Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0609/09
Data do Acordão:08/26/2009
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:MIRANDA DE PACHECO
Descritores:IFADAP
EXECUÇÃO FISCAL
COMPETÊNCIA
CONTRATO ADMINISTRATIVO
ACTO ADMINISTRATIVO
CONTRATO DE ATRIBUIÇÃO DE SUBSÍDIOS
Sumário:I - Os contratos celebrados entre o IFADAP (ora IFAP) e os beneficiários das ajudas no âmbito da Portaria n.º 195/08, de 24 de Março (Programa de Apoio à Modernização Agrícola e Florestal (PAMAF), são contratos de natureza administrativa.
II - O acto de natureza sancionatória de rescisão desse contrato e ordem de reposição dos montantes indevidamente recebidos, enquanto estatuição autoritária aplicadora do direito ao caso, define-se como acto administrativo.
III - Nos termos do artigo 148.º alínea a) do CPPT podem ser cobrados mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei, as dívidas ao Estado e outras pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo, sendo que a previsão constante do n.º 1 do artigo 155.º do CPA satisfaz a aludida exigência de lei expressa.
Nº Convencional:JSTA00065910
Nº do Documento:SA2200908260609
Data de Entrada:07/22/2009
Recorrente:IFAP - INST DE FINANCIAMENTO DE AGRICULTURA E PESCAS, IP
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF PONTA DELGADA PER SALTUM.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART280 N5.
CPA91 ART178 N1.
PORT 195/98 DE 1998/03/24 ART4 ART5 ART8 ART26.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC48233 DE 2002/04/24.; AC STA PROC30/02 DE 2002/04/10.; AC CONFLITOS PROC4/03 DE 2004/03/09.; AC STA PROC163/06 DE 2006/05/16.; AC TC PROC859/03 DE 2007/03/23.; AC STA PROC773/07 DE 2007/11/14.; AC STA PROC187/09 DE 2009/05/13.; AC STA PROC427/09 DE 2009/05/20.; AC STA PROC416/09 DE 2009/06/025.; AC STAPLENO PROC47543 DE 2000/05/02.; AC STA PROC1229/04 DE 2004/06/24.; AC STA PLENO PROC192/08 DE 2008/07/14.
Referência a Doutrina:FREITAS DO AMARAL DIREITO ADMINISTRATIVO PAG439 PAG440.
ESTEVES DE OLIVEIRA E OUTROS CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PAG811.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1-O Instituto de Financiamento de Agricultura e Pescas, IP (IFAP, IP) vem, ao abrigo do disposto no n.º 5 do artigo 280.º do CPPT, recorrer da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada que julgou improcedente a reclamação deduzida da decisão proferida pelo Chefe de Finanças de São ..., datada de 29 de Dezembro de 2008, nos termos da qual foi anulado o processo de execução fiscal n.º 2950200601001124 instaurado com vista à cobrança de um crédito do recorrente, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. A execução fiscal subjacente aos presentes autos funda-se em Certidão de Dívida em conformidade com o disposto conjugadamente no n° 3 do art° 149° e no art° 155°, ambos do CPA, com vista à recuperação de subsídio comunitário tido por indevidamente pago à Executada, acrescido de juros vencidos e vincendos até integral pagamento, calculados à taxa legal;
II. De acordo com o disposto nas als. a) e f) do n° 2 do art° 21° DL n° 209/2006, de 27 de Outubro, o INGA e o IFADAP viriam a ser extintos, sendo objecto de fusão, havendo as suas atribuições, com excepção das atribuições no domínio dos controlos ex-post, sido integradas no Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I. P. (IFAP IP) criado pelo DL n° 87/2007, de 27 de Março;
III. Como tal, o IFAP IP, enquanto sucessor dos ex-IFADAP e do ex-INGA, é a entidade credora da dívida exequenda, cujos legítimos interesses e direitos se acham afectados, no processo, pela Decisão reclamada;
IV. De acordo com a Jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Constitucional, bem como dos Tribunais Administrativos e Fiscais supra referidos, e em manifesta oposição com o entendimento do Tribunal a quo, os Contratos de Atribuição de Ajuda celebrados entre o ex-IFADAP e os respectivos Beneficiários dos subsídios neles mencionados são contratos administrativos e os actos da sua rescisão e/ou modificação unilateral com a consequente ordem de devolução das quantias correspondentes aos valores dos subsídios tidos por indevidamente recebidos constituem actos administrativos cuja legalidade é jurisdicionalmente sindicável graciosa e contenciosamente nos termos prescritos, respectivamente, no CPA e no CPTA;
V. O TC considerou no caso que apreciou, e em que, à semelhança do que sucede nos autos que estão na origem do presente recurso, contrariamente ao decidido na Sentença ora recorrida, estava em causa um contrato celebrado no âmbito da gestão de fundos públicos, inserida na actividade de fomento de interesses públicos através da atribuição de ajudas pelo IFADAP a particulares, tal contrato era administrativo, desde logo porque na respectiva regulamentação legal e convencional se consagravam cláusulas exorbitantes. Considerou ainda como sendo decisivo para a consideração como jurídico-administrativa da relação jurídica subjacente ao mesmo o facto de se ter atribuído natureza de título executivo às certidões de dívida emitidas pelo IFADAP (art. 53°, n.º 1, do DL 81/91 - e 8°, n° 1, do DL 311/94);
VI. De resto, que o acto subjacente à instauração da execução fiscal a que respeitam os presentes autos, constitui, efectivamente, prática de acto administrativo na acepção do art° 120º do CPA, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, resulta evidente da simples circunstância de o TC ter considerado como determinante na consideração do acto de rescisão e determinação da devolução das ajudas como acto administrativo o facto de estar em causa o exercício de um poder sancionatório e autoritário de pagamento de determinada quantia, o que decorre igualmente da referida natureza de título executivo das certidões de dívida. De facto, a dívida exequenda não emerge de incumprimento de contrato, mas do acto administrativo que determinou o seu pagamento;
VII. Tratando-se, o acto de rescisão e/ou modificação unilateral de Contrato de Atribuição de Ajuda, de acto administrativo por força do qual devem ser pagas a pessoa colectiva pública (in casa, ao IFAP IP) por ordem desta, prestação pecuniária, rege o disposto no art° 155° do Código do Procedimento Administrativo (CPA), que prescreve que, na falta de pagamento voluntário no prazo fixado, seguir-se-á o processo de execução Fiscal regulado no Código do Processo Tributário, sendo que, de acordo com o disposto no n° 3 do art° 149º do CPA, o cumprimento das obrigações pecuniárias resultantes de actos administrativos podem ser exigidos pela Administração nos termos do art° 155º, a douta Sentença ora recorrida está em contradição com estas normas ao considerar que os contratos celebrados pelo ex-IFADAP não estão subordinadas a normas de direito público, mas direito privado;
VIII. Resulta, assim, ser, a própria lei, no caso o CPA, contrariamente ao entendimento vertido na Sentença ora recorrida, que determina que a cobrança das quantias devidas por força de tal acto administrativo deva ser efectuada mediante o recurso ao Código de Processo e de Procedimento Tributário (CPPT) sendo vedada à Administração, a cobrança mediante o recurso às execuções comuns nos termos previstos no Código de Processo Civil (CPC);
IX. Como tal, fundando-se a dívida exequenda nos presentes autos em prática de acto administrativo de rescisão e/ou modificação unilateral de Contrato de Atribuição de Ajuda celebrado entre o Instituto e a Executada e por força do qual esta, por ordem daquele deve devolvê-la, a respectiva cobrança pode ser efectuada mediante o processo de execução fiscal, conforme o disposto na al. a) do n° 2 do art° 148° do CPPT, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, que entendeu estarmos perante um acto de direito privado e não público ao arrepio do entendimento da jurisprudência administrativa e fiscal;
X. Na verdade, ao contrário do decidido na douta Sentença ora recorrida, tem sido entendimento da jurisprudência administrativa e fiscal, que a atribuição de um poder com tal conteúdo à Administração constitui um factor determinante para a conclusão pela administratividade dos contratos em causa, tratando-se manifestamente de um poder outorgado à entidade administrativa, exorbitante do direito privado e que releva da respectiva supremacia jurídico - pública.
XI. Aliás, na sequência do exposto, na relação constituída no âmbito dos presentes autos, entre o ex-IFADAP e a beneficiária, de forma contrária à posição assumida pelo Tribunal a quo, o contraente público detém o poder de praticar actos administrativos no âmbito da execução do contrato que celebrou com o particular, o que não sucederia se estivéssemos no horizonte de um contrato de direito privado. (A este respeito cfr., entre outros, o acórdão citado do Tribunal Constitucional).
XII. Ao proferir a Sentença recorrida unicamente sustentada nos Sumários de 3 Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal a quo não teve em consideração, ainda que de forma remota, a jurisprudência da jurisdição administrativa e fiscal, designadamente a do Supremo Tribunal Administrativo, havendo-a preferido em detrimento desta última;
XIII. Assim, o Tribunal a quo ao decidir o indeferimento da Reclamação que esteve na origem do presente recurso está em manifesta oposição com as seguintes sentenças e acórdãos:
a) Acórdão do STA, proferido em 2 de Maio de 2000, no âmbito do Proc. n.° 045774, disponível em www.dgsi.pt
b) Acórdão do STA, proferido em 30 de Janeiro de 2002, no âmbito do Proc. n.° 046135, disponível em www.dgsi.pt
c) Acórdão do STA, proferido em 24 de Junho de 2004, no âmbito do Proc. n.° 01229/03, disponível em www.dgsi.pt
d) Acórdão do STA, proferido em 15 de Maio de 2006, no âmbito do Proc. n.° 0193/06, disponível em www.dgsi.pt
e) Acórdão do Tribunal Constitucional, proferido em 23 de Março, no âmbito do acórdão n.° 218/2007, no Proc. n.° 859/03 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc)
f) Acórdão da 3ª Secção do Tribunal Constitucional, proferido na Decisão Sumária n° 37/2008, proferida no Processo n° 1069/07 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc)
g) Acórdão da secção do contencioso tributário do STA, proferido em 14 de Julho de 2008, no âmbito do Proc. n.º 0192/08, disponível em www.dgsi.pt
h) Sentença datada de 23/12/2008, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, no âmbito do Processo n.º 1029/08.6BECBR, registada em Coimbra;
i) Sentença datada de 20/01/2009, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, no âmbito do Processo n.º 540/08.3BECTB, registada em Castelo Branco;
j) Sentença datada de 17/03/2009, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, no âmbito do Processo n.º 253/09.9BELRA, registada em Leiria;
l) Sentença datada de 03/03/2009, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, no âmbito do Processo n.º 44/09.7BECBR, registada em Coimbra;
m) Sentença datada de 25/03/2009, proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, 2. Unidade Orgânica, no âmbito do Processo n.º 286/09.5BELRS, registada em Lisboa;
n) Sentença datada de 02/04/2009, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, 2. Unidade Orgânica, no âmbito do Processo n.º 244/09.2BEALM, registada em Almada;
XIV. Bem, como, com o entendimento de que os contratos de atribuição de ajuda celebrados entre o IFADAP (ora IFAP) e os respectivos beneficiários dos subsídios nele mencionados, não estão subordinados a normas de direito público, mas às normas de direito privado, violou, pelo menos, o disposto nos art°s 120°, 149° e 155° do CPA e 148° e 176° do CPPT, tanto mais que tal forma de extinção do processo de execução fiscal nem sequer corresponde a nenhuma das formas previstas nesta última disposição legal;
XV. Consequentemente, a Sentença recorrida deve ser revogada, por oposição manifesta ao entendimento da jurisprudência Administrativa e Fiscal, no sentido de que os contratos de Atribuição de Ajudas do ex-IFADAP são contratos administrativos e de que o acto de rescisão por incumprimento do clausulado do contrato e a devolução das ajudas atribuídas, é um acto administrativo, de rescisão sanção, que traduz precisamente o poder de fiscalização e sancionatório em causa, e que não seria admissível caso o regime do contrato fosse privado (sobre esta questão se pronunciou já, aliás, o Supremo Tribunal Administrativo, nas doutas sentenças supra melhor referidas, defendendo o entendimento de que em causa está um contrato administrativo, e, com a rescisão sancionatória, um acto administrativo, estando subjacente a ambos uma relação jurídico-administrativa);
XVI. Sendo que, o acto de rescisão do contrato celebrado entre o ex-IFADAP e a Executada/beneficiária e respectiva reposição das quantias indevidamente recebidas, é, na acepção do disposto no artigo 120.° do CPA e conforme jurisprudência administrativa e fiscal supra melhor referenciada, um acto administrativo, e, como tal a Sentença recorrida, além de revogada, deve ser substituída por outra que julgue procedente a Reclamação, considerando que o contrato de Atribuição de Ajudas do ex-IFADAP celebrado com a Executada é um contrato administrativo e que o acto de rescisão por incumprimento do clausulado do contrato e respectiva devolução das ajudas atribuídas, é um acto administrativo, de rescisão - sanção, que traduz precisamente o poder de fiscalização e sancionatório em causa, o qual não seria admissível caso o regime do contrato fosse privado e, consequentemente, ordene o prosseguimento da execução fiscal oportunamente instaurada.
2- A Fazenda Pública não contra-alegou.
3- O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer nos seguintes termos:
Recorrente: IFAP - Instituto de Financiamento de Agricultura e Pescas, I.P.
Objecto: Apurar se a cobrança de dívidas ao IFAP, antigo IFADAP, decorrentes de acto de rescisão de um contrato de ajuda financeira, é da competência dos respectivos serviços de finanças.
FUNDAMENTAÇÃO
O recurso para o Supremo Tribunal Administrativo previsto no n.º 5 do artigo 280.° do CPPT exige que a decisão recorrida perfilhe solução oposta relativamente ao mesmo fundamento de direito e na ausência substancial de regulamentação jurídica, com mais de três sentenças do mesmo ou outro tribunal de igual grau ou com uma decisão de tribunal de hierarquia superior, transitadas em julgado. Já se encontra documentado nos autos o trânsito em julgado de diversos acórdãos deste tribunal, pelo que está satisfeito este último requisito legal.
O objecto do recurso reside no facto da decisão recorrida ter julgado improcedente a reclamação do IFAP da decisão proferida pelo Chefe de Finanças do Serviço de Finanças de ..., que entendendo que o crédito exequendo não era de natureza tributária, procedeu à anulação do processo de execução fiscal, que visava a cobrança de um crédito da reclamante. Esta decisão está em oposição, entre outras, com a proferida por este Supremo Tribunal, no recurso 192/08, já transitado em julgado.
As decisões em oposição pronunciaram-se de modo diferente relativamente à possibilidade ou impossibilidade de utilização do processo de execução fiscal para cobrança dos créditos do extinto IFADAP, actual IFAP, nos termos do artigo 148, n.º 2, alínea a) do CPPT.
Para decidir esta questão controvertida torna-se necessário apurar, previamente, se os contratos de ajuda celebrados entre o IFADAP (ora IFAP) e os respectivos beneficiários são ou não contratos administrativos.
Trata-se de uma questão jurisprudencialmente controversa, porquanto o STJ tem vindo a pronunciar-se no sentido destes contratos serem de direito privado, enquanto o STA se tem pronunciado no sentido de os mesmos se inserirem numa relação jurídica administrativa.
O tribunal Constitucional no acórdão 218/2007, de 23 de Março, além de ter julgado organicamente inconstitucional, por violação do artigo 168.°, n.° 1, alínea q), da Constituição da República Portuguesa, na versão decorrente da revisão de 1989, a norma constante do artigo 53.°, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 81/91, de 19 de Fevereiro, que determina a competência dos tribunais civis para as execuções instauradas pelo IFADAP, organismo pagador das ajudas previstas nesse diploma, também entendeu ter natureza administrativa a relação jurídica estabelecida entre os particulares e aquele Instituto.
Na verdade aquele Tribunal decidiu que “resulta da revisão constitucional de 1989 que a jurisdição administrativa passou a ser a jurisdição “comum” para o conhecimento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas: assim, enquanto anteriormente, nos casos em que não resultava expressamente da lei qual a jurisdição competente para decidir determinada causa, se entendia que eram competentes os “tribunais judiciais”, depois da revisão constitucional de 1989, não existindo norma legal a definir concretamente qual a jurisdição competente, há que indagar qual a natureza da relação jurídica de que emerge o litígio e, se se concluir que possui natureza administrativa, então impõe-se o reconhecimento de que competente é a jurisdição administrativa, como jurisdição “comum” para a apreciação de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.”
O que está aqui em causa é um acto de rescisão pelo IFAP de um contrato de ajuda financeira celebrado entre si e o executado. Este acto tem sem dúvida a natureza administrativa. Como se refere no acórdão de 16/10/2003, recurso n.° 47.543, da Secção de Contencioso Administrativo do STA “a determinação da natureza jurídica dos actos praticados pela administração no âmbito da execução dos contratos administrativos por si celebrados exige uma apreciação casuística para se poder discernir, em cada situação concreta, se a pronúncia administrativa traduz uma declaração de vontade negocial, integrando um direito potestativo de génese contratual, ou se, pelo contrário, traduz uma estatuição autoritária aplicadora do direito no caso, devendo tal dúvida ser dissipada através de critérios de ordem material, como sejam as causas jurídicas da conduta adoptada, o seu conteúdo dispositivo e o sentido e efeitos a que naturalmente tende”.
Tendo as ajudas em vista a prossecução de interesse público em que o particular aparece a preencher as condições previamente fixadas pela administração, para a realização desse interesse público, entendemos que o contrato celebrado nesses termos reúne as características de um contrato administrativo.
Aliás, o acto unilateral de rescisão e de determinação de devolução de ajudas do Contrato de Atribuição de Ajuda, assume a natureza de verdadeiro acto administrativo, na acepção do artigo 120.° do CPA, quanto mais não seja porque configura o exercício de um poder sancionatório e autoritário de pagamento de determinada quantia, que tem origem na sua natureza jurídica pública.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sido unânime em considerar a natureza administrativa ao acto do IFADAP que ordena a restituição de subsídios. Vão neste sentido os acórdãos de 02/05/2000, recurso n.° 45774; de 24/06/2004, recurso n.° 1229/03; de 16/05/2006, recurso 193/06; de 31/01/2008, recurso n.° 727/07; de 13/05/2009, recurso n.° 187/09 e de 25/06/2009, recurso n.° 416/09.
Nestes termos entendemos dever ser dado provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que julgue procedente a reclamação, em conformidade com a jurisprudência deste Supremo Tribunal.
Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, cumpre decidir.
4- A decisão sob recurso tem o seguinte teor integral:
IFAP - Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, IP, vem apresentar reclamação, nos termos dos artigos 276° e sgs. do Código de Procedimento e de Processo Tributário, de decisão proferida pelo Chefe de Finanças do Serviço de Finanças de ... de 29 de Dezembro de 2008 que, entendendo que o crédito exequendo não era de natureza tributária, procedeu à anulação do processo de execução fiscal n° 2950200601001124, que visava a cobrança de um crédito do reclamante.
Defende este, em suma, que a execução fiscal subjacente à presente reclamação se funda em certidão de dívida em conformidade com o disposto no n° 3 do artigo 149° e no artigo 155°, ambos do CPA. Sendo os contratos de atribuição de ajuda celebrados entre o ex-IFADAP e os respectivos beneficiários dos subsídios neles mencionados contratos administrativos, constituindo os actos da sua rescisão e/ou modificação unilateral, com a consequente ordem de devolução das quantias correspondentes aos valores dos subsídios tidos por indevidamente recebidos, actos administrativos cuja legalidade é jurisdicionalmente sindicável graciosa e contenciosamente, nos termos prescritos no CPA e no Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pelo a decisão reclamada enferma do vício de violação de lei, em infracção ao disposto nos artigos 120°, 149° e 155° do CPA, em conjugação com os artigos 148°, n° 2, alínea a), e 162°, alínea c), do CPPT, deve ser revogada e substituída por outra que ordene a tramitação do processo de execução.
Notificada, a Fazenda Pública pugnou pela não procedência da pretensão do reclamante.
O tribunal é o competente. As partes, com personalidade e capacidade, são legítimas. Não há nulidades, outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer neste momento.
O cerne da questão em análise cinge-se à interrogação sobre se os contratos de atribuição de ajuda celebrados entre o IFADAP (ora IFAP) e os respectivos beneficiários dos subsídios neles mencionados são ou não contratos administrativos.
Na esteira do defendido na sustentação do despacho reclamado, entendo que os referidos contratos consubstanciam exercício de actividade privada de concessão de empréstimos, no âmbito da gestão de uma linha de crédito, não estando subordinada a normas de direito público.
Nesse sentido, se pronunciaram, aliás, os acórdãos que infra se identificam e dos quais se transcreve o respectivo sumário, constante de www.dgsi.pt.
STJ 22.05.2003 (Luís Fonseca)
«1 - Os contratos celebrados entre o recorrente e o IFADAP têm natureza privada, tendo a rescisão efectuada a natureza de declaração negocial e não de acto administrativo. II- Os tribunais comuns são os materialmente competentes para conhecer da causa»
STJ 18.11.2004 (Ferreira Girão)
«Os contratos de atribuição de ajudas pelo IFADAP, ao abrigo do Regulamento (CEE) n° 797/85, de 12 de Março, do Conselho das Comunidades Europeias (CCE), são contratos de direito privado».
STJ 8.04.2008 (Sousa Leite)
«I - Sendo definido como contrato administrativo o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa, verifica-se, porém, e desde logo, que o negócio jurídico celebrado, que constitui um contrato de financiamento à agricultura, não se integra no leque dos contratos administrativos, que, como tais, o legislador designadamente tipificou - arts. 178° do CPA/91 e 9° do ETAF/84, diplomas vigentes à data da publicação daquele citado DL n.° 31/94.
II – Do diploma estatutário do IFADAP (DL n.° 414/93, de 23-12) resulta que o contrato outorgado não colhe qualquer enquadramento no exercício, por parte daquele, de qualquer actividade subordinada às normas de direito público, mas outrossim se inserindo no âmbito da actividade privada pelo mesmo desenvolvida, no caso presente no domínio da gestão das linhas de crédito aplicadas para o desenvolvimento do sub- sector da pecuária.
III - Como factor adjuvante de que a intervenção do IFADAP nos contratos de atribuição de ajudas comunitárias (contratos de financiamento) ocorre despojada de qualquer vis autoritas, portanto, em pé de igualdade com os respectivos beneficiários, ou seja, no puro âmbito do direito privado, decorre do estatuído no n.° 3 do art. 8° do DL n.° 31/94, onde se dispõe que para as execuções instauradas pelo IFADAP ao abrigo do presente diploma é sempre competente o foro cível da comarca de Lisboa.
IV - Os contratos de concessão de ajudas comunitárias, celebrados ao abrigo do preceituado , no DL n.° 31/94, de 05-12, revestem a natureza de contratos de direito privado e não a de contratos de direito administrativo».
Nos termos do exposto, julgo a pretensão do reclamante improcedente.
Custas pelo reclamante - artigo 446° do Código de Processo Civil.
5.1. O recurso jurisdicional vem interposto nos termos do n.º 5 do artigo 280.º do CPPT no qual se exige que a decisão recorrida perfilhe “solução oposta relativamente ao mesmo fundamento de direito e na ausência de alteração fundamental de regulamentação jurídica, com mais três sentenças do mesmo ou outro tribunal de igual grau ou com uma decisão de tribunal superior”.
Importa, pois, indagar se acaso se mostra verificada a invocada oposição de julgados tendo em vista a justificação da admissibilidade do recurso.
Ora, a decisão sob recurso alicerçou a improcedência da reclamação que fora deduzida no entendimento que os contratos de atribuição de ajudas celebrados entre o IFADAP (ora IFAP) e os respectivos beneficiários não se definem como contratos administrativos, antes consubstanciam “exercício de actividade privada de concessão de empréstimos, no âmbito de gestão de uma linha de crédito, não estando subordinada a normas de direito público”.
Acontece que, como foi alegado, essa decisão, sendo certo que proferida no mesmo quadro normativo, encontra-se em manifesta oposição com as decisões constantes dos arestos deste STA que o recorrente identifica nas conclusões da sua alegação, nomeadamente no recurso n.º 192/08, transitado em julgado, nos quais se entende que os aludidos contratos reúnem as características de contrato administrativo.
Neste contexto, inexiste qualquer obstáculo à admissibilidade do recurso, assim se impondo o conhecimento do respectivo mérito.
5.2. Como vimos, a questão jurídica que cumpre conhecer no presente recurso jurisdicional consiste em saber se os contratos de atribuição de subsídios celebrados entre o IFADAP (ora IFAP) e os beneficiários das ajudas são ou não contratos administrativos.
Vejamos, então.
O artigo 178.º do CPA define no seu n.º 1 contrato administrativo como um “acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa”, sendo que no seu n.º 2 logo enumera algumas espécies desses contratos, sem que isso traduza que apenas estes estejam subordinados à jurisdição administrativa.
Ora, a relação jurídica será de direito público quando “confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração”-vide Freitas do Amaral, Direito Administrativo, pag. 439/440.
Será, portanto, decisivo para a qualificação de um contrato como administrativo que ele se destine “à realização de um resultado ou interesse especificamente protegido no ordenamento jurídico, se e enquanto se trata de uma tarefa assumida por entes da própria colectividade, isto é, de interesses que só têm protecção específica da lei quando são prosseguidos por entes públicos”- vide Esteves de Oliveira e outros, Código de Procedimento Administrativo, pág. 811.
Como se deixou expresso no acórdão de 24/04/02, no recurso n.º 48.233 da secção administrativa deste Tribunal –“ os limites do conceito de relação jurídica administrativa são controvertidos, mas são de considerar nele inseridas as relações que se estabelecem entre a Administração e os particulares em que há uma prevalência do interesse público sobre o particular que se traduz na atribuição de poderes de autoridade àquela ou imposição de deveres públicos a estes (….) Serão, assim, contratos administrativos aqueles que em que o interesse público prosseguido pela Administração Pública prevalecer sobre os interesses privados em presença, conduzindo a um afastamento do direito privado traduzida na previsão de situações jurídicas activas ou na imposição de situações jurídicas exorbitantes(…). cfr. acórdão da mesma secção de 10/04/02, no recurso n.º 30/02.
Como assim, o que encontra respaldo na jurisprudência deste STA e do Tribunal de Conflitos (acórdão de 9/03/04, processo n.º 4/3), a matriz administrativa do contrato não decorre da mera presença de um contraente público e de uma qualquer ligação do objecto contrato a finalidades de interesse público que esse ente prossiga, antes exigindo, para além disso, a detecção, caso a caso, a “presença de marcas de administratividade, de elementos exorbitantes, ou de traços reveladores de uma ambiência de direito público-vide acórdão de 16/05/06, recurso n.º 163/06 (secção administrativa do STA), o qual temos vindo a seguir de perto.
Ora, a essa luz, resulta manifesta a natureza administrativa do contrato em causa nos autos.
O contrato celebrado entre o IFADAP (ora, IFAP, IP) e beneficiário das ajudas ocorreu no âmbito da Portaria n.º 195/98 de 24 de Março, a qual consagrou, a nível nacional, o Regulamento (CE) n.º 2328/91, do Conselho e Regulamento (CE) n.º 5950/97, do Conselho, de 20 de Maio, nos termos dos quais foi estabelecido, a nível comunitário, o Programa de Apoio à Modernização Agrícola e Florestal (PAMAF).
Acontece que logo no artigo 4.º dessa Portaria são definidas as condições de acesso às ajudas comparticipadas pela CE, no artigo 5.º os investimentos elegíveis e no artigo 8.º se deixa expresso que “as ajudas calculadas nos termos do artigo anterior são concedidas sob a forma de subvenção financeira a fundo perdido”, o que de todo invalida o entendimento perfilhado na sentença de que “os referidos contratos consubstanciam exercício de actividade privada de concessão de empréstimos, no âmbito da gestão de uma linha de crédito, não estando subordinada a normas de direito público”.
Por outra parte, impõe o artigo 26.º que para efeito de concessão de ajudas, os beneficiários devem comprometer-se a manter a contabilidade a contar da concessão das ajudas, sendo que no artigo 52.º se prevê a possibilidade de rescisão unilateral do contrato no caso de não execução do projecto de investimento.
Do exposto resulta uma patente prevalência do interesse público prosseguido pela administração na celebração do contrato para a atribuição das ajudas, a qual se mostra investida de prerrogativas de autoridade como é o caso da possibilidade de rescisão unilateral do contrato (artigo 52.º) e da imposição de constrangimentos ao beneficiário (artigo 26.º).
Sendo assim, importa concluir que o contrato em causa, celebrado pelo IFADAP no âmbito de gestão de fundos públicos, em que são consagradas na sua regulamentação legal cláusulas exorbitantes, inadmissíveis num contrato de direito privado, tendo em vista a prossecução do interesse público ligado à Modernização Agrícola e Florestal e no qual o beneficiário das ajudas aparece a preencher as condições previamente fixadas pela Administração, constitui uma relação jurídica administrativa e daí que se defina como contrato administrativo, ao invés do entendimento perfilhado na decisão recorrida - cfr. acórdão do Tribunal Constitucional de 23/03/07, proferido no recurso n.º 859/03.
Concluindo, sendo administrativo o contrato de atribuição de subsídios celebrado entre o IFADAP (ora IFAP) e o respectivo beneficiário, o acto de natureza sancionatória de rescisão desse contrato e de ordem de reposição dos montantes indevidamente recebidos, enquanto estatuição autoritária aplicadora do direito ao caso, define-se como verdadeiro acto administrativo (vide, entre outros, acórdãos de 2/05/00, 16/10/03, 24/06/04 e de 14/07/08, nos recursos n.ºs 47.543 (Pleno da Secção Administrativa), 45.774, 1229/04 e 192/08, respectivamente.)
Ora, nos termos do artigo 148.º, alínea a) do CPPT podem ser cobrados mediante diante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei, as dívidas ao Estado e a outras pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo, sendo que a previsão constante do n.º 1 do artigo 155.º do CPA satisfaz a aludida exigência de lei expressa - cfr. Jorge Lopes de Sousa, in CPPT, anotado e comentado, 5.ª edição, a fls. 23, anotação 5.ª ao referido artigo 148.º; bem como os acórdãos de 14/11/07, 13/05/09, 20/05/09 e 25/06/09, nos recursos n.ºs 773/07, 187/09, 427/09 e 416/09.
Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida, julgando-se a execução fiscal como meio próprio para a cobrança da dívida exequenda,
Sem custas neste STA, uma vez que o recurso não foi contra-alegado, sendo, todavia, devidas pela Fazenda Pública na 1.ª instância, com procuradoria de 1/8.
Lisboa, 26 de Agosto de 2009. – Miranda de Pacheco (relator) – Madeira dos Santos – Jorge de Sousa.