Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0147/23.5BALSB
Data do Acordão:01/25/2024
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:PEDRO MACHETE
Descritores:HONRAS DO PANTEÃO NACIONAL
TUTELA POST MORTEM DO CADÁVER
DIREITO FUNDAMENTAL MATERIAL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
TRASLADAÇÃO DE CADÁVER
DIREITO MORTUÁRIO
NULIDADE DO ACTO SUSPENDENDO
FUMUS BONI JURIS
Sumário:I - A concessão de honras do Panteão Nacional que impliquem a exumação e trasladação dos restos mortais dos cidadãos distinguidos é uma decisão política que, todavia, devido ao princípio da dignidade da pessoa humana, não dispensa uma autorização ou não oposição da parte de quem se encontra legitimado para proteger e fazer respeitar o corpo desses cidadãos após a respetiva morte no âmbito de relações jurídicas disciplinadas pelo direito administrativo.
II - O corpo é a expressão física do ser humano a quem, enquanto vivo, é reconhecida dignidade por ser pessoa, e que, por isso, não pode depois da morte ser diminuído ou degradado, nomeadamente por via do tratamento ou utilização do cadáver com desrespeito pela sua memória.
III- A tutela post mortem desse bem jurídico – o cadáver – justifica o reconhecimento àqueles que são mais próximos do morto de direitos fundamentais (materiais) de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais.
IV - Com efeito, apesar de considerado como um dos bens de personalidade abrangidos pela proteção do artigo 71.º do Código Civil, o cadáver suscita problemas específicos que justificam um regime de tutela post mortem adicional e especial, porquanto, uma vez verificado o óbito, importa dar-lhe um destino assegurando não só a paz da pessoa falecida e dos seus próximos, como a salvaguarda de exigências sanitárias e de saúde pública, as quais suscitam questões que não relevam apenas das relações dos cidadãos entre si (como sucede com a generalidade dos direitos de personalidade enquanto tais, isto é, enquanto distintos ou autónomos dos direitos fundamentais), mas também de relações de poder (em especial, com a Administração, como por exemplo no que se refere aos cemitérios públicos ou ao transporte de cadáveres e ossadas).
V - A tutela em apreço consta do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de dezembro, que, no seu artigo 3.º, n.º 1, estabelece uma legitimidade hierarquizada segundo a qual a disponibilidade sobre os restos mortais de alguém é conferida sucessivamente a certas categorias ou classes de pessoas de acordo com uma certa ordem, a qual obedece à presunção de que, atenta a especial ligação e proximidade das pessoas de cada com o falecido, os atos de disposição em causa são requeridos em conformidade com a vontade real ou presumível do mesmo – concretizando assim o aludido direito de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais.
VI - O regime de concessão de honras do Panteão Nacional articula-se com o regime jurídico-administrativo comum sobre a disposição de restos mortais: o depósito em Panteão Nacional do cadáver ou ossadas daqueles a quem caiba essa distinção constitui uma das exceções à obrigatoriedade de inumação em cemitérios públicos (artigo 11.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 411/98); e o artigo 31.º-A do citado Decreto-Lei n.º 411/98 ressalva que o que nele se dispõe em matéria de prazos e procedimentos não prejudica a concessão de honras do Panteão Nacional, significando isto que os termos concretos definidos para a concessão dessas honras em cada caso prevalecem sobre os procedimentos legalmente previstos no Decreto-Lei n.º 411/98.
VII - O direito de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais, no caso dos herdeiros ou familiares, compete exclusivamente aos que se encontram vivos quando se coloca a questão de um ato de disposição desses restos mortais e o seu exercício traduz-se na manifestação de uma vontade atual desses familiares ou herdeiros; não na representação de uma vontade anteriormente expressa por familiares ou herdeiros mais próximos da pessoa falecida, mas que entretanto tenham também falecido.
VIII - Uma trasladação anterior não impede uma nova trasladação, impondo-se determinar a vontade presumível do falecido em face de novas circunstâncias ou imprevistos.
IX- Havendo uma pluralidade de herdeiros ou familiares, a disposição sobre os restos mortais do falecido deve ser decidida pela maioria das pessoas que integram cada uma das categorias de legitimados, em virtude de: i) ser essa a interpretação do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98 que resulta da articulação com o Modelo de Regulamento dos Cemitérios Municipais, aprovado pelo Decreto n.º 48770, de 18 de dezembro de 1968; ii) ser essa a solução que melhor se coaduna com a teleologia de tal preceito – assegurar a correspondência do ato requerido com a vontade real ou presumível da pessoa falecida em relação ao destino post mortem dos seus restos mortais –, já que exigir a unanimidade ou reconhecer um direito de veto a um qualquer familiar ou herdeiro colocaria nas suas mãos o direito de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais, potenciando conflitos com os demais familiares ou herdeiros legitimados e, sobretudo, pondo em causa o respeito pela memória do falecido.
X- Ou seja, a exigência de uma atuação conjunta de todos os legitimados poderia revelar-se contrária aos fins da tutela jurídica dos restos mortais da pessoa falecida, enquanto a determinação da vontade real ou presumível do falecido por uma maioria de pessoas que foram ou são próximas do mesmo oferece as garantias adequadas em termos de segurança jurídica e de experiências de vida diferenciadas aptas a perspetivar situações muito variadas
XI- São neste caso inaplicáveis as normas enformadas pela teleologia específica do direito sucessório, como é o caso do artigo 2091.º do Código Civil, pois, além do cadáver ou as ossadas não integrarem a herança, as categorias de pessoas com legitimidade para requerer a prática dos atos regulados no Decreto-Lei n.º 411/98 são determinadas na base de um critério de proximidade em relação à pessoa falecida e da presunção nela fundada de que estarão em melhores condições para determinar a vontade real ou presumível de tal pessoa em relação ao destino a dar aos seus restos mortais.
XII - Existindo uma maioria de pessoas legitimadas nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98 de que não fazem parte os recorrentes, a expressão da vontade destes quanto à exumação e posterior trasladação não é essencial para a autorização de tais atos, razão por que a sua não audição nessas circunstâncias também não consubstancia uma violação do conteúdo essencial do mencionado direito fundamental de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais (cfr. a alínea d) do artigo 161.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo).
XIII - Por outro lado, conforme decorre do artigo 31.º-A do Decreto-Lei n.º 411/98 e do próprio regime de concessão de honras do Panteão Nacional, não se encontra previsto legalmente um procedimento específico destinado a auscultar aqueles que se devem pronunciar em defesa da memória da pessoa homenageada, razão por que não pode falar-se in casu da “preterição absoluta do procedimento legalmente previsto” (cfr. a alínea l) do artigo 161.º, n.º 2, do mesmo Código).
XIV - Estas duas circunstâncias afastam a invocada nulidade do ato suspendendo.
Nº Convencional:JSTA00071819
Nº do Documento:SAP202401250147/23
Recorrente:AA E OUTROS
Recorrido 1:ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Meio Processual:RECURSO JURISDICIONAL
Objecto:ACÓRDÃO DA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIREITOS FUNDAMENTAIS
Legislação Nacional:ARTIGO 71º DO CÓDIGO CIVIL, Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de dezembro, ARTIGOS 3º, N.º 1, 11º, N.º 2, AL. A), 31º-A,
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I. Relatório
1. BB, AA, CC, DD, EE e FF, com os sinais nos autos, notificados do acórdão proferido em conferência por esta Secção em 19.10.2023, que decidiu indeferir a requerida suspensão da eficácia da Resolução n.º 55/2021 da Assembleia da República (“Concessão de honras de Panteão Nacional a GG”), vêm dele interpor recurso, tendo no final das suas alegações formulado as seguintes conclusões:
«1ª - O Acórdão recorrido, em “summaria cognitio”, julgou não verificado o "fumus boni juris” um dos requisitos dos quais o artigo 120º do CPTA faz depender a concessão da providência requerida e, considerando prejudicado o conhecimento das demais, indeferiu a suspensão de eficácia da trasladação dos restos mortais do Bisavô dos Recorrentes para o Panteão Nacional.

2ª - Este juízo encerra erro de julgamento na medida em que, ao contrário do decidido, os Recorrentes têm legitimidade para exercer o direito de fazer respeitar a vontade do falecido homenageado, melhor interpretada e feita cumprir pela geração dos Netos, também já falecidos, que, enquanto mais próximos portadores da memória do grande Escritor e mais directos intérpretes da sua vontade, acreditando nela, decidiram e fizeram conjuntamente trasladar os restos mortais de seu Avô para o cemitério de Santa Cruz do Douro. Sem oposição conhecida de qualquer herdeiro/descendente contemporâneo de tal decisão!

3ª - Essa vontade de GG, interpretada e respeitada pelos familiares da geração mais próxima dele que, conjuntamente, a fizeram cumprir é também, hoje, a vontade dos Requerentes que, em nome deles e em seu próprio nome, reclamam o respeito "...pela personalidade moral de quem morreu, no exercício de uma legitimidade que não é de quem morre mas de quem lhe sucedeu.” - sic. Acórdão citado - com tutela nos artigos 70º e 71º do CC, que o Acórdão recorrido também violou.

4ª - É nessa vontade, sucessivamente consolidada e incontestada ao longo de décadas, que reside a legitimidade dos Recorrentes, enquanto herdeiros, lato sensu, da personalidade moral do falecido, para se oporem, eficazmente, à trasladação - cfr. Acórdão do STJ de 11 de Dezembro de 2003, proferido no recurso n° 3B2523. Sob pena de violação dos artigos 70º, 71º do CC e 16º, nº 2, 17º, 18º, 20º, nº 5, 24º e 25º, da CRP.

5ª - A incindibilidade dessa herança moral e o direito de todos e cada um dos seus herdeiros à oposição à trasladação exige a unanimidade na tomada de decisão, assumindo, por isso, singular relevância quer a oposição, em 1989, de alguns Familiares (Netos e Viúva de um Neto), que bastou para impedir a trasladação dos restos mortais de GG para o Panteão, quer a decisão unânime dos Familiares - não há oposição conhecida de qualquer um deles! - de os trasladar, no mesmo ano, do Cemitério de Alto de São João para o de Santa Cruz do Douro, onde repousa, em paz, há mais de 34 anos!.

6ª - Unanimidade que encontra eco na natureza incindível quer da herança moral dos direitos de personalidade do seu falecido Bisavô, como acima defendido, quer dos seus restos mortais, pertenças de todos os descendentes, que são os únicos titulares do direito a deles disporem, em conjunto, como resulta da norma do artigo 2091º do CC. Norma que o Tribunal recorrido considerou inaplicável no caso e que, por isso, também violou.

7ª - Os restos mortais do Bisavô dos Requerentes não pertencem à Assembleia da República nem à Fundação ...: eles materializam, na contingente realidade das coisas terrenas, um acervo indivisível, enquanto tal transmissível e pertencente a todos os descendentes, e, nessa qualidade, com legitimidade, também incindível para decidir sobre o seu destino.

8ª - A regra de qualquer herdeiro ou descendente contemplada no artigo 3º do Decreto-Lei n° 411/98, de 30 de Dezembro reporta-se apenas, no contexto do diploma em causa, que regula o direito mortuário, à legitimidade para formalizar o pedido inaugural do processo com vista à autorização para a trasladação. Que pode ser apresentado por qualquer herdeiro.

9ª - Regra articulável e conciliável com a regra da unanimidade, única forma de evitar "eventuais conflitos pessoais entre os diversos herdeiros, numa clara e censurável instrumentalização dos restos mortais alvo de disputa, contrariando os princípios da certeza e segurança que devem presidir à prática de qualquer acto jurídico, assim como o respeito à memória das pessoas já falecidas e, em última instância, do interesse público em actos desta natureza." - sic. Recomendação do Provedor de Justiça. Conflitos, instrumentalização e, sobretudo, respeito à memória de pessoa falecida que a regra da maioria é incapaz de evitar e suprir.

10ª - Como se afirma no Acórdão nº 00007/21.4BEVIS, “É certo que a alínea d) do nº 1 do artigo 3º [do Decreto-Lei n° 411/98, de 30 de Dezembro] refere que qualquer herdeiro pode requerer a prática dos atos aí regulados, mas tal não pode ser desligado do facto de os Autores e os contra-interessados possuírem todos a qualidade de herdeiros, por serem seus filhos, netos e bisnetos (cfr. artigo 2133º do Código Civil).
Deste modo, todos - Requerentes e contra-interessados - possuem igual legitimidade para a prática dos actos aí elencados, sendo todos eles em conjunto titulares desses direitos.
Deste modo, numa análise meramente perfunctória própria dos processos cautelares, está em causa um direito que deve ser exercido por todos, não podendo um deles sobrepor a sua vontade sobre os demais, nos termos em que resulta do artigo 2091º do Código Civil. Assim sendo, mesmo que reunidas as demais condições para o efeito, existindo oposição dos contra-interessados na exumação e trasladação dos restos mortais de..., não é provável que os Requerentes possam obter na ação principal a condenação à prática do ato que pretendem, porque para tanto afigura-se ser exigível o acordo de todos os herdeiros.” - sic.

11ª - A exigência de unanimidade pretende obstar à possibilidade de trasladações, juridicamente inaceitável, consoante a vontade das maiorias que futuramente e a todo o tempo se possam vir a formar. De resto, a dita Recomendação do Provedor de Justiça na qual se funda o Acórdão recorrido - que dá prioridade à promoção de iniciativa que vise obter o consenso que evite a trasladação - também afirma o reconhecimento de que "uma trasladação (no nosso caso, a terceira!!!) mesmo que legalmente consentida, deve ser sempre um ato a praticar no limite da necessidade, não tanto pelos motivos de salubridade, que sempre ficaria salvaguardada, mas também pelo respeito que devem merecer os restos mortais, sujeitos à mínima intervenção possível, e à penosidade que sempre poderá acarretar tal operação para familiares e amigos dos defuntos.” - sic.

12ª - A preterição da consulta dos Recorrentes sobre a iniciativa da trasladação era imperativa [sic], porque ingere diretamente na decisão enquanto seu pressuposto essencial e necessário, decisão que não pode ser tomada sem a concordância de todos os Bisnetos de GG, sob pena de nulidade, por ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental. […]

13ª - Consequentemente, deve ser revogado o Acórdão recorrido por violação de lei, designadamente dos artigos 70º e 71º, nºs 1 e 2 e 2091º do Código Civil, 6º, nº 2, 17º, 18º, 20º, nº 5 e 25º, n° 1 da Constituição da República Portuguesa e 161º, nº 2,alíneas d) e l), do CPA.
Uma vez revogado deve ser substituído por outro que julgue verificado, ainda que em summaria cognitio, o requisito fumus boni juris. E, nada obstando, conheça e julgue também verificados os dois outros requisitos dos quais o artigo 120º do CPTA faz depender a concessão da providência requerida:
A) O periculum in mora decorrente da iminência da execução da trasladação: a remoção da urna contendo os restos mortais de GG - que não pertencem à Assembleia da República nem à Fundação ..., mas a todos os herdeiros e, nessa medida, submetidos à disciplina sucessória do artigo 2091º do CC - a remoção da urna contendo os restos mortais de GG esteve já agendada para o passado dia 27 de Setembro de 2023. A consumar-se (o que só não aconteceu devido à manutenção precária do efeito suspensivo da instauração da providência cautelar e à não apresentação de Resolução Fundamentada), consumar-se-á também a lesão irreversível do direito dos Requerentes, quer i) enquanto legítimos defensores do direito do homenageado seu Bisavô e da geração anterior de Netos, todos já falecidos, que conjuntamente promoveu a trasladação dos seus restos mortais de Lisboa para Santa Cruz do Douro, quer ii) enquanto grupo de Familiares que a tal se vêm opondo em representação e na defesa da vontade daqueles e da sua própria vontade; e
B) A proporcionalidade entre os interesses contrapostos: é evidente que a suspensão da trasladação não tem qualquer potencialidade lesiva nem aptidão danosa para o interesse público, quer para a AR quer até para a própria Fundação e Bisnetos que apoiem a trasladação. Por outro lado, o prejuízo decorrente do diferimento da trasladação para momento ulterior é ostensivamente insignificante face ao que haveria de produzir-se com a consumação da trasladação. Não só os restos mortais se encontram depositados há mais de 34 anos em Santa Cruz do Douro, como também a trasladação, a consumar-se, será irreversível, sob pena de cobrir de ridículo e de vergonha quem, após o seu depósito no Panteão promovesse e acompanhasse nova trasladação (a quarta!) de volta a Santa Cruz do Douro, em imperdoável afronta da dignidade e do respeito devidos à memória de GG. […]

14ª - Reafirma-se que não está nem nunca esteve em causa a concessão de honras de Panteão a GG nem o respeito devido a todos quantos ali merecidamente jazem pelo exemplo, distinção e dignidade da sua vida e pela genialidade e projeção da sua obra!!!
Apenas se pretende e pede a substituição da trasladação - oportunamente pedida a Sua Excelência o Senhor Presidente da AR, que, enquanto também Deputado, poderia, querendo submete-la à reapreciação do Plenário - pela aposição, no Panteão Nacional, de placa alusiva à vida e obra de GG, forma de homenagem alternativa legalmente prevista, que cumprirá condignamente o desígnio subjacente à concessão de honras de Panteão e apaziguará as dissidências, inultrapassáveis, à volta da trasladação: perpetuação do nome e da obra de GG!

15ª - É também este propósito de imortalidade que mantém viva a sua memória e que anima e determina os Requerentes, para em seu nome e na defesa dos seus direitos, imunes à passagem do tempo, fazer cumprir a sua vontade e a vontade unânime de todos os seus Netos que que, em 1989, a fizeram cumprir:
Jazer junto dos seus em paz».

No próprio requerimento de interposição do recurso, reconhecendo embora que nos termos do artigo 143.º, n.º 2, alínea b), do CPTA o mesmo tem efeito meramente devolutivo, os recorrentes vieram requerer, com base no n.º 4 do citado artigo 143.º, que o Tribunal adote «providência equivalente à atribuição de efeito suspensivo ao recurso», de modo a assegurar «que a AR não executará a trasladação até emissão de Acórdão que o decida».
Além disso, a título de questões prévias os recorrentes vieram pôr em causa (i) que se possa ter como provada a existência de uma maioria de apoiantes da trasladação entre os descendentes vivos de GG, uma vez que, contrariamente ao que decorre do exigido no artigo 4.º do Código do Registo Civil, não foram juntas aos autos certidões de nascimento a comprovar a qualidade de descendente de GG dos alegados bisnetos que apoiam a trasladação para o Panteão Nacional; e (ii) em qualquer caso, que o presente processo seja o meio próprio para decidir sobre uma questão da esfera reservada à família do de cuius – saber se a maioria dos descendentes apoia ou não a trasladação –, em virtude de existirem na legislação civil e processual civil preceitos próprios e meios adequados para dirimir esse tipo de questões.
Finalmente, os recorrentes requerem a junção de um documento que reproduz de forma (mais) legível um artigo de opinião de GG – de que foi junta uma cópia ao requerimento inicial como documento n.º 3 – para efeitos de demonstrar o «sarcasmo [daquele Autor] sobre os critérios que determinavam então as escolhas da concessão de honra de Panteão em França» e, desse modo, permitir «uma total e inquestionável apreciação da opinião negativa que GG tinha sobre a questão Panteão».

2. A requerida, ora recorrida, contra-alegou, pronunciando-se contra a possibilidade de atribuição do pretendido efeito suspensivo ao recurso e no sentido da improcedência da questão prévia suscitada quanto à verificação de uma maioria de descendentes apoiantes da trasladação. Relativamente ao mérito do recurso, sintetizou a sua posição nas seguintes conclusões:
«1ª – O acórdão mostra-se correto e de harmonia com os preceitos aplicáveis;

2ª – O Acórdão impugnado não violou qualquer norma legal.»

3. O recurso foi admitido por despacho de 4.12.2023 (fls. 298) com efeito meramente devolutivo, considerando que, «em face do disposto no art. 143º nº 2 b) do CPTA (fixando efeito meramente devolutivo aos recursos de decisões respeitantes a processos cautelares, como é aqui o caso), não se torna possível a alteração desse efeito para suspensivo, tal como requerido pelos Recorrentes. É que a previsão dos nºs 4 e 5 do art. 143º do CPTA pressupõe que tenha sido requerida a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso, nos termos do nº 3, e não que este efeito decorra da lei.»

4. Subidos os autos, foi o Ministério Público junto deste Supremo Tribunal notificado nos termos do artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, tendo-se pronunciado no sentido do improvimento quer da questão prévia relativa às certidões de nascimento, quer do recurso. Notificadas de tal parecer ao abrigo do artigo 146.º, n.º 2, daquele diploma, as partes nada disseram.


Com dispensa de vistos prévios (artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

A) Questões preliminares suscitadas pelos recorrentes
5. Como mencionado, os recorrentes pretendem fazer valer-se do regime previsto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 143.º do CPTA para afastar o efeito meramente devolutivo do presente recurso decorrente do n.º 2, alínea b), do mesmo artigo:
«Dispõe o nº 3 deste preceito que quando a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso possa ser causadora de danos, o tribunal pode decretar a adoção de providências adequadas a evitar ou minorar esses danos, no caso, irreversíveis, caso se realize a trasladação. Questão que se prende diretamente com o "periculum in mora" e com a ponderação sobre o equilíbrio e proporcionalidade entre os interesses contrapostos - pressupostos dos quais o artigo 120° do CPTA faz depender a procedência do pedido cautelar e que não foram apreciados no Acórdão recorrido.
[…]
Porque não se antevê a produção de qualquer prejuízo para o interesse público ou para o interesse da Fundação ... e dos Familiares que não se opõem ao ato suspendendo, deve o Tribunal adotar, segundo o seu prudente critério, providência equivalente à atribuição de efeito suspensivo ao recurso (recurso este de tramitação acelerada dada a natureza urgente do processo […]) que assegure que a AR não executará a trasladação até emissão de Acórdão que o decida. É o que se requer ao abrigo do nº 4 do artigo 143º do CPTA» (v. requerimento de interposição de recurso, pp. 1-2).

Dado estar em causa um poder discricionário do tribunal e atenta a não vinculatividade do despacho de admissão (artigo 641.º, n.º 5, do CPC), nada impede a reapreciação da questão.
Todavia, os recorrentes não têm razão.
Para além do argumento que se tem por decisivo referido no despacho de admissão do presente recurso (cfr. supra o n.º 3), verifica-se que os recorrentes nem sequer têm legitimidade para formular o pedido em causa. Com efeito, na sequência da nova redação dada ao n.º 3 do artigo 143.º do CPTA pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, ficou claro na letra da lei que a legitimidade para requerer a atribuição ao recurso de efeito meramente devolutivo, em substituição do regime-regra do n.º 1 do mesmo artigo 143.º compete exclusivamente à “parte vencedora” no processo tramitado no tribunal a quo (sobre o ponto, v. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS FERNANDES CADILHA, Comentário ao CPTA, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, nota 4 ao artigo 143.º, p. 1155, que salientam: o regime dos n.ºs 3 a 5 do artigo 143.º do CPTA visa possibilitar a execução provisória das sentenças, pelo que «o pedido de alteração do efeito-regra, em princípio, não será da iniciativa do recorrente, já que este será, em princípio a parte vencida, que terá interesse em que seja mantido o efeito suspensivo do recurso, de modo a evitar que a decisão que lhe foi desfavorável possa ser executada provisoriamente»).
Impõe-se, pelo exposto, confirmar o despacho de admissão do presente recurso no que respeita ao seu efeito.

6. Quanto à questão prévia suscitada a propósito da prova de que exista uma «maioria de apoiantes da trasladação no seio dos descendentes de GG» e à alegada «opinião negativa que GG tinha sobre a questão Panteão» fundada num artigo de opinião deste Autor, cumpre começar por recordar que, nos termos do artigo 12.º, n.º 3, do ETAF, o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo apenas conhece da matéria de direito. Consequentemente, esta formação não pode eliminar factos dados como assentes no acórdão recorrido – nomeadamente os referidos nas alíneas e) e f) da respetiva fundamentação de facto – nem aditar factos novos – a suposta projeção do sarcasmo sobre os critérios que determinavam no final do século XIX as escolhas da concessão de honra de “Panthéon” em França para o que se passa no Portugal de hoje.
Acresce que, conforme mencionado no próprio acórdão recorrido, e é próprio da summaria cognitio inerente a um processo cautelar, os factos questionados pelos recorrentes – como, de resto, todos os factos dados por assentes – foram «tidos [apenas] por indiciariamente provados, consideradas as posições das partes nos respetivos articulados e os documentos juntos aos autos». Em concreto, os factos relativos aos descendentes de GG – factos d) a h) – foram todos admitidos por acordo das partes, sem prejuízo da existência nos autos de documentos que indiciavam tal factualidade (designadamente a declaração conjunta dos 13 familiares que não se opõem à trasladação intitulada “A propósito da trasladação de GG para o Panteão Nacional” (fls. 73) e as declarações individuais a reiterar o apoio à trasladação dos mesmos familiares com indicação do respetivo cartão de cidadão... ...84)).
Por outro lado, no que se refere às opiniões de GG sobre as honras do Panteão Nacional concedidas em Portugal, nada se provou (cfr. a fundamentação de facto do acórdão recorrido), sendo certo que do texto mencionado pelos recorrentes e agora junto em versão dactilografada nada se pode retirar a esse respeito. De resto, afigura-se contraditório insistir no sarcasmo expresso nesse artigo da ... relativamente aos critérios para “reconhecer um grande homem” ou determinar o que seja “um grande homem” e ao mesmo tempo protestar nunca ter estado «em causa a concessão de honras de Panteão a GG nem o respeito devido a todos quantos ali merecidamente jazem pelo exemplo, distinção e dignidade da sua vida e pela genialidade e projeção da sua obra!!!», mas tão-somente a modalidade de tais honras (conclusão 14.ª das alegações de recurso). De todo o modo, até por uma questão de transparência, não se vê inconveniente em manter nos autos um documento que permite aceder com mais facilidade ao conteúdo de um outro que já consta dos mesmos autos, mas é de difícil leitura.
Por fim, e no respeitante à questão da propriedade dos meios processuais administrativos para dirimir questões da “esfera reservada à família do de cuius”, como seria a de saber se deve ou não ser feita a trasladação do cadáver ou das ossadas deste último, mesmo que apoiada pela maioria dos seus familiares, a verdade é que o direito civil não esgota a tutela dos bens da personalidade do defunto. No tocante ao caso vertente, por razões de natureza sanitária e relacionadas com a regra da obrigação de princípio de os defuntos serem inumados em cemitérios públicos (cfr. o artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de dezembro) – que são bens dominiais possuídos e administrados pelos municípios e freguesias afetos ao fim de utilidade pública de inumação em condições sanitárias suficientes dos cadáveres de pessoas falecidas nas autarquias (assim, v. o acórdão do STA de 24.09.1988, P. 43843; no mesmo sentido, v. os acórdãos do Tribunal de Conflitos de 8.07.2003, P. 10/02, e de 5.05.2010, P. 15/09) – o destino do cadáver ou das ossadas de alguém implica o estabelecimento de relações jurídicas administrativas no âmbito das quais e com sujeição a legislação própria aquelas questões suscitadas pelos recorrentes são reguladas (v. infra).
Em suma, pelas razões mencionadas, improcedem as questões prévias suscitadas, não se mostrando igualmente que a junção da versão dactilografada da fotocópia anexa ao requerimento inicial como documento n.º 3 seja suscetível de influir na apreciação do presente recurso.

B) Fundamentação de facto
7. O acórdão recorrido considerou como assentes os seguintes factos, tidos por indiciariamente provados, consideradas as posições das partes nos respetivos articulados e os documentos juntos aos autos:
«a) Em 15/1/2021, a “Assembleia da República” aprovou a “Resolução da Assembleia da República n° 55/2021”, com o sumário “Concessão de honras de Panteão Nacional a GG”, que viria a ser publicada no Diário da República, 1ª Série, de 5/2/2021, com o seguinte teor:
“A Assembleia da República resolve, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição e do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 28/2000, de 29 de novembro:
1 - Conceder honras de Panteão Nacional aos restos mortais de GG, em reconhecimento e homenagem pela obra literária ímpar e determinante na história da literatura portuguesa.
2 - Constituir um grupo de trabalho composto por representantes de cada grupo parlamentar com a incumbência de determinar a data e de definir e orientar o programa de trasladação, em articulação com as demais entidades públicas envolvidas, bem como um representante da Fundação ...”.
(cfr. doc. 1 junto com a “Oposição”, a fls. 157 SITAF)

b) A mencionada “Resolução” teve origem no Projeto de Resolução nº 800/XIV/2ª (‘‘Concessão de honras de Panteão Nacional a GG”), assinado e apresentado por vários Deputados em 14/12/2020, no qual expressaram que o Projeto foi considerado “na senda do repto lançado pela Fundação ...”.
(cfr. doc. 4 junto com a “Oposição”, a fls. 162 e segs. SITAF)

c) O escritor GG faleceu em Paris no ano de 1900, tendo o seu corpo sido trasladado para Portugal onde teve um funeral com honras de Estado. Foi, então, sepultado no jazigo da família da mulher (jazigo dos ...) no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa. Em 1989, por iniciativa da família, foi o seu corpo trasladado para o Cemitério de Santa Cruz do Douro, concelho de Baião, onde se encontra.
(acordo)

d) Todos os filhos e netos do escritor GG são hoje falecidos, encontrando-se vivos, como seus descendentes mais próximos, somente bisnetos (em número de 22 - entre estes, os 6 Requerentes).
(acordo)

e) Parte destes bisnetos, em número de 13, são favoráveis à homenagem ao escritor, tal como aprovada na Resolução da AR n° 55/2021, incluindo, pois, a trasladação para o Panteão Nacional, dos seus restos mortais.
(acordo)

f) Outros bisnetos, em número de 6 (os ora Requerentes), opõem-se à trasladação dos restos mortais do escritor para o Panteão Nacional, pugnando pela sua manutenção no cemitério de Santa Cruz do Douro, sem prejuízo de concordarem com uma homenagem ao escritor na modalidade de afixação, no Panteão, de uma lápide alusiva à sua vida e obra, como também legalmente previsto.
(acordo)

g) Aos restantes 3 bisnetos não é conhecida posição pessoal sobre a questão.
(acordo)

h) Todos estes 22 bisnetos vivos descendem de um mesmo filho do Escritor (o filho HH), sendo filhos de cinco filhos deste (netos do Escritor),
Assim:
– II (neto, falecido) – 4 filhos vivos (bisnetos) contra a trasladação (os 1º, 3º, 5º e 6º Requerentes);
– JJ (neta, falecida) – 3 filhos vivos (bisnetos) 2 contra a trasladação (os 2º e 4º Requerentes) + 1 (abstenção);
– KK (neto, falecido) – 6 filhos vivos (bisnetos): 1 supostamente contra a trasladação, residente no Brasil (o 7º aderente, indicado pelos Requerentes) + 4 a favor da trasladação + 1 (abstenção);
– LL (neta, falecida) – 1 filho vivo (bisneto) a favor da trasladação;
– MM (neta, falecida) – 8 filhos vivos (bisnetos) a favor da trasladação.
(acordo)

i) Em 1989, quando o corpo do Escritor ainda se encontrava sepultado em Lisboa, colocou-se a hipótese de trasladação para o Panteão Nacional, mas a ideia foi abandonada em face da então oposição de três netos e da viúva de um quarto neto.
(acordo)».

C) Fundamentação de direito
8. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da respetiva alegação (artigos 144º, nº 2, do CPTA e 608º, n.º 2, 635.º, nºs 4 e 5, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 140º, n.º 3, do CPTA), pelo que importa decidir:
i. Se o acórdão recorrido enferma de erro de julgamento por não ter exigido que a trasladação dos restos mortais de GG para o Panteão Nacional fosse autorizada por todos os seus herdeiros vivos (conclusões 2.ª a 11.ª);
ii. Se o acórdão recorrido enferma de erro de julgamento por ter desconsiderado a nulidade resultante da ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental dos recorrentes (preterição da consulta dos recorrentes sobre a iniciativa da trasladação exigida em função da defesa de bens da personalidade de um seu familiar falecido) e da preterição total do procedimento legalmente exigido (conclusões 12.ª e 13.ª, 1.ª parte);
Pretendem ainda os recorrentes que, uma vez revogado o acórdão recorrido, o mesmo seja substituído por outro que defira a requerida providência de suspensão da eficácia da Resolução da Assembleia da República n.º 55/2021 (conclusão 13.ª, 2.ª parte). Contudo, a verificação dos requisitos necessários a tal decisão implicaria uma autónoma apreciação da matéria de facto invocada no requerimento inicial, com eventual recurso a produção de prova, o que extravasa os poderes de cognição deste Pleno (cfr. o artigo 12.º, n.º 3, do ETAF).

§ 1.º – O quadro normativo aplicável

9. A discussão nos presentes autos é limitada à disponibilidade dos restos mortais de um familiar na circunstância muito específica de uma homenagem nacional ao defunto.
Como se refere no acórdão recorrido, «a deliberação parlamentar – de conceder, ou não, honras de Panteão – é um ato político [que] só ao Parlamento compete tomar». Uma das formas ou modalidades de tais honras consiste na deposição dos restos mortais dos cidadãos distinguidos (cfr. o artigo 2.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 28/2000, de 29 de novembro). Ora, a disposição sobre os restos mortais da pessoa homenageada apresenta-se como uma questão com um relevo autónomo relativamente à mencionada decisão política. Com efeito, e conforme se entendeu no mesmo acórdão:
«[A] tomada de uma decisão parlamentar – ainda que, em si, eminentemente política – de concessão de honras nacionais de Panteão, não pode desligar-se da opinião e vontade dos familiares, se essa homenagem incluir uma disposição sobre os restos mortais do homenageado, tanto mais quanto mais próximos os familiares (descendentes) em questão o forem daquele e, sobretudo, se se expressarem de forma maioritária ou, até, unânime. Desde logo se intui que, ao menos nesta parte, a decisão não pode ter-se como puramente política, sob pena de poder representar uma intromissão violenta, e supostamente insindicável, nos direitos da família e/ou de personalidade da pessoa falecida legalmente tutelados».

Justifica-se, deste modo, a exigência de uma autorização, anterior ou posterior, para a execução daquela medida, autorização essa que está para além do domínio político, relevando antes dos direitos fundamentais e da tutela post mortem da personalidade e que, no quadro da legislação portuguesa, se insere num procedimento de natureza administrativa relativo à exumação e subsequente trasladação dos restos mortais.
Com efeito, aquela exigência de autorização decorre diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana (cfr. o artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa). Seguindo REIS NOVAIS, dir-se-á:
«[A] conceção da dignidade da pessoa humana que se expressa contemporaneamente nos textos constitucionais e nas declarações de direitos humanos resulta de uma construção racional e civilizacional que assenta no sentido de justiça dominante nas nossas sociedades e que se traduz também, para além do reconhecimento da pessoa como sujeito, no comando de respeito da igual dignidade e da igual consideração dos interesses de cada pessoa e na garantia das condições mínimas da possibilidade de desenvolvimento das potencialidades próprias.
Humanidade intrínseca, autonomia e igualdade são, portanto, as dimensões essenciais da consagração constitucional da dignidade da pessoa humana que têm a sua fonte normativa sustentada no sentido de justiça do nosso tempo e não tanto na presença pontual de características ou atributos concreta e diferentemente presentes em cada pessoa.
[…]
Há, portanto, em cada pessoa individualmente considerada, mas independentemente dos seus atributos e capacidades particulares, uma dimensão irredutível de humanidade que apela ao respeito intransigente da parte de todos os outros e, particularmente dos poderes públicos a quem impõe, ainda, especiais deveres de proteção e de promoção.» (Autor cit., Princípios Estruturantes de Estado de Direito, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 44-45)

Daí a conclusão:
«Pensada assim, esta é uma dignidade da pessoa em si, uma dignidade que o sentido de justiça do nosso tempo funda numa capacidade abstrata e potencial de autodeterminação, mas alarga a todas as pessoas independentemente da capacidade ou vontade da sua realização, que pode mesmo nem existir facticamente, como na situação dos menores, dos profundamente incapacitados ou dos doentes mentais. Nesse mesmo sentido, a vinculação do Estado à proteção da dignidade da pessoa humana, enquanto valor constitucional objetivo, inclui a proteção da dignidade antes do nascimento e após a morte, independentemente da sua não titularidade subjetiva nessas circunstâncias.» (Autor cit., A Dignidade da Pessoa Humana, vol. I (Dignidade e direitos fundamentais), Almedina, Coimbra, 2015, pp. 63-64).

No sentido da proteção do respeito devido à pessoa enquanto pessoa subsistir mesmo depois da sua morte, pronunciou-se em 24.02.1971 o Bundesverfassungsgericht no caso Mephisto: é incompatível com o princípio da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana acolhido no Artigo I, parágr. 1, da Grundgesetz que alguém, a quem é reconhecida dignidade por ser pessoa, possa ser diminuído ou degradado depois da sua morte (cfr. BVerfGE 30, 173 <194>; reiterando tal posição, v., entre outras decisões do mesmo Tribunal, as dos casos 1 BvR 932/94 de 5.04.2001, n.º 27, e 1 BvR 19/22 de 24.10.2022, n.º 28). Fala-se, a propósito, de uma “proteção post mortem dos direitos de personalidade” (postmortaler Persönlichkeitsschutz) para a qual se encontram legitimados os familiares próximos.
Embora a morte determine a extinção da personalidade jurídica (artigo 68.º, n.º 1, do Código Civil, ou seja, da suscetibilidade de uma dada pessoa ser sujeito de relações jurídicas, «há vestígios quer corpóreos, quer imateriais da pessoa que temporariamente existiu que, pela sua ligação incindível a essa pessoa, não deixam de reclamar um tratamento digno, assumindo-se como bens jurídicos fundamentais carecidos de tutela» (assim, v. CURA MARIANO, “O Artigo 71.º do Código Civil e a Tutela de Direitos Fundamentais após a Morte” in Estudos em memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 581). E o cadáver é um deles (v. além de CURA MARIANO, na ob. cit., p. 582, em especial, RABINDRANATH CAPELO de SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 189: a morte «não impede, desde logo, que haja bens da personalidade física e moral do defunto que continuam a influir no curso social e que, por isso mesmo, perduram no mundo das relações jurídicas e como tais são autonomamente protegidos. É particularmente o caso do seu cadáver […]»; e, em nota, o mesmo Autor salienta: «o cadáver é um bem da personalidade de pessoa falecida abrangido pelo artigo 71.º CC»).
Nesse sentido, também se pronunciou o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 130/88.
Quanto ao plano legal, refere-se nesse acórdão, sintetizando as posições da doutrina juscivilista sobre a matéria:
«[O] cadáver não pode qualificar-se como “pessoa”. Como se diz incisivamente no nº 1 do artigo 68º do Código Civil, “a personalidade cessa com a morte” – morte que opera uma mutação substancial na natureza e destino do corpo humano.
[…]
Não sendo já o cadáver uma pessoa, não importa, porém, tomar posição sobre a controvérsia de saber se deve ser considerado como uma “coisa” (decerto num sentido latíssimo e muito especial), se como um “tertium genus” (assim, Gomes da Silva e Paulo Cunha), escapando às categorias jurídicas comuns. Certo é que a doutrina é unânime em reconhecer que os direitos que sobre o mesmo poderão incidir, sempre de raiz e derivação consuetudinárias, não têm caráter patrimonial: o cadáver estará sempre subtraído ao comum comércio jurídico.
[…] Ora, o regime jurídico do cadáver, seja qual for a qualificação jurídica a atribuir-lhe, não pode compreender-se se não se vir no cadáver ainda uma projeção da pessoa viva. O cadáver não vale pelo que é, vale por aquilo que foi e por aquilo que, na sua materialidade física, ainda que degradada, continua a representar […].» (n. 4; itálico acrescentado).

E mais adiante, especificamente sobre a dimensão constitucional da questão, pode ler-se na mesma decisão:
«[C]essando a personalidade com a morte, e não sendo já o cadáver uma “pessoa”, não é ele suscetível, por si, da titularidade de direitos. Ora, esta ideia, válida no campo do direito civil – e não permitindo que possa falar-se de direito de personalidade do próprio cadáver, ou da transmissão desses direitos, com a morte do sujeito, para outrem –, vale igualmente, por certo, no “campo de direito constitucional”.
É verdade que a Constituição não diz quando se extinguem os direitos fundamentais das pessoas singulares, e não contém uma afirmação como a do artigo 68º do Código Civil. Mas, realmente, não se duvidará de que esta afirmação legal também opera nesse campo – e como se fosse uma afirmação “substancialmente constitucional” –, de modo que também aí a morte faz cessar a personalidade jurídica. E, cessando a personalidade, não poderá certamente reconhecer-se direitos fundamentais ao cadáver, enquanto tal, nem admitir-se a transmissibilidade daqueles direitos – já que de direitos “pessoais” se trata – para outrem.» (n.º 8).

«[O] que se questiona não é a violação de um qualquer direito do cadáver, enquanto tal, mas dos direitos de cada um, enquanto vivo, relativos à disposição do seu corpo post mortem, opondo-se a que nele se proceda a colheita de órgãos ou tecidos. Ora, já se viu que esses direitos são legalmente reconhecidos; mas não terão eles, ao menos no essencial, também, dignidade constitucional? […]
Pois bem: dir-se-á que o ensinamento de Kant, de harmonia com o qual o Estado tem de respeitar a liberdade ética do homem individual, tem, ainda aqui, plena atualidade. É nessa liberdade ética que, no fundo, radicará o dever admitir-se que cada homem, enquanto vivo, possa objetar à colheita de órgãos do seu cadáver para efeitos de transplantes; por outro lado, o acatamento de uma tal vontade é algo que decorre para a consciência coletiva a partir de raízes ancestrais: aquelas em que o respeito e a veneração devidos aos mortos, e a vontade que em vida manifestaram, encontram o seu fundamento.
Nesta perspetiva, entende o Tribunal que o direito da pessoa a opor-se à utilização do seu próprio cadáver para efeitos de recolha de tecidos ou órgãos, ao menos quando fundado em razões éticas, filosóficas ou de caráter religioso, tem consistência bastante para que deva ser-lhe reconhecida dignidade constitucional. Isto, como quer que, nomeadamente nesse plano, deva qualificar-se um tal direito.
[…] Certo é que a esse direito não poderá deixar de reconhecer-se um fundamento constitucional, considerados os princípios humanísticos em que a Constituição assenta – princípios esses que, de todo o modo, se manifestam de modo privilegiado nos preceitos constitucionais antes referidos [e que respeitam a determinados direitos fundamentais]. Ou seja: trata-se de um direito que, seja como for, sempre encontrará fundamento, em último termo, na própria ideia ou princípio do Estado de Direito, iluminado pelo relevo que nele tem a dignidade da pessoa humana (artigos 1º e 2º da Constituição).» (n.º 9).

Estas considerações relativas ao direito de oposição do próprio à utilização do seu cadáver tendo em vista a colheita de órgãos, tecidos e células de origem humana para fins terapêuticos ou de transplante – hoje regulada na Lei n.º 12/93, de 22 de abril – não podem deixar de valer, no mínimo por identidade de razão, relativamente à oposição da pessoa à inumação, cremação ou trasladação do seu corpo após a morte. E, nessa medida, o princípio da dignidade da pessoa humana impõe o respeito e a proteção post mortem desse bem jurídico que é a expressão física de toda e qualquer pessoa enquanto ser humano – o respetivo corpo e a sua integridade. Trata-se de uma memória ou projeção da pessoa falecida que deve ser respeitada, cabendo a atuação de tal proteção, em princípio e conforme as opções do legislador, aos seus próximos. Daí poder falar-se num direito (fundamental material) desses próximos de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais (cfr. o artigo 16.º, n.º 1, da Constituição).

10. O artigo 71.º do Código Civil afirma que os direitos de personalidade gozam igualmente de proteção depois da morte do respetivo titular (n.º 1) e atribui legitimidade a determinadas pessoas para requererem «as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida» (n.º 2). Consagra-se, deste modo, uma tutela post mortem de direitos, discutindo-se na doutrina e na jurisprudência a questão da titularidade dos bens jurídicos protegidos, se da pessoa falecida, se das pessoas indicadas no referido n.º 2 e que se presume serem próximas do falecido (sobre as diferentes posições doutrinais, v., por todos, Ana Filipa Morais Antunes, Comentário aos artigos 70.º a 81.º do Código Civil (Direitos de personalidade), Universidade Católica Editora, Lisboa, 2012, nota 2 ao art. 71.º, pp. 145-147; PEDRO PIMENTA MENDES, “Proteção dos direitos de personalidade post-mortem – Admissibilidade de uma pretensão indemnizatória?” in Revista de Direito da Responsabilidade, Ano 2, 2020, p. 334 e ss, pp. 338-344; e GABRIELA PÁRIS FERNANDES, Comentário ao Código Civil (Parte Geral), 2.ª ed., Universidade Católica Editora, Lisboa, 2023, anot. 4 ao art. 71.º, pp. 209-210).
No primeiro sentido – os interesses cuja defesa está em causa são os da pessoa falecida, a sua projeção presente, a respetiva personalidade física ou moral que existia em vida e permanece após a morte –, afirma CURA MARIANO: «o artigo 71.º do Código Civil atribui às pessoas indicadas no seu n.º 2, como direitos próprios, os direitos de defesa dos bens da personalidade do falecido, cuja preservação importa garantir após a morte […]. Estes [– os familiares e herdeiros do falecido –], ao reagirem contra ofensas à pessoa falecida, embora exerçam um direito próprio, fazem-no no interesse do de cuius, agindo em sua defesa. [… O] legislador, para manter ativo um regime de proteção dos bens da personalidade que importa preservar após a morte, confere às pessoas que se presume terem uma especial ligação ao falecido, os direitos cujo exercício garanta essa proteção.» (v. Autor cit., ob. cit., pp. 586-587; cfr. igualmente RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, ob. cit., p. 193; na jurisprudência, v, por exemplo, os Acs. STJ de 18.10.2007, P. 7B3555; de 4.11.2008, P. 8A2342); e de 24.05.2012, P. 69/09.2TBMUR.P1.S1; ou o Ac. TRG de 22.10.2020, P. 578/18.2T8VVD.G1).
No segundo sentido, refere GUILHERME MACHADO DRAY: «[a] personalidade cessa com a morte, nos termos do artigo 68º. […] Pode suceder, todavia, que alguns bens de personalidade, tais como o direito à honra e ao bom-nome, ou à confidencialidade de cartas missivas, sejam objeto de ofensa por parte de terceiros já após a morte do visado. […] A memória do falecido deve ser respeitada, não obstante a morte e a correlativa extinção dos direitos de personalidade de que aquele foi titular. O preceito [– o artigo 71.º do Código Civil –] visa, precisamente, garantir uma tutela post mortem, isto é, promover a defesa da memória do falecido, através da atribuição de determinados direitos de defesa àqueles que lhe sucedem na ordem jurídica. […] O que está em causa, verdadeiramente, é a proteção dos familiares do falecido, afetados por atos que ofendam a memória do defunto.» (Autor cit., Direitos de Personalidade – Anotações ao Código Civil e ao Código do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2006; itálico acrescentado; cfr. igualmente PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 7ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 77: «[o] preceito do artigo 71º do Código Civil não tutela direitos de personalidade do defunto, mas antes e apenas os direitos dos seus familiares e herdeiros ao respeito pelo defunto. As pessoas vivas têm direito – e também o dever – ao respeito pelos seus mortos. Trata-se, não obstante a redação da lei, de direitos de personalidade inscritos na esfera jurídica de pessoas vivas»; na jurisprudência v., por exemplo, os Acs. STJ de 15.12.2011, P. 912-B/2002.C1.S1; e de 15.05.2013, P. 2612/07.2TVLSB.L1.S1; e os Acs. TRL de 29.04.2014, P. 10708/09.0T2SNT.L1-6; e TRG de 7.12.2016, P. 3727/13.3TBBCL-A.G1.
No caso dos presentes autos, está em causa uma homenagem oficial (pública) a um cidadão particular falecido que importa a trasladação dos seus restos mortais – e não uma ofensa ilícita a bens da sua personalidade –, pelo que as relações entre a entidade que promove a homenagem e os familiares e herdeiros do homenageado revestem natureza jurídico-pública (v. infra). Acresce que o próprio regime legal da trasladação, aqui tomado como referência em virtude do destino dos restos mortais implicado na mencionada homenagem pressupor um ato dessa natureza, também é de direito público (v. infra). Deste modo, o artigo 71.º do Código Civil não é aplicável in casu, razão por que não se torna necessário tomar partido na referida controvérsia.
Por outro lado, e como evidenciado a propósito da exumação de cadáver para a realização de testes de ADN no âmbito de ações de reconhecimento da paternidade ou de ofensas à honra, os tribunais comuns reconhecem uma cumulativa natureza jusfundamental aos referidos direitos de personalidade, não hesitando em confrontá-los com outros direitos fundamentais, como é o caso do direito à identidade pessoal e ao conhecimento das próprias origens de pessoas vivas (cfr. os citados Acs. STJ de 15.12.2011 e de 24.05.2012) ou a liberdade de expressão.
Finalmente, também tende a acolher-se a existência de limites temporais para a relevância jurídica das ofensas post mortem. Ao fim de um certo tempo, as pessoas legitimadas para acionar os meios de tutela a que se reporta o artigo 71.º, n.º 2, do Código Civil passam a circunscrever-se aos descendentes. Acresce que a «própria necessidade jurídica de salvaguarda da memória do defunto [– ou a relação dos familiares deste último com tal memória –] perde normalmente peso com o decurso do tempo ou por força de necessidades sociais […] (assim, v. RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, ob. cit., p. 197; v. também ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, ob. cit., nota 9 ao art. 71.º, p. 151; e CURA MARIANO, ob. cit., p. 598).

11. Apesar de considerado como um dos bens de personalidade abrangidos pela proteção do artigo 71.º do Código Civil, o cadáver suscita problemas específicos que justificam um regime de tutela post mortem adicional e especial. Com efeito, verificado o óbito, importa dar um destino ao cadáver, assegurando não só a paz da pessoa falecida e dos seus próximos, como a salvaguarda de exigências sanitárias e de saúde pública. Daí colocarem-se questões que não relevam apenas das relações dos cidadãos entre si (como sucede com a generalidade dos direitos de personalidade enquanto tais, isto é, enquanto distintos ou autónomos dos direitos fundamentais), mas também de relações de poder (em especial, com a Administração).
Presentemente, a tutela em apreço consta do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de dezembro (alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 5/2000, de 29 de janeiro, e 138/2000, de 13 de julho, pela Lei n.º 30/2006, de 11 de julho, pelo Decreto-Lei n.º 109/2010, de 14 de outubro, e pela Lei n.º 14/2016, de 9 de junho), que estabelece o regime jurídico da remoção, transporte, inumação, exumação, trasladação e cremação de cadáveres, de cidadãos nacionais ou estrangeiros, bem como de alguns desses atos relativos a ossadas, cinzas, fetos mortos e peças anatómicas, e, ainda, da mudança de localização de um cemitério (artigo 1.º).
Em regra, e depois de lavrado o respetivo assento ou auto de declaração de óbito, o cadáver deve ser inumado ou cremado, com observância dos prazos aplicáveis (artigo 8.º). A inumação ou cremação realizam-se, em princípio, num cemitério público (artigos 11.º, n.º 1, e 18.º). A cremação também pode realizar-se num centro funerário (cfr. o artigo 108.º, n.ºs 2, alínea i), e 3, alínea f), do regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2015, de 10 de janeiro). Já a inumação só excecionalmente não tem lugar em cemitérios públicos, devendo aí ser feita em sepultura, jazigo ou local de consumpção aeróbica de cadáveres (artigo 11.º, n.ºs 1 e 2).
Os cemitérios públicos são bens dominiais possuídos e administrados pelos municípios e freguesias, afetos a um fim de utilidade pública, correspondendo a utilização de parcelas do terreno respetivo a uma forma de uso do domínio público pelos particulares (a existência do direito dos particulares ao uso privativo de uma parcela desse bem depende de prévia concessão da Administração autárquica, titulada por alvará – cfr. o Ac. STA de 24.09.1998, P. 43843; no mesmo sentido, v. os acórdãos do Tribunal de Conflitos de 8.07.2003, P. 10/02; e de 5.05.2010, P. 15/09; v. também o Ac. TCAN de 15.04.2010, P. 01249/04.2BEVIS). Esse direito ao uso privativo caracteriza-se como um direito subjetivo público.
A iniciativa de requerer a inumação ou cremação – desconsideradas as exceções (artigos 5.º, n.º 1, e 8.º, n.ºs 4 e 5, e artigo 16.º) – compete sucessivamente (artigo 3.º, n.º 1):
a) Ao testamenteiro, em cumprimento de disposição testamentária;
b) Ao cônjuge sobrevivo;
c) À pessoa que vivia com o falecido em condições análogas às dos cônjuges;
d) A qualquer herdeiro;
e) A qualquer familiar;
f) A qualquer pessoa ou entidade.
Trata-se de uma legitimidade hierarquizada, porquanto a mesma é conferida a certas categorias ou classes de pessoas segundo a ordem indicada – o que se traduz numa diferença face ao disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código Civil –, a qual obedece à presunção de que, atenta a especial ligação e proximidade da(s) pessoa(s) legitimada(s) com o falecido, os atos em causa – que não se limitam à inumação ou cremação, mas respeitam também aos demais atos regulados no Decreto-Lei n.º 411/98, como por exemplo a exumação e trasladação de cadáveres ou ossadas – são requeridos de acordo com a vontade real ou presumível do mesmo.
É este o critério decisivo e orientador das iniciativas a tomar pelas pessoas legitimadas nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98. Desde logo, porque tal previsão corresponde a uma concretização do aludido “direito de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais” (cfr. supra o n.º 9, in fine). A ordem estabelecida – em que em primeiro lugar aparece um direto executor da vontade do falecido – contribui igualmente para confirmar que é este este o sentido da hierarquia de legitimidades e da presunção em que a mesma assenta.
Com efeito, a correspondência com a vontade da pessoa falecida encontra-se plenamente assegurada no caso previsto na alínea a), uma vez que aquela declarou, para o futuro e sob uma forma legal que salvaguarda suficientemente a segurança jurídica, a sua vontade quanto ao destino desejado para os seus restos mortais, competindo ao testamenteiro fazê-la cumprir (cfr. os artigos 2179.º, n.º 2, 2320.º, 2325.º e 2326.º, todos do Código Civil). Contra a vontade da pessoa falecida assim manifestada, não valem as convicções, interesses ou conveniências das demais pessoas referidas naquele preceito do Decreto-Lei n.º 411/98.
Mas, mesmo na ausência de tal manifestação de vontade, as pessoas em causa devem orientar-se pelo critério da vontade do defunto. Na verdade, essas pessoas são indicadas, com base na presunção de que, devido à proximidade em relação a este último, se encontram em melhores condições para conhecer a sua vontade real ou determinar a respetiva vontade presumível. A ordem por que são indicadas as categorias em que se integram reflete uma proximidade decrescente. Assim, os mais próximos (cônjuge sobrevivo ou herdeiros, por exemplo) precedem sobre os menos próximos (descendentes não herdeiros ou qualquer pessoa ou entidade).
A trasladação pressupõe a exumação (ou seja, «a abertura de sepultura, local de consumpção aeróbia ou caixão de metal onde se encontra inumado o cadáver» – artigo 2º, alínea f), do Decreto-Lei n.º 411/98) e consiste no «transporte de cadáver inumado em jazigo ou de ossadas para local diferente daquele em que se encontram, a fim de serem de novo inumados, cremados ou colocados em ossário» (artigo 2º, alínea g) ). A exumação e a trasladação devem ser requeridas à entidade responsável pela administração do cemitério – a câmara municipal ou a junta de freguesia – onde o cadáver ou as ossadas estiverem inumados, mas o deferimento do requerimento é da competência da entidade responsável pela administração do cemitério para o qual vão ser trasladados o cadáver ou as ossadas, mediante solicitação da entidade à qual o mesmo foi apresentado (artigo 4.º, n.ºs 2 e 3).
Note-se que as disposições do Decreto-Lei n.º 411/98 se devem articular ainda com as normas jurídicas constantes do Decreto n.º 48770, de 18 de dezembro de 1968 (incluindo as do Modelo de Regulamento dos Cemitérios Municipais aprovado por tal diploma), assim como com as normas dos regulamentos dos cemitérios, na medida em que estas não contrariem aquelas, uma vez que, nos termos do artigo 32.º, n.º 2, do primeiro daqueles diplomas, só foram revogadas as normas constantes do segundo (e constantes dos regulamentos dos cemitérios) que o contrariem.

12. Uma segunda especialidade quanto à tutela dos restos mortais de pessoas falecidas relevante no caso dos presentes autos resulta do regime legal das honras do Panteão Nacional constante da Lei n.º 28/2000, de 9 de junho (alterada pelas Leis n.ºs 35/2003, de 22 de agosto, e 14/2016, de 9 de junho), nomeadamente quando esteja em causa a deposição no Panteão Nacional dos restos mortais dos cidadãos distinguidos (cfr. os artigos 1.º e 2.º, n.º 2, alínea a), da mencionada lei).
O depósito em Panteão Nacional do cadáver ou ossadas daqueles a quem caiba essa distinção constitui, precisamente, uma das exceções à obrigatoriedade de inumação em cemitérios públicos (artigo 11.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 411/98). E o artigo 31.º-A do citado Decreto-Lei n.º 411/98 – aditado pela Lei n.º 14/2016 – ressalva que o disposto naquele diploma em matéria de prazos e procedimentos não prejudica a concessão de honras do Panteão Nacional, mormente as que consistam na referida deposição de restos mortais. Tal significa que os termos concretos definidos para a concessão dessas honras em cada caso prevalecem sobre os procedimentos legalmente previstos no Decreto-Lei n.º 411/98.
Todavia, a mencionada deposição de restos mortais no Panteão Nacional, até pela exigência do decurso do prazo mínimo legalmente previsto – 20 anos sobre a morte das pessoas distinguidas (cfr. o artigo 4.º, alínea a), da Lei n.º 28/2000 –, não dispensa a exumação e posterior trasladação das ossadas. Daí que, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana (cfr. supra o n.º 9) – que já enforma o critério orientador do requerimento daqueles atos, em conformidade com o disposto no Decreto-Lei n.º 411/98 –, seja fundamental assegurar a autorização ou não oposição aos mesmos por parte das pessoas legalmente legitimadas para os promover. Ou seja, também neste caso – até por maioria de razão –, o critério orientador deve ser a vontade real ou presumível da pessoa distinguida.
Na verdade, as honras do Panteão constituem em si mesmas – objetivamente – algo de positivo, na medida em que visam homenagear e perpetuar a memória de quem se distinguiu por serviços prestados ao País (cfr. o artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 28/2000). Por isso mesmo, tais honras não podem ser consideradas como uma ofensa ou ameaça de ofensa à pessoa distinguida, a justificar providências de defesa. Contudo, não pode excluir-se que o próprio distinguido, seja por que ordem de razões for – religiosas, morais, filosóficas, ideológicas ou outras – se tenha manifestado alguma vez (ou adotado comportamentos que pudessem indiciar ser) contra aquele tipo de homenagem e, nesse caso, tais razões devem ser respeitadas. Assim, para acautelar esse tipo de objeções, torna-se necessário consultar as pessoas legitimadas nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98 a prover ao destino dos restos mortais de pessoa falecida. Mas tais pessoas devem pronunciar-se seguindo o mencionado critério orientador, e não as suas próprias convicções, interesses ou conveniências.

§ 2.º – A necessidade de uma autorização unânime dos herdeiros vivos de GG
para a trasladação dos seus restos mortais para o Panteão Nacional

13. Criticando o acórdão recorrido, começam os recorrentes por sustentar que a vontade de GG foi mais bem interpretada e por isso respeitada e feita cumprir pela geração dos seus netos, «que, enquanto mais próximos portadores da memória do grande Escritor e mais diretos intérpretes da sua vontade, decidiram e fizeram conjuntamente trasladar os restos mortais de seu Avô para o cemitério de Santa Cruz do Douro», sendo que essa vontade intuída do falecido e respeitada pelos familiares da geração mais próxima dele – os netos, entretanto falecidos – «é também hoje, a vontade dos [recorrentes] que, em nome deles e em seu próprio nome, reclamam o respeito “… pela personalidade moral de quem morreu, no exercício de uma legitimidade que não é de quem morre mas de quem lhe sucedeu”» (cfr. as conclusões 2.ª e 3.ª das respetivas alegações de recurso; as referências ao Ac. STJ de 11.12.2003, P. 03B2523, nas conclusões 3.ª e 4.ª surgem como paradoxais, uma vez que nessa decisão, pressupondo-se que “a finitude da vida não é morrer, mas apenas a finitude do corpo”, que “a morte é sair da memória” e que na nossa cultura “a memória tem um sítio”, se acaba por defender que, na ausência de disposição testamentária eficaz, as pessoas legitimadas para tomar decisões nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98 o façam segundo um juízo de ponderação de interesses centrado em quem decide – e não na vontade presumível do falecido – tendo em conta que «no espaço ou local concreto, onde estão os cadáveres ou as ossadas dos que nos são queridos, ou onde repousam as cinzas daqueles que amámos (ainda que esse local seja o mar ou uma roseira no jardim), aí fazemos o centro do culto dessa memória que é nossa e da personalidade moral de que a morte do corpo da pessoa amada nos fez, apesar de nós, depositários»).
O “direito de fazer respeitar a vontade do falecido homenageado” – in casu a vontade de GG –, também mencionado na conclusão 2.ª das alegações de recurso, corresponde ao aludido direito de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais (cfr. supra o n.º 9, in fine) que existe e de que são titulares os respetivos descendentes (cfr. o artigo 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 411/98).
Simplesmente, na sua concretização legal operada pelo referido preceito, tal direito, no caso dos herdeiros ou familiares, compete exclusivamente àqueles que se encontram vivos no momento em que se coloca a questão da prática de qualquer dos atos aí previstos (hoje somente 22 bisnetos – cfr. a alínea d) dos factos provados) e o seu exercício traduz-se na manifestação de uma vontade atual, e não na “representação de uma vontade anteriormente expressa” (que seria in casu a dos bisnetos ora recorrentes em relação à vontade da maioria dos netos expressa em 1989). Acresce que a prévia trasladação das ossadas de GG para o Cemitério de Santa Cruz do Douro (cfr. a alínea c) dos factos provados), mesmo que unanimemente aceite pelos familiares (conclusão 5.ª), não impede uma trasladação posterior para outro local (impondo-se a determinação da vontade presumível do falecido em face de novas circunstâncias ou imprevistos).
E também a oposição passada à “hipótese” de deposição no Panteão Nacional dos restos mortais de GG (formal ou apenas informalmente discutida? – os autos não esclarecem nem os termos de tal “hipótese” nem as razões da referida oposição) por parte da maioria dos netos (cfr. a alínea i) dos factos provados e a conclusão 5.ª das alegações de recurso) não compromete necessariamente uma posterior autorização pelos bisnetos relativa a um novo projeto devidamente concretizado e formalizado de concessão de honras do Panteão sob a mesma forma. Com efeito, e sem prejuízo de se admitir que dentro de um intervalo temporal razoável (cfr. supra o n.º 10, in fine) a oposição formal dos familiares mais próximos da pessoa que se pretende homenagear deva relevar como impedimento a novas tentativas de homenagem substancialmente idênticas à que foi anteriormente rejeitada, não existem nos autos elementos factuais que permitam concluir tratar-se de uma situação desse tipo. De resto, nem tal é alegado pelos recorrentes. Subscreve-se, por isso, a seguinte afirmação do acórdão recorrido (cfr o n.º 6, in fine, da parte referente ao mérito do pedido cautelar):
«[N]ão temos por relevantes as anteriores conversações preparatórias, em 1989, para possível trasladação do corpo do escritor para o Panteão, então abandonadas por oposição de netos, pois que, ainda que essa oposição tivesse sido formal e unânime – o que não resulta comprovado –, sempre seria impensável que uma posição tomada, em determinada momento e num dado contexto, por parte dos conjunturais descendentes da altura, pudesse ter o efeito de comprometer, para todo o sempre, a possibilidade de futuras, e acaso distantes, iniciativas de homenagem.».

Assim sendo, e por todas e cada uma das razões referidas, perde substância a ideia de que a vontade de GG relativamente ao projeto de homenagem consubstanciado no ato suspendendo – a Resolução n.º 55/2021 da Assembleia da República – tenha sido «melhor interpretada e feita cumprir pela geração dos Netos», mais de 30 anos antes, não obstante estes serem os «mais próximos portadores da memória» daquele escritor e «mais diretos intérpretes da sua vontade». Do mesmo modo, não se pode aceitar a reivindicação de uma “herança moral dos direitos de personalidade de GG” assente na interpretação da vontade do escritor feita pela geração dos seus netos – os pais dos 22 bisnetos do escritor ainda vivos – quanto à mesma homenagem e de que os ora recorrentes seriam os únicos representantes. Aliás, tal interpretação pura e simplesmente não existe, porque, atenta a factualidade dada por assente nos presentes autos, as circunstâncias de 1989 não são as de 2023.
Decerto que, como mencionado, é a vontade (presumível) do escritor que deve servir de critério orientador relativamente à posição a tomar por quem esteja legalmente legitimado para o efeito em relação à trasladação implicada nas honras concedidas pela Resolução n.º 55/2021 da Assembleia da República (cfr. supra o número anterior). O que não se pode dizer é que tal vontade (i) se encontre «sucessivamente consolidada e incontestada ao longo de décadas»; e (ii) seja a “fonte da legitimidade” dos recorrentes, «enquanto herdeiros lato sensu da personalidade moral do falecido, para se oporem eficazmente à trasladação» (cfr. a conclusão 4.ª), isto é, a fonte de uma regra de unanimidade na não oposição por parte dos familiares à trasladação (cfr. as conclusões 5.ª, 6.ª, 7.ª, 9.ª, 10.ª e 11,ª), conferindo a cada um deles um direito de veto obstativo da possibilidade de trasladações consoante a vontade das maiorias que futuramente e a todo o tempo se fossem formando (cfr. o n.º 33 das alegações de recurso e a respetiva conclusão 11.ª).

14. Quanto a tal “oposição eficaz à trasladação” por parte dos bisnetos ora recorrentes, demonstra-se no acórdão recorrido, em primeiro lugar, que a maioria dos descendentes de GG não se opõe à trasladação dos restos mortais deste para o Panteão Nacional (cfr. o n.º 3 da parte referente ao mérito do pedido cautelar):
«Segundo resulta dos autos, todos os filhos e netos do escritor são hoje falecidos, encontrando-se vivos somente bisnetos seus (entre estes, os 6 Requerentes).
Ora, conclui-se que os 6 bisnetos Requerentes (ainda que aditando um 7º residente no Brasil, por eles indicado como posicionando-se contra a trasladação), representam uma minoria dos bisnetos, já que outros 13 bisnetos são, pelo contrário, favoráveis à trasladação dos restos mortais do escritor para o Panteão (tal como confirmaram ao Parlamento ainda em 18 de Julho passado - cfr. Doc. 1 junto com a oposição da “AR”).
E ainda que sigamos a argumentação dos Requerentes no sentido de não se contabilizar a totalidade dos bisnetos a favor ou contra, mas, diferentemente, de se analisar a representatividade dos mesmos por “estirpes” – querendo, com isto, significar a representatividade por cada uma das 5 linhas de descendência (netos) do filho HH (único dos 4 filhos do escritor com descendentes vivos) –, concluímos que os 6 Requerentes (ainda que aditando o 7º bisneto alegadamente aderente) continuam a representar uma minoria dos descendentes (bisnetos) vivos.
[…]
Desta forma, verifica-se que não só, na totalidade, os 13 bisnetos a favor da trasladação suplantam numericamente os 6 bisnetos Requerentes contra (ainda que se adite um 7º bisneto, supostamente contra, residente no Brasil), como também os bisnetos a favor da trasladação estão em maioria em 3 das 5 estirpes representativas dos netos do escritor (KK, LL e MM) relativamente às restantes 2 estirpes, representativas dos netos II e JJ.
Em suma, tudo indica não se confirmar o fundamento em que os Requerentes se sustentam para pugnar pela não trasladação dos restos mortais do escritor: a de representarem a vontade da maioria dos descendentes vivos (bisnetos) do escritor, uma vez que tal não parece suceder, quer em termos de contabilização total, quer em termos de contabilização por “estirpes” (correspondentes aos 5 netos, filhos do único dos 4 filhos do escritor com descendentes vivos).
[…]
Estamos […] perante uma larga maioria de descendentes aderentes (praticamente, o dobro dos Requerentes), ainda que contabilizemos, como contrário à trasladação, o bisneto residente no Brasil, fazendo fé nas declarações dos Requerentes nesse sentido. Aliás, cumpriria aos Requerentes comprovar a necessária maioria, como decorre da lei (cfr. sentido da Recomendação abaixo citada do Provedor de Justiça), o que manifestamente não fazem.».

Seguidamente, refere-se o seguinte, quanto à invocada exigência de unanimidade (cfr. o n.º 4 da parte referente ao mérito do pedido cautelar):
«[Reconhecendo aos descendentes de um homenageado o direito sobre a disponibilidade dos respetivos restos mortais, num dado momento já distante do seu falecimento] (sustentado na qualidade de familiares, prevista no DL nº 411/98, de 30/12, diploma que invocam no req. i.), este direito deve ser exercido e considerado de acordo com a opinião e vontade da maioria dos descendentes mais próximos, sendo impensável exigir-se uma unanimidade, como defendem os Requerentes, que se traduziria num direito de veto de, acaso, apenas um deles. Tanto mais quanto o número de descendentes tenderá a aumentar geometricamente a cada nova geração,
Assim, a ter-se como relevante, como defendem os Requerentes, a posição dos familiares quanto à disponibilidade dos restos mortais do Escritor, tal posição não pode deixar de ser aferida senão “por maioria”. Neste sentido, veja-se, quanto à interpretação das invocadas normas do DL n° 411/98, de 30/12, o entendimento e recomendação do Provedor de Justiça, com que se concorda (Recomendação nº 3/A/2003, de 26/3/2003, Proc.º: R-58I5/01):
“(...) 14. Relativamente ao conceito de legítimo interessado, fundamental para a aplicação da solução legal acima defendida, determina o artigo 3.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, na redação a este dada pelo Decreto-Lei 138/2000, de 13 de Julho, estar habilitado a requerer a prática do ato de trasladação, no caso de sucessão legítima ou legitimária, qualquer herdeiro.
15. Aplicando-se esta regra "qua tale", deparar-nos-íamos com uma solução jurídica e materialmente inaceitável, na medida em que a mesma possibilitaria alimentar eventuais conflitos pessoais entre os diversos herdeiros, numa clara e censurável instrumentalização dos restos mortais alvo de disputa, contrariando os principias da certeza e segurança que devem presidir à prática de qualquer ato jurídico, assim como o respeito à memória das pessoas já falecidas e, em última instância, do interesse público presente em atos desta natureza.
16. Resulta assim do exposto que a solução a acolher nesta matéria será aquela, nos termos da qual, dentro de cada classe de interessados legítimos em causa, deverá observar-se a regra da maioria, de resto explicitamente consagrada no artigo 29.º do Modelo de Regulamento dos Cemitérios Paroquiais [sic], parte integrante do diploma de 1968.
17. Ora, na situação trazida ao conhecimento deste Órgão de Estado, a Senhora D. XXX parece contar com a concordância de um outro herdeiro, num universo de três, garantindo-se assim a maioria necessária para requerer a prática do ato fúnebre em causa, pelo que também relativamente a este aspeto não se levantam quaisquer dúvidas sobre a oportunidade e legalidade do ato de deferimento da pretensão oportunamente formulada (...)”.».

Subscrevendo esta apreciação, cumpre em todo o caso salientar mais alguns aspetos.
Em primeiro lugar, e como já mencionado (cfr. supra o n.º 11, in fine), as normas do Modelo de Regulamento dos Cemitérios Municipais, aprovado pelo Decreto n.º 48770, de 18 de dezembro de 1968, encontram-se em vigor na medida em que não contrariem o disposto no Decreto-Lei n.º 411/98 (cfr. o artigo 32.º, n.º 2, deste decreto-lei). De resto, isso mesmo é reconhecido no n.º 4 da citada Recomendação («No tocante ao chamado direito mortuário português, veio o Decreto-Lei n.º 411/98 […] estabelecer o regime jurídico a observar neste domínio, revogando nos termos do seu artigo 32.º, n.º 2, todas as normas jurídicas constantes do Decreto n.º 48 770, de 18 de dezembro de 1968, e dos regulamentos dos cemitérios, que contrariem o disposto no mesmo»). Ora, quanto à regra da maioria em análise, verifica-se que a mesma não só não contraria o disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea e), do Decreto-Lei n.º 411/98 – ainda que os familiares constituam uma categoria mais ampla do que a dos descendentes –, como deve ser aplicada por identidade de razão às situações subsumíveis à alínea d) – qualquer herdeiro – do mesmo preceito (estas duas alíneas concretizam o «alargamento das categorias de pessoas com legitimidade para requerer a prática de atos regulados» no Decreto-Lei n.º 411/98, mencionado no n.º 2 do respetivo preâmbulo). Com efeito, estabelece-se o seguinte em matéria de legitimidade quanto à trasladação no citado Modelo de Regulamento:
«Art. 29.º As trasladações serão requeridas pelos interessados à autoridade policial competente, só podendo efetuar-se com autorização desta.
§ único. Têm legitimidade para requerer a trasladação o cônjuge sobrevivo ou, não existindo este, a maioria dos descendentes do finado (maiores ou emancipados), e, na falta de todos, o seu parente mais próximo, bem como o testamenteiro, em cumprimento de disposição testamentária.» (itálicos acrescentados)

Em segundo lugar, no caso sub iudicio, a questão da necessidade de autorização ou não oposição relativamente à deposição dos restos mortais de GG no Panteão Nacional, por implicar a trasladação dos mesmos do Cemitério de Santa Cruz do Douro, vem colocada – e bem – com referência à legitimidade para requerer tal ato ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98. Ainda nos termos dos presentes autos, apenas vem considerada a elegibilidade como familiares (ou herdeiros) para tais efeitos dos “descendentes vivos mais próximos de GG”, isto é, «somente bisnetos (em número de 22 – entre estes, os 6 Requerentes)» (cfr. a alínea d) dos factos provados). Consequentemente, não é necessário determinar o sentido e alcance precisos do conceito de “familiares” neste contexto.
Em terceiro lugar, a regra da maioria é aquela que, nos casos de pluralidade de sujeitos legitimados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98, melhor se coaduna com a teleologia desse preceito: assegurar a correspondência do ato requerido com a vontade real ou presumível da pessoa falecida em relação ao destino post mortem dos seus restos mortais (cfr. supra o n.º 11). Com efeito, exigir a unanimidade ou reconhecer um “direito de veto” a um qualquer herdeiro ou familiar seria suscetível de colocar nas mãos desse familiar ou herdeiro o direito de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais, potenciando conflitos com os demais familiares ou herdeiros legitimados e, sobretudo, pondo em causa o respeito pela memória do falecido. Ou seja, a exigência de uma atuação conjunta de todos os legitimados poderia revelar-se contrária aos fins da tutela jurídica dos restos mortais da pessoa falecida. Por outro lado, e numa perspetiva positiva, a determinação da vontade real ou presumível do falecido por uma maioria de pessoas que foram ou são próximas do mesmo oferece as garantias adequadas em termos de segurança jurídica e de experiências de vida diferenciadas aptas a perspetivar situações muito variadas.
Por ser assim, o alcance da legitimidade prevista no artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98 não é apenas procedimental-instrumental; a mesma, uma vez atuada – o que se traduz na apresentação à autoridade competente de um pedido de autorização – significa substantivamente o exercício do mencionado direito de defesa da memória do falecido quanto ao destino dos seus restos mortais.
Finalmente, e como já referido, nada há na lei que obste à realização de mais do que uma trasladação (cfr. supra o número anterior). Tudo depende, na perspetiva aqui adotada, da interpretação ou determinação da vontade real ou presumível feita por quem tem legitimidade para tanto, não podendo excluir-se a priori que novas circunstâncias ou imprevistos imponham uma reponderação de decisões anteriormente adotadas.
Improcedem, assim, as conclusões 4.ª, 5.ª, 7.ª, 8.ª, 9.ª, 10.ª e 11.ª.

15. Os recorrentes, tal como já haviam feito na 1.ª instância, procuram fundar a exigência de unanimidade também na consideração dos restos mortais como um componente da herança e, como tal, pertença de todos os herdeiros:
– Conclusão 6.ª das alegações de recurso:
«Unanimidade que encontra eco na natureza incindível quer da herança moral dos direitos de personalidade do seu falecido Bisavô, como acima defendido, quer dos seus restos mortais, pertenças de todos os descendentes, que são os únicos titulares do direito a deles disporem, em conjunto, como resulta da norma do artigo 2091° do CC. Norma que o Tribunal recorrido considerou inaplicável no caso e que, por isso, também violou»;

– Conclusão 7.ª das alegações de recurso:
«Os restos mortais do Bisavô dos Requerentes não pertencem à Assembleia da República nem à Fundação ...: eles materializam, na contingente realidade das coisas terrenas, um acervo indivisível, enquanto tal transmissível e pertencente a todos os descendentes, e, nessa qualidade, com legitimidade, também incindível para decidir sobre o seu destino».

Porém, tal como se entendeu no acórdão recorrido, esta posição assenta num pressuposto errado (cfr. o n.º 5 da parte referente ao mérito do pedido cautelar):
«Os Requerentes, estando em minoria na oposição à trasladação, contestam [a] regra da maioria, insistindo na necessidade de unanimidade, invocando a favor desta sua posição o disposto no art, 2091º do Código Civil, que institui a regra de que “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”. Entendemos, porém, que esta norma não tem aplicação na questão aqui em discussão visto que se trata de norma prevista em matéria de “administração da herança” do “de cujus” (cfr. epígrafe do Capítulo que se inicia com o art. 2079º do C. Civil, onde se inclui a dita norma), sendo certo que não só não é a “herança” do Escritor, ou a respetiva administração, que está em causa nos presentes autos, como também os Requerentes, tal como os restantes bisnetos, não são, em rigor, “herdeiros”, mas sim “familiares/descendentes” daquele.
Efetivamente, a noção formal de “herdeiro” afere-se, no Código Civil, por reporte ao momento da abertura da sucessão do “de cujus", reconduzindo-se, pois, às pessoas chamadas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e à devolução dos bens que a esta pertenciam – como se retira dos arts. 2024º, 2031º e 2032º do C. Civil.».

Na verdade, é pacífico na doutrina e na jurisprudência que os restos mortais de alguém não são suscetíveis de apropriação individual e privada – não integram a categoria dos bens patrimoniais –, pelo que não tem sentido a sua integração na herança. Aliás, surgindo o cadáver com a morte do de cuius, nem sequer pode ser considerado um “bem que a este pertencia”, a devolver aos sucessores (cfr. o artigo 2024.º do Código Civil).
Mesmo considerando o cadáver juridicamente uma “coisa”, tratar-se-á de uma res extra commercium, e, como tal, uma coisa que não pode ser objeto de direitos (patrimoniais) privados por ser insuscetível de apropriação individual (cfr. o artigo 202.º, n.º 2, do Código Civil; v. também CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, AAFDL, Lisboa, 1978, p. 391). Nesse sentido, afirma CARVALHO FERNANDES:
«Sem deixar de reconhecer a atenção que [aos] sentimentos dominantes sobre o significado do cadáver humano deve ser dada [– a piedade e o respeito pelos mortos –], não parece porém, que lhe possa caber outra qualificação que não seja a de coisa. Nem por isso deve deixar de se ter em conta que a sua natureza, derivada da sua sacralidade, justifica um regime particular, traduzido, desde logo, na sua extracomercialidade. O cadáver pertence à categoria das coisas fora do comércio jurídico (res extra commercium), mas, ainda assim, com um regime particular que o demarca das coisas em geral. Traduz-se ele em o cadáver não poder ser, em princípio, objeto de atos jurídicos, só sendo lícitos os expressamente admitidos pelo Direito» (Autor cit., Teoria Geral do Direito Civil, I, 5.ª ed., Universidade Católica editora, Lisboa, 2009, p. 726).

Na jurisprudência, pode consultar-se, a título de exemplo, o Ac. STJ de 9.02.2006, P. 06B202:
«Conforme resulta do artigo 68º, nº 1, do Código Civil, a um tempo, a morte faz cessar a personalidade jurídica e implica o surgimento do que foi o seu suporte material, ou seja, o cadáver.
[…]
A lei caracteriza, por um lado, o cadáver como o corpo humano após a morte até estarem terminados os fenómenos de destruição da matéria orgânica (artigo 2º, nº 1, alínea i), do Decreto-Lei nº 411/98, de 30 de Dezembro).
E, por outro, considera coisa tudo aquilo que pode ser objeto de relações jurídicas, mas logo estabelecendo considerarem-se fora do comércio as coisas que não podem ser objeto de direitos privados (artigo 202º do Código Civil).
Assim, o cadáver em si, na sua existência efémera até à destruição, é uma coisa que não integra a herança e que, por razões de piedade e respeito pelos mortos, queda excluído do tráfico jurídico normal.».

É evidente que o que é dito em relação ao cadáver vale, por identidade de razão, em relação às ossadas – na definição do artigo 2.º, alínea j), do Decreto-Lei n.º 411/98: «o que resta do corpo humano uma vez terminado o processo de mineralização do esqueleto» –, uma vez que estas correspondem a um novo estádio do corpo humano após a morte, designadamente ao que resta depois da destruição completa da matéria orgânica do cadáver, processo que, consoante o ambiente em que este se encontre, pode ter uma duração variável de alguns anos (cfr. o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 411/98).
Finalmente, e reforçando a inaplicabilidade de normas enformadas pela teleologia específica do direito sucessório, como é o caso do artigo 2091.º do Código Civil, importa considerar que as categorias de pessoas com legitimidade para requerer a prática dos atos regulados no Decreto-Lei n.º 411/98, são determinadas na base de um critério de proximidade em relação à pessoa falecida e da presunção nela fundada de que estarão em melhores condições para determinar a respetiva vontade real ou presumível em relação ao destino a dar aos restos mortais de tal pessoa (cfr. supra o n.º 11). Por isso, tem aqui aplicação a consideração feita no Ac. STJ de 18.10.2007, P. 7B3555, n.º III.5, em relação à situação, neste aspeto, paralela do artigo 71.º, n.º 2, do Código Civil:
«O n.º 2 deste artigo 71.º do Código Civil, de alcance instrumental em relação ao que se prescreve no seu n.º 1, elenca as pessoas com legitimidade para requererem as providências previstas no n.º 2 do artigo anterior, ou seja, o cônjuge sobrevivo, os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os sobrinhos ou herdeiros do falecido.
Resulta deste normativo que a legitimidade a que se reporta abstrai da posição jurídica de herdeiro em relação à pessoa falecida à qual foi dirigida a ofensa, mas tem por relevante a proximidade familiar ou presumivelmente afetiva.
A referida legitimidade inscreve-se na titularidade das pessoas mencionadas naquele normativo, ou seja, trata-se de interesses em agir próprios funcionalmente dirigidos à proteção de vertentes da personalidade do defunto, que, por força da lei, se destacaram para além da morte.»

Improcedem, pois, também por todas estas razões, as conclusões 6.ª e 7.ª das alegações dos recorrentes.

§ 3.º – A alegada nulidade do ato suspendendo por ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental e por ter sido praticado com preterição absoluta do procedimento legalmente exigido

16. No pressuposto de que seria exigível a concordância de todos os bisnetos relativamente à projetada trasladação dos restos mortais de GG para o Panteão Nacional, os recorrentes consideram que, atenta a omissão da sua consulta e a inobservância de qualquer procedimento tendente a realizá-la, o ato suspendendo seria nulo (cfr. as conclusões 12.ª e 13.ª, 1.ª parte, das alegações dos recorrentes):
«A preterição da consulta dos Recorrentes sobre a iniciativa da trasladação era imperativa, porque ingere diretamente na decisão enquanto seu pressuposto essencial e necessário, decisão que não pode ser tomada sem a concordância de todos os Bisnetos de GG, sob pena de nulidade, por ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental. […]
Consequentemente, deve ser revogado o Acórdão recorrido por violação de lei, designadamente dos artigos 70° e 71°, nºs 1 e 2 e 2091º do Código Civil, 6º, nº 2, 17º, 18º, 20º, nº 5 e 25º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 161º, n° 2, alíneas d) e l), do CPA.»

Liminarmente cumpre recordar que o direito fundamental em causa, atenta a forma das honras do Panteão Nacional a conceder – a deposição no Panteão dos restos mortais da pessoa distinguida –, é, pelas razões já expostas, o direito de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais, na titularidade das pessoas legalmente legitimadas para requerer a exumação e subsequente trasladação da pessoa em causa (cfr. supra os n.ºs 9, in fine, e 12).
Assim, existindo uma pluralidade de herdeiros ou familiares legitimados para o efeito, o critério decisivo da autorização ou não oposição é o da maioria, e não o da unanimidade (cfr. supra o n.º 14). In casu, verifica-se a existência de uma maioria de pessoas legitimadas nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98 de que não fazem parte os seis recorrentes (cfr. as alíneas d), e) f) e g) dos factos provados). Consequentemente, a expressão da vontade destes quanto à exumação e posterior trasladação não é essencial para a autorização destes atos, razão por que a sua não audição também não consubstancia no caso concreto uma violação do conteúdo essencial do mencionado direito fundamental, nos termos e para os efeitos da alínea d) do artigo 161.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo.
Acresce, conforme decorre do artigo 31.º-A do Decreto-Lei n.º 411/98 e da própria Lei n.º 28/2000 (que define e regula as honras do Panteão Nacional), que não se encontra previsto legalmente um procedimento específico destinado a auscultar aqueles que se devem pronunciar em defesa da memória da pessoa homenageada (cfr. supra o n.º 12), razão por que não pode falar-se in casu da “preterição absoluta do procedimento legalmente previsto”, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea l) do artigo 161.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo.
Estas duas circunstâncias afastam a invocada nulidade do ato suspendendo.
Por outro lado, ainda a propósito do artigo 31.º-A do Decreto-Lei n.º 411/98, são pertinentes e esclarecedoras as seguintes considerações feitas pela Assembleia da República nas suas contra-alegações (cfr. o respetivo ponto, 6 in fine):
«[O] artigo 31.º-A, […] aditado ao Decreto-Lei n.º 411/98, passou a determinar expressamente (confirmando o costume consolidado desde o século XIX) que “o disposto no presente diploma em matéria de prazos e procedimentos não prejudica a concessão de honras do Panteão Nacional”, eliminando qualquer dúvida quanto à legitimidade da Assembleia da República para desencadear os atos conducentes à trasladação e, por outro lado, harmonizando os dois diplomas.
Estando já excecionado o Panteão Nacional como local de inumação fora do cemitério público, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 411/98.
Não há, pois, necessidade de um requerimento à gestão cemiterial para se proceder ao desencadear da trasladação, uma vez que a decisão determinante é a da concessão de honras do Panteão pela própria Assembleia.
Não foi preterida nenhuma formalidade ou qualquer aspeto do regime jurídico potencialmente conducente à nulidade ou outra forma de invalidade do ato aprovado pela Assembleia da República, por unanimidade, no dia 15 de janeiro de 2021.
[A] Assembleia da República foi informada pela Fundação ..., de que esta diligenciou a auscultação dos descendentes vivos (bisnetos) quanto à sua posição sobre a trasladação e que revelou precisamente a existência de expressiva maioria de apoio (reiterada por escrito nos termos dos documentos juntos aos autos), bem como de posição contrária de alguns familiares (os Requerentes da providência).
As respostas então recebidas pela Requerida revelaram precisamente a existência de expressiva maioria de apoio entre os bisnetos, bem como de posição contrária de alguns bisnetos (tendo então dois dos hoje Requerentes da providência, BB e EE, manifestado expressamente a sua oposição).
A referida posição favorável seria reiterada posteriormente por escrito nos termos do documento elaborado em julho pretérito (documento junto aos autos) e que é agora confirmada por nova declaração pelos mesmos treze bisnetos (documento junto aos autos).
A intermediação da Fundação ... nos referidos contactos resulta, com naturalidade, de três fatores, que em nada têm a ver com a sua qualidade de herdeiro (de que não carece para os efeitos a que foi chamada a colaborar com a Assembleia da República e para integrar o Grupo de Trabalho): i) foi sua a iniciativa inicial de desafiar a Assembleia da República a conceder as honras do Panteão; ii) foi instituída expressamente para preservar o espólio e legado de GG por decisão tomada no contexto familiar; e iii) desde 1989, na qualidade de proprietária do jazigo, tem assegurado a guarda dos restos mortais de GG, sem contestação por parte de qualquer dos Requerentes.
Assim, não se mostra preterida qualquer auscultação dos Requerentes da providência no âmbito dos procedimentos conexos à concessão de honras do Panteão Nacional ao Bisavô daqueles.».

Ou seja, confirma-se não só a inexistência de qualquer procedimento específico, como também o apuramento, no âmbito do procedimento que culminou na aprovação da Resolução n.º 55/2021, de que, na categoria relevante para o exercício do direito de defesa da memória de GG quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais – os seus 22 bisnetos –, existia uma maioria favorável à trasladação para o Panteão Nacional dos restos mortais do escritor.
Por ser assim, é também de subscrever a posição assumida no acórdão recorrido (cfr. o n.º 8 da parte referente ao mérito do pedido cautelar):
«Os Requerentes assentam, também, a sua alegação de invalidade do ato suspendendo na circunstância de não terem sido auscultados, pela Assembleia da República, quanto ao propósito da trasladação dos restos mortais do Escritor para o Panteão.
Porém, seguindo a solução legal da relevância da vontade da maioria dos atuais descendentes mais próximos, como acima se expôs, o que o Parlamento teria de ter assegurado era que essa maioria se verificava “in casu”. E tudo aponta para que assim o fez, tendo-lhe sido comunicado, designadamente através da “Fundação ...”, que tal maioria se verificava-o que veio, de resto, a comprovar-se ser inteiramente verdade, e, como vimos, por larga margem.
Assim, a auscultação dos Requerentes seria um ato inútil visto que, ainda que manifestando a sua oposição, esta em nada relevaria, por ser uma posição minoritária, em face de uma outra posição, maioritária, já manifestada.
Mas ainda que devessem ser auscultados, tal omissão não seria suscetível de obstar ao aproveitamento do ato, nos termos previstos no art. 163º nº 5 c) do CPA, provado que ficou que, mesmo que tivesse sido levado a cabo tal auscultação dos Requerentes e estes se opusessem (como se opõem), o ato suspendendo poderia, ainda assim, ser validamente praticado, em vista da clara maioria dos familiares/descendentes a favor da trasladação e a consequente clara minoria dos familiares/descendentes em oposição (os ora Requerentes).».

Improcedem, por conseguinte, as conclusões 12.ª e 13.ª, 1.ª parte, das alegações dos recorrentes.

17. A improcedência das conclusões das alegações de recurso dos recorrentes quer em relação à exigência de unanimidade dos bisnetos de GG para autorizar a trasladação para o Panteão Nacional dos respetivo restos mortais, quer em relação à invocada nulidade do ato suspendendo, devido à ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental ou à preterição total do procedimento legalmente exigido em matéria de auscultação dos recorrentes sobre a mencionada trasladação, tem como consequência o não preenchimento do requisito positivo do fumus boni iuris para a concessão da requerida providência cautelar (cfr. o artigo 120.º, n.º 1, do CPTA), o que, por si só, constitui condição suficiente para negar provimento ao presente recurso.

III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Confirmar o despacho de admissão do presente recurso:
b) Julgar improcedentes as questões prévias;
c) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 25 de janeiro de 2024. - Pedro Manuel Pena Chancerelle de Machete (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - José Augusto Araújo Veloso - José Francisco Fonseca da Paz - Ana Paula Soares Leite Martins Portela - Maria do Céu Dias Rosa das Neves - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (Votei a decisão, mas não acompanho diversos aspectos da fundamentação. Em especial, não acompanho a qualificação como litígio jurídico admitindo as divergências entre os titulares das categorias elencadas no artigo 3º do Decreto-Lei nº 411/98, de 30 de dezembro.) – Ana Celeste Catarrilhas da Silva Evans de Carvalho.