Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0144/06
Data do Acordão:06/28/2006
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL.
DECISÃO DE APLICAÇÃO DE COIMA.
NULIDADE INSUPRÍVEL.
Sumário:I – Nos termos da al.ª d) do n.º 1, do art.º 63.º do RGIT constitui nulidade insuprível, no processo de contra-ordenação tributário, "a falta dos requisitos legais da decisão de aplicação das coimas...", sendo que estes são os descritos no n.º 1 do art.º 79.º do mesmo diploma entre os quais se encontra a "descrição sumária dos factos e indicação das normas violadas e punitivas" – sua al. b) - e a indicação da "coima e sanções acessórias, com indicação dos elementos que contribuíram para a sua fixação" – sua al. c).
II - E, se assim é, ter-se-á de entender que, quando naquela al.ª b) se diz que a decisão administrativa deve conter uma descrição sumária dos factos e a indicação das normas punitivas violadas, esta obrigação compreende não só os factos de que o arguido vem acusado como os factos que se julgaram provados e que fundamentam a punição aplicada.
III. – Nesta conformidade, a não especificação, nessa decisão, dos factos que se julgaram provados e a não indicação dos elementos objectivos e subjectivos que contribuíram para a penalidade aplicada constitui nulidade.
Nº Convencional:JSTA00063314
Nº do Documento:SA2200606280144
Data de Entrada:02/10/2006
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A... E OUTRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF LOULÉ PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - CONTRA ORDENAÇÃO.
Legislação Nacional:RGIT01 ART27 ART63 ART79.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC421/03 DE 2003/05/14.
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA E OUTRO REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS PAG435.
Aditamento:
Texto Integral: 1. A…, inconformada com a decisão, de 20/12/2004, do Sr. Director de Finanças de Faro que, considerando que a mesma havia praticado uma infracção ao disposto no art. 26.º e 40.º do CIVA, punível nos termos dos art.ºs 114.º, n.º 2, e 26.º, n.º 4, do RGIT, a condenou no pagamento de uma coima de cem mil euros, dela interpôs recurso para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé alegando, por um lado, a sua nulidade decorrente de não ter sido notificada para apresentar a sua defesa ou juntar quaisquer elementos probatórios e, por outro, o erro de julgamento já que para além de ter sido condenada com base em factos que não praticou foi-lhe aplicada uma coima superior à que resultava das disposições legais aplicáveis.
Tal recurso foi julgado procedente por ter sido entendido que a decisão recorrida era omissa no tocante à indicação dos factos que se tinham por provados e, em consequência, a mesma foi declarada nula.
Inconformado o Ilustre Magistrado do MP junto do Tribunal recorrido agravou para este Supremo Tribunal, tendo formulado as seguintes conclusões :
a) A decisão administrativa que aplicou a coima contém todos os requisitos legais enunciados nas alíneas do n.° 1 do art.º 79° do RG.I.T: concretamente, os da sua alínea b);
b) Já que ali se imputa à arguida a prática de uma conduta – acto/omissão - referenciada no tempo e no espaço, e a sua integração na norma violada e punitiva;
c) A não enumeração dos factos provados (ou não provados) não é requisito legal na decisão de aplicação da coima, nos termos do art.º 79° do RG.I.T.;
d) Pelo que a sua omissão, quanto à não indicação dos factos provados, não pode ser cominada de nulidade insuprível, nos termos do art.º 63°, n.º 1, al. d), do RG.I.T.;
e) A decisão de aplicação da coima não tem que obedecer às mesmas exigências de uma sentença criminal, pois, não sendo uma sentença, não implica uma audiência de julgamento, donde resulte a enumeração de factos provados e não provados;
f) Não enferma pois, de nulidade insuprível a decisão que aplicou a coima, por alegada ofensa ao disposto no art.º 79°, n.º 1, al. b), e 63°, n.° 1, al. d), ambos do RG.I.T.;
g) Ao decidir como o fez a sentença a quo violou, por erro de interpretação, o disposto nos art.ºs 63.º, n.º 1, al. d) e 79.º do RGIT e os art.ºs 374.º, n.º 2, e 379.º, ambos do CPP.
Não foram apresentadas contra alegações.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
2. O presente recurso jurisdicional dirige-se contra a sentença do TAF de Loulé que julgando assente que a decisão administrativa recorrida tinha, apenas, dado como provado que “a arguida não apresentou defesa e requereu o pagamento voluntário da coima” concluiu que dela “não constavam quaisquer factos provados susceptíveis de integrarem uma contra ordenação” e que, sendo assim, a mesma era “nula e não podia ser suprida, como de resto estabelece o art.º 63.º, n.º 1, al. d) do RGIT, sendo evidente que essa nulidade pode e deve ser decidida em recurso.
Julgamento que o Ilustre Magistrado do MP não aceita por entender que decisão administrativa que aplicou a coima contém todos os requisitos legais e que, por isso, não havia que declarar a sua nulidade.
A única questão que se nos coloca é, pois, a de saber se as decisões administrativas proferidas em processo de contra ordenação tributário devem descrever a factualidade que se considera provada ou se - como defende o Recorrente - a legalidade fica salvaguardada se a Autoridade Administrativa se limitar a indicar sumariamente os factos imputados ao arguido e a aplicar-lhes a sanção correspondente.
3. Nos termos do art.º 63.º, n.º 1, al., d) do RGIT, constitui nulidade insuprível, no processo de contra-ordenação tributário, "a falta dos requisitos legais da decisão de aplicação das coimas...", sendo que estes são os descritos no n.º 1 do art.º 79.º do mesmo diploma entre os quais se encontra a "descrição sumária dos factos e indicação das normas violadas e punitivas" – sua al. b) - e a indicação da "coima e sanções acessórias, com indicação dos elementos que contribuíram para a sua fixação" - sua al. c).
Tais requisitos visam, como assinalam Jorge de Sousa e Simas Santos, "assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão", pelo que tais exigências se devem considerar satisfeitas "quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos". – Vd. RGIT Anotado, 2001, pág. 435.
Deste modo, a finalidade da referida obrigação legal funda-se na protecção dos direitos de defesa do arguido - designadamente no direito de recurso, o qual supõe o indispensável conhecimento dos factos que determinaram a punição e justificaram a medida concreta da pena – direitos esses que não merecem menor tutela pelo facto da decisão condenatória ser proferida por autoridade administrativa em processo contra ordenacional e de, por via de regra, o processamento dos autos administrativos não estar sujeito ao apertado formalismo exigido nos autos judiciais.
E, porque assim, essa menor exigência formalista não consente que se condene o arguido sem que se o informe dos factos que se julgaram provados, dos normativos que se lhes aplicam e das razões que determinaram a concreta medida da pena. Ou, dito de outro modo, a decisão condenatória administrativa só é legal se for devidamente fundamentada de facto e de direito, exigência que decorre das transcritas al.ªs b) e c) do n.º 1, do art.º 79.º do RGIT.
E, se assim é, ter-se-á de entender que, quando na mencionada al.ª b) se diz que a decisão deve conter uma descrição sumária dos factos e a indicação das normas punitivas violadas esta obrigação compreende não só os factos de que o arguido vem acusado como os factos que se julgaram provados e que fundamentam a punição aplicada. Ou seja - ao contrário do sustentado neste recurso - a descrição sumária de que fala o preceito não se reduz à indicação dos factos acusatórios.
É certo - como a jurisprudência tem afirmado - que a decisão de aplicação da coima não tem de satisfazer as mesmas exigências de uma sentença criminal e que a tramitação processual contra-ordenacional deve ser reduzida ao mínimo necessário, simplificando-se, sempre que possível, o formalismo processual, e isto porque o ilícito de mera ordenação social assume fundamentos éticos diversos e menos gravosos do que o ilícito criminal já que naquele se visa a "protecção de bens jurídicos não fundamentais à vida em sociedade". – Vd., entre outros, Ac. da Relação do Porto de 19/03/97 (rec. 10.1789) e deste STA de 14/05/2003 (rec. 421/03).
Mas também o é que as coimas aplicadas podem atingir valores muito elevados (vd. o caso dos autos) e, por isso, a condenação numa coima pode ser bem mais gravosa do que a condenação em processo penal onde, na maioria das vezes, a pena é substituída por multa e esta acaba por ter dimensão bem menor do que algumas coimas. E, se assim é, essa simplificação não pode ser de molde a privar o arguido dos seus direitos de defesa como aconteceria se a descrição da factualidade que se julgou provada e que determinou a medida da pena fosse dispensada e omitida.
Aliás, se assim não fosse o art.º 27º do RGIT não prescreveria que "a coima deverá ser graduada em função da gravidade do facto, da culpa do agente, da sua situação económica ...", o que obriga a autoridade administrativa a definir e indicar com rigor, clareza e suficiente desenvolvimento os termos objectivos e subjectivos que o levaram a tomar uma determinada decisão.
E não se argumente que a descrição da factualidade de que vem acusado e a indicação das normas violadas é suficiente para o arguido ficar a saber porque razão foi condenado, pois aquela descrição não quer – nem pode querer - significar que todos os factos imputados se têm por provados e, portanto, que todos eles contribuíram para a concreta medida da pena. Uma coisa é a indicação dos factos de que o arguido é acusado e outra é a descrição dos factos que se julgaram provados e que irão determinar a sua condenação.
4. Descendo ao caso dos autos verifica-se que a decisão administrativa é do seguinte teor:
“Pelo auto de notícia de fls. 2 e 2-A verifica-se que a arguida A…., contribuinte Fiscal n.° …, com residência/sede em … - Praia da Rocha em Portimão, com os demais sinais dos autos, responde pelos seguintes factos que lhe são imputados:
1. A arguida não fez a entrega nos cofres do Estado, no prazo legal do IVA do período de 0403, do montante de € 449.543,35.
Tal situação constitui infracção ao disposto nos artigos 26° e 40° do CIVA, a qual integra o delito de contra-ordenação prevista e punível pelos artigos 114° n.° 2 e 26° n.° 4 do RGIT.
A fls. 4 foi dado cumprimento ao disposto no artigo 70° do RGIT.
Face às averiguações efectuadas e à prova produzida nos autos dá-se como provado que efectivamente a arguida não apresentou defesa, tendo no entanto requerido a fls. 5 o pagamento voluntário da coima nos termos do n.° 1 do art.º 78° do RGIT.
A arguida efectuou o pagamento do imposto em falta em 2004/09/11, conforme print de fls.11 junto aos autos.
Assim considerando os factos mencionados e provados, aplico a coima de cem mil euros.
Vigora o princípio da proibição da “Reformatio in pejus".
Custas pela arguida.
Notifique-se para pagamento da importância devida, ficando ciente que, se não for interposto recurso judicial ou efectuado o respectivo pagamento no prazo de 20 (vinte) dias a contar da notificação, se procederá à sua cobrança coerciva.
Faro, 20 de Dezembro de 2004.
Director de Finanças
….”
Analisando a transcrita decisão logo se vê que a mesma descreve sumariamente os factos imputados à Recorrente - a arguida não fez a entrega nos cofres do Estado, no prazo legal do IVA do período de 0403, do montante de € 449.543,35 – e indica a legislação punitiva correspondente a tal infracção, mas que, no tocante à factualidade que considerou provada, se limitou a referir que, face à prova produzida, o que tinha resultado era que “a arguida não apresentou defesa e requereu o pagamento voluntário da coima”.
O que quer dizer que não só não se especificaram os factos que se julgaram provados como também se não indicaram os elementos objectivos e subjectivos que contribuíram para a penalidade aplicada.
O que constitui nulidade por violação do disposto nas al.ªs b) e c) do n.º 1 do art.º 79.º do RGIT, a qual é de conhecimento oficioso. – art.º 63.º, n.º 1, al.ª d), e n.º 5 do mesmo diploma legal.
E se assim é, como é, a sentença recorrida não incorreu em erro de julgamento.
Termos em que acordam os Juízes que compõem este Tribunal em negar provimento ao recurso confirmando-se, assim, a douta decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 28 de Junho de 2006. – Costa Reis (relator) – Lúcio BarbosaBrandão de Pinho.