Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0158/22.8BALSB
Data do Acordão:03/21/2024
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
ALÇADA
MESMA QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
Sumário:I - Não constitui pressuposto formal de admissão do Recurso para Uniformização de Jurisprudência que o valor atribuído à causa (decisão recorrida) seja superior à alçada fixada, no artigo 6.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, para os Tribunais Centrais Administrativos.
II - Não existindo identidade do núcleo essencial das situações de facto que suportaram a aplicação diversa dos mesmos normativos legais ou institutos jurídicos não há uma identidade substancial de factos que justifique a qualificação da questão colocada em ambos os arestos em confronto como uma mesma questão fundamental de direito.
Nº Convencional:JSTA000P32053
Nº do Documento:SAP202403210158/22
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:BANCO 1... SA – SUCURSAL PT
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:


RECURSO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

PLENO DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

Acórdão


1. RELATÓRIO

1.1. A Autoridade Tributária e Aduaneira, alegando que perfilharam entendimentos opostos relativamente à mesma questão fundamental de direito a decisão arbitral de 3 de Novembro de 2022, proferida no processo nº 160/2022-T (decisão recorrida) e a decisão arbitral de 13 de maio de 2021, proferido no processo n.º 417/2020-T (decisão fundamento), veio, ao abrigo, conjugadamente, do preceituado nos artigos 25º nº 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e 152º nº 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), interpor para este Supremo Tribunal Administrativo o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência.

1.2. Na motivação do recurso oportunamente apresentada formulou a Recorrente as seguintes conclusões:

«A – O Acórdão arbitral recorrido (160/2022-T) incorreu em erro de julgamento, porquanto decidiu o Tribunal Arbitral

“a) Julgar procedente, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de declaração de ilegalidade dos despachos de indeferimento das reclamações graciosas e das 24 liquidações de IUC, que lhe subjazem, respeitantes ao ano de 2020, relativamente aos veículos cujas matrículas estão identificadas nos autos.

b) E, em consequência, anular os actos tributários de liquidação correspondentes e determinar a restituição do imposto pago pela Requerente, no montante de 2.120,84.

c) Julgar procedente o pedido do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios favor da Requerente a partir da data do indeferimento da Reclamação Graciosa.

d) Condenar a Requerida a pagar as custas do presente processo (art.527º, nºs. 1 e 2 do Código de Processo Civil, ex vi art.29º, nº 1, alínea e) do RJAT).”

B – E sustenta o referido acórdão arbitral que:

“Assim, é questionável se a natureza de presunção está ou não em causa na presente norma em análise.

Sobre a consagração no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação de uma presunção ilidível pronunciaram-se já diversas decisões arbitrais.

Seguindo, nesta sede, anteriores decisões arbitrais sobre esta matéria, designadamente proferidas pelo signatário, parece que devemos concluir que, de facto, o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC consagra uma presunção, pois, não é a substituição da expressão “presumindo-se” pela expressão “considerando-se” que faz com que esta norma deixe de consagrar uma presunção, pois que, ambas as expressões têm sido utilizadas pelo legislador de forma equivalente. Assim, o argumento referido pela Requerida não nos parece merecer provimento.

No que se refere ao elemento racional e teleológico, importa fazer notar que o Imposto Único de Circulação tem subjacente o princípio da equivalência consagrado no artigo 1.º, do Código do Imposto Único de Circulação.

Ora, ao não admitir que a presunção constante do artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação é ilidível, estar-se-ia a desrespeitar o princípio da equivalência.

Assim sendo, também de acordo com este elemento, o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC é interpretado no sentido de estar em causa uma verdadeira presunção juris tantum.

Em face do exposto fica claro o entendimento de que o artigo 3.º do Código do IUC prevê uma presunção ilidível pelo que, a questão semântica em nada altera o sentido interpretativo desta norma.

Por outro lado, no que respeita à importância do registo automóvel, enquanto argumento invocado pela Requerida, para efeitos de considerar como proprietária e sujeito passivo de imposto a Requerente, importa também referir que o registo permite publicitar a situação jurídica dos bens e, bem assim, presumir que existe o direito sobre esses e que o mesmo pertence ao titular, conforme consta do registo. Com isto, podemos considerar que o registo não tem natureza constitutiva do direito, mas sim natureza declarativa, pelo que o registo não constitui condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador.

Concluindo-se que o artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação consagra uma presunção ilidível, cumpre ainda analisar se esta presunção foi efetivamente ilidida por parte da Requerente, conforme resulta do disposto no artigo 73.º, da Lei Geral Tributária que “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis”. Assim, deve a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e, nesse sentido, que foi considerada pela Requerida como sujeito passivo de imposto, demonstrar mediante elementos de prova disponíveis que não é o real proprietário do veículo e, bem assim, que a propriedade foi transferida para outrem.

Ora, no caso em apreço, a Requerente produziu prova documental suficiente da alienação dos veículos, conforme consta e se justifica nos “Factos Provados”, e, consequente, perda da propriedade, ficando, assim ilidida a presunção que resulta das liquidações, de acordo com o disposto no artigo 75.º da Lei Geral Tributária.

Neste sentido, considera-se que a Requerida ao não ter tido em consideração a prova documental junta pela Requerente, se encontra em erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que determina a anulação dos correspondentes actos de liquidação.

Razão pela qual, as mencionadas liquidações devem ser anuladas e, consequentemente restituído à Requerente pela Autoridade Tributária o imposto que indevidamente lhe foi cobrado e por esta pago na sua totalidade.”

C – Ao contrário do que decidiu a Decisão Arbitral fundamento (processo n.º 417/2020-T), na qual o Tribunal arbitral considerou que:

“15. Face ao exposto nos números anteriores, relativamente à exposição escrita, por cada uma das partes e, aos argumentos apresentados nas respetivas peças processuais, as principais questões a decidir prendem-se com a apreciação da legalidade da liquidação do ICU e decidir se existe uma errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjetiva do imposto único de circulação liquidado.

(…)

28. O presente pedido de pronúncia arbitral tem por questão essencial saber se o artigo 3.º do Código do IUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita e, saber se, como alega a AT, a interpretação da Requerente não atende aos elementos histórico e teleológico de interpretação da lei.

29. O Código do IUC, até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, estatuía, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º, o seguinte:

“Artigo 3.º – Incidência Subjectiva

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

30. Contudo, com a entrada em vigor do referido Decreto-Lei n.º 41/2016, o n.º 1 do referido artigo 3.º, passou a ter uma redação bem distinta:

Artigo 3.º – Incidência Subjetiva

1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos.

31. Ora, ao retirar a parte “os proprietários dos veículos, considerando-se como tais”, a alteração operada visa, claramente, passar a incidência subjetiva do IUC do proprietário do veículo para a pessoa em nome da qual está registada a propriedade do veículo, seja ela ou não o seu proprietário e/ou possuidor.

32. É uma alteração relevante que faz toda a diferença no presente caso, dado que, sendo a liquidação posterior a 2016, a ela se aplica a nova redação e as suas consequências, ou seja, a atual redação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC não contempla uma presunção e, consequentemente, também não se coloca aqui a questão de saber se a ilisão da presunção foi realizada - como pretendeu demonstrar a ora Requerente -, nem a questão de saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal desconsidera o elemento histórico e o elemento teleológico, como defendeu a Requerida na sua resposta.”

D – Concluindo o Acórdão fundamento que:

35. Em face do acima exposto e acolhendo-se, aqui, a jurisprudência que se vem consolidando nos Tribunais superiores quanto à incidência subjetiva do imposto na nova redação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC - redação que se aplica à liquidação aqui em causa – e estando provado que a viatura a que tal liquidação diz respeito se encontrava, no ano de 2019, registada em nome da Requerente, não pode deixar de concluir-se pela legalidade da questionada liquidação de IUC, bem como da decisão de indeferimento da correspondente reclamação graciosa.

36. Deste modo, face a esta conclusão, mostra-se inútil proceder à apreciação das questões suscitadas pela Requerente relativas à prova de que, à data da ocorrência do facto gerador e exigibilidade do imposto, a viatura a que este respeita já lhe não pertencia por ter sido transmitida a terceiro.”

E – Verifica-se, assim, uma patente e inarredável contradição quanto à mesma questão fundamental de direito, que consiste em saber se o artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação, na sua redação dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 de 1 de agosto, contempla ou não uma presunção legal iuris tantum, ou seja, suscetível de prova em contrário, sobre quem se considera ser o proprietário do veículo.

F – Quanto ao estabelecido pelas regras que determinam os requisitos de admissibilidade deste tipo de recursos, resulta que, para que se tenha por verificada a oposição de acórdãos, é necessário (vd., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 2015-06-03, processo 0793/14) que:

· as situações de facto sejam substancialmente idênticas;

· haja identidade na questão fundamental de direito;

· se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta; e,

· a oposição deverá decorrer de decisões expressas e não apenas implícitas.

G - As presentes alegações demonstram que, no caso vertente, se encontram reunidos os referidos requisitos para que se tenha por verificada a alegada oposição de acórdãos.

H - Para que se considere que há oposição de acórdãos, entende a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que os acórdãos em confronto versem sobre situações fácticas substancialmente idênticas e que se pronunciem sobre a mesma questão fundamental de direito. Ou seja, importa que as soluções opostas tenham sido perfilhadas relativamente ao mesmo fundamento de direito, o que se verificou.

I - Entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento há uma identidade de situações de facto, na medida que em ambos os casos, na medida que em ambos os casos, a factualidade consignada se reporta em saber se o artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação, na sua redação dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 de 1 de agosto, contempla ou não uma presunção legal iuris tantum, ou seja, susceptível de prova em contrário, sobre quem se considera ser o proprietário do veículo.

J - As decisões em confronto perfilharam, sobre a mesma questão fundamental de direito, soluções opostas de forma expressa, isto é, adotaram sobre a mesma questão de direito soluções juridicamente divergentes em idênticas situações de facto.

L - Resta concluir que o Acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento, bem como que se encontra em manifesta oposição quanto à mesma questão fundamental de direito com a jurisprudência firmada na Decisão fundamento, devendo ser substituído por novo Acórdão que julgue improcedente o pedido arbitral.».

1.3. A Recorrida, notificada da interposição do presente recurso e da sua admissão liminar, contra-alegou, encerrando a sua peça processual nos seguintes termos:

«A. A AT veio interpor recurso para o STA da decisão arbitral proferida pelo Tribunal Arbitral Singular constituído sob a égide do CAAD no processo n.º 160/2022-T, que julgou totalmente procedente, por provado, o pedido de pronúncia arbitral deduzido contra a ilegalidade de 24 (vinte e quatro) atos de liquidação de Imposto Único de Circulação («IUC») relativos ao ano de 2020, no montante global de € 2.120,48 (dois mil cento e vinte euros e quarenta e oito cêntimos).

B. Decisão esta que considera estar em oposição com a decisão proferida pelo Tribunal Arbitral, sob a égide do CAAD, no processo n.º 417/2020-T (acórdão fundamento) alegando existir contradição sobre a mesma «questão fundamental de direito» entre a decisão arbitral recorrida e o acórdão fundamento.

C. A «questão fundamental de direito» em apreço nos presentes autos é a previsão do n.º 1 do artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação («Código do IUC»), na sua redação dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 de 1 de agosto, sobre quem se considera ser o proprietário do veículo, ser ou não considerada uma presunção ilidível, ou seja, suscetível de prova em contrário.

D. Todavia, antes de analisarmos os requisitos formais e substanciais legalmente exigidos para a admissibilidade do presente recurso, cumpre, salvo melhor opinião, como ponto prévio, aludir à insuficiência da alçada exigida para possibilitar um recurso para o STA.

E. Explicando: sendo a decisão recorrida para o STA proferida pelo Tribunal Arbitral, estamos perante um recurso per saltum, portanto, importa atender à alçada dos Tribunais Centrais Administrativos.

F. Ora, o artigo 6.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (“ETAF”) estabelece no seu n.º 1 que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal têm alçada», concluindo no seu n.º 4 que «[a] alçada dos tribunais centrais administrativos corresponde à que se encontra estabelecida para os tribunais da Relação».

G. Enquanto o artigo 44.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (“LOSJ”) prevê a alçada dos tribunais da Relação como sendo de € 30.000,00.

H. Nestes termos, e atento aos termos da decisão arbitral recorrida, o valor da causa foi fixada em € 2.120,48, pelo que se pode afirmar, com toda a certeza, que este valor não é superior ao valor da alçada do Tribunal da Relação, o que, desde logo, comporta, salvo melhor opinião, a inadmissibilidade do presente recurso.

I. Face ao exposto, conclui-se que, ainda que se verificassem os demais requisitos para admissibilidade do presente recurso – que como se verá adiante não é o caso –, este deverá, desde logo, ser recusado por não se encontrar preenchido o valor da alçada que possibilite a sua apreciação por este douto Tribunal.

J. Contudo, caso se entenda que é admissível o presente recurso, independentemente do valor da causa, o que não se concede apenas se admite por mero dever de ofício, a Recorrida considera que os requisitos substanciais para a admissibilidade do presente recurso não se encontram preenchidos, vejamos:

K. Cumpridas as exigências formais legalmente impostas, são igualmente exigidos requisitos substanciais do recurso por oposição de acórdão ou de uniformização de jurisprudência, a saber: (i) que exista contradição entre a decisão arbitral de que se recorre e um Acórdão proferido por algum dos TCA, pelo STA, ou por outra decisão arbitral; (ii) que essa contradição seja relativamente à mesma «questão fundamental de direito»; e (iii) que a orientação perfilhada pela decisão em crise não esteja de acordo com a jurisprudência consolidada do STA.

L. O preenchimento dos pressupostos (i) e (ii) exige, em primeira linha, a definição do que é uma «questão fundamental de direito» e como deve esta ser caracterizada.

M. Nesse sentido, a caracterização da «questão fundamental» sobre a qual exista oposição entre acórdãos deverá seguir os seguintes critérios firmados no domínio do ETAF de 1984 e da LPTA e não raras vezes citados por este STA:

a. identidade da questão de direito sobre que recaíram os acórdãos em confronto, o que pressupõe uma identidade substancial das situações fácticas, entendida esta não como uma total identidade dos factos, mas apenas como a sua subsunção às mesmas normas legais;

b. que não tenha havido alteração substancial na regulamentação jurídica, a qual se verifica sempre que as eventuais modificações legislativas possam servir de base diferentes argumentos que possam ser valorados para determinação da solução jurídica; e

c. que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta e esta oposição decorra de decisões expressas, não bastando a simples oposição entre razões ou argumentos enformadores das decisões finais ou a invocação de decisões implícitas ou a pronúncia implícita ou consideração colateral tecida no âmbito da apreciação de questão distinta.

N. Caso não estejam verificados estes critérios à luz destes princípios, o recurso por oposição de acórdãos não deverá ser admitido e, por conseguinte, este STA não deverá conhecer do mérito da «questão».

O. Tarefa essa que compete a este Venerando Tribunal apreciar e decidir, entendendo a recorrida ser de chamar apenas atenção para o seguinte aspecto: no caso sub judice não se mostra verificado um dos requisitos de admissibilidade do presente recurso – a identidade das situações de facto – uma vez que a valoração dos factos não foi idêntica nos dois casos, o que levou à divergência no sentido decisório. Pelo que o mesmo não deve ser conhecido.

P. Com efeito, no que respeita aos factos do acórdão fundamento apenas se sabe que i) a AT emitiu a liquidação de IUC relativamente ao ano de 2019; b) a Requerente alega já não ser proprietária da viatura; c) a viatura foi objeto de penhora por dívida da adquirente.

Q. Ao invés, na decisão arbitral recorrida ficou provado i) ser a Requerente uma instituição financeira; ii) a celebração, por esta, de contratos de aluguer de longa duração ou de locação financeira; iii) cujas viaturas, objeto daqueles contratos, foram adquiridas pelos locatários no fim dos mesmos contratos; iv) tornando-se estes últimos, os seus reais proprietários.

R. E foi face a toda a factualidade aí provada que os árbitros, interpretando a lei, deram a solução do caso, devidamente fundamentada.

S. Assim sendo, não se duvida que os acórdãos em confrontam partilham decisões diferentes relativamente à mesma questão de direito, todavia, esta diferença é justificada pela assimetria da matéria factual entre os acórdãos.

T. Por esse motivo (ie. dada a assimetria da matéria factual), é de considerar que não se encontra verificado um dos requisitos do presente recurso – a identidade das situações de facto – pelo que, sendo também este o entendimento de V. Exas., deverão abster-se de tomar conhecimento do mesmo.

U. Todavia, caso se entenda que o presente recurso para uniformização de jurisprudência deverá ser admitido, o que não se concede, sempre se dirá que, mesmo assim, a decisão arbitral recorrida não merece qualquer reparo, devendo, como tal, ser integralmente mantida na ordem jurídica pelos motivos ponderosos que se enunciam de seguida.

V. Em outras palavras, caso o STA entenda que se encontram preenchidos os requisitos legais – formais e substanciais – para que o presente recurso seja admitido, considera então a Recorrida que o entendimento que deve prevalecer e vingar, e como tal sancionado por este Venerando Tribunal em sede do presente recurso, é o vertido na decisão recorrida, dado que, com o devido respeito, é esse que encontra efectivamente suporte nos termos do nosso direito constituído, maxime nos efeitos do registo automóvel e no princípio da equivalência e da igualdade tributária, constitucionalmente consagrados, bem como nos elementos gerais da interpretação das leis, nos termos dos artigos 11.º da Lei Geral Tributária («LGT») e 9.º do Código Civil («CC»).

W. Em traços gerais, a AT defende que o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento, porquanto considera que deve prevalecer o entendimento do tribunal arbitral no acórdão fundamento, o qual considerou que «[o legislador] ao retirar a parte «os proprietários dos veículos» visa, claramente, passar a incidência subjetiva do IUC do proprietário do veículo para a pessoa da qual está registada a propriedade do veículo, seja ela ou não o seu proprietário e/ou possuidor».

X. Sucede, todavia, que, com todo o acervo jurisprudencial existente, e citando a decisão arbitral recorrida, «fica claro o entendimento de que o artigo 3.º do Código do IUC prevê uma presunção ilidível pelo que, a questão semântica em nada altera o sentido interpretativo desta norma.».

Y. Analisada meticulosamente a argumentação esgrimida pelo Tribunal a quo, à luz da mais visada doutrina e da corrente jurisprudencial arbitral que se tem debruçado sobre o tema, entende a Recorrida que a decisão arbitral recorrida não merece qualquer reparo, dado que, sem nenhuma dúvida, o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC estabelece uma presunção ilidível.


VEJAMOS:

Z. Em primeiro lugar porque, conforme esclarece a melhor doutrina e jurisprudência, o registo de propriedade automóvel não é condição de eficácia do contrato de compra e venda do veículo, mas tem somente de eficácia declarativa.

AA. Neste sentido decidiu o tribunal arbitral na decisão recorrida:

«Por outro lado, no que respeita à importância do registo automóvel, enquanto argumento invocado pela Requerida, para efeitos de considerar como proprietária e sujeito passivo de imposto a Requerente, importa também referir que o registo permite publicitar a situação jurídica dos bens e, bem assim, presumir que existe o direito sobre esses e que o mesmo pertence ao titular, conforme consta do registo. Com isto, podemos considerar que o registo não tem natureza constitutiva do direito, mas sim, natureza declarativa, pelo que o registo não constitui condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador. Concluindo-se que o artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação consagra uma presunção ilidível, (…)». (Destaque nosso)

BB. Em segundo lugar, e socorrendo-nos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica, porque o princípio da equivalência está consubstanciado no artigo 1.º do CIUC – no atual e novo quadro da tributação automóvel – decorre daí que o sujeito do passivo do imposto deverá ser o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, uma vez que será o primeiro que causa os custos ambientais e viários que este tributo comutativo visa compensar.

CC. Neste sentido, foram já proferidas múltiplas decisões arbitrais, designadamente decisões transitadas em julgado. Veja-se, a título meramente ilustrativo, a decisão arbitral proferida pela árbitra Raquel Franco no processo n.º 106/2022-T, de 2022-07-27.

«Quanto ao elemento teleológico, importa referir que o princípio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente o da incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo, não se coadunando este princípio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1.º do CIUC. Donde, a interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC à luz da relevância legalmente, constitucionalmente e até no âmbito do Direito da União Europeia, conferida ao princípio da equivalência não comporta a tributação, em IUC, do locador que, enquanto proprietário formal do veículo, não tem, consequentemente, qualquer potencial poluidor, o que significa que os danos advenientes para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis devem ser assumidos pelos seus reais utilizadores, como custos que só eles deverão suportar.»

DD. Em terceiro lugar, através do recurso às regras elementares de hermenêutica jurídica (elemento histórico), extrai-se a conclusão de que a legislação fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma outra expressão que, como vimos, têm no ordenamento jurídico português um sentido coincidente.

EE. Assim decidiu o Tribunal Arbitral sob a égide do CAAD, no âmbito do processo n.º 462/2019T:

«Verifica-se, portanto, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente.

(…)

Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efetivos proprietários-utilizadores dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.»

FF. Em quarto lugar porque o artigo 73.º da LGT ao prever que as presunções relativas a normas de incidência tributária são sempre ilidíveis – «admitem sempre prova em contrário» –, então, o único desfecho possível é o de que o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC é uma presunção juris tantum, portanto, ilidível.

GG. Também aqui citamos a já citada decisão proferida pela árbitra Raquel Franco no âmbito do processo n.º 106/2022-T «Ora, quanto à questão de saber se o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC consagra uma presunção ilidível ou inilidível, não vemos que se possa olvidar ou, de qualquer outra forma, ignorar, o disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária, que estabelece claramente que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário. Tratando-se a norma de incidência prevista no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC de uma norma de incidência tributária, outro entendimento senão o de que a mesma prevê uma presunção ilidível seria claramente contrário aos princípios que regem a relação jurídica fiscal (…)».

HH. Sendo ainda de referir que este mesmo entendimento é sufragado em sede de Imposto Municipal sobre Imóveis («IMI»), cujo código estabelece no seu artigo 8.º uma presunção juris tantum de quem é considerado sujeito passivo do imposto, à semelhança do que sucede com todas as demais presunções que regulem matérias de incidência tributária.

II. Em quinto lugar a interpretação “cega” da lei, levaria a situações extremas de completa injustiça, atentando-se contra os princípios da equivalência, igualdade tributária e justiça material.

JJ. Assim sendo, bem andou o Tribunal a quo, no acórdão recorrido, a decidir que «ao não admitir que a presunção constante do artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação é ilidível, estar-se-ia a desrespeitar o princípio da equivalência. Assim sendo, também de acordo com este elemento, o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC é interpretado no sentido de estar em causa uma verdadeira presunção juris tantum.»

KK. Desta premissa parte para outra igualmente unívoca de que «de facto, o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC consagra uma presunção, pois, não é a substituição da expressão “presumindo-se” pela expressão “considerando-se” que faz com que esta norma deixe de consagrar uma presunção, pois que, ambas as expressões têm sido utilizadas pelo legislador de forma equivalente. Assim, o argumento semântico referido pela Requerida não nos parece merecer provimento».

LL. Sem prescindir, e até acrescentando, caso se admita a tese pugnada pela Recorrente – de que o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC consagra uma presunção inilidível – o que não se concede apenas de admite por mero dever de patrocínio, sempre se dirá que a interpretação daquela norma, nesses termos, padece de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da equivalência, da igualdade, da capacidade contributiva e da proporcionalidade; inconstitucionalidade essa que se invoca para todos os efeitos legais.

MM. Inconstitucionalidade material que se sustenta, desde logo, no facto de o princípio da equivalência, na sua máxima pujança, não comportar razões de praticabilidade desmedida e que vá além dos objetivos pretendidos pelo legislador; e exige que, no caso do IUC e quanto à sujeição passiva a este imposto, seja onerada a pessoa concreta que utilizou o veículo e provocou danos à rede viária com a sua utilização.

NN. É conhecimento da Recorrida que esse princípio se encontra circunscrito pelo princípio da praticabilidade e, na confluência entre estes dois princípios decorre que o IUC, enquanto imposto ambiental, por natureza de base mais larga, onde o causador dos danos ou o aproveitador dos benefícios que visam ser internalizados pelo imposto é reconhecido com maior dificuldade, poderá ser sujeito passivo o causador presumível dos danos, ie., o proprietário do veículo automóvel, ou quando a propriedade e o direito de uso sejam separados, o locatário financeiro, o adquirente com reserva de propriedade, ou outro titular de direitos de opção de compra por força do contrato de locação, tal como estatuído nos n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º do Código do IUC.

OO. Importar ainda invocar nesta sede o princípio da proporcionalidade, constante do n.º 2 do artigo 18.º da CRP que, por sua vez, restringe o âmbito de aplicação do princípio da praticabilidade. Aquele princípio subdivide-se em (i) princípio da adequação, que dita que as medidas tomadas devem ser adequadas à prossecução dos fins visados pela lei; (ii) princípio da exigibilidade, que manda que as medidas restritivas previstas na lei; e (iii) o princípio da proporcionalidade em sentido estrito que impede o legislador de tomar medidas legais excessivas em relação às finalidades que se visam atingir.

PP. Atentos os comandos constitucionais supra expostos, parece-nos ser completamente desproporcional a interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC de que o critério normativo extraído daquela norma ditasse, sem mais, que o antigo proprietário do veículo automóvel, por ter sido anterior locador, se veja obrigado a suportar o IUC e demais encargos associados possa ou não requerer a alteração do registo da propriedade da viatura, uma vez que ou essa alteração lhe acarretará custos que ele não está obrigado a supor ad eternum um custo (in casu, o IUC) com a repercussão de um dano que não provocou, quando o custo que a AT teria neste tipo de situações será, apenas e somente, a emissão de uma nova liquidação de IUC, não estando defraudadas, sequer, as expectativas do erário público.

QQ. Entende-se ainda que quando o direito de propriedade do veículo e o direito à sua efetiva utilização seja separado por contrato com eficácia real ou obrigacional, o princípio da equivalência exigirá que a sujeição passiva do IUC não recaia sobre a pessoa em nome da qual esteja registada a propriedade da viatura do automóvel, mas sobre outras pessoas que adquiriram a real propriedade.

RR. Em síntese, e por maioria de razão, o entendimento de que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC consagra uma presunção inilidível que a AT tanto pregou de que o sujeito passivo é, sem prova admitida em contrário, a pessoa em nome da qual o mesmo está registado é uma interpretação totalmente contrária à lógica subjacente ao artigo 13.º e 18.º da CRP, sendo, e por isso, inconstitucional.

SS. O Tribunal Constitucional («TC») inclusive já se debruçou sobre a (in)admissibilidade de presunções inilidíveis no direito fiscal, no que diz respeito à sua (des)conformidade com o princípio da igualdade, subprincípio da capacidade contributiva, no Acórdão n.º 348/97, de 29 de abril de 1997.

TT. Em face ao exposto, para que a interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC possa estar em harmonia com o princípio da equivalência, da igualdade, da capacidade contributiva e da proporcionalidade, constitucionalmente tutelados, deve-se entender que a presunção de causação de custo ou de aproveitamento de um benefício deixa de subsistir no momento em que o putativo proprietário apresenta prova da transmissão da propriedade do veículo.

UU. Portanto, mesmo que se pudesse interpretar o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC como se de uma presunção inilidível se tratasse, não era possível, contudo, aplicar essa interpretação à situação vertente (entidade locadora), sob pena de manifesta inconstitucionalidade material.
VV. Em face ao exposto, é forçoso concluir que, ainda que se admita hipoteticamente o presente recurso por oposição de acórdãos, a decisão arbitral recorrida não padece de nenhum dos vícios imputados pela Recorrente nas alegações de recurso; primeiro por estabelecer o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC uma presunção ilidível de quem deve ser considerado sujeito passivo do Imposto Único de Circulação com base no Registo Automóvel, e segundo – sem prescindir – por a interpretação invocada pela Recorrente ser inconstitucional, na medida em que fere o princípio da equivalência, da igualdade, da capacidade contributiva e da proporcionalidade, todos constitucionalmente tutelados, devendo, por isso, a decisão arbitral recorrida ser integralmente mantida por este STA, com todas as consequências legais.
1.4. O Excelentíssimo Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer pugnando pela admissão do presente recurso para Uniformização de Jurisprudência e que, conhecendo-se o mérito, se uniformize jurisprudência no sentido de que o artigo 3.º, n.º 1 do artigo 3º do Código do IUC, na redacção que a este foi dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, deve ser interpretado como consagrando uma presunção ilidível.

1.5. Colhidos os vistos dos Excelentíssimos Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre, agora, decidir, submetendo-se para o efeito os autos ao Pleno desta Secção.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1. Pretende a Recorrente com a interposição do presente recurso que se uniformize jurisprudência relativamente a uma mesma questão fundamental de direito, que, em seu entender, foi decidida em sentido oposto nas decisões recorrida e fundamento, a saber, se o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, após a alteração da redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, consagra uma presunção juris tantum.

2.2. Considerando a posição da Recorrida nas suas contra-alegações são três as questões a decidir:

(i) deve o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência ser rejeitado, por o valor da acção ser inferior ao valor da alçada fixada para os Tribunais Centrais?

(ii) Há uma efectiva oposição de julgamentos nas decisões recorrida e fundamento invocadas quanto a uma mesma questão fundamental de direito?

(iii) Qual a interpretação normativa mais correcta do quadro legal aplicável à resolução da mesma questão fundamental de direito julgada ambos os arestos em confronto?

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

3.1.1. Da decisão recorrida consta como provada a seguinte factualidade:

«1 - A Requerente é uma instituição financeira em que uma parte substancial da sua actividade reconduz-se à celebração de, entre outros, contratos de locação financeira ou de aluguer de longa duração de veículos automóveis, com empresas e particulares.

2 - No exercício da sua actividade, a Requerente celebrou com os clientes identificados na documentação junta aos autos contratos de aluguer de longa duração, ou de locação financeira, relativamente a 24 veículos automóveis, conforme discriminação e identificação constantes dessa documentação.

3 - Relativamente a estes veículos, a Requerida emitiu 24 liquidações de IUC, respeitantes ao ano de 2020, no montante global de 2.120,48 euros.

4 - A Requerente pagou tempestivamente este valor.

5 - A Requerente apresentou uma reclamação graciosa contra estes actos tributários, que tomou o n° ...84 e foi indeferida.

6 - A Requerente apresentou um recurso hierárquico deste indeferimento, que tomou o n° ...85 e que foi igualmente indeferido.

7 - À data das referidas liquidações de IUC, a Requerente já não era proprietária dos veículos em causa, embora continuasse a figurar no registo automóvel como tal.

8 - Em 11 de Março de 2022, a Requerente apresentou o Pedido de Pronúncia Arbitral».

3.1.2. Do julgamento de facto realizado na decisão fundamento resultaram apurados os seguintes factos:

«a. A viatura em questão, com a matrícula ..-..-LH, durante o ano de 2019 esteve registado em nome da Requerente.

b. A 15 de setembro de 2019 a AT emitiu liquidação oficiosa de IUC n.º ...28 (cfr. PA junto pela Requerida ao processo) pelo valor de € 517.

c. A 16 de janeiro de 2020 a Requerente apresentou reclamação graciosa.

d. A 28 de fevereiro de 2020 a AT notificou a Requerente do despacho de indeferimento à referida Reclamação Graciosa».

3.2. Fundamentação de Direito

3.2.1. Da admissibilidade do Recurso para Uniformização de Jurisprudência: os pressupostos formais, particularmente o pressuposto de valor da causa.

O presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência foi, por despacho da ora Relatora, liminarmente admitido.

A Recorrida, nas suas contra-alegações, suscitou, para além do mais, a existência de causa fundante de rejeição liminar deste Recurso para Uniformização por “insuficiência da alçada exigida para possibilitar um recurso para o STA».

Alega nesse sentido que o recurso interposto do Tribunal Arbitral para o Supremo Tribunal Administrativo constitui um recurso per saltum e, nesta medida, importa atender à alçada dos Tribunais Centrais Administrativos. Estando esta, continua, hoje, por força do preceituado no artigo 6.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (“ETAF”) e 44.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (“LOSJ”) fixada em € 30.000,00 e tendo sido, para efeitos de recurso, fixado à causa o valor de € 2.120,48, há que concluir «com toda a certeza, que este valor não é superior ao valor da alçada do Tribunal da Relação, o que, desde logo, comporta, salvo melhor opinião, a inadmissibilidade do presente recurso»

Vejamos, então, analisando o regime adjectivo aplicável ao Recurso para Uniformização de Jurisprudência tendo em especial atenção o alegado pressuposto de alçada como condição da sua admissão formal.

Nesse sentido, começamos por salientar que foi com o artigo 152.º do CPTA, na sua redacção original, que foi formalmente introduzido no contencioso administrativo um Recurso para Uniformização de Jurisprudência dirigido ao Supremo Tribunal Administrativo, tendo em vista a resolução das situações em que se verificasse a existência de contradições sobre a mesma questão fundamental de direito entre dois acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, entre um acórdão deste Supremo Tribunal e um acórdão do Tribunal Central Administrativo (desde que proferido posteriormente ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, uma vez que, nos casos em que o acórdão do Tribunal Central seja anterior, atenta a qualidade de tribunal hierarquicamente inferior deste último, não serve como acórdão fundamento) ou entre dois acórdãos dos Tribunais de 2ª instância.

Após a entrada em vigor da reforma introduzida no Código de Processo nos Tribunais Administrativos pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro o Recurso para Uniformização de Jurisprudência no processo judicial administrativo passou a ter natureza excepcional (artigo 140.º, n.º 1 do CPTA).

Por sua vez, com a entrada em vigor da Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), o ordenamento jurídico português passou a acolher a possibilidade de admissão de Recurso para Uniformização de Jurisprudência tendo como fundamento substantivo a existência de contradição de decisões sobre uma mesma questão fundamental de direito entre uma decisão arbitral e um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo ou de um Tribunal Central (artigo 25.º, n.º 2 do RJAT, na sua versão inicial). Após a reforma operada neste diploma legal pela Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro, o Recurso para Uniformização aí previsto passou ainda a ser admissível nas situações de alegada contradição entre duas decisões arbitrais (artigo 25.º, n.º 2 do RJAT na sua actual redacção).

Sublinhamos, todavia, que independente deste alargamento do fundamento do Recurso para Uniformização de Jurisprudência, a Lei manteve-se inalterada quanto ao regime aplicável, ou seja, manteve-se como regime aplicável em tudo quanto não estivesse previsto no diploma especial (RJAT) o regime consagrado no já citado artigo 152.º do CPTA, para o qual o legislador manteve a remissão expressa que vinha já consagrada desde a entrada em vigor do RJAT (n.º 3 do artigo 25.º do RJAT).

Ora, da exegese do normativo citado (artigo 152.º do CPTA), resulta claramente que os pressupostos de admissão formal do Recurso para Uniformização de Jurisprudência, salvo quanto ao momento a partir do qual se conta o prazo máximo de 30 dias para a sua interposição, não diferem dos que estão estabelecidos para os casos em que a alegada oposição se verifica entre duas decisões arbitrais: legitimidade (pode interpor o recurso a parte vencida e/ou o Ministério Público – artigo 152.º, n.º 1, 1ª parte); prazo (30 dias contados desde a notificação da decisão arbitral recorrida – artigo 152.º, n.º 1 do CPTA e 25.º, n.º 3 do RJAT), ónus de alegar e formular conclusões (152.º, n.º 2 e 144.º, n.º 2 do CPTA).

Não vindo questionado o nosso despacho de admissão liminar no que respeita aos pressupostos formais em matéria de legitimidade, prazo, alegação ou formulação de conclusões, que ora reafirmamos, a única questão que importa decidir é a de saber se o Recurso para Uniformização de Jurisprudência está ainda dependente, na sua admissão, de que a decisão recorrida tenha um valor superior a € 30.000,00, valor este que, como bem refere a Recorrida, constitui hoje o valor da alçada fixada para os Tribunais Centrais.

A nossa resposta, por duas ordens de razões, é negativa.

A primeira é a de que o legislador não elegeu como condição ou pressuposto formal de admissão do Recurso para Uniformização de Jurisprudência a existência de alçada, o que bem se compreende se pensarmos, desde logo, que o Supremo Tribunal Administrativo não tem alçada, o que sempre determinaria que nas situações em que a decisão recorrida é do Supremo Tribunal Administrativo a questão da alçada nem se colocasse. Ou seja, verificados os demais pressupostos, o Recurso para Uniformização de Jurisprudência é sempre formalmente admissível, o que não sucederia, ou poderia não suceder, nas situações em que o fundamento do Recurso de Uniformização estivesse substanciado em alegadas oposições quanto a uma mesma questão fundamental de direito em acórdãos que não do Supremo Tribunal Administrativo.

A segunda prende-se com a circunstância do regime previsto no artigo 142.º do CPTA apenas se aplicar aos recursos ordinários e não aos recursos extraordinários, cuja regulamentação consta, como dissemos já, no artigo 152.º do CPTA e 25.º do RJAT, o qual não exige como condição de admissão, como vimos já, que a causa recorrida tenha valor superior ao da alçada fixada para os Tribunais Centrais.

Aliás, se a Recorrida atentar de forma cuidada no preceituado no artigo 142.º do CPTA (regime muito semelhante ao consagrado no artigo 629.º do CPC) facilmente se aperceberá que a questão da alçada para efeitos de recurso, mesmo nas situações de interposição de recurso ordinário, comporta excepções, designadamente, para o que ora se mostra pertinente, na situação prevista no n.º 3 do artigo 142.º do CPTA. Isto é, quando o recurso ordinário se funda numa alegada existência de uma decisão proferida em 1ª instância “contra jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal”, o legislador também prescinde da verificação de existência de alçada para efeitos do recurso, sendo, pois, visível a resposta uniforme que o ordenamento jurídico procurou estabelecer quanto aos requisitos de admissibilidade formal quer quando estão em causa situações carecedoras de uniformização de jurisprudência quer quando estão em causa situações de respeito pela uniformização já fixada.

São, pois, inconsequentes as alegações da Recorrida no que respeita à ficcionada equiparação ente as decisões dos tribunais arbitrais e as decisões de “tribunal de 1ª instância” e as relativas às condições de admissibilidade dos recursos “per saltum”, reguladas no artigo 151.º do CPTA, por, no caso, estarmos perante a interposição de um Recurso para Uniformização de Jurisprudência, cujas condições de admissibilidade se encontram reguladas no artigo 152.º do CPTA, com a especificidades consagradas no artigo 25.º, n.ºs 2 e 3 do RJAT já mencionadas, que se mostram integralmente respeitadas, e não perante a interposição de um recurso ordinário interposto per saltum, regulado pelo artigo 151.º do CPTA.

Em suma, resultando dos autos que se verificam todos os requisitos formais exigíveis para interposição do Recurso para Uniformização de Jurisprudência, conclui-se que não será por falta de preenchimento dos respectivos pressupostos processuais que o mesmo não será admitido.

3.2.2. Da admissibilidade do recurso para Uniformização de Jurisprudência: os pressupostos substanciais.

Como é sabido, a admissibilidade do Recurso para Uniformização de Jurisprudência depende, nuclearmente, da verificação cumulativa de dois requisitos: (i) contradição entre a decisão recorrida e o acórdão fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito; (ii) que não ocorra a situação de a decisão impugnada estar em sintonia com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo (artigos 27.º, alínea b), do ETAF, 284.º do CPPT e 152.º do CPTA).

Quanto ao requisito que deixámos identificado em segundo lugar, relativamente ao qual não se têm suscitado questões, limitamo-nos a dizer que é uniforme o entendimento no Supremo Tribunal Administrativo de que há jurisprudência recentemente consolidada a obstar à admissão do recurso sempre que o Pleno ou a Secção por sucessivos acórdãos (especialmente quando deles resulta a intervenção de todos ou quase todos Senhores Conselheiros em exercício de funções na data de prolação do acórdão, o que permite concluir que todos perfilham o mesmo fundamento e sentido decisório), já se pronunciou sobre a questão, de forma reiterada, sem votos de vencido.

No que concerne ao que deve entender-se por uma mesma questão fundamental de direito, sublinhamos, em síntese nossa, que o Pleno desta Secção e Supremo Tribunal vem assumindo o entendimento de que a mesma questão fundamental de direito (i) é necessariamente uma questão de direito - porque o legislador assim o afirma e porque a finalidade do recursos para uniformização de jurisprudência é primacialmente uniformizar a interpretação de normas jurídicas; (ii) que só é uma mesma questão fundamental de direito a questão de direito apreciada e julgada num quadro fáctico substancialmente idêntico - ou seja, a mesma questão de direito pressupõe uma identidade substancial de situações fácticas, a susceptibilidade de esses factos, determinantes do julgamento, serem subsumíveis às mesmas normas legais, não obstando, todavia, a essa qualificação a circunstância do regime jurídico convocado ser formalmente distinto desde que substancialmente seja o mesmo (isto é, desde que os critérios legais reguladores da questão sejam os mesmos e se possa concluir que à luz de eventuais alterações legais que tenham ocorrido não podem ser suscitados ou valorados argumentos capazes de conduzir a outra solução).

Em suma, a apreciação do mérito do Recurso para Uniformização de Jurisprudência depende de um conjunto de pressupostos substantivos e o Supremo Tribunal Administrativo só aprecia o mérito do recurso e uniformiza jurisprudência se tais requisitos estiverem integralmente preenchidos. Estes pressupostos destinam-se especialmente a confirmar que a questão de direito suscitada em ambas decisões (recorrida e fundamento) é substancialmente idêntica e que as respostas dadas por cada um dos julgamentos convocados são opostas.

É o que resulta, tendo presente que este Recurso para Uniformização de Jurisprudência foi interposto de decisão arbitral, do preceituado nos artigos 25.º, n.ºs 2 e 3 do RJAT, 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), 140.º, n.º 3 e 152.º, n.º 3 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e 688.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC).

Posto isto, e revertendo ao caso concreto, cremos que existem razões para que se julgue que tais requisitos não se encontram verificados, por, desde logo, não existir identidade substancial de factos necessária à qualificação da questão que nos foi submetida para uniformização como uma mesma questão fundamental de direito.

Foi este o julgamento proferido por este Pleno da Secção Tributária do Supremo Tribunal Administrativo a 21 de Fevereiro de 2024, por acórdão proferido no processo n.º 157/23.2BALSB, em que a questão fundamental de direito era idêntica à identificada neste processo, em que as partes são as mesmas, é o mesmo o acórdão fundamento invocado e idênticas as conclusões de recurso e as factualidades acolhidas em ambos os arestos postos em confronto.

Sublinhamos que, como a doutrina e a jurisprudência vem reiteradamente decidindo, o conceito de uma mesma questão fundamental de direito pressupõe uma «identidade do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação, necessariamente diversa, dos mesmos normativos legais ou institutos jurídicos.».

Ora, no caso concreto, do confronto dos probatórios de cada uma das decisões registam-se, a nível factual, diferenças significativas que tiveram impacto no julgamento subsequente que, naturalmente as teve por referência.

Como se disse no aresto do Pleno que vimos seguindo - que passamos a transcrever com a necessária adaptação ao discurso da decisão recorrida nestes autos e ao probatório nela incluso – “sendo embora incontroverso que ambas as decisões arbitrais colocaram a questão da identificação do sujeito passivo do imposto à luz do disposto no artigo 3º do CIUC, na redacção introduzida pelo D.L. nº 41/2016, não é menos verdade que a análise efectuada tem um enquadramento totalmente diferente, considerando a matéria de facto plasmada em cada um dos processos

No caso da decisão arbitral fundamento, o único facto alinhado prende-se com o facto de “a viatura em questão, com a matrícula ..-..-LH, durante o ano de 2019 esteve registada em nome da Requerente”, “nada tendo sido considerado a propósito da alegada transmissão da viatura, eventualmente por acordo verbal, a favor de uma sociedade, o que nos remete para a consideração do disposto no artigo 3º nº 1 do CIUC, na redacção introduzida pelo D.L. nº 41/2016.».

«Ora, no âmbito do processo onde foi prolatada a decisão arbitral recorrida, a ali Requerente pretende ver esclarecida a questão da qualidade de sujeito passivo e da responsabilidade pelo pagamento do IUC e discorre sobre a tese da presunção (in)ilidível, referindo que após o termo do contrato, quando o locatário exerce o seu direito a adquirir o bem locado pelo valor residual, esta é (ou se torna) proprietária.

Em termos de fundamentação de facto, a decisão arbitral recorrida refere que a “A Requerente é uma instituição de crédito em que uma parte substancial da sua actividade reconduz-se à celebração de, entre outros, contratos de locação financeira ou aluguer de longa duração de veículos automóveis com empresas e particulares» (facto n.º 1) e que “No exercício da sua actividade, a Requerente celebrou com os clientes identificados na documentação junta aos autos contratos de aluguer de longa duração ou de locação financeira relativamente a 24 veículos automóveis, conforme discriminação e identificação constante dessa documentação» (facto n.º 2)

«Assim sendo, crê-se que a matéria subjacente aos autos é mais exigente no que diz respeito à análise vertida na decisão arbitral fundamento, nomeadamente quanto se tem presente o disposto no art. 3º nº 2 do CIUC na redacção introduzida pelo D.L. nº 41/2016, até porque estamos perante contratos que são realizados por escrito e são, à partida, sujeitos a registo.

Nesta medida, perante os dados de facto vertidos na decisão arbitral recorrida, a situação tem como ponto de partida a elaboração de contratos dos quais resulta para a contraparte a obrigação de liquidação do imposto em apreço, sendo que, ainda que não tenha sido feito o registo da locação, teria ainda de ser ponderada a possibilidade de conferir relevância à situação derivada da existência dos tais contratos entre as partes, ou seja, mantém-se a pertinência da ponderação do tal nº 2, que constituirá sempre o ponto de partida de análise em função da natureza dos contratos ali identificados, sendo que só depois poderemos então cair na aplicação do nº 1 da norma já apontada.

«Neste ponto, é manifesto que esta realidade nunca se colocou no âmbito da decisão arbitral fundamento, o que significa que a questão jurídica em apreço tem contornos distintos, sendo aqui que reside o elemento fundamental com referência à sorte do presente recurso.

Diga-se ainda que de nada vale a referência no sentido de que a decisão arbitral recorrida, em sede de fundamentação de direito, como que ignorou a matéria acima apontada, dado que, no tratamento da realidade objecto do presente recurso, o Tribunal não pode deixar de apreciar a mesma em função da realidade de facto vertida nos autos, o que torna incontornável o que ficou exposto, de modo que, perante a dinâmica das decisões em apreço, designadamente em função da factualidade ponderada em cada um dos processos, só podemos concluir que não estão, pois, reunidos os pressupostos imprescindíveis para que se conheça do mérito do recurso para uniformização de jurisprudência, uma vez que as decisões em confronto apresentam diverso enquadramento factual, pelo que, como já tinha sido enunciado, tem de ser negativa a resposta à questão de saber se os dois acórdãos em alegada oposição se pronunciaram efectivamente em termos contrários acerca de uma mesma questão jurídica, dentro de um igual enquadramento fáctico e jurídico, pelo que, não se mostram reunidos os pressupostos legais (cumulativos) para que este Supremo Tribunal possa conhecer deste recurso.».

São, pois, também estas as razões, idênticas nestes autos às que naqueloutro foram relevadas - que, de resto, a Recorrida nas suas contra-alegações já deixara evidenciadas [alíneas O) a P) das conclusões das contra-alegações] - que nos determinam a não tomar conhecimento do mérito do recurso por inexistência dos pressupostos exigíveis para que se se qualifique a questão submetida a uma mesma questão fundamental de direito, por falta de identidade do já mencionado “núcleo essencial das situações de facto” a não tomar conhecimento do presente Recurso Jurisprudencial para Uniformização de Jurisprudência.

3.3. As custas da presente acção serão suportadas pela Recorrente, nos termos do artigo 527.º do CPC, aplicável ex vi artigo 281.º do CPPT.

4. DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os Juízes que integram o Pleno da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, não tomar conhecimento do mérito do recurso.

Custas pela Recorrente.

Registe, notifique e, transitado em julgado, comunique-se ao CAAD.

Lisboa, 21 de Março de 2024. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Isabel Cristina Mota Marques da Silva - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes – José Gomes Correia - Joaquim Manuel Charneca Condesso - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Gustavo André Simões Courinha – Pedro Nuno Pinto Vergueiro - Fernanda de Fátima Esteves – João Sérgio Feio Antunes Ribeiro.