Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0200/13.3BEPDL
Data do Acordão:04/10/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FERNANDA ESTEVES
Descritores:IRS
BOLSA DE FORMAÇÃO
MÉDICO
Sumário:I - Apesar da designação que o legislador lhe atribuiu, o propósito da bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico.
II - Em consequência, a quantia atribuída mensalmente ao sujeito passivo a título de bolsa de formação constitui rendimento do trabalho dependente, enquanto remuneração acessória da remuneração principal e, por isso, fora da incidência objectiva da norma de exclusão da tributação [artigo 2.º n.ºs 3, al. b) e 8, al. c) do CIRS em vigor à data dos factos].
Nº Convencional:JSTA000P32083
Nº do Documento:SA2202404100200/13
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:AA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório
1.1. A Autoridade Tributária e Aduaneira vem, ao abrigo do disposto no artigo 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), interpor para este Supremo Tribunal recurso de revista do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28 de Fevereiro de 2019, que negou provimento ao recurso por si interposto da sentença do TAF de Ponta Delgada que julgara procedente a impugnação judicial deduzida por AA contra a liquidação de IRS relativa ao ano de 2009, respeitante à tributação de bolsa de formação paga a médico interno em regime de vagas preferenciais, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto.
Alegou, concluindo da seguinte forma:
a) Entende, a FP, que o acórdão recorrido incorreu em erro de interpretação e subsunção dos factos e do direito - em clara violação de lei substantiva -, o que afeta e vicia a decisão proferida, tanto mais que assentou e foi fruto de um desacerto ou de um equívoco;
b) In casu, o presente recurso é absolutamente necessário para uma melhor aplicação do direito, porquanto, em face das características do caso concreto, existe a possibilidade de este ser visto como um caso-tipo, não só porque contem uma questão bem caracterizada e passível de se repetir no futuro, como a decisão da questão suscita fundadas dúvidas, o que gera incerteza e instabilidade na resolução dos litígios;
c) Desta forma, mostra-se fundamental a intervenção do STA, na qualidade de órgão de regulação do sistema vocacionado para a correção de erros na apreciação do direito por parte das instâncias inferiores, como condição para dissipar dúvidas;
d) Quanto ao mérito do presente recurso entende, a FP, que estamos perante uma “situação limite” que, pela sua gravidade e complexidade justifica a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa para uma melhor aplicação do direito,
vejamos porquê:
e) A questão que aqui se coloca, é a de saber se a bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial, deve, ou não, ser tributada em sede de IRS;
f) Para o acórdão recorrido,
“Em resumo:
A bolsa de formação paga aos médicos internos em regime de vagas preferenciais, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto, não tem natureza remuneratória, mas meramente compensatória, não podendo ser tributada em sede de IRS.”;
g) Já para a FP, tendo em conta que a bolsa de formação paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial constitui um meio para obviar às carências de médicos em determinados serviços ou estabelecimentos, sem nexo direto com a formação médica e sem se encontrar exclusivamente relacionado com ela, deve ser tributada em sede de IRS como rendimento do trabalho;
h) Até porque, o seu propósito (da bolsa) confesso é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais, compensando-o – através da “bolsa” - pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico;
i) Todavia, o TCA Sul no acórdão recorrido pronunciou-se no sentido de negar provimento ao recurso, porquanto, entende que a FP:
«“(…), faz tabua rasa das desvantagens que a atribuição da mesma provoca na esfera jurídica do interessado e interpreta abusivamente, salvo o devido respeito, o acórdão do STA que cita, visto que neste não se tomou posição expressa sobre a questão, que nele é posta a título dubitativo. Tanto que a decisão é a de ordenar a baixa dos autos à primeira instância para ampliação da matéria de facto”.»;
j) Ora, como bem salienta o acórdão do STA de 31/01/2018 (proferido no processo n.º 01331/16), apesar da designação que o legislador lhe atribui, a bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial não deve ser considerada como uma prestação relacionada exclusivamente com ações de formação profissional dos trabalhadores e como tal excluída de tributação em IRS;
k) Até porque, o seu propósito confesso é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais e onde este vinha exercendo a profissão de medicina em regime de internato, compensando-o pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico;
l) Como bem salientou o STA no supra referido acórdão n.º 01331/16, a única diferença entre os médicos internos em regime de vaga normal e os médicos internos em regime de vaga preferencial, é que os médicos em regime de vaga preferencial recebem um acréscimo remuneratório a que se convencionou chamar de “bolsa” e, como contrapartida, ficam obrigados a permanecer no serviço por determinado lapso de tempo;
m) Ou seja, quer os médicos internos em regime de vaga normal quer os médicos internos em regime de vaga preferencial, celebram um contrato de trabalho a termo resolutivo incerto, ao abrigo do qual exercem a profissão de Medicina de forma remunerada, bem como, recebem a mesma formação especializada de cariz teórico e prático;
n) No entanto, para o TCA Sul, os médicos internos em regime de vaga preferencial não devem ser tributados pela totalidade dos rendimentos;
o) In casu, o TCA Sul tratou a questão aqui em crise de forma pouco consistente, resultante de ter considerado, nomeadamente, que o incumprimento do dever de permanência leva ao afastamento da natureza remuneratória da “bolsa”; mas
p) também, por ter considerado que os médicos internos em regime de vaga normal devem ter um tratamento fiscal diferente do dos médicos internos em regime de vaga preferencial, apesar de ambos celebrarem contratos iguais e receberem a mesma formação;
q) Em suma e salvo o devido respeito, poderemos afirmar que o acórdão recorrido incorreu em erro de interpretação e subsunção dos factos e do direito, em clara violação de lei substantiva, tanto mais que assentou e foi fruto de um desacerto ou de um equívoco, razão pela qual, no nosso entendimento, não deve manter-se, sendo, o presente recurso, absolutamente necessário para uma melhor aplicação do direito;
r) In casu, estamos perante uma “situação limite” que, pela sua gravidade e complexidade justifica a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa para uma melhor aplicação do direito.

1.2. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.3. O recurso de revista foi admitido por acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 10 de Março de 2021.

1.4. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de o acórdão recorrido dever ser revogado, julgando-se procedente o presente recurso de revista e, em substituição, julgar improcedente a acção de impugnação judicial intentada contra o acto de liquidação de IRS de 2009.
Cumpre decidir.

2. Fundamentação
2.1. Remete-se para a matéria de facto que consta da decisão recorrida, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida (cf. artigo 663.º, n.º 6, do CPC, aplicável ex vi do artigo 679.º do mesmo Código).

2.2. O direito
A questão que cumpre apreciar na presente revista, em conformidade com o acórdão que a admitiu, é a de saber se as quantias pagas a médicos internos em regime de vagas preferenciais, ao abrigo do n.º 8 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto, estão sujeitas a tributação em IRS, nos termos do artigo 2.º do CIRS.
Vejamos.
De acordo com o n.º 8 do artigo 12º- A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo Decreto - Lei nº n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro: “O preenchimento de uma vaga preferencial confere direito a uma bolsa de formação, que acresce à remuneração do interno, de valor e condições a fixar por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da Administração Pública e da saúde, sem prejuízo do recurso a outros regimes de incentivos legalmente previstos”.
No preâmbulo do referido Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro, ficou, além do mais, a constar o seguinte: “o presente diploma prevê a celebração de um contrato de trabalho em funções públicas com a administração regional de saúde ou com as Regiões Autónomas, na modalidade de contrato a termo resolutivo incerto ou, no caso de o interno ser titular de uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado constituída previamente, mediante comissão de serviço. O contrato vigora pelo período de duração estabelecido para o respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições e interrupções. (…) Nestes termos, prevê-se a atribuição de uma bolsa de formação aos médicos internos que preencham uma vaga preferencial, bem como a obrigatoriedade daqueles, após o internato, ficarem a realizar trabalho para o estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período não inferior ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições. Em caso de incumprimento desta obrigação, o interno terá de devolver a totalidade ou parte do montante da bolsa recebida (...)”.
Por seu turno, dispunha o artigo 2.º do CIRS, na redação então vigente:
“(…)
8 - Não constituem rendimento tributável:
(…)
c) As prestações relacionadas exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores, quer estas sejam ministradas pela entidade patronal quer por organismo de direito público ou entidade reconhecida como tendo competência nos domínios da formação e reabilitação profissionais pelos ministérios competentes.”
No acórdão recorrido decidiu-se pela natureza não remuneratória das prestações pecuniárias pagas à Recorrida/Impugnante, com a seguinte fundamentação: “(…) por constituir uma prestação paga em virtude da formação profissional dos médicos internos, tudo nos termos do artº.2, nº.8, al.c), do C.I.R.S., supra identificado, na redacção em vigor em 2011 (norma entretanto revogada pela Lei 82-E/2014, de 31/12 - Lei da Reforma do I.R.S.). Em conclusão, a bolsa de formação em causa não constitui uma remuneração acessória derivada de uma prestação de trabalho dependente, mas antes, um incentivo pecuniário atribuído, a título compensatório, no âmbito de um processo de formação profissional, ao médico interno que ocupe uma vaga preferencial, em contrapartida da obrigação por ele assumida de, findo o internato, permanecer ao serviço do estabelecimento onde se verificou a necessidade que deu lugar àquela vaga preferencial, por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada.”
Sucede que, como se disse no acórdão que admitiu a revista, a questão da tributação em IRS das “bolsas de formação pagas a médicos internos em regime de vagas preferenciais, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto” tem sido decidida por este STA, desde Janeiro de 2018 (acórdão de 31 de Janeiro, proferido no processo n.º 01331/16), em sentido diverso do decidido no acórdão recorrido, ou seja, no sentido de que tais prestações não estavam excluídas de tributação em IRS, ao menos ex vi do disposto na alínea c) do n.º 8 do artigo 2.º do Código do IRS.
Com efeito, relevando o facto de o propósito confesso da bolsa adicional paga aos médicos ser o de os compensar pela obrigação de permanência no serviço após a conclusão do internato médico, este Supremo concluiu que a quantia atribuída mensalmente ao sujeito passivo a título de bolsa de formação, assumindo a natureza de incentivo pecuniário associado ao exercício da actividade profissional do médico interno provido em vaga preferencial, constitui rendimento do trabalho dependente, enquanto remuneração acessória da remuneração principal, consequentemente fora da incidência objectiva da norma de exclusão da tributação [artigo 2.º, n.ºs 3, al. b) e 8, al. c), do CIRS em vigor à data dos factos] - cf. acórdãos STA de 31/1/2018, Processo n.º 01331/16 e de 8/5/ 2019, Processo n.º 02553/14.7BELRS.
Como ficou exarado no acórdão STA de 8/5/2019, Processo 02553/14.7BELRS, “parece evidente que aquilo que distingue uma vaga normal de uma vaga preferencial não é a existência de uma oferta formativa diferenciada ou alargada para os médicos internos que ocupam as vagas preferenciais, antes o facto de os médicos internos em regime de vaga preferencial assumirem a obrigação de, após o internato, exercerem funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial. Afigura-se-nos, pois, duvidoso que, apesar da designação que o legislador lhe atribui, a bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial deva ser considerada como uma prestação relacionada exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores e como tal excluída de tributação em IRS, como julgado pela sentença recorrida, pois sendo embora verdade a conexão desta com a formação especializada dos médicos que a recebem, o seu propósito confesso é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais e onde este vinha exercendo a profissão de Medicina em regime de internato, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico, como, aliás, é reconhecido pelo recorrido nas suas contra-alegações de recurso.
Como refere o MP o regime jurídico da formação médica não integra um conceito normativo de bolsa de formação, designadamente definindo-a como uma comparticipação compensatória nas despesas inerentes à formação do médico interno no decurso do internato e nos termos daquele regime jurídico a bolsa de formação é considerada um incentivo pecuniário que acresce à remuneração do interno. Acrescenta, ainda, que o auferimento da quantia a título de bolsa de formação em função da prestação de trabalho ou em conexão com a prestação de trabalho resulta claramente da circunstância de o incumprimento da obrigação de permanência do médico interno no estabelecimento onde se verificou a necessidade de provimento de vaga preferencial, por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada, implicar a devolução do montante percebido a título de bolsa de formação, na proporção do período do incumprimento, pelo que a quantia atribuída mensalmente ao sujeito passivo a título de bolsa de formação, assumindo a natureza de incentivo pecuniário associado ao exercício da actividade profissional do médico interno provido em vaga preferencial, constitui rendimento do trabalho dependente, enquanto remuneração acessória da remuneração principal, consequentemente fora da incidência objectiva da norma de exclusão da tributação (art. 2º n.ºs 3 al. b) e 8 al. c) CIRS em vigor à data dos factos).”
Este entendimento foi ainda posteriormente reiterado, designadamente nos acórdãos deste STA de 22/5/ 2019, de 29/5/2019, de 25/9/2019, de 21/11/2019, de 17/2/2021, de 13/7/2021, de 8/9/2021 e, mais recentemente, de 29/3/2023, proferidos respectivamente nos processos n.ºs 015/15.4BEPDL e 01744/13.2BELRS; 017/15.0BEPDL; 0401/15.0BEAVR, 016/15.2BEPDL, 0577/13.0BEAVR, 01044/15.3BESNT e 0439/14.4BECBR e 0700/13.5BEPNF, resultando desta jurisprudência uma resposta uniforme à questão aqui em causa.
E como bem refere o EPGA no seu parecer, este entendimento é o mais consentâneo com as razões subjacentes à atribuição da referida prestação pecuniária, ou seja, por no essencial assumir um incentivo pecuniário associado ao exercício de funções num determinado lugar após o internato (estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial) e não propriamente uma compensação por despesas acrescidas com a formação ou essencialmente em razão dessa formação, razões subjacentes à exclusão da tributação prevista na alínea c) do n.º8 do artigo 2.º do CIRS, na redacção à data aplicável, como se infere da acentuação da “exclusividade” da conexão da prestação com acções de formação.
Assim, face à jurisprudência pacífica e uniforme supra referida, a que se adere e, por isso, aqui também se reitera, impõe-se a revogação do acórdão recorrido com a consequente improcedência da impugnação judicial deduzida contra o acto de liquidação impugnado (IRS de 2009).

Em conclusão:
I - Apesar da designação que o legislador lhe atribuiu, o propósito da bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico.
II - Em consequência, a quantia atribuída mensalmente ao sujeito passivo a título de bolsa de formação constitui rendimento do trabalho dependente, enquanto remuneração acessória da remuneração principal e, por isso, fora da incidência objectiva da norma de exclusão da tributação [artigo 2.º n.ºs 3, al. b) e 8, al. c) do CIRS em vigor à data dos factos].
3. Decisão
Assim, pelo exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em:
a) Conceder provimento ao recurso;
b) Revogar o acórdão recorrido;
c) Julgar a impugnação judicial improcedente.

Custas pela Recorrida, em ambas as instâncias e neste STA, sem taxa de justiça (neste) porque não contra-alegou.
Lisboa, 10 de Abril de 2024 – Fernanda de Fátima Esteves (relatora) - João Sérgio Feio Antunes Ribeiro - José Gomes Correia.