal apresentou o laudo de fls. 92 e 93.
L) — O Director de Finanças de Faro proferiu a decisão de fixação da matéria tributável em 23/01/2007, donde resulta:
«(…)
O perito indicado pelo contribuinte, discorda dos valores propostos pelo perito da Administração Fiscal, sustentando a não verificação dos pressupostos para determinação da matéria colectável por aplicação dos métodos indirectos. Para tal, invoca não haver diferenças entre os valores constantes dos contratos promessa e os das escrituras de compra e venda celebradas. Alega ainda este perito, que a existência de segundos contratos de mútuos com hipotecas foram devidamente justificados pelos adquirentes, relativamente ao destino dado ao excedente dos seus empréstimos relativamente aos valores constantes daquelas escrituras de compra e venda. Por último, invoca a falta de fundamentação dos ditos “valores de mercado”.
O perito da administração tributária, mantém o apoio das conclusões retiradas do relatório do exame à escrita, visto que, os argumentos invocados pelo perito indicado pela sociedade, não permitiu estabelecer qualquer acordo. Os fundamentos da aplicação por métodos indirectos para a tributação em IRC dos exercícios acima referidos, baseiam-se essencialmente na impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável, nos termos da alínea b) do artº 87° e alínea d) do artº 88º, ambos da LGT, por terem sido detectadas diferenças entre os valores das escrituras e os montantes efectivamente recebidos dos adquirentes. Alega ainda este perito, que o critério utilizado pela inspecção é o correcto, conforme estipulado na alínea h) do n.º 1 do artº 90 da LGT. Relativamente aos “preços de mercado “, sustenta que os mesmos foram evidenciados numa compilação feita e publicada pelo Instituto Nacional de Estatística (1/3/E), tendo por base dados declarados por compradores e/ou empresas construtoras em processos de inspecção a empresas do sector da construção civil, no ano de 2002 em Faro. Por tudo isto, o perito da administração tributária é de parecer que os valores da matéria tributável objecto da reclamação, deverão ser mantidos.
Ponderados todos os fundamentos invocados e tendo em conta as posições assumidas por ambos os peritos, concordo com a posição assumida pelo Perito e Administração Tributária, e mantenho a fixação do rendimento de IRC, para os anos 2002 e 2003, nos valores de € 930.700,87 e € 4.451,00 respectivamente, fixados por métodos indirectos»
M) — Em 02/12/2007, a Administração Fiscal emitiu as liquidações adicionais de IRC, cfr. fls. 99 e 101.
N) — O prazo para pagamento voluntário da liquidação referente ao ano de 2002, terminou em 26/03/2007 e relativamente ao ano de 2003 em 28/03/2007, cfr. fls. 97 e 100.
O) — A petição inicial foi apresentada em 19/03/2007, cfr. carimbo aposto a fls. 3.
VI. De acordo com as conclusões das alegações, a única questão a apreciar no presente recurso é a de saber se o Mmº Juiz “a quo”, ao dar relevância à dúvida sobre a quantificação da obrigação tributária, a favor do contribuinte, violou o disposto nos artºs 74º, nº 3 da LGT e 100º, nº 2 do CPPT.
A recorrente defende essa violação, louvando-se em que na situação dos autos houve recurso aos métodos indirectos com apoio no artigo 88º da LGT, pelo que nos termos do nº 2 do artº 100º do CPPT e ainda por força do nº 3 do artº 74º do CPPT, a dúvida deveria reverter a favor da Fazenda Pública.
Isto porque o texto do n° 2 do artigo 100º do CPPT obsta a que a disposição inserta no seu nº 1 releve nos casos de determinação indirecta da matéria tributável, introduzindo uma excepção à regra geral de que a incerteza tem como consequência a anulação do acto impugnado, aliás, o que está em correlação com o estabelecido no nº 3 do artigo 74º da LGT.
A recorrida, por sua vez, entende que a questão do ónus da prova contida no artigo 74° da LGT é anterior à do julgamento de direito e apenas releva para disciplina tal matéria quanto à respectiva incumbência do ónus da prova quanto a cada uma das matérias aí versadas.
O artigo 74° da LGT não é articulável com o disposto no artigo 100º do CPPT que se limita a consagrar a consequência jurídica relativa à existência de fundada dúvida quanto à quantificação do acto tributário em que se pronuncia pela sua anulação.
Ou seja, a aplicação do artigo 74° da LGT situa-se no âmbito do julgamento de facto e o artigo 100° do CPPT aplica-se no âmbito do julgamento de direito, devendo este último normativo ser interpretado no sentido de que para a anulação do acto tributário é suficiente que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a quantificação da matéria tributável (sem que se tenha que fazer a prova directa e cabal da inadmissibilidade do critério utilizado ou do exagero dessa mesma quantificação).
Por outro lado, ao contrário do alegado pela Fazenda Pública, o disposto no nº 2 deste artigo 100° apenas afasta a existência de dúvida fundada quando em sede de aplicação da avaliação indirecta, esta tiver por fundamento “a inexistência ou desconhecimento, por recusa de exibição da contabilidade ou escrita e demais documentos legalmente exigidos ou a sua falsificação, ocultação ou destruição, o que não é manifestamente o caso dos autos em apreço onde o recurso a métodos indirectos não teve qualquer dos indicados fundamentos.
Quid juris?
VI.1. As normas em apreciação nos autos estabelecem, respectivamente, o seguinte:
“ARTIGO 100º - CPPT
Dúvidas sobre o facto tributário e utilização de métodos indirectos
1. Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado.
2. Em caso da quantificação da matéria tributável por métodos indirectos não se considera existir dúvida fundada, para efeitos do número anterior, se o fundamento da aplicação daqueles consistir na inexistência ou desconhecimento, por recusa de exibição, da contabilidade ou escrita e demais documentos legalmente exigidos ou a sua falsificação, ocultação ou destruição ainda que os contribuintes invoquem razões acidentais.
3. O disposto no número anterior não prejudica a possibilidade de na impugnação judicial o impugnante demonstrar erro ou manifesto excesso na matéria tributável quantificada”.
Artigo 74.º - LGT
Ónus da prova
1 - O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.
2- Quando os elementos de prova dos factos estiverem em poder da administração tributária, o ónus previsto no número anterior considera-se satisfeito caso o interessado tenha procedido à sua correcta identificação junto da administração tributária.
3- Em caso de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respectiva quantificação”.
Podemos então daqui concluir que em caso de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respectiva quantificação.
Produzida a respectiva prova, e sempre que dela resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado.
Porém, em caso da quantificação da matéria tributável por métodos indirectos não se considera existir dúvida fundada, para efeitos do número anterior, se o fundamento da aplicação daqueles consistir na inexistência ou desconhecimento, por recusa de exibição, da contabilidade ou escrita e demais documentos legalmente exigidos ou a sua falsificação, ocultação ou destruição ainda que os contribuintes invoquem razões acidentais.
E bem se compreende que assim seja, pois, como salienta o srº Conselheiro Lopes de Sousa - .CPPT Anotado, 5ª edição, pág. 723 “Nestas situações em que é impossível determinar directamente a matéria tributável, há sempre dúvidas sobre a sua quantificação real, pois os métodos indirectos tomam em consideração indicadores que apenas podem fornecer uma indicação aproximada do valor que a matéria tributável provavelmente teria.
Assim, nos casos de determinação indirecta da matéria tributável, a aplicação da regra do ónus da prova prevista no n.° 1, poderia traduzir-se na anulação de grande parte dos actos de liquidação baseados em determinação indirecta da matéria tributável com o consequente desatendimento das razões que justificam o uso deste meio procedimental“.
No caso dos autos, o Mmº Juiz recorrido, tal como se conclui de fls. 162/166, entendeu que estavam reunidos os pressupostos para o uso de métodos indirectos, decisão que não sofreu contestação das partes.
Quanto à apreciação da prova produzida concluiu o Mmº Juiz recorrido que: ”Ponderando, quer os argumentos da Administração Fiscal, quer os argumentos da impugnante – não esquecendo os argumentos que resultam dos depoimentos das testemunhas e do relatório de inspecção – e olhando para a actividade processual desenvolvida, e matéria recolhida nos autos, concluímos pela verificação da mais séria, profunda e fundada dúvida sobre a quantificação do acto tributário”.
Ora, relativamente a esta apreciação do Mmº Juiz recorrido, não pode este Supremo Tribunal pronunciar-se pois que, como se escreveu no Acórdão de 28.04.2010 – Processo nº 03/2010, No entanto, como se escreveu no Acórdão deste Tribunal, de 30.04.2003 -Recurso nº 0241/03 “... não cabe nos poderes de cognição do STA - artº 21º, nº 4 do ETAF - averiguar e decidir da existência ou não da "fundada dúvida" a que se refere o artº 121º do CPT pois estaria, então, a imiscuir-se no conhecimento de facto, que lhe é vedado”. Em sentido idêntico v. os Acórdãos do mesmo Tribunal e Secção, de 13.11.2002 -Recurso nº 0115/02, de 09.10.2002- Recurso nº 0871/02 e de 23.10.2002 -Recurso nº 01152/02.
E isto porque “Como é sabido, o STA não conhece de matéria de facto - artº 21º, nº 4 do ETAF, - nem como tribunal de revista - artº 722º, nº 2 do CPCivil - "do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, a não ser que tenha havido ofensa de norma legal que exija certa espécie de prova ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova", o que não é o caso.
A própria interpretação dos factos e as ilações que as instâncias deles retiram, desligadas de qualquer interpretação jurídica, constituem matéria de facto subtraída, pois, ao conhecimento do tribunal de revista. Cfr. por todos, os Acd's do STJ de 15/05/91 e 06/03/91 in Acd' Dout' 367-917 e 354-813, de 17/06/99 in Colectânea pág. 153 e 28/Set/00, ibidem pág. 54.
(…)
Deste modo, não pode este Tribunal averiguar e decidir da existência ou não da "fundada dúvida" a que se refere o artº 121º do CPT pois estaria, então, a imiscuir-se no conhecimento de facto, que lhe é vedado)”.
Por isso, cabe apenas apreciar se foi ou não correcta a decisão de fazer reverter a dúvida a favor da contribuinte, com a consequente anulação das liquidações impugnadas.
Pelo que atrás se referiu, desde já se dirá que a decisão se afigura correcta.
Com efeito, tal como referiu a recorrida nas conclusões das alíneas F) a J) das conclusões das suas alegações, a questão do ónus da prova contida no artigo 74° da LGT é anterior à do julgamento de direito e apenas releva para efeitos de incumbência do ónus da prova quanto a cada uma das matérias aí versadas.
Assim, o artigo 74° da LGT não é articulável com o disposto no artigo 100º do CPPT que se limita a consagrar a consequência jurídica relativa à existência de fundada dúvida quanto à quantificação do acto tributário em que se pronuncia pela sua anulação.
Ou seja, a aplicação do artigo 74° da LGT situa-se no âmbito do julgamento de facto e o artigo 100° do CPPT aplica-se no âmbito do julgamento de direito, devendo este ser interpretado no sentido de que para a anulação do acto tributário é suficiente que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a quantificação da matéria tributável (sem que se tenha que fazer a prova directa e cabal da inadmissibilidade do critério utilizado ou do exagero dessa mesma quantificação).
Por outro lado, ao contrário do alegado pela Fazenda Pública, o disposto no nº 2 deste artigo 100° apenas afasta a existência de dúvida fundada quando em sede de aplicação da avaliação indirecta, esta tiver por fundamento “a inexistência ou desconhecimento, por recusa de exibição, da contabilidade ou escrita e demais documentos legalmente exigidos ou a sua falsificação, ocultação ou destruição”, o que não é manifestamente o caso dos autos em apreço onde o recurso a métodos indirectos não teve qualquer dos indicados fundamentos.
“Quer dizer então que o âmbito de aplicação desta norma só poderá ser o de afastar a regra do ónus da prova objectivo, nas situações em que a dúvida fundada assente sobre os pressupostos de aplicação de métodos indirectos, nas situações em que foi o próprio contribuinte a causar com culpa (dolo ou negligência) a impossibilidade de produção de prova sobre os factos declarados na declaração de rendimentos” (Elisabete Louro Martins – Ónus da Prova em Direito Fiscal, pág. 268)
Sendo assim, não é aplicável ao caso dos autos o nº 2 do artº 100º do CPPT, uma vez que, tal como até resulta da alínea E) do probatório, o fundamento da avaliação indirecta foi o constante da alínea d) do artº 88º da LGT, isto é, a existência de manifesta discrepância entre o valor declarado e o valor de mercado de bens ou serviços.
E, deste modo, tendo o Mmº Juiz recorrido entendido que se verificava dúvida fundada sobre a quantificação do acto tributário, tendo sido observadas as regras do ónus da prova, e sido aplicado o disposto no nº 1 do citado artº 100º, a decisão recorrida tem de manter-se.
Pelo que ficou dito, improcedem as conclusões das alegações e, em consequência o recurso.
VII. Nestes termos e pelo exposto nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida com a consequente anulação das liquidações impugnadas.
Custas pela recorrente, fixando-se a procuradoria em um oitavo.
Lisboa, 1 de Junho de 2011. – Valente Torrão (relator) – Dulce Neto – Casimiro Gonçalves.