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Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0147/23.5BALSB
Data do Acordão:01/25/2024
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:PEDRO MACHETE
Descritores:HONRAS DO PANTEÃO NACIONAL
TUTELA POST MORTEM DO CADÁVER
DIREITO FUNDAMENTAL MATERIAL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
TRASLADAÇÃO DE CADÁVER
DIREITO MORTUÁRIO
NULIDADE DO ACTO SUSPENDENDO
FUMUS BONI JURIS
Sumário:I - A concessão de honras do Panteão Nacional que impliquem a exumação e trasladação dos restos mortais dos cidadãos distinguidos é uma decisão política que, todavia, devido ao princípio da dignidade da pessoa humana, não dispensa uma autorização ou não oposição da parte de quem se encontra legitimado para proteger e fazer respeitar o corpo desses cidadãos após a respetiva morte no âmbito de relações jurídicas disciplinadas pelo direito administrativo.
II - O corpo é a expressão física do ser humano a quem, enquanto vivo, é reconhecida dignidade por ser pessoa, e que, por isso, não pode depois da morte ser diminuído ou degradado, nomeadamente por via do tratamento ou utilização do cadáver com desrespeito pela sua memória.
III- A tutela post mortem desse bem jurídico – o cadáver – justifica o reconhecimento àqueles que são mais próximos do morto de direitos fundamentais (materiais) de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais.
IV - Com efeito, apesar de considerado como um dos bens de personalidade abrangidos pela proteção do artigo 71.º do Código Civil, o cadáver suscita problemas específicos que justificam um regime de tutela post mortem adicional e especial, porquanto, uma vez verificado o óbito, importa dar-lhe um destino assegurando não só a paz da pessoa falecida e dos seus próximos, como a salvaguarda de exigências sanitárias e de saúde pública, as quais suscitam questões que não relevam apenas das relações dos cidadãos entre si (como sucede com a generalidade dos direitos de personalidade enquanto tais, isto é, enquanto distintos ou autónomos dos direitos fundamentais), mas também de relações de poder (em especial, com a Administração, como por exemplo no que se refere aos cemitérios públicos ou ao transporte de cadáveres e ossadas).
V - A tutela em apreço consta do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de dezembro, que, no seu artigo 3.º, n.º 1, estabelece uma legitimidade hierarquizada segundo a qual a disponibilidade sobre os restos mortais de alguém é conferida sucessivamente a certas categorias ou classes de pessoas de acordo com uma certa ordem, a qual obedece à presunção de que, atenta a especial ligação e proximidade das pessoas de cada com o falecido, os atos de disposição em causa são requeridos em conformidade com a vontade real ou presumível do mesmo – concretizando assim o aludido direito de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais.
VI - O regime de concessão de honras do Panteão Nacional articula-se com o regime jurídico-administrativo comum sobre a disposição de restos mortais: o depósito em Panteão Nacional do cadáver ou ossadas daqueles a quem caiba essa distinção constitui uma das exceções à obrigatoriedade de inumação em cemitérios públicos (artigo 11.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 411/98); e o artigo 31.º-A do citado Decreto-Lei n.º 411/98 ressalva que o que nele se dispõe em matéria de prazos e procedimentos não prejudica a concessão de honras do Panteão Nacional, significando isto que os termos concretos definidos para a concessão dessas honras em cada caso prevalecem sobre os procedimentos legalmente previstos no Decreto-Lei n.º 411/98.
VII - O direito de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais, no caso dos herdeiros ou familiares, compete exclusivamente aos que se encontram vivos quando se coloca a questão de um ato de disposição desses restos mortais e o seu exercício traduz-se na manifestação de uma vontade atual desses familiares ou herdeiros; não na representação de uma vontade anteriormente expressa por familiares ou herdeiros mais próximos da pessoa falecida, mas que entretanto tenham também falecido.
VIII - Uma trasladação anterior não impede uma nova trasladação, impondo-se determinar a vontade presumível do falecido em face de novas circunstâncias ou imprevistos.
IX- Havendo uma pluralidade de herdeiros ou familiares, a disposição sobre os restos mortais do falecido deve ser decidida pela maioria das pessoas que integram cada uma das categorias de legitimados, em virtude de: i) ser essa a interpretação do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98 que resulta da articulação com o Modelo de Regulamento dos Cemitérios Municipais, aprovado pelo Decreto n.º 48770, de 18 de dezembro de 1968; ii) ser essa a solução que melhor se coaduna com a teleologia de tal preceito – assegurar a correspondência do ato requerido com a vontade real ou presumível da pessoa falecida em relação ao destino post mortem dos seus restos mortais –, já que exigir a unanimidade ou reconhecer um direito de veto a um qualquer familiar ou herdeiro colocaria nas suas mãos o direito de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais, potenciando conflitos com os demais familiares ou herdeiros legitimados e, sobretudo, pondo em causa o respeito pela memória do falecido.
X- Ou seja, a exigência de uma atuação conjunta de todos os legitimados poderia revelar-se contrária aos fins da tutela jurídica dos restos mortais da pessoa falecida, enquanto a determinação da vontade real ou presumível do falecido por uma maioria de pessoas que foram ou são próximas do mesmo oferece as garantias adequadas em termos de segurança jurídica e de experiências de vida diferenciadas aptas a perspetivar situações muito variadas
XI- São neste caso inaplicáveis as normas enformadas pela teleologia específica do direito sucessório, como é o caso do artigo 2091.º do Código Civil, pois, além do cadáver ou as ossadas não integrarem a herança, as categorias de pessoas com legitimidade para requerer a prática dos atos regulados no Decreto-Lei n.º 411/98 são determinadas na base de um critério de proximidade em relação à pessoa falecida e da presunção nela fundada de que estarão em melhores condições para determinar a vontade real ou presumível de tal pessoa em relação ao destino a dar aos seus restos mortais.
XII - Existindo uma maioria de pessoas legitimadas nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98 de que não fazem parte os recorrentes, a expressão da vontade destes quanto à exumação e posterior trasladação não é essencial para a autorização de tais atos, razão por que a sua não audição nessas circunstâncias também não consubstancia uma violação do conteúdo essencial do mencionado direito fundamental de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais (cfr. a alínea d) do artigo 161.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo).
XIII - Por outro lado, conforme decorre do artigo 31.º-A do Decreto-Lei n.º 411/98 e do próprio regime de concessão de honras do Panteão Nacional, não se encontra previsto legalmente um procedimento específico destinado a auscultar aqueles que se devem pronunciar em defesa da memória da pessoa homenageada, razão por que não pode falar-se in casu da “preterição absoluta do procedimento legalmente previsto” (cfr. a alínea l) do artigo 161.º, n.º 2, do mesmo Código).
XIV - Estas duas circunstâncias afastam a invocada nulidade do ato suspendendo.
Nº Convencional:JSTA00071819
Nº do Documento:SAP202401250147/23
Recorrente:AA E OUTROS
Recorrido 1:ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Meio Processual:RECURSO JURISDICIONAL
Objecto:ACÓRDÃO DA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIREITOS FUNDAMENTAIS
Legislação Nacional:ARTIGO 71º DO CÓDIGO CIVIL, Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de dezembro, ARTIGOS 3º, N.º 1, 11º, N.º 2, AL. A), 31º-A,
Aditamento: