Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01078/12
Data do Acordão:01/08/2014
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ASCENSÃO LOPES
Descritores:MAIS VALIAS
VENDA DE ACÇÕES
RETROACTIVIDADE
Sumário:I - As alterações introduzidas ao regime tributário das mais-valias mobiliárias pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho aplicam-se apenas aos factos tributários ocorridos em data posterior à da sua entrada em vigor (27 de Julho de 2010 – art. 5.º da Lei n.º 15/2010).
II - Nas mais-valias resultantes da alienação onerosa de valores mobiliários sujeitas a IRS como incrementos patrimoniais o facto tributário ocorre no momento da alienação (artigo 10.º n.º 3 do Código do IRS), sendo esse o momento relevante para efeitos de aplicação no tempo da lei nova, na ausência de disposição expressa do legislador em sentido diverso (artigos 12.º n.º 1 da LGT e do CC).
III - Sendo o rendimento anual para efeitos de IRS um facto complexo de formação sucessiva, na ausência de norma expressa em sentido diverso, poderá aplicar-se, sem retroactividade própria ou autêntica, a lei nova aos factos que o integram ocorridos a partir da sua entrada em vigor (artigo 12.º n.º 2 da Lei Geral Tributária).
Nº Convencional:JSTA00068521
Nº do Documento:SA22014010801078
Data de Entrada:10/16/2012
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A............
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF LEIRIA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT
Legislação Nacional:L 15/2010 DE 2010/07/26
CIRC01 ART43 N1
CIRS01 ART10 N3 N2
LGT08 ART12 N2
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC01582/13 DE 2013/12/04; AC STA PROC018287 DE 1995/01/18; AC TC PROC310/2012; AC STA PROC0281/2011 DE 2011/07/06
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, nesta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1 – RELATÓRIO
A………….., NIF ……………, farmacêutica, deduziu impugnação judicial da liquidação de IRS do ano de 2010 com o n° 20115004776403, de 150.457,57€ e juros compensatórios, alegando, em síntese, que:
Não existe norma de incidência à data dos factos (artigo 10-2, do CIRS);
O procedimento de liquidação adoptado pela Administração Tributária implicou uma aplicação retroactiva de normas de incidência que vieram a ser criadas por lei posterior à data dos factos (Lei n° 15/2010, de 26 de Julho);
Tal procedimento redunda numa aplicação da lei não conforme a lei (artigos 12, da LGT e 12, do CC) nem com a Constituição (artigo 103-3, CRP) — cfr. douta petição de fls. 2/ss.

Por sentença de 30 de Maio de 2012, o TAF de Leiria, julgou a impugnação procedente e anulou a liquidação impugnada.

Reagiu a Fazenda Pública, interpondo o presente recurso, cujas alegações integram as seguintes conclusões (com destaques da nossa autoria):
A) Conforme fixado em probatório, em 2010-04-19 a impugnante alienou onerosamente acções por si detidas há mais de 12 meses, sendo a operação sujeita, em sede de IRS, à tributação autónoma, em resultado da conjugação dos artigos 10°/1-b), 43°/3 e 72°/4 do CIRS, na redacção atribuída pela Lei 15/2010, de 26/7.

B) Na liquidação em causa, não foi considerado o disposto no n° 2 do art. 10° do CIRS, face à respectiva revogação, operada pelo art. 2° da Lei 15/2010, de 26/7, o mesmo diploma que introduziu um regime de tributação das mais-valias mobiliárias à taxa de 20% com regime de isenção para os pequenos investidores, alterando, em consonância o CIRS e o Estatuto dos Benefícios Fiscais.

C) O novo regime legal procedeu à revogação da anterior exclusão de tributação aplicável às mais-valias provenientes da alienação de acções detidas durante mais de 12 meses (assim como de obrigações e outros títulos de dívida), estabelecendo a sua tributação, mediante a aplicação de uma taxa de 20%, do saldo positivo entre as referidas mais e menos-valias, desde que o mesmo se revelasse superior a € 500.

D) E sendo também certo que o legislador fiscal não consagrou um regime transitório na Lei em causa, entrada em vigor em 27-07-2010, o qual teria a virtualidade de resolver a matéria aqui controvertida, entende a recorrente que a liquidação posta em crise não padece dos vícios de ilegalidade e violação da lei que lhe vêm imputados pela mui douta sentença sob recurso.

E) Pois que o facto tributário que a lei nova pretende regular não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes continua a formar-se já na vigência da nova lei, impondo apurar o saldo entre as mais-valias e menos-valias geradas no período de tributação.

F) Assim, o facto tributário em IRS verifica-se no último dia do período de tributação (ano civil) e apesar de o código respectivo não conter norma expressa nesse estrito sentido (ao contrário do Código do IRC), assim se terá de interpretar a intenção do legislador fiscal ao referir expressamente que a tributação se verifica sobre o saldo, dado que só no final do ano, considerando todas as mais-valias e menos-valias obtidas, se pode aferir da existência e quantificação do saldo.

G) Assim, no limite, o facto tributário não ocorre no momento da alienação das acções, uma vez que nesse momento ainda não é possível aferir se o eventual ganho imediato irá ser sujeito a tributação, já que o facto da alienação se revela, afinal, potencial e fica condicionado à existência de saldo positivo entre todas as mais-valias e menos-valias geradas no período da tributação (ano civil).

H) O facto tributário não é assim a mais-valia isoladamente considerada, o acto da alienação, mas tem de ser tido como de formação sucessiva, impondo o apuramento de um saldo anual positivo entre as mais e menos valias obtidas, ou seja, a verificação de um acréscimo patrimonial adveniente da alienação.

I) A jurisprudência que vem sendo fixada pelo Tribunal Constitucional, designadamente, aquela contida no Acórdão 399/2010, propugna que não ocorrerá retroactividade da lei fiscal, ao determinar a tributação autónoma da alienação de acções detidas há mais de 12 meses realizada entre 1 de Janeiro de 2010 e 26 de Julho de 2010, nem qualquer violação do principio da segurança e da tutela jurídica.

J) Assim, assente na convicção de que a realidade sujeita a tributação no final do ano fiscal em causa não é apenas a mais-valia realizada individualmente na operação singular aqui em causa, mas o saldo positivo verificado, no final do ano fiscal, entre as mais-valias e as menos-valias geradas durante todo esse ano, ou seja, suportada na natureza de formação sucessiva do facto tributário, o qual só o final do ano se completa, a situação aqui controvertida fica sujeita à lei fiscal em vigor nesse momento, ou seja, ao quadro estabelecido pela Lei 15/2010, de 26/7 vigente no final do ano de 2010, sujeitando-se à tributação autónoma prescrita pela conjugação dos artigos 10°/1-b), 43°/3 e 72°/4 do CIRS, sem que a legalidade ou violação de lei que lhe vinha apontada pela douta sentença sob recurso se verifique.

K) Ao não decidir neste sentido, sentença sob recurso fez desacertada interpretação dos normativos aplicáveis, designadamente do art. 11° da LGT, dos artigos 12° da LGT e do Código Civil, dos artigos 10°11-b), 43°/3 e 72°/4, todos do CIRS e dos artigos 2° e 5° da Lei 15/2010, de 26/7, pelo que não deve manter-se.

Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de Vossas Ex.as, deverá ser concedido provimento ao presente, com o que se fará como sempre JUSTIÇA


Contra-alegou a contribuinte concluindo da forma seguinte:

I) Está em causa nestes autos a tributação em sede de IRS da mais-valia apurada com a alienação onerosa de 800 acções da sociedade B…………. SA, realizada em 19 de Abril de 2010.

lI) A Administração Tributária fez incidir sobre essa mais-valia a tributação autónoma de 20% que incidiu sobre 50% do respectivo quantitativo, por aplicação conjugada dos artigos 10º, n° 1, alínea b), 43°, n°3, e 72°, n°4, do CIRS, na redacção que lhes foi dada pela Lei n° 15/2010, de 26 de Julho.

III) A Impugnante considera que essa liquidação é ilegal por implicar uma aplicação retroactiva de normas fiscais ao arrepio das regras de interpretação da lei aplicáveis.

IV) O Tribunal recorrido veio confirmar essas ilegalidades, determinado a anulação da correlativa liquidação de IRS.

V) Apesar disso, a Fazenda Pública levou recurso, sem apresentar alegações que contraditassem de forma fundada a douta Sentença recorrida.

VI) Fê-lo procurando contorná-la, com base na tese de que a mais-valia realizada no dia 19 de Abril de 2010 era afinal um facto tributário de formação sucessiva, repescando a Jurisprudência do Acórdão n°399/10 do TC.

VII) Fê-lo, porém, sem sustentação na lei, como aliás acaba por reconhecer nas próprias alegações, confundindo facto gerador com o processo de determinação do rendimento colectável, onde o legislador recorre à expressão “saldo” entre as mais-valias e menos-valias.

VIII) Fê-lo, ainda, ao arrepio da melhor doutrina, pretendendo dar carácter potencial a um ganho que o legislador apenas pretendeu tributar quando efectivamente realizado, interpretação que poria em causa toda a coerência das normas de incidência e de determinação do rendimento colectável em sede de mais-valias.

IX) Pretendeu aplicar analogicamente uma decisão do TC que, além de controversa, pelo número de votos vencidos, nada tem a ver com a questão aqui controvertida.

X) Significa isto que não fundamentou as razões pelas quais pretende ver revogada a douta Sentença do Tribunal a quo.

XI) Não fundamentou, aliás, porque assiste razão ao TAFL, quando julgou procedente a Impugnação Judicial apresentada contra a liquidação de IRS.

XII) Efectivamente, a Lei n° 15/2010, de 26 de Julho, estabeleceu expressamente a sua entrada em vigor — no dia seguinte ao da sua publicação.

XIII) Se o legislador da Lei n° 15/2010 pretendesse o contrário, tê-lo-ia dito; não o tendo feito remeteu o intérprete para as regras gerais de interpretação.

XIV) Essas regras são as do CC e da LGT.

XV) Tais regras não consentem a aplicação da nova lei a factos tributários ocorridos anteriormente à sua entrada em vigor.

XVI) Não se está perante um facto tributário de formação sucessiva, mas perante um facto tributário que ocorreu em 19 de Abril de 2010, isto é, anteriormente à entrada em vigor da nova lei.

XVII) Ainda que assim se não entendesse, o que só por absurdo se admite sem conceder, deveria atender-se à Jurisprudência firmada no Acórdão 310/2012 do TC, o que implicaria, mutatis mutandis, que apenas se sujeitariam ao regime da nova Lei as mais-valias que viessem a ser realizadas a partir de 27 de Julho, inclusive.

XVIII) Assim sendo, decidiu bem o Tribunal recorrido, quando determinou que a nova redacção dada ao artigo 10°, n° 11, do CIRS, bem como a revogação do n°2 do mesmo artigo, apenas se aplicam após a entrada em vigor da Lei n° 15/2010.

XIX) Assim sendo, deve a Sentença recorrida ser confirmada pelo Supremo Tribunal Administrativo e negar-se provimento ao Recurso interposto pela Fazenda Pública.
Termos em que, com o douto suprimento de VV. Exas., deve o Recurso apresentado pela Fazenda Publica ser julgado improcedente e confirmar-se a douta Sentença do Tribunal recorrido, que julgou procedente a impugnação judicial apresentada contra a liquidação de IRS de 2010, no montante total de € 150.457.57, e que veio determinar a sua anulação com todas as consequências legais.

Assim se fará a costumada JUSTIÇA!

O EMMP pronunciou-se emitindo o seguinte parecer:

Questão decidenda: incidência de tributação de IRS sobre as mais-valias resultantes da alienação onerosa de acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, obtidas antes da revogação do art.10° n°2 CIRS pelo art.2° Lei n° 15/2010, 26 Julho
1.As mais-valias constituem incrementos patrimoniais sujeitos a IRS (rendimentos da categoria G), desde que não considerados rendimentos de outras categorias (arts.1° n°1 e 9° n°1 al.a) CIRS)
Constituíam mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultavam da alienação onerosa de partes sociais e de outros valores mobiliários (art. 10° n° 1 al.b) CIRS); excluíam-se da tributação como mais-valias os ganhos resultantes da alienação onerosa de acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses (art.10° n°2 al.a) CIRS redacção DL n° 228/2002,31 Outubro)
O ganho sujeito a IRS é constituído pela diferença entre o valor de realização (alienação onerosa) e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais (art. 10° n°4 CIRS)
O art.2° Lei n° 15/2010,26 julho, com início de vigência no dia seguinte ao da sua publicação, revogou a norma excludente constante do art.10° n°2 CIRS (arts.2° e 5°) O ganho consubstanciante da mais-valia considera-se obtido na data da alienação onerosa das partes sociais ou dos valores mobiliários (art. 10° n°3 CIRS)
Este ganho, correspondente ao facto tributário gerador da obrigação de imposto, está indissociavelmente ligado à citada alienação onerosa.
2.A tese da recorrente Fazenda Pública incorre no erro de confusão conceptual entre facto tributário (ganho resultante da alienação onerosa) e matéria colectável das mais valias (50% do saldo positivo ou negativo, apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano) no caso de transmissões efectuadas por residentes em território nacional (art.43° n°s 1 e 2 CIRS)
Como corolário do princípio constitucional da irretroactividade dos impostos, as normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, em consonância com o princípio geral da aplicação das leis no tempo segundo o qual, na ausência de atribuição expressa de eficácia retroactiva, a lei só dispõe para o futuro (art. 103° n°3 CRP;art.12° n°1 LGT; art 12° n°1 CCivil)
O IRS é um imposto periódico incidente sobre o valor anual dos rendimentos das diversas categorias legais, obtido após as correspondentes deduções e abatimentos (art.1°n°1 CIRS)
A periodicidade anual do imposto não justifica a aplicação retroactiva da norma revogatória a factos tributários ocorridos em 19 abril 2010 (data da alienação onerosa das acções), antes do início da sua vigência em 27 julho 2010,sob pena de violação do princípio sobre a aplicação da lei tributária no tempo.
3.O acórdão Tribunal Constitucional n° 399/10, 27 outubro 2010 é inaplicável ao caso concreto na medida em que, após considerações sobre o princípio da irretroactividade das leis fiscais:
- emite pronúncia sobre questão distinta: aplicação do art.68° n°1 CIRS a todos os rendimentos auferidos no ano 2010 após as alterações introduzidas pela Lei n° 11/2010,15 junho (novo escalão para rendimento colectável superior a €150 000, sujeito à taxa de 45%) e pela Lei n° 12-A/2010,30 junho (aumento do valor da taxa de todos os escalões, incluindo o escalão e a taxa introduzidos pela Lei n° 11/2010,15 junho);
- não declara a inconstitucionalidade da norma constante do art,68° n°1 CIRS, nas sucessivas redacções conferidas pelos diplomas supra identificados
CONCLUSÃO
O recurso não merece provimento.
A sentença impugnada deve ser confirmada.

2 – FUNDAMENTAÇÃO

O Tribunal “a quo” deu como provada a seguinte factualidade:

1) Em 18/06/2002, por escritura pública do Cartório Notarial de Porto de Mós, C……………, farmacêutica, e marido, e, D……………, farmacêutica, e marido cederam à ora impugnante, A………., NIF ………….., residente na E………….., a quota de valor nominal de 4.000€, de que ela é titular na sociedade “D………, Lda”, pelo preço de 498.797,90€- Doc 6, fls.32-36;
2) Em 19/04/2010, a impugnante, A…………., NIF ……….., pelos contratos designados «Contrato de Compra e Venda de Valores Mobiliários», de fls. 25/ss, 28/ss e 30-31, transmitiu: à sociedade “ F…………. Lda”, 797 (das 800) acções nominativas de que era titular na sociedade “B………….., Lda” (SA) pelo preço de 1.992.500,00€; à G…………, farmacêutica, 02 (das 800) acções nominativas de que era titular na “B…….., Lda” (SA) pelo preço de 5.000,00€; e a H…………, 01 (das 800) acções nominativas de que era titular na dita “B………….., Lda” (SA) pelo preço de 2.500,00€ [tudo num total de 2.000.000,00€];
3) As referidas 800 acções resultaram da transformação em sociedade anónima da sociedade comercial por quotas que girou sob a firma “B…………. Lda”, em que a ora Impugnante detinha uma participação social adquirida, aquando da supra referida escritura pública de cessão de quotas;
4) No dia 26/07/2010, foi publicada no DR, Série I, n° 143, a Lei n° 15/2010, de 26/07, com o título sumariado «Introduz um regime de tributação das mais-valias mobiliárias à taxa de 20% com regime de isenção para os pequenos investidores e altera o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e o Estatuto dos Benefícios Fiscais.», cujo artigo 2° diz «Revogação de disposições no âmbito do Código do IRS» «São revogados os n°s 2 e 12 do artigo 10° do Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei n° 442-A/88, de 30 de Novembro.» e cujo artigo 5° tem a redacção seguinte: «Entrada em vigor» «A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua deve publicação.»
5) Em 2010, a impugnante obteve rendimentos do trabalho no valor de 58930,00€ e de mais-valias em acções o valor de 1.501.202,10€, conforme declaração de IRS mod. 3, entregue à AT em 23/06/011 (fls. 15) —doc 2, fls. 15 a 24 e fls. 2 a 13 do PA anexo;
6) Em 03/07/011, a AT procedeu à liquidação de IRS da impugnante, do ano de 2010, com o n° 20115004776403, de 150.457,57€ e juros compensatórios, ora impugnada — doc. 1, fls.14;
7) A presente impugnação deu entrada em 27/10/011, cfr. fls. 2.

3 – DO DIREITO
O meritíssimo juiz do TAF de Leiria, julgou a impugnação procedente por entender que: (destacam-se os trechos mais relevantes da decisão com interesse para o presente recurso).

“1.A……….., NIF ………….., farmacêutica, residente na E……………., veio deduzir impugnação judicial (artigos 99/ss, CPPT ¹ (Usaremos, por economia, a designação dos artigos sem o ordinal, como na linguagem falada, separando números e alíneas por hífen, na linha da doutrina defendida, entre outros, pelo Prof. Doutor Jorge Leite, da U. de Coimbra, p.ex. na comissão da AR, para o Código do Trabalho. Não usaremos espaço de parágrafo, dada a configuração-padrão geralmente aceite), da liquidação de IRS do ano de 2010 com o n° 20115004776403, de 150.457,57€ e juros compensatórios, alegando, em síntese, que:
Não existe norma de incidência à data dos factos (artigo 10-2, do CIRS);
O procedimento de liquidação adoptado pela Administração Tributária implicou uma aplicação retroactiva de normas de incidência que vieram a ser criadas por lei posterior à data dos factos (Lei n° 15/2010, de 26 de Julho);
Tal procedimento redunda numa aplicação da lei não conforme a lei (artigos 12, da LGT e 12, do CC) nem com a Constituição (artigo 103-3, CRP) — cfr. douta petição de fls. 2/ss.

2.A Exma. Representante Fazenda Pública (ERFP) juntou a douta contestação de fls. 45-50/ss, pugnando pela improcedência da impugnação, contra-alegando, em síntese, que, o artigo 10-2 do CIRS, - que excluía da tributação as mais-valias das acções - foi revogado pela Lei 15/2010,d e 26/07 (artigo 2°) e introduziu um regime de tributação dessas mais-valias; e ancora-se, ainda, do exemplo do artigo 68-1, do CIRS — novos escalões e aumento de taxa de IRS— por o Tribunal Constitucional (TC) não o ter declarado inconstitucional.

3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público (EMMP) emitiu o douto parecer de fls. 61, e, corroborando a contestação da ERFP, considera que sobre a aplicação retroactiva da taxa e sobre a não violação do princípio da confiança do artigo 103-3, da CRP, já se pronunciou o TC, no Ac. 399/10 e em situações semelhantes (de IRC) nos Ac. 128/09 e 18/11; devendo improceder a impugnação.
4. Questões a solucionar: sem prejuízo das instrumentais ou das prejudicadas: a interpretação e aplicação da lei no tempo, a legalidade da liquidação e a CRP.

II – SANEAMENTO
(…)

III – FUNDAMENTAÇÃO
1 - FACTOS:
Dão-se por provados os seguintes factos, com interesse para a presente decisão:
(…)

2 - DIREITO
2.1. Nos termos do artigo 1°-1, do CIRS, o IRS incide sobre o valor anual dos rendimentos das categorias ali mencionadas, mesmo quando provenientes de actos ilícitos, depois de efectuadas as correspondentes deduções e abatimentos.
Resulta do artigo 10-1-2 e 3, do CIRS, que constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: (...) alienação onerosa (...); cessão onerosa (...); operações relativas a (...); E (n°2) «excluem-se do disposto no número anterior as mais-valias provenientes da alienação de: a) Acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses; b) Obrigações e outros títulos de dívida.». N° 3: «3. Os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos actos previstos no n° 1, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes: (...) Nos casos de (...)» -destaque nosso.
A Lei 15/2010, de 26/07, foi publicada no DR, Série I, n° 143, desse dia, introduzindo um regime de tributação das mais-valias mobiliárias à taxa de 20% com regime de isenção para os pequenos investidores, para o que alterou o CIRS e o EBF.
Para o efeito, o seu artigo 1° deu nova redacção aos artigos 10, 43, 72, 119 e 123, do CIRS, aprovado pelo DL 442-A/88, de 30/11, passando o artigo 10°-lI a ter seguinte redacção: «(...) 11- Os sujeitos passivos devem declarar a alienação onerosa das acções, bem como a data das respectivas aquisições.(...)» .
Para o mesmo efeito, o seu artigo 2° dispôs que «São revogados os nºs 2 e 12 do artigo 100 do Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-A. /88, de 30 de Novembro.».
Para o mesmo efeito ainda, o seu artigo 5°, sob a epígrafe «Entrada em vigor», estatuiu que «A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.». A AT entendeu que, visto que o artigo 2° revogou o artigo 10-2, do CIRS, que excluía, como vimos, a tributação das acções, devia aplicar o artigo 10º-11, na nova redacção, que, do mesmo passo, a Lei 15/2010 lhe deu. E liquidou o IRS da impugnante, em conformidade com este entendimento, secundado agora pelo referido douto parecer do EMMP.
No entanto, em nosso entendimento, semelhante interpretação viola as regras legais e doutrinais de uma hermenêutica criteriosa, como se procurará demonstrar. Antes do recurso à CRP é preciso ver se a lei ordinária, interpretada conforme os princípios da interpretação, resolve ou não a questão, pois, se resolver, o problema fica-se pela eventual violação de lei, sem necessariamente violar a CRP. E a CRP pode, também ela, dar contributos interpretativos para a lei ordinária, sem necessariamente ter de ser transformado o problema num problema constitucional.
E pode haver violação de lei e também violação da CRP.
O entendimento da AT começa por ignorar o artigo 5° e último, da L15/2010, que estatuiu que «A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.». Esta norma não tem apenas a ver regras de vacatio legis. Ela significa também, de acordo com o texto, ou seja a interpretação gramatical e declarativa, que não vigora de imediato, e também que não começa a vigorar desde um ponto do passado, mas sim que vigora apenas do dia seguinte ao da publicação em diante. É assim com todas as leis, nomeadamente tributárias, a começar pela LGT e pelo revogado CPT, por exemplo, mormente quando delas nada resulta expresso em contrário, como é por demais sabido e do dia-a-dia. Não se percebe por que razão, juridicamente válida, a regra interpretativa, de que a lei rege para o futuro, é aqui olvidada pela AT. Faz parte dos princípios da legalidade e do Estado de Direito que o legislador não pode querer atingir objectivos sem ser através da lei. E lei, é tanto a lei que cria de novo (uma lei nova), como a lei que já vigore e continue a vigorar no Ordenamento Jurídico. Ou seja, o legislador pode querer obter receitas fiscais, mas tem de o fazer por métodos legais e segundo as regras da interpretação balizadas pela CRP e determinadas pela lei pré existente que rege a vigência e interpretação, e os diplomas que sejam já pré existentes. Se o legislador da Lei 15/2010 pretendesse o contrário, di-lo-á. Se não o diz, é porque não quis e porque pretendeu remeter o intérprete para as regras gerais da interpretação. Salvo o muito respeito, no caso, não há interpretação consentânea com as regras da hermenêutica jurídica.
Todos os cidadãos e instituições, – e, acrescidamente, todos os entes públicos cuja acção está sujeita ao dever de objectividade, isenção e estrita legalidade, como é o caso da AT - devem obediência à lei. A lei também regula a interpretação, e esta interpretação tem de ser feita com muita parcimónia, sob pena de o intérprete se substituir ao legislador, ilegitimamente, e criar ele próprio leis à medida das suas conveniências ou “leis-medida”, ou que salvaguardem um particular interesse e não o interesse geral e colectivo.
Neste ponto da interpretação, o Código Civil (CC) é estruturante, no sentido de que constitui o núcleo normativo comum a todos os ramos do direito [sem prejuízo de normas especiais que ele mesmo ressalva]. Por isso há que ver as regras que contém, quanto à interpretação da lei e à sua aplicação no tempo.
Assim, a lei só se torna obrigatória depois de publicada no jornal oficial. Entre a publicação e a vigência da lei decorre o tempo que a própria lei fixar ou, na falta de fixação, o que for determinado em legislação especial [impõe-no o artigo 5°, do CC] ² (Quanto aos formulários dos diplomas legais, podem ver-se: Lei 6/83 de 29/07; DL 337/87, de 21/10; DL 113/88, de 08/04; DL 1/91, de 02/01 e actualizações.).
A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas [artigo 6°, do CC].
Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei. A revogação pode resultar de declaração expressa (revogação expressa), da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes (ou seja, revogação tácita) ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior. A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador. A revogação da lei revogatória não importa o renascimento da lei que esta revogara [artigo 7°, do CC].
O tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio. O dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo. Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito [artigo 8°, do CC].
A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados [impõe-no o artigo 9°, do CC].
Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos. Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei. Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema [artigo 10°, do CC].
As normas excepcionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva [artigo 11, do CC].
A lei só dispõe para o futuro: ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam á data da sua entrada em vigor [impõe -no o artigo 12, do CC).
A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza. A desistência e a confissão não homologadas pelo tribunal podem ser revogadas pelo desistente ou confitente a quem a lei interpretativa for favorável [artigo 13, do CC].
Estes meios ou mecanismos de interpretação, estabelecido no CC, traduzem o núcleo doutrinal sobre os elementos da interpretação literal (gramatical, linguística ou verbal) e da interpretação lógica (racional e teleológica, sistemática, e histórica), bem como o resultado do confronto de ambas (interpretação declarativa ou restritiva, extensiva, abrogante ou a analogia para integrar lacunas) que se encontra mais desenvolvido, entre outros, nos ensinamentos do Prof. MANUEL A. DOMINGOS DA COSTA ANDRADE, in Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, (tese de dissertação) e do Prof. FRANCESCO FERRARA, in Interpretação e Aplicação das Leis, traduzido por aquele mesmo mestre, publicados na Colecção Estudium, com aqueles títulos, 4ª Edição, 1987, Ed. Arménio Amado, Editor Sucessor, Coimbra, e que, salvo o devido respeito, ainda não foi ultrapassado por novas luzes. Não se justificando maior detalhe ou apoio de doutrina, passamos à LGT, porque, como lei Geral para as operações de imposto e outros tributos, comanda a estrutura a que obedece a legalidade fiscal.
A LGT regula as relações jurídico-tributárias [artigo 1°, da LGT]. Às relações jurídico-tributárias aplicam-se, sucessivamente, a LGT, o CPPT e os demais códigos e leis tributárias, incluindo a lei geral sobre infracções tributárias e o EBF, o CPA e demais legislação administrativa, o Código Civil e o CPC [artigo 2°, da LGT].
A tributação respeita os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material [artigo 5°-2, da LGT] ³ (Este preceito articula com o artigo 103, da CRP o com o artigo 5° do CPA.). Estão sujeitos ao princípio da legalidade tributária a incidência, a taxa, os benefícios fiscais, as garantias dos contribuintes, a definição dos crimes fiscais e o regime geral das contra-ordenações fiscais. Estão ainda sujeitos ao princípio da legalidade tributária: a liquidação e cobrança dos tributos, incluindo os prazos de prescrição e caducidade; a regulamentação das figuras da substituição e responsabilidade tributárias; a definição das obrigações acessórias; a definição das sanções fiscais sem natureza criminal; e as regras de procedimento e processo tributário 4 (Este preceito articula com os artigos 29 e 103 da CRP e com o artigo 3° do CPA.) [artigo 8°, da LGT].
A interpretação e aplicação no tempo, da lei fiscal, também tem regras específicas.
Assim, na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis, ou seja, os princípios e normas referidas, do CC, na parte que aqui releva. Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei. Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se á substância económica dos factos tributários. As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não ao susceptíveis de integração analógica [artigo 11, da LGT] 5 (Este preceito articula com o artigo 165-1-i) e n°2, da CRP.).
As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores á sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos. Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor. As normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes. Não são abrangidas pelo disposto número anterior as normas que, embora integradas no processo de determinação da matéria tributável, tenham por função o desenvolvimento das normas de incidência tributária [artigo 12, da LGT] 6 (Este preceito articula com o artigo 1°3-3, da CRP e com o artigo 1º, do CPA).
Perante este quadro de normas e princípios interpretativos, definidos pela lei geral, comum a todos os ramos do direito, e pela lei geral tributária, comum aos impostos e demais tributos, não vemos em que fundamentos legais e objectivos se alicerce a aplicação da lei nova, efectuada pela AT, pois que não se vê sequer espaço para uma dúvida fundada. O problema em presença não surge de uma interpretação, assente numa dúvida séria sobre o sentido da norma, mas antes de uma ausência de interpretação, por ausência de recurso ás normas legais interpretativas, que a regulam; assim criando uma dúvida onde não se vê em que o legislador pudesse ser mais claro. A AT tão-pouco expressa, mormente em despacho, de que meios legais interpretativos lançaram mão para chegar à aplicação da redacção dada ao artigo 10, do CIRS, pela Lei 15/2010, de 26/07 (lei nova); e a douta contestação também não o explicita inteiramente. Tomando as regras legais que comandam a aplicação das leis no tempo e que fornecem critérios legais e objectivos ao intérprete, não vemos onde é que a aplicação da Lei 15/2010, precise de mais do que a interpretação gramatical. Se bem vemos, a tirar do argumentário da douta contestação, o raciocínio foi este:
se o artigo que excluía a tributação foi revogado, então aplica-se a lei nova; e, por outro lado, é assim porque o TC já julgou assim casos idênticos.
Ora, no Direito, a interpretação e aplicação das leis no tempo não funciona com esta leveza de raciocínio. Se a revogação funcionasse com tal raciocínio simplista, então estaríamos perante um raciocínio não jurídico, não assente na lei, sem sustentação legal e completamente perverso; porque, se, sempre que uma lei antiga fosse revogada, se concluísse, automaticamente, sem mais parcimónia, pela aplicação da regulação da lei nova, quando o legislador nada disse, então ficaria aberta a porta à aplicação arbitrária da lei, possibilitando-se, ao aplicador e intérprete, a criação de normas de incidência fiscal, que só a Assembleia da República (ou o G) pode criar. Quanto ao argumento dos Acs. do V. Tribunal Constitucional, também não colhe. Em primeiro lugar, não há similitude, ao contrário do que se pretende. Na verdade, no caso do Ac. 399/10, de 27/10/2010, proc 523 e 524/10, não se criou nenhuma norma de incidência anteriormente inexistente, criaram-se escalões que se conjugaram com norma de incidência que já existia sobre a tributação, o que é suficiente para afastar a aplicação analógica ao caso presente. É certo que alguns escalões podem ter sido criados e não apenas agravados ou aumentadas as taxas, mas, ainda assim, são realidades diferentes. E a analogia não é permitida, também a este nível. Depois, com a devida vénia, não vemos como o douto aresto possa constituir um apoio interpretativo determinante para a liquidação, quando aquele venerando tribunal, votou o dito Acórdão por 6 votos, contra 5 votos de vencido.
Por fim, para se recorrer para o TC, posto que o tribunal recorrido não julgue ou recuse a aplicação de norma por inconstitucional, por princípio, devem esgotar-se as vias de recurso ordinário, a questão constitucional deve colocar-se logo ao primeiro decisor/aplicador e devem apreciar-se as ilegalidades, pois que, se as normas da lei ordinária sancionarem a questão, proibindo o procedimento respectivo, por imperativo da CRP, e houver clara violação de lei, não faz sentido pedir ao TC que proíba uma interpretação que a norma ordinária já proíba. Ou seja, se os citados preceitos do CC e da LGT já proíbem a interpretação, ou mais precisamente, a aplicação que a AT realizou, então há que pedir aos normativos que determinem a ilegalidade e violação da lei e não à CRP, que essas normas já salvaguardam.
Em conclusão, o douto Ac. 399/10, do v. TC, não se aplica ao caso, e também não possui força obrigatória geral. Sempre se dirá que, se fosse aplicável, alinhar-se-ia, pela conjugação dos 5 votos de vencido, para que remetemos. O que se alinhou quanto a este aresto do TC aplicámo-lo, mutatis mutandis, ao caso dos Ac. 18/2011 de 12/01/011, proc. 204/10, e 128/2009, de 12/03/009, Proc.772/2007, do mesmo venerando TC. Já o douto Ac. do STA, de 06/07/011, proc. 0281/11, embora não trate exactamente da questão destes autos, interpreta e contém doutrina que, mutatis mutandis, este tribunal também perfilha, designadamente quanto às regras de aplicação da lei nova no tempo.
Por conseguinte, não se acolhe a aplicação da lei nova, porque, nada autoriza a aplicá-la a factos do passado e tudo recomenda que apenas se aplica às situações posteriores à sua entrada em vigor.
Este tribunal não recusa a aplicação da Lei 15/2010, de 26/07 (lei nova), que revogou o citado preceito do artigo 10 do CIRS e lhe deu nova redacção, e não a considera inconstitucional por violação do invocado artigo 103-3, da CRP, porque dessa Lei 15/2010 não resulta qualquer aplicação retroactiva da norma fiscal. Do que se trata é, a nosso ver, de ilegalidade e violação de lei, que fere a liquidação impugnada e o procedimento que a suportou, pois viola, sem qualquer fundamento legal e objectivo, as normas de aplicação da lei no tempo e de interpretação. A Lei 15/2010, de 26/07 (lei nova), como lei tributária que é aplica-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, e não pode criar quaisquer impostos retroactivos [artigo 12, da LGT e do CC].
A Lei 15/2010, de 26/07, entrou em vigor no dia seguinte à publicação: 27/07/2010. O facto tributário consistiu na venda, ou seja a «alienação onerosa»., das 800 acções e ocorreu no dia 19/04/2010.
Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor [artigo 12, da LGT e do CC].
A lei vigente em 19/04/2010, era o artigo 10, do CIRS, cujo n°2, estabelecia que «excluem-se (...) as mais-valias provenientes da alienação de: a) Acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses; (...)».
A impugnante tinha as 800 acções em seu poder, desde a escritura de 18/06/2002. Constituem mais-valias os ganhos obtidos; e os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática do acto (previstos no n° 1, ou seja, da alienação onerosa) artigo 10-1-2 e 3, do CIRS.
Embora o IRS incida sobre o valor anual dos rendimentos das suas categorias [artigo 1° do CIRS] o facto tributário é a alienação ou cessão onerosa, no caso a venda das 800 acções em 19/04/2010, e o respectivo ganho.
Por isso, este concreto facto tributário não é de formação sucessiva e ficou perfeito, naquela data. Se nessa data estava excluído, como estava, não tinha que entrar no cômputo do IRS anual. Ou seja, transmitindo-se as acções por efeito do contrato de compra e venda e tendo sido pago o preço nessa data, o facto tributário ficou perfeito não havendo elementos de formação sucessiva para o futuro. E incidindo o IRS sobre os rendimentos anuais, e não sendo integrável, esse facto tributário, no conceito de “formação sucessiva” - que supõe uma formação gradual no tempo e ao contrário da verificação instantânea, e nem sequer contribui para o “quantum” anual do IRS, por estar excluído pela norma em vigor ao tempo da sua efectuação - a lei nova não tem aplicação.
Se fosse de formação sucessiva, e não é, como se disse, a Lei 15/2010 só se aplicaria ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor, ou seja após 27/07/010 [artigo 12, da LGT e do CC], o que também inquinaria a liquidação.
A tributação respeita os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material [artigo 5°-2, da LGT] 7 (Este preceito articula com o artigo 103, da CRP e com o artigo 5° do CPA.).
Estão sujeitos ao princípio da legalidade tributária a incidência, a taxa, os benefícios fiscais, as garantias dos contribuintes.
Estão ainda sujeitos ao princípio da legalidade tributária: a liquidação e cobrança dos tributos [artigo 8°, da LGT].
Tanto a nova redacção dada ao artigo 10°-II, do CIRS, como a correspondente revogação do artigo 10° – 2 e 12 CIRS, apenas se aplicam após a entrada em vigor da Lei 15/2010, ou seja de 27/07/2010 inclusive, em diante.
Assim, a liquidação viola os artigos 10°- lI, do CIRS, 10°-2 e 12 CIRS, antes e depois da redacção dada pela Lei 15/2010, de 126/07, bem como os artigos 2° e 5° desta Lei 15/2010, que, respectivamente revogaram o artigo 10°-2 e 12 e determinou que a lei entrava em vigor no dia seguinte à publicação, e ainda os artigo 11 e 12, da LGT, que disciplinam a interpretação da lei e a sua aplicação no tempo.
A liquidação viola também o princípio da incidência, porquanto, ao tempo do facto tributário, este (a alienação onerosa) estava expressamente excluído da tributação.
Consequentemente, a liquidação é ilegal e deve ser anulada.
2.2.Procede, pelo exposto, a impugnação devendo ser anulada a liquidação.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, julgo a presente impugnação procedente, por provada e anula-se a liquidação impugnada.”

DECIDINDO NESTE STA
No presente recurso questiona-se a decisão de 1ª Instância que considerou ilegal a liquidação de IRS efectuada, na consideração de que às mais valias geradas pela venda de acções em 19/04/2010 não se aplica a Lei 15/2010 de 26 de Julho.
A questão a decidir, está acertadamente enunciada pelo Mº Pº junto deste STA como sendo: incidência de tributação de IRS sobre as mais-valias resultantes da alienação onerosa de acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, obtidas antes da revogação do art.10° n°2 CIRS pelo art.2° Lei nº 15/2010, 26 Julho.

Esta questão obriga ao esclarecimento/indagação sobre quando se verificou o facto tributário. Importa apurar se a mais-valia realizada no dia 19 de Abril de 2010 é ou não um facto tributário de formação sucessiva defendendo a recorrente que o mesmo continua a formar-se já na vigência da nova lei, impondo-se apurar o saldo entre as mais-valias e menos-valias geradas no período de tributação pois o facto tributário em IRS verifica-se no último dia do período de tributação (ano civil).
De modo diverso, a recorrida sustenta que não se está perante um facto tributário de formação sucessiva, mas antes perante um facto tributário que ocorreu em 19 de Abril de 2010, isto é, anteriormente à entrada em vigor da nova lei.

O quadro legal:
Artº 1º do CIRS:
1 - O imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) incide sobre o valor anual dos rendimentos das categorias seguintes, mesmo quando provenientes de actos ilícitos, depois de efectuadas as correspondentes deduções e abatimentos:
(…)
Categoria E - Rendimentos de capitais;

Artº 10º nºs 1,2 e 3 do CIRS
Mais-Valias
1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados
rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:
(…)
b)Alienação onerosa de partes sociais, incluindo a sua remição e amortização
com redução de capital, e de outros valores mobiliários e, bem assim, o valor
atribuído aos associados em resultado da partilha que, nos termos do artigo
75.º do Código do IRC, seja considerado como mais-valia;
2 - (Revogado pelo artigo 2.º da Lei 15/2010, de 26/07). Antes tinha a seguinte redacção: Excluem-se do disposto no número anterior as mais-valias provenientes da alienação de:
a) Acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses.
b) (…)
3 - Os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos actos previstos no n.º 1, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes:
a) Nos casos de promessa de compra e venda ou de troca, presume-se que o
ganho é obtido logo que verificada a tradição ou posse dos bens ou direitos
objecto do contrato;
b) Nos casos de afectação de quaisquer bens do património particular a
actividade empresarial e profissional exercida pelo seu proprietário, o ganho
só se considera obtido no momento da ulterior alienação onerosa dos bens
em causa ou da ocorrência de outro facto que determine o apuramento de
resultados em condições análogas.
4 - O ganho sujeito a IRS é constituído:
a) Pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos
da parte qualificada como rendimento de capitais, sendo caso disso, nos
casos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1;
b)(…)
c) (…)
d) (…)
Artº 72º nº 4 do CIRS (versão em vigor até Março de 2010)
O saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias, resultante das operações previstas nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º, é tributado à taxa de 10%. (Redacção do DL192/2005, de 7 de Novembro - A vigorar a partir de 01.01.2006).
Artigo 72.º nºs 4 e 7 (Versão em vigor de Abril a Junho/2010)
Taxas especiais
4 - O saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias, resultante das operações previstas nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º, é tributado à taxa de 10%. (Redacção do DL192/2005, de 7 de Novembro - A vigorar a partir de 01.01.2006)
7 - Os rendimentos previstos nos n.ºs 4, 5 e 6 podem ser englobados por opção dos respectivos titulares residentes em território português. (Redacção dada pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23/09, que produz efeitos desde 01/01/2009)

Artigo 72.º nºs 4 e 7 (Versão em vigor de Julho a Dezembro/2010)

Taxas especiais
4 - O saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias, resultante das operações previstas nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º, é tributado à taxa de 20 %. (Redacção dada pelo artigo 1.º da Lei 15/2010, de 26/07)
7 - Os rendimentos previstos nos n.os 4, 5 e 6 podem ser englobados por opção dos respectivos titulares residentes em território português. (Redacção dada pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23/09, que produz efeitos desde 01/01/2009)

A Lei 15/2010 de 26/07, foi publicada no DR, Série I, nº 143, desse dia, introduzindo um regime de tributação das mais-valias mobiliárias à taxa de 20% com regime de isenção para os pequenos investidores, para o que alterou o CIRS e o EBF.
Para o efeito, o seu artigo 1° deu nova redacção aos artigos 10, 43, 72, 119 e 123, do CIRS, aprovado pelo DL 442-A/88, de 30/11, passando o artigo 10° nº 11 a ter seguinte redacção: «(...) 11- Os sujeitos passivos devem declarar a alienação onerosa das acções, bem como a data das respectivas aquisições.(...)» . Por sua vez o n.º 4 do art. 72.º do mesmo código passou a prever que: “O saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias, resultante das operações previstas nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º é tributado à taxa de 20%”.

Para o mesmo efeito, o seu artigo 2° dispôs que «São revogados os nºs 2 e 12 do artigo 10º do Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-A./88, de 30 de Novembro.».
Para o mesmo efeito ainda, o seu artigo 5°, sob a epígrafe «Entrada em vigor», estatuiu que «A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.».


Da aplicação retroativa da lei fiscal:

Permitimo-nos sobre esta matéria citar o ac. deste STA de 04/12/2013 tirado no recurso nº 01582/13 no qual o ora relator interveio como 2º Juiz Adjunto. Ali se pode ler: “ (…) O principio da proibição da retroatividade fiscal encontra-se consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição que dispõe que «Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».
Escreveu-se a respeito deste normativo no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 319/2012, que “Assim, para que o Estado possa cobrar um imposto ele terá que ser previamente aprovado pelos representantes do povo e terá que estar perfeitamente determinado em lei geral e abstrata, só assim se evitando que esse poder possa ser exercido de forma abusiva e arbitrária, indigna de um verdadeiro Estado de direito.
Por outro lado, o mesmo princípio da legalidade não poderá deixar de impedir que a lei tributária disponha para o passado, com efeitos retroactivos, prevendo a tributação de atos praticados quando ela ainda não existia, sob pena de se permitir que o Estado imponha determinadas consequências a uma realidade posteriormente a ela se ter verificado, sem que os seus atores tivessem podido adequar a sua atuação de acordo com as novas regras.
Esta exigência revela as preocupações do princípio da proteção da confiança dos cidadãos, também ele princípio estruturante do Estado de direito democrático, refletidas na vertente do princípio da legalidade, segundo o qual, a lei, numa atitude de lealdade com os seus destinatários, só deve reger para o futuro, só assim se garantindo uma relação íntegra e leal entre o cidadão e o Estado.
É neste sentido que deve ser entendida a opção do legislador constituinte de, na revisão constitucional de 1997, consagrar no artigo 103.º, n.º 3, a regra da proibição da retroactividade da lei fiscal desfavorável. Com esta alteração constitucional não se visou explicitar uma simples refração do princípio geral da proteção da confiança dos cidadãos, inerente a toda a atividade do Estado de direito democrático, mas sim expressar uma regra absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis criadoras ou agravadoras de impostos, prevenindo, assim, a existência de um perigo abstrato de grave violação daquela confiança.
O Tribunal Constitucional tem vindo a seguir o entendimento que esta proibição da retroatividade, no domínio da lei fiscal, apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei (v.g. acórdãos n.º 128/2009, 85/2010 e 399/2010, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).”
Mais se note que a propósito da aplicação da lei tributária no tempo rege o art. 12.º da Lei Geral Tributária entre o mais que,
“1. As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos.
2. Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.”
Tecidas estas considerações vejamos se na situação dos autos ocorreu a aplicação do retroativa das alterações ao CIRS introduzidas pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho.
Para isso importa que, previamente, se analise o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e especificamente a tributação das mais-valias mobiliárias em sede de IRS.
A respeito do IRS, no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 399/10 deu-se conta que “O IRS caracteriza-se, em primeiro lugar, por ser um imposto directo, em que se tributam os rendimentos das pessoas singulares. Este imposto assenta em factos tributários de formação sucessiva, sendo que o facto tributário sujeito a imposto só está completo no último dia do período de tributação. O facto tributário que dá origem ao imposto é, pois, complexo.
A configuração do elemento temporal do facto tributário é, no IRS, duradoura, pelo que se trata de um imposto periódico. Ou seja, a relação jurídica fonte da obrigação de imposto tem na sua base situações estáveis que se prolongam no tempo.
Nos termos do artigo 22.º, n.º 1, do CIRS, “o rendimento colectável em IRS é o que resulta do englobamento dos rendimentos das várias categorias auferidos em cada ano, depois de feitas as deduções e os abatimentos”. Ou seja, trata-se de um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si (embora a retenção na fonte possa, por vezes, obnubilar esta realidade), mas sim o englobamento de todos os rendimentos recebidos num determinado ano. O que significa que só no final do ano de 2010 se pode apurar a taxa do imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere.
Acresce ainda que as normas relativas à caducidade do direito à liquidação e à prescrição apontam igualmente no sentido do carácter anual do imposto. Assim, o artigo 45.º, n.º 4, da LGT estabelece que nos impostos periódicos o prazo de caducidade se conta a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e o artigo 48.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, determina que as dívidas tributárias prescrevem nos impostos periódicos, no prazo de oito anos, contados a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário. Quer dizer, para efeitos de caducidade do direito à liquidação e de prescrição cada facto gerador de rendimento individualmente considerado não é por si só considerado um facto tributário autónomo.”
No que se reporta às mais-valias estas constituem aumentos inesperados do valor dos ativos patrimoniais, não sendo por definição um rendimento-produto, por não constituírem a contrapartida da participação na atividade produtiva (cf. neste sentido, José Guilherme Xavier de Basto, IRS Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, p. 379).
Um dos princípios gerais da sua tributação é, desde logo, o princípio da realização, isto é, só há tributação quando a mais-valia é realizada, quando o ativo é transacionado, excluindo-se de tributação os aumentos de valor dos ativos que não tenham sido objeto de alienação onerosa. O que se justifica por razões de dificuldades administrativas, as dificuldades de liquidez e a dificuldade de compreensão da tributação de meros paper gains.
Em sede de IRS, o art. 10.º, n.º 1, al. b) do Código insere no campo de incidência da tributação as mais-valias de partes sociais e valores mobiliários, sendo que esta incidência supõe a realização da mais-valia, ou seja, a sua alienação onerosa. E é esta alienação onerosa o facto gerador (vd. José Guilherme Xavier de Basto, IRS Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, p. 397).
Como escreve José Guilherme Xavier de Basto (in IRS Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, p. 397 e 427) “No que respeita ao momento em que o imposto é exigível […] rege o n.º 3 do artigo 10.º, que estabelece, como regra geral, que os ganhos se consideram obtidos no momento da prática dos actos previstos no n.º 1”. Quer dizer, o facto gerador reporta-se ao momento do ato que “realiza” a mais-valia. Dir-se-á, em termos gerais, que o momento relevante é, pois, o da alienação do activo em que se apuraram mais-valias tributáveis, ou operação a ela equiparada.”. Daqui resulta que, em geral (opostamente ao que sucede na alínea b) deste normativo), a exigibilidade do imposto coincide com o momento em que se verifica o seu facto gerador.
Quanto ao seu regime fiscal, no caso das mais-valias mobiliárias ele passa pela não obrigatoriedade do englobamento das mais-valias tributáveis (72.º, n.º 7 do CIRS) e pela tributação a uma taxa especial (art. 72.º, n.º 4 do CIRS). E nos termos do art. 43.º, n. º 1 do CIRS o que se tributa nas mais-valias é “o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano”.
Assim, optando pelo englobamento os rendimentos de mais-valias (ou melhor o saldo entre mais-valias e menos-valias) serão adicionados aos demais rendimentos para que sejam tributados pela globalidade às taxas gerais aplicáveis à situação particular, em função da totalidade dos rendimentos englobados. Não optando pelo englobamento a mais-valia apurada é sujeita a tributação a uma taxa especial. (…)”. Fim de citação.

Ora, no caso dos autos estão em causa mais-valias provenientes da transacção de participações sociais sendo o facto gerador do imposto a sua alienação onerosa. A nosso ver e tal como se decidiu no acórdão supra referenciado estamos perante um facto tributário de formação instantânea que se esgota na realização da mais-valia (O imposto de mais – valias já era tido como de obrigação única - cf. Ac. do STA de 18.1.1995, P. 18287).
E, a este entendimento não obsta a circunstância de ser tributado “o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano”, pois que o que está em causa no art. 43.º, n.º 1 do CIRS é, ao lado das normas que regem a determinação do ganho sujeito a imposto, a determinação da matéria colectável no que se reporta aos rendimentos resultantes de mais-valias. Como muito bem defende a recorrida, não deve confundir-se o facto gerador do imposto com o processo de determinação do rendimento colectável.
Trata-se, como se refere no citado acórdão deste STA, de 04/12/2013, de uma situação semelhante às tributações autónomas em sede de IRC, onde se concluiu que “o facto de a liquidação do imposto ser efectuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de carácter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação [...]” [cf. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 310/2012].
Com efeito, também nas mais-valias resultantes da alienação de participações sociais o tributo incide sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, surgindo o facto gerador do tributo isolado no tempo. Simplesmente há uma consolidação anual das mais-valias e menos-valias para efeito de apuramento da matéria colectável, sobre a qual vai incidir a taxa especial ou que vai ser englobada aos rendimentos das demais categorias.
A similitude com as situações de tributação autónoma é ainda maior quando, o contribuinte não opta pelo englobamento, já que aqui ocorre verdadeiramente uma tributação separada, por aplicação de uma taxa fixa (vd. Rui Duarte Morais, Sobre o IRS; Almedina, 2.ª edição, p. 171). Ou seja, a taxa vai ser aplicada ao saldo anual, não havendo qualquer influência da grandeza desse saldo na determinação da taxa.
Tendo em conta que a “ (…) a linha demarcadora do âmbito da retroactividade fiscal constitucionalmente admissível passará, desde logo, pela distinção entre situações tributárias «permanentes» e «periódicas» e «factos» cuja eficácia fiscal se esgota ou se firma «instantaneamente», para cada um deles «de per si» (maxime, pela distinção entre «impostos periódicos» e «impostos de obrigação única»), e passará provavelmente, depois, no que concerne àquele primeiro tipo de situações, pela distância temporal que já tiver mediado entre o período de produção dos rendimentos e a criação (ou modificação) do correspondente imposto. Isto, de todo o modo, sem prejuízo do relevo de outras circunstâncias, cujo possível peso não poderá ignorar-se.” (Cfr. Cardoso da Costa, "O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal", in Perspetivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição, Vol. II, Coimbra, 1997, p. 418).
Entendemos pois, como se defendeu no aresto a que vimos fazendo referência, que no caso da tributação das mais-valias estamos perante um tributo de obrigação única, incidindo sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, sem prejuízo de a matéria coletável ser apurada anualmente. É que nos termos do n.º 3 do artigo 10.º do Código do IRS os ganhos, qualificados como mais-valias, resultantes da alienação onerosa de valores mobiliários, consideram-se obtidos no momento da prática do acto de alienação destes, sendo esse, pois, o da alienação (e não o do apuramento da matéria colectável, da declaração, da liquidação, ou outro) o momento relevante para efeitos de determinação da aplicação no tempo da lei nova quando esta não disponha em sentido diverso. Ora, a Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, como se disse não estabeleceu nenhum regime transitório estabelecendo apenas que entraria em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (cfr. o seu artigo 5.º), razão pela qual se deve entender, em conformidade com o disposto no n.º 1 dos artigos 12.º da Lei Geral Tributária e do Código Civil, que as alterações por ela introduzidas ao regime tributário em IRS das mais-valias mobiliárias se aplicam apenas aos factos tributários ocorridos em data posterior à sua entrada em vigor.

Face ao exposto vejamos, então, se ocorreu a aplicação retroactiva das alterações introduzidas pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho.

A Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho entrou em vigor no dia seguinte à sua publicação, não estabelecendo nenhum regime transitório.
Com a revogação do art. 10.º, n.º 2 do CIRS passaram, então, a estar também abrangidas pela norma de incidência, portanto não excluídas de tributação, as mais-valias obtidas com a alienação onerosa de participações sociais ainda que detidas há mais de doze meses.
Ou seja, eliminou-se a não sujeição tributária (art. 3.º, n.º 2 do EBF) prevista naquele art. 10.º, n.º 2 do CIRS (na redação anterior à Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho).

Ora, considerando que o facto tributário ocorre à data da realização da mais-valia, ou seja, no momento da sua alienação, a Administração Tributária ao tributar a totalidade do saldo anual das mais-valias e mais-valias realizadas pela Impugnante à taxa de 20%, e ao não atender a que a sua alienação ocorreu na totalidade antes de 26 de Julho de 2010 e que as mesmas já eram detidas, à data da sua alienação, há mais de 12 meses é manifesto que aplicou retroactivamente as alterações introduzidas pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, tratando-se de retroactividade autêntica constitucionalmente vedada pelo n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da República.
Assim, está vedada a eficácia retroactiva às alterações introduzidas pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, desde logo no que respeita à revogação da não sujeição tributária prevista no art. 10.º, n.º 2 do CIRS quanto às mais valias ditas de longo prazo, por as participações sociais serem detidas há mais de 12 meses como sucede no caso dos autos.

A título complementar deixamos expresso que, ainda que fosse de aceitar entendimento da AF de que estamos perante um facto jurídico-fiscal complexo de natureza sucessiva, sempre deveria ser tomado em conta o art. 12.º, n.º 2 da LGT o qual dispõe que: “se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor”. Ou seja, apenas podia ser tributado à taxa de 20% o saldo entre as mais-valias e menos-valias relativo ao período decorrido a partir de 27.7.2010, (alienação que no caso dos autos inexiste) sendo o saldo relativo ao período anterior a essa data tributado à luz das regras vigentes antes da entrada em vigor da lei nova – isto é, excluindo de tributação a alienação de acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses e tributando a alienação de acções detidas pelo seu titular durante menos de 12 meses à taxa de 10%.
Em apoio da linha de orientação defendida supra para além do acórdão do STA de 04/12/2013, podemos ver ainda o ac.do STA de 06/07/2011 tirado no recurso 0281/11 o qual embora verse sobre distinta matéria de facto aborda as questões da não retroactividade da lei fiscal em fundamentação muito elucidativa e esclarecedora.
Por tudo o que ficou dito consideramos, que nenhuma censura merece a sentença recorrida, a qual deve ser confirmada.

4- Decisão –
Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 8 de Janeiro de 2014. – Ascensão Lopes (relator) – Pedro DelgadoValente Torrão.