Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0104/21.6BALSB
Data do Acordão:09/13/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário:I - A extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da mesma, a pretensão do autor/requerente não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou por encontrar satisfação fora do esquema da pretensão deduzida, sendo que num e noutro caso a solução do litígio deixa de interessar.
II - Ante a revogação do quadro normativo invocado e a nova disciplina que veio a ser publicada e a vigorar, alterando em sentido decrescente o grau de risco, da situação de calamidade para a situação de contingência, e em que as medidas restritivas já não são exatamente as mesmas, os autos sub specie viram o seu objeto pretensivo desaparecer, gerando a sua impossibilidade superveniente, já que eliminado da vigência na ordem jurídica se mostra o quadro normativo invocado como produtor da lesão/restrição ilegítima dos direitos/liberdades invocados.
Nº Convencional:JSTA00071251
Nº do Documento:SA1202109130104/21
Data de Entrada:08/11/2021
Recorrente:A.......
Recorrido 1:CONSELHO DE MINISTROS
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:INTIMAÇÃO
Objecto:DEL CM
Decisão:EXTINÇÃO INST
Área Temática 1:DIR ADM CONT
Área Temática 2:INTIMAÇÃO
Legislação Nacional:CPTA ART 109.º
ETAF ART 2.º
ETAF ART 4.º, n.ºs 1, al. A), 2 e 3
ETAF ART 5.º, n.º 1
L 62/2013 (LOSJ)
LOSJ ART 38.º
LOSJ ART 40.º
CPC2013 ART 259.º
CPC201 ART 277.º, al. E)
R CM 55-A/2020, de 31/07
R CM 70-A/2020, de 11/09
R CM 101-A/2021, de 30/06
R CM 114-A/2021, de 20/08
Jurisprudência Nacional:AC STA 05/02/2021 PROC 12/21.0BALSB; AC STA 25/03/2021 PROC 88/20.8BALSB; AC STA 24/06/2021 PROC 61/21.9BALSB
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
RELATÓRIO

1. A……….., devidamente identificada nos autos [doravante Requerente], instaurou neste Supremo Tribunal, nos termos dos arts. 109.º e segs. do CPTA [na redação atualmente vigente - redação a que se reportarão todas as ulteriores referências àquele Código sem expressa indicação em contrário], a presente impugnação urgente de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias contra CONSELHO DE MINISTROS [doravante Requerido] peticionando, pela motivação aduzida na petição inicial [fls. 103/179 dos autos - paginação «SITAF» - tal como as referências subsequentes, salvo expressa indicação em contrário], que «[s]ejam desaplicados à Requerente os nºs 2, al. a), 13 e 15 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 101-A/2021, de 30 de Junho, e os artigos 6.º, n.ºs 3, 4, 6 a 9, 8.º, 22.º, n.ºs 2, al. b), 3 e 4, e ainda, os artigos 11.º, n.ºs 2 e 3; e 16.º nos termos do 22.º, n.º 3, todos do regime anexo à referida resolução; e, bem assim, os nºs 24, al. a) e 25 da Norma da DGS nº 019/2020, de 26/10/2020, na redação dada de 17/06/2021; e ainda quaisquer normas e medidas análogas que venha a renovar e/ou a aprovar em futuras resoluções do Conselho de Ministros» e que fosse o «Requerido Conselho de Ministros condenado a abster-se de aplicar à Requerente, por si e por intermédio das demais autoridades públicas, as supra referidas normas».

2. Notificado devida e regularmente o Requerido veio deduzir resposta [cfr. fls. 188/282] na qual se defendeu: i) por exceção [alegando, pela seguinte ordem, 1) da falta de interesse processual; 2) da não indispensabilidade da intimação; 3) da inutilidade/impossibilidade superveniente da lide; 4) da incompetência absoluta da jurisdição administrativa; 5) da ilegitimidade passiva; e, 6) da ininteligibilidade do pedido]; e, ii) por impugnação, sustentando, no essencial, inexistência de suspensão ou restrição do direito fundamental invocado e inexistência de inconstitucionalidade orgânico-formal ou material, para concluir pela total improcedência da presente intimação.

3. Assegurado o contraditório a Requente veio responder, concluindo pela total improcedência das exceções suscitadas, requerendo que «a presente intimação e os pedidos na mesma formulados sejam apreciados e julgados, neste momento, de acordo com as normas constantes da Resolução do Conselho de Ministros n.º 114-A/2021 …, e do regime anexo à mesma, por se considerar que as mesmas se devem ter por incluídas no objeto e nos pedidos da presente intimação, atenta a sua natureza análoga às normas constantes da Resolução do Conselho de Ministros n.º 101-A/2021 …; ou, por alteração e ampliação do objeto e do peticionado na presente intimação» [cfr. fls. 766/788].

4. Na sequência do determinado no despacho de 27.08.2021 o Requerido veio pronunciar-se expressamente sobre a revogação da Resolução de Conselho de Ministros [RCM] n.º 101-A/2021 pela RCM n.º 114-A/2021, pugnando pela inutilidade superveniente da lide [cfr. fls. 791/794].

5. Sem vistos, dado o disposto no art. 36.º, n.ºs 1, al. e), e 2, do CPTA, o processo foi à Conferência, cumprindo apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO
DE FACTO
6. Com interesse para a decisão a proferir considera-se como assente o seguinte quadro factual:
6.1) Em 30.07.2021, foi publicada no Diário da República, Iª Série, n.º 147, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 101-A/2021 [doravante «RCM 101-A»], que aqui se dá por integralmente reproduzida, onde se declarou «na sequência da situação epidemiológica da COVID -19, até às 23:59 h do dia 31 de agosto de 2021, a situação de calamidade em todo o território nacional continental».
6.2) Em 20.08.2021, foi publicada no Diário da República, Iª Série, n.º 162, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 114-A/2021 [doravante «RCM 114-A»], que aqui se dá por integralmente reproduzida, onde se declarou «na sequência da situação epidemiológica da COVID -19, até às 23:59 h do dia 30 de setembro de 2021, a situação de contingência em todo o território nacional continental».
6.3) A Requerente é titular de cartão de cidadão n.º ……….., e residente na Rua ………., ……….., ………, 2755-…….. Alcabideche.
DO SANEAMENTO - ENQUADRAMENTO E APRECIAÇÃO

7. Dado se mostrarem findos os articulados e assegurada a observância do contraditório quanto às matérias de exceção invocadas [cfr. arts. 03.º, 06.º, 7.º-A, 109.º, 110.º e 111.º, todos do CPTA e 03.º do Código de Processo Civil (CPC/2013)] importa proceder ao saneamento dos autos apreciando da bondade das invocadas exceções, o que se passa a efetuar de seguida.

I) DA INCOMPETÊNCIA DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
8. Sustenta o Requerido que existe incompetência absoluta da jurisdição administrativa para apreciar e decidir a desaplicação, à Requerente, dos n.ºs 13 e 15 da RCM nº 101-A/2021, por as referidas normas terem objeto e incidência penal, matéria que estaria excluída da jurisdição administrativa e que seria da competência exclusiva dos tribunais judiciais.
Vejamos.

9. Mostra-se consensual o entendimento de que a competência do tribunal afere-se de harmonia com a relação jurídica controvertida tal como a configura o demandante, sendo que a mesma se fixa no momento em que a ação é proposta, dado se mostrarem irrelevantes, salvo nos casos especialmente previstos na lei, as modificações de facto que ocorram posteriormente, bem como as modificações de direito operadas, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa [cfr. arts. 38.º da Lei n.º 62/2013 - Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) - e 05.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF)], na certeza de que na apreciação da mesma não releva um qualquer juízo de procedência [total ou parcial] quanto ao de mérito da pretensão/ação ou quanto à existência de quaisquer outras questões prévias/exceções dilatórias.

10. Tem-se ainda como consensual que a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria [cfr. art. 13.º do CPTA].

11. Presentes os termos da pretensão e do pedido sub specie e o que se mostra disposto, mormente nos arts. 04.º, n.ºs 1, al. a), 3 e 4, 24.º, do ETAF, 02.º do CPTA, 38.º e 40.º, da LOSJ, resulta improcedente a arguida exceção.

12. Com efeito, o objeto pretensivo e pedido deduzidos na presente intimação não envolvem a apreciação de qualquer litígio que contenda com matéria ou responsabilidade penal e para o qual sejam competentes os tribunais judiciais.

13. Na situação em causa estamos em presença de litígio emergente de relação jurídica administrativa, surgido no contexto da emissão de ato normativo praticado no uso da função administrativa, e em que importa aferir da existência de lesão de direito/liberdade/garantia da Requerente e cuja tutela/defesa exija ou reclame a emissão de uma decisão de mérito de um tribunal administrativo que imponha à Administração a adoção da conduta [positiva ou negativa] que se mostre como indispensável/adequada para prevenir ou reprimir aquela lesão, assegurando o exercício do direito/liberdade/garantia em causa.

14. E em que a invocação dos n.ºs 13 e 15 da RCM n.º 101-A/2021 se prende ou conexiona como um entre os vários fundamentos de ilegalidade lato sensu aduzidos na e para a motivação da desconformidade do ato normativo com o ordenamento jurídico-constitucional.

15. Assim, e sem necessidade de demais desenvolvimentos, importa julgar totalmente improcedente a arguida exceção dilatória de incompetência da jurisdição administrativa.

II) DA INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE

16. Sustenta o Requerido a verificação in casu de situação geradora de inutilidade/impossibilidade superveniente da lide, porquanto, conforme alega na sua peça processual, a intimação tem por objeto uma medida restritiva de alcance temporário prevista na RCM n.º 101-A/2021, instrumento normativo esse entretanto revogado pela RCM n.º 114-A/2021 e que deixou de vigorar no dia 23.08.2021, razão pela qual seria inútil, ou mesmo impossível, ordenar a desaplicação de normas já revogadas.
Analisemos.

17. Os tribunais na sua função e ação destinam-se a prevenir e dirimir situações com interesse prático, estando-lhes vedada a prática de atos inúteis [cfr. art. 130.º do CPC/2013], sendo que não estão incumbidos de emitir pronúncias que sirvam como meros pareceres ou opiniões sem outra valia [cfr., entre outros e nos mais recentes, os Acs. deste STA de 05.02.2021 - Proc. n.º 012/21.0BALSB (§ 9), de 24.06.2021 - Proc. n.º 061/21.9BALSB (ponto 2.2.)].

18. Temos, por outro lado, que a utilidade de cada meio contencioso corresponde à sua utilidade específica, não podendo a mesma ser dissociada das possibilidades legais que esse meio pode proporcionar para a satisfação dos direitos ou interesses legítimos que os interessados pretendem fazer valer e tutelar por seu intermédio, não relevando para esse efeito as consequências indiretas, reflexas ou colaterais, tal como o interesse abstrato na legalidade.

19. Se a instância se inicia com a propositura da ação através da dedução de petição/requerimento inicial [cfr. art. 259.º do CPC/2013] a sua extinção opera quando ocorra uma das causas legalmente previstas no art. 277.º do referido Código, sendo que entre as causas se conta a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide [cfr. al. e) do referido preceito].

20. Ora esta causa de extinção só pode operar ou dar-se quando, por facto ocorrido na pendência da mesma, a pretensão do autor/demandante não possa manter-se por virtude do desaparecimento do sujeito ou do objeto do processo, ou por aquele ter encontrado satisfação fora do esquema da providência/pretensão deduzida, sendo que, num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar, consubstanciando-se naquilo a que a doutrina processualista designa por «modo anormal de extinção da instância», visto que a causa de extinção normal será uma decisão de mérito.

21. Daí que ao tribunal só será legítimo julgar extinta a instância fundado nessa causa [impossibilidade ou inutilidade da lide] se estiver em condições de emitir um juízo apodítico acerca da ocorrência superveniente da causa, já que a extinção da instância, nos termos do art. 277.º, al. e), do CPC/2013, exige uma certeza absoluta da impossibilidade/inutilidade a declarar.

22. É que a relação processual tem como elementos os sujeitos [partes e/ou interessados] e o objeto [pedido e causa de pedir], pelo que se, depois de iniciada a instância, um destes elementos deixar de existir a relação processual fica desprovida dum dos seus elementos essenciais e, como tal, sucumbe visto se ter tornado impossível ou inútil a decisão final a tomar sobre a pretensão deduzida.

23. Para além disso impõe-se que na ponderação quanto à manutenção da utilidade de forma/meio processual do contencioso administrativo se parta da pretensão subjacente do A./requerente que é a de afastar a lesão de que foi alvo o seu direito ou interesse legítimo por ação ou omissão do R./requerido, repondo e reconstituindo a situação jurídica subjetiva em questão, sendo que tal ponderação não pode fazer-se em abstrato, porquanto a avaliação da utilidade da lide tem de ser feita, não por simples referência ao meio contencioso ou processual em abstrato, mas atendendo à configuração individual e concreta do pleito sub specie, maxime ao pedido que no mesmo foi deduzido.

24. Descendo ao caso vertente e ao que no mesmo se mostra em discussão e nele constitui a pretensão estamos, à luz dos considerandos acabados de expender e presente a jurisprudência deste Supremo [cfr., entre outros, os Acs. de 05.02.2021 - Proc. n.º 012/21.0BALSB, de 25.03.2021 (Pleno) - Proc. n.º 088/20.8BALSB, e de 24.96.2021 - Proc. n.º 061/21.9BALSB (em situação de tutela cautelar visando a suspensão de eficácia de norma contida em RCM)], ante situação conducente à impossibilidade superveniente da presente instância.

25. Com efeito, afirmou o Pleno deste Supremo no acórdão referido supra em situação em que estávamos também ante intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias visando situação de alegada lesão então disciplinada pela RCM n.º 55-A/2020, de 31.07 [que declarara situação de contingência e alerta] a que sobreveio, após sucessivas RCM’s que prorrogaram a vigência daquela, a RCM n.º 70-A/2020, de 11.09 [que declarou a situação de contingência], tendo esta revogado aquelas, e em que se peticionou, igualmente, pronúncia à luz da RCM que se encontrasse em vigor à data da decisão da instância que «[s]e em termos de pedido de condenação ainda se pode admitir, em certos casos, um pedido de proibição de condutas futuras (pois que um determinado direito pode ainda não ter sido violado mas estar sob ameaça de violação, o que há que prevenir), no caso de impugnação de normas (não se entrando na questão de saber se se trata de declarar a sua ilegalidade ou inconstitucionalidade), o seu objeto há-de ser perfeitamente delimitado. É verdade que estamos perante uma situação sui generis em que se verifica uma sucessão de resoluções do Conselho de Ministros de curta vigência (15 dias). (…) Ora, se se pode admitir a apreciação da validade de norma constante de diploma que prorrogou a vigência daquele outro em que se inseria a norma inicialmente objeto do pedido intimatório, já não se pode aceitar a mesma solução quando a norma inicialmente visada consta de diploma entretanto revogado. Mais ainda, quando com a revogação (ou com as sucessivas revogações) a medida restritiva já não é exatamente a mesma (pois não é o mesmo estabelecer um limite máximo de 5 pessoas em situações de calamidade e de 10 pessoas em situações de contingência). Acresce a isto que de nenhuma utilidade se mostra, in casu, a apreciação de uma norma revogada que não foi aplicada em nenhuma situação concreta envolvendo o autor dos presentes autos», pelo que « [n]ão se justifica, pois, a continuação da lide», para depois se concluir que «[e]m face de todo o exposto, o que se verifica é que o pedido formulado pelo … ora recorrente, ficou sem objeto - a norma restritiva alegadamente inconstitucional saiu da ordem jurídica -, devendo a presente instância ser extinta por impossibilidade superveniente da lide (mais do que, verdadeiramente, por inutilidade da lide)».

26. Ora, não tendo o processo de intimação como seu fim o controlo impugnatório da legalidade de atos [administrativos/normas], temos que a apreciação da pretensão e a tutela pelo mesmo oferecida não podem, todavia, estar ou ser alheias por completo do concreto quadro normativo invocado como objeto e por referência ao qual foi alegada a violação/lesão ou restrição ilegítima de concreto direito, liberdade e garantia.

27. Daí que ante a revogação do quadro normativo invocado e a nova disciplina que veio a ser publicada e a vigorar, alterando em sentido decrescente o grau de risco, da situação de calamidade para a situação de contingência, e em que as medidas restritivas já não são exatamente as mesmas, desde logo e mormente em termos do número admissível de concentração de pessoas e das limitações de capacidade/lotação de espaços, temos que os autos sub specie viram o seu objeto pretensivo desaparecer, já que eliminado da vigência na ordem jurídica se mostra o quadro normativo invocado como produtor da lesão/restrição ilegítima dos direitos/liberdades invocados pela Requerente.

28. E isso sem que haja notícia nos autos de que essa apreciação ainda se revele como útil e necessária por efeito do envolvimento e sujeição da Requerente a concreta situação em que o quadro normativo revogado lhe haja sido aplicado.

29. De referir, ainda, que a utilidade da presente lide inexiste tendo por referência ao pedido genérico deduzido pela Requerente, reiterado no requerimento de resposta à matéria de exceção.

30. É que, à luz do entendimento firmado supra, uma eventual admissão da possibilidade/utilidade da tutela conferida pelos autos sub specie e emissão de uma pronúncia exigiria que o contexto de aferição e de apreciação da lesão/restrição ilegítima dos direitos/liberdades da Requerente tivesse por referência uma homogeneidade e perduração de um quadro normativo sucessivamente vigente ainda que com validade a termo, ou seja, que o quadro normativo sucessivamente produzido e para vigorar durante certo período de emergência administrativa mantivesse um mesmo padrão de previsão para assim aferir da lesão/restrição invocada e carente de tutela.

31. Assim, inexistindo a manutenção, ou uma homogeneidade, do padrão de previsão no quadro normativo, sucessivamente vigente, disciplinador do grau de risco definido e declarado para acorrer à situação de emergência administrativa, fruto, nomeadamente, de uma situação de revogação do anterior quadro normativo, que assim deixou de vigorar, e que foi operada pela produção e publicação do novo ato normativo, que passou então a vigorar, e que envolveu a definição de diverso grau e amplitude em termos de restrição dos direitos, liberdades e garantias, temos que tal implica que o meio contencioso instaurado pela Requerente, no contexto e por referência à lesão/restrição ilegítima considerando o ato normativo entretanto revogado, viu desaparecer o seu objeto, ocorrendo, assim, situação de impossibilidade de prosseguimento da lide.

32. Flui de tudo o atrás exposto a verificação de situação de impossibilidade superveniente da lide, conducente à extinção da instância com as legais consequências [cfr. arts. 89.º e 109.º, n.º 1, do CPTA, 278.º, n.º 1, al. e), e 576.º do CPC/2013], ficando prejudicado o conhecimento das demais questões/exceções e pretensão.

DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em julgar procedente a arguida exceção de impossibilidade superveniente da lide e, em consequência, absolve-se o Requerido da instância.
Não são devidas custas dada a isenção legal da Requerente [cfr. art. 04.º, n.º 2, al. b) do Regulamento de Custas Processuais], tudo sem prejuízo da sua responsabilidade adveniente do disposto nos n.ºs 6 e 7 do mesmo preceito.
Notifique-se.
D.N..
Lisboa, 13 de setembro de 2021
[O relator, por vencimento, consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 03.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, tem voto de conformidade com o presente Acórdão a Conselheira Maria Benedita Malaquias Pires Urbano, dissentindo do mesmo, conforme voto vencido que segue, a Conselheira Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva]
Carlos Luís Medeiros de Carvalho

Declaração de voto

Seguindo a metodologia do acórdão que fez vencimento, apresentamos as razões da nossa discordância quanto às diferentes questões que ali foram apreciadas.

Quanto à questão da competência material da jurisdição administrativa
No projecto que apresentámos, considerámos o conhecimento desta excepção processual prejudicada, por entendermos que respeitava a um pedido subsidiário ou dependente do pedido principal, cujo tratamento só se justificaria se estivessem reunidos os pressupostos processuais para conhecer do fundo do pedido principal. Afinal, só caberia saber se este Tribunal seria materialmente competente para conhecer da “intimação à proibição de cominação dos comportamentos da Requerente como crime de desobediência”, caso se concluísse que o comportamento que ela pretendia adoptar e que a norma proibia, correspondia ao exercício legítimo de um direito, liberdade e garantia que estava a ser violado ou ameaçado de lesão.
Na verdade, o conhecimento desta questão sempre estaria dependente da procedência do pedido formulado em primeiro lugar pela Requerente independentemente do modo como este fosse interpretado. A decisão que fez vencimento interpretou-o como um pedido de desaplicação de uma norma e julgou a instância supervenientemente inútil. Assim, e apesar das razões jurídicas invocadas para o conhecimento expresso desta questão em primeiro lugar, afigura-se-nos que o mesmo não aporta qualquer utilidade (substancial, formal ou estrutural) para a presente lide – cfr. artigos 608.º, n.º 2 e 130.º, ambos do CPC.

Quanto à questão da inutilidade superveniente da lide
A solução que obteve vencimento secundou, no essencial, a decisão sufragada no acórdão do Pleno deste STA, em 25 de Março de 2021, no processo 088/20.8BALSB, segundo a qual, basicamente, quando a violação do direito fundamental cuja protecção se requer resulta de normas imediatamente operativas de curta vigência, que se sucedem renovadamente, o interesse na continuidade da lide é determinado pela vigência da concreta norma que vigora no momento em que a intimação é requerida, ou, quanto muito, pela vigência de uma norma com o mesmo conteúdo. Sobrevindo uma norma cujo teor já não corresponda exactamente ao daquela que vigorava no momento em que é interposta a intimação, deixará de haver justificação para a continuidade da lide, devendo proceder a excepção de impossibilidade da mesma.
Esta é uma solução jurídica que havíamos expressamente afastado no projecto que apresentámos e que ficou vencido, a qual se baseava nos fundamentos que passamos a expor.
A Entidade Requerida, citada, suscitara na sua Resposta ao Requerimento Inicial a questão da inutilidade/impossibilidade superveniente da lide, porquanto, conforme alegava na sua peça processual, a intimação tinha por objecto uma medida restritiva de alcance temporário prevista na Resolução do Conselho de Ministros n.º 101-A/2021. Este instrumento normativo fora, entretanto, revogado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 114-A/2021. Por essa razão, o articulado que contemplava as medidas restritivas cuja “desaplicação in concreto se pedia na intimação”, deixara de vigorar no dia 23 de Agosto de 2021. Assim, concluía a Entidade Requerida que era inútil (ou mesmo impossível) que este tribunal ordenasse a desaplicação de normas já revogadas.
Notificada para responder a esta excepção, a Requerente alegou que no seu Requerimento Inicial, tomando em conta a temporalidade das normas que vinham caracterizando a gestão da pandemia, solicitara ab initio a desaplicação das normas indicadas e de outras que, entretanto, as pudessem substituir e que tivessem conteúdo análogo e produzissem o mesmo efeito, ou seja, que restringissem o exercício dos direitos que ela, por este meio processual, pretendia acautelar, razão pela qual a mera revogação da Resolução do Conselho de Ministros n.º 101-A/2021 não poderia considerar-se fundamento de inutilidade superveniente da lide (e menos ainda de impossibilidade da mesma), atendendo a que as restrições ao exercício dos mesmos direitos que tutela se reclamava haviam sido mantidas pelas normas aprovadas pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 114-A/2021, que ela identificara no requerimento de 29 de Agosto de 2021. Estava subjacente ao pedido formulado pela Requerente, e à sua fundamentação, que o desagravamento da restrição que ela reputava de ilegal não era suficiente para satisfazer a pretensão inicialmente formulada, que era – lembre-se – a da livre realização de eventos de natureza familiar no seu domicílio ou a frequência de eventos deste tipo de domicílios de amigos e familiares.
Em resposta a esta posição, o Conselho de Ministros reiterara a tese da inutilidade superveniente da lide, fazendo-a repousar em dois argumentos fundamentais: i) no argumento formal de que não sendo a norma que impõe a restrição ao exercício dos direitos a mesma que foi indicada no requerimento inicial, o Tribunal ficaria impedido de condenar as entidades públicas à não aplicação da “nova norma”, por inexistência de identidade de objecto, e ficaria igualmente impedido de as condenar à não aplicação da norma indicada naquele Requerimento Inicial, que, por já não estar em vigor, deixara de produzir os alegados efeitos lesivos; ii) no argumento processual, de que não poderia admitir-se a indicação no requerimento inicial de “outras normas com o mesmo efeito que entretanto viessem a ser aprovadas”, como um “objecto válido” para a condenação na não aplicação das normas aprovadas pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 114-A/2021, porque aquele pedido era ininteligível e porque o meio processualmente adequado para fazer valer a sua pretensão teria de ser a ampliação da instância, ex vi do disposto no artigo 63.º do CPTA.
Considerámos no nosso projecto que nenhum dos argumentos apresentados pela Entidade Requerida a este respeito deveria proceder.
Em primeiro lugar, a Entidade Requerida não tem razão quanto ao argumento de natureza formal. A Entidade Requerida baseia-se na tese de que está aqui em causa um “controlo de normas imediatamente operativas” e que, por essa razão, a intimação, sendo “interposta contra os efeitos decorrentes de uma norma”, perde utilidade com a revogação dessa norma. E faz alusão ao aresto deste Supremo Tribunal Administrativo de 10 de Setembro de 2020 (proc. N.º 88/20.8BALSB) para concluir que aí se rejeitou a tese da inutilidade superveniente por estar em causa “a mesma norma” com a mesma formulação literal, o que já não sucederia quando a questão foi apreciada pelo Pleno do STA, na referida decisão de 25 de Março de 2021 (solução que é secundada pela tese que faz vencimento neste acórdão), por, nessa data, o teor da “nova norma”, que havia desagravado a restrição, ser diferente, e isso seria suficiente para impedir a “continuidade do objecto processual”.
Ora, a tese assim defendida pela Entidade Requerida, e secundada na posição que fez vencimento neste aresto, consubstancia uma interpretação formalista e literalista da “questão processual aqui em apreço”, que não pode considerar-se conforme com as directrizes do princípio da tutela jurisdicional efectiva, por diversas razões. Razões que já estavam subjacentes à decisão proferida em 10 de Setembro de 2020 (proc. N.º 88/20.8BALSB).
Primeiro, porque o objecto da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias é, tal como resulta do enunciado do n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, a “possibilidade de exercício em tempo útil de um direito, liberdade e garantia” e não a fiscalização da legalidade (em sentido amplo) da norma restritiva, violadora ou que ameaça violar um direito. Por essa razão, a utilidade (e a possibilidade) da instância mantém-se enquanto subsistir a restrição ou ameaça de restrição ao exercício do direito, pese embora a modificação formal da fonte da qual decorre a restrição ou ameaça de restrição.
Segundo, porque a interpretação, nestes casos, do objecto processual (centrado no direito lesado) como um continuum — não obstante a modificação formal da fonte da lesão ou ameaça de lesão ao exercício do direito cuja tutela se pretende obter através do uso deste meio processual — não consubstancia uma violação dos princípios processuais da vinculação do Tribunal ao pedido e à causa de pedir, sempre e quando não se registe uma “interrupção material” na fonte da lesão. Só assim se consegue assegurar a tutela jurisdicional efectiva perante lesões ou ameaças de lesões que provenham de actos ou normas que sejam livremente renováveis pelo emissor e, simultaneamente, autor da lesão ou ameaça de lesão do exercício dos direitos cuja tutela se reclama. Caso contrário, a tutela do lesado fica integralmente na disponibilidade da entidade administrativa. Esta entidade, pela via da renovação do teor da norma (mais ou menos agravado; para o efeito e enquanto se mantiver a lesão ou ameaça de lesão ao direito cuja protecção se reclama, isso é indiferente), mediante a modificação da respectiva “forma” (por revogação e aprovação de novo regulamento), conseguiria sempre obstar a que o Tribunal pudesse assegurar, como é sua missão no âmbito deste meio processual, a protecção dos direitos, liberdades e garantias lesados ou sob ameaça de lesão.
Terceiro, porque o referido continuum material da restrição do direito alegadamente violado – que é o parâmetro da utilidade da instância – se afere a partir da caracterização do direito lesado ou ameaçado de lesão, tal como o Requerente Inicial o configura, e não a partir do teor da maior ou menor intensidade da lesão ou ameaça de lesão prevista na norma. Neste caso, a Requerente alega que está em causa o livre exercício do seu direito a organizar eventos familiares no seu domicílio e a participar em eventos familiares no domicílio de terceiros e essa restrição mantém-se, não obstante a modificação da redacção da norma que regula a realização dos “eventos familiares” e que ela aponta como fonte da lesão do seu direito. Por isso, mantém-se o interesse da (e na) lide, não obstante a alteração dos limites de participantes que resulta do confronto entre o disposto no artigo 22.º, n.º 2, al. b do Regime da situação de calamidade a que se referem o n.º 2, as alíneas a) e b) do n.º 3 e os n.ºs 7 e 13 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 101-A/2021, de 30 de Julho e o disposto no artigo 22.º, n.º 2, al. b do Regime da situação de contingência a que se referem o n.º 2, as alíneas a) e b) do n.º 3 e os n.ºs 7, 13 e 17 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 114-A/2021, de 20 de Agosto.
A restrição à realização de eventos familiares, tal como a interpreta e configura a Requerente, mantém-se, pois, o seu pedido é para a livre organização destes eventos no seu domicílio e a participação neste tipo de eventos em domicílios de terceiros, para o que a modificação de 50% para 75% da “lotação do espaço” é irrelevante para a lesão ou ameaça de lesão configurada no pedido.
Por isso concluíamos no nosso projecto pela improcedência da alegada excepção dilatória de inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide.

Na decisão que fez vencimento sustenta-se ainda que a “imprecisão” do pedido justificaria igualmente a inutilidade superveniente da lide face ao desagravamento da lesão. Mas também não acompanhamos o decidido nesta parte: i) nem quanto à imprecisão do pedido, que era, claramente, o da livre (sem qualquer limitação) realização de eventos familiares; ii) nem quanto à possível superveniência da sua inutilidade face ao desagravamento do quadro restritivo, pois, mantendo-se uma restrição, mantinha-se a lesão do livre exercício dos direitos, logo, a utilidade na lide.

No projecto que apresentámos, concluíamos igualmente que a Entidade Requerida não tinha razão quanto ao argumento de natureza processual. A Entidade Requerida alegava que o pedido, na parte em que extrapolava a restrição do direito à organização e participação em eventos familiares em domicílios, emergente do disposto no artigo 22.º, n.º 2, al. b do Regime da situação de calamidade a que se referem o n.º 2, as alíneas a) e b) do n.º 3 e os n.ºs 7 e 13 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 101-A/2021, de 30 de Julho, só poderia proceder se a Requerente tivesse promovido a ampliação da instância nos termos do disposto no artigo 63.º do CPTA, ou seja, teria de ter apresentado um articulado próprio para o efeito (artigo 63.º, n.º 4 do CPTA), sobre o qual o Tribunal teria que promover o contraditório.
Mas também quanto a este ponto processual considerámos no nosso projecto que a Entidade Requerida não tinha razão.
As razões supramencionadas para fundamentar a inexistência de inutilidade (ou impossibilidade) da lide em caso de revogação com substituição da norma da qual emerge a lesão ou ameaça de lesão do direito cuja tutela se requer, são as mesmas que valem neste caso para sustentar a não aplicação do regime do artigo 67.º do CPTA. É que também a tutela jurisdicional efectiva – que, aqui, lembre-se, decorre directamente do n.º 5 do artigo 20.º da CRP – não é compaginável com uma situação de possível manipulação das circunstâncias, provocadora de ampliações sucessivas da instância e respectivos contraditórios, ante uma continuada lesão ou ameaça de lesão de um direito suficientemente caracterizado pela Requerente no seu requerimento inicial, em decorrência da substituição formal da fonte da lesão. Ainda que se pudesse considerar que a tramitação da intimação para a protecção de direitos liberdades e garantias comportaria a sujeição ao disposto no artigo 67.º do CPTA, e que essa seria a via processual adequada para “reagir” perante a “renovação formal de restrições normativas imediatamente operativas de direitos fundamentais”, sempre o n.º 5 do artigo 20.º da CRP, norma também ela dotada de aplicabilidade directa, constituiria fonte jurídica suficiente para que este tribunal, com fundamento na garantia da tutela do direito, afastasse a necessidade de aplicação in casu do disposto no mencionado artigo 67.º do CPTA.
De resto, a dado passo da sua argumentação, a Entidade Requerida lembra que em matéria de direitos, liberdades e garantias, ante uma norma restritiva que careça de interpretação, há-de o intérprete privilegiar o sentido que consubstancie a restrição menos intensa. Ora cabe lembrar que a inversa também é verdadeira, ante uma norma processual de garantia e protecção de um direito, liberdade e garantia, há-de prevalecer o sentido que assegure a tutela mais eficaz do direito.
Em suma, o objecto do pedido – o objecto da presente intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias – é a neutralização da violação (ou ameaça de violação) ilegal (em sentido amplo) do direito e a condenação das entidades administrativas a impedir que essa violação ocorra ou se mantenha. O facto de a alegada violação ou ameaça de violação provir de uma norma imediatamente operativa, em vez de provir de um acto administrativo, não pode servir de fundamento para reduzir o alcance deste meio processual, essencial à efectivação do n.º 5 do artigo 20.º da CRP, seja quanto à possibilidade do seu uso nestes casos em que a lesão provém de uma norma que se reputa de inconstitucional (questão que o Conselho de Ministros começou por suscitar no primeiro pedido, julgado no processo n.º 088/20.8BALSB, em Setembro de 2020), seja quanto ao condicionamento da sua efectividade processual por artificiosas manobras de renovação da “fonte formal” da violação ou ameaça de violação do direito.
A impossibilidade da lide só se verifica quando a lesão ou ameaça de lesão do direito cuja tutela se reclamou se extingue, por exemplo, por revogação da norma que a contempla, sem a respectiva renovação por outra norma, ou quando a violação do direito é limitada no tempo e não se consegue proferir uma decisão judicial antes de terminado o período da lesão (era esta a situação em apreço no acórdão do Pleno deste STA, proferido em 22 de Janeiro de 2021, no processo n.º 0122/20.1BALSB).

O projecto que apresentámos concluía igualmente pela procedência de uma excepção dilatória, e pela absolvição da Entidade Requerida da instância, mas, no caso, seria por se verificar a falta de interesse processual da Requerente. Vejamos.
Na sua resposta, a Entidade Requerida alegou que a Requerente não tinha interesse processual na demanda, na medida em que a situação de lesão ou ameaça de lesão ao exercício de direitos que configurara no seu requerimento inicial – realização de eventos de natureza familiar no seu domicílio e a participação em eventos de natureza familiar em domicílios de terceiros, em particular de familiares – não estava abrangida pela regulação prevista nas normas do Regime da situação de calamidade a que se referem o n.º 2, as alíneas a) e b) do n.º 3 e os n.ºs 7 e 13 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 101-A/2021.
No requerimento que apresentou em 29 de Agosto de 2021, de resposta às excepções, a Requerente sustentou o seu interesse processual em dois argumentos: i) no facto de a norma do artigo 22.º, n.º 2, al. b) do Regime da situação de calamidade, aprovado em anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 101-A/2021 incluir ou abranger eventos familiares realizados nos domicílios; e ii) no facto de a Requerente também pretender obter tutela para a participação em eventos de natureza familiar que ocorressem em estabelecimentos comerciais ou de serviços.
Tratámos no nosso projecto cada argumento em separado.
Dos eventos familiares a realizar no domicílio da Requerente por organização desta ou em domicílios de terceiros em que a Requerente pretenda participar
A Requerente entendia que o teor da norma do artigo 22.º, n.º 2, al. b) do Regime da situação de calamidade, aprovado em anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 101-A/2021 abrangia eventos familiares que a mesma pretendesse promover no seu domicílio.
Mas, claramente, sem razão.
Primeiro, porque o elemento literal não permite sustentar esta interpretação. Quando a norma refere que nestes eventos não é permitida “uma aglomeração de pessoas em lotação superior a 50 % do espaço em que sejam realizados”, pressupõe que esteja em causa um estabelecimento comercial ou de prestação de serviços e não um domicílio, pois só os estabelecimentos comerciais são “regulados” por lotação.
A lotação ou “capacidade do estabelecimento” é um conceito técnico, previsto no Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de Janeiro, que aprova o Regime jurídico de acesso e exercício de actividades de comércio, serviços e restauração, e surge aí definido (na redacção actualizada do referido diploma legal) por referência ao conceito de área do estabelecimento, sendo calculado em função da área destinada ao serviço dos clientes, deduzida da área correspondente aos corredores de circulação obrigatórios, de acordo com as regras do artigo 133.º do anexo àquele regime jurídico.
Na verdade, não chegámos sequer a compreender, nem a Requerente esclareceu, de que forma estaria a pensar calcular a “lotação do seu domicílio”, caso quisesse cumprir o disposto na norma.
Segundo, o elemento sistemático da interpretação jurídica também afasta o sentido que a Requerente pretendeu dar à norma (como abrangendo eventos realizados no seu domicílio ou em domicílios de terceiros), pois todas as questões acessórias por ela suscitadas [imprecisão no recorte dogmático do universo dos participantes (designadamente no conceito de familiares) ou a indeterminação do lugar onde esses eventos possam ocorrer] e, em especial, as referências às regras sobre a testagem dos participantes, facilmente se compreende que são absurdas se reconduzidas a eventos que tenham lugar em domicílios particulares.
No artigo 195.º do Requerimento Inicial afirma-se que as regras impostas para a organização de “eventos de natureza familiar” são desadequadas, excessivas e impraticáveis para um evento que decorre numa residência particular. Razões mais que suficientes para evidenciar que o problema esteve no erro manifesto de interpretação da Requerente a respeito do âmbito de aplicação da norma.
Já o seu sentido é claro se a interpretarmos como regras sanitárias e de ordenação social (independentemente da sua conformidade jurídica formal ou não) no âmbito do exercício de actividades económicas reportadas, como têm de ser, a eventos que tenham lugar em espaços comerciais ou de serviços, acrescendo às regras que já disciplinam o exercício de tais actividades nesses espaços, sejam espaços de serviços hoteleiros ou de restauração, sejam “estabelecimentos”, ou seja, espaços onde são exercidas actividades económicas (ex. espaços para celebrações) que têm de estar devidamente “licenciados para o efeito”. Na “era pré-COVID” os restaurantes já tinham prevista uma lotação máxima, assim como os quartos de hotel, não se afigurando essa regra como uma restrição de um direito fundamental do acesso dos clientes a esses estabelecimentos, mas antes como uma regra de regulação sanitária e de qualidade, para garantir o uso adequado das instalações e a qualidade do serviço neles prestados.
No essencial, o exercício das liberdades que a Requerente “reclama” através deste meio processual – de organizar livremente eventos para familiares e amigos no seu domicílio, bem como a livre participação neste tipo de eventos em domicílios de terceiros – não são restringidos nem ameaçados de restrição pela(s) norma(s) indicadas, o que é de tal forma evidente que se infere de uma leitura perfunctória da(s) mesma(s), permitindo, por isso, concluir pela manifesta inexistência de interesse em agir da Requerente, sem ser necessário entrar na análise do fundo da questão.
Ou seja, a não aplicação da regra do limite de lotação e da obrigatoriedade de apresentar certificado de vacinação ou de testagem em eventos realizados em domicílios é uma questão manifesta, mesmo na forma como a Requerente a apresenta e configura nos autos, pelo que não seria sequer necessário prosseguir com o processo, entrar no fundo da questão e fazer uso da teoria restritiva na interpretação das normas que restringem direitos liberdades e garantias para aí concluir pela manifesta improcedência do pedido.
Dos elementos a compulsar na fase liminar de saneamento, concluiríamos, sem qualquer dúvida, que nenhuma lesão ou ameaça de lesão decorria da fonte jurídica apontada, pelo que não existia interesse em agir.
Os direitos e liberdades que a Requerente pretendia exercer de forma livre no âmbito destes eventos familiares realizados em domicílios não estavam, pois, restringidos nem ameaçados. Este é um domínio do arbítrio no qual o Estado não interfere, deixando a cada pessoa e à sua dimensão cívica a gestão do risco, incluindo o de contágio com o vírus SARS-CoV-2 ou qualquer outro.

Dos eventos familiares a ter lugar em local diverso do domicílio
Na resposta às excepções que apresentou no requerimento entregue em 29 de Agosto de 2021, a Requerente sublinhava que o seu pedido não se limitava à organização de eventos familiares no seu domicílio, nem à participação em eventos em domicílios de terceiros, mas que abrangia também eventos familiares em espaços ou locais abertos ao público, e em espaços de restauração ou similares (ponto 12 do mencionado requerimento). Porém, como afirmávamos no projecto vencido, esta questão surge como um manifesto “aditamento” ao pedido e à causa de pedir, porque não era compaginável com o teor do que havia sido argumentado e pedido no Requerimento Inicial.
Nesta parte, como bem sublinhava a Entidade Requerida, o pedido carecia de substanciação. Com efeito, a Requerente não alegou nem demonstrou de que forma é que poderia existir uma lesão ou ameaça de lesão dos seus direitos que proviesse directamente das normas invocadas, designadamente do artigo 22.º, n.º 2, al. b) do Regime da situação de calamidade, quando os hipotéticos eventos familiares tivessem lugar em espaços públicos ou de restauração, geridos por terceiras entidades.
Vários eram os problemas jurídicos e jurídico-processuais que se suscitavam nesta hipótese e que a Requerente não aflorou no seu requerimento inicial. A saber: as normas que prevêem o limite de lotação e a obrigação de certificado ou de testagem para acesso aos espaços (e que são aquelas que a Requerente considera violadoras dos seus direitos e liberdades) têm como destinatários os operadores económicos desses espaços; elas não são imediatamente operativas para os utentes. A violação dos direitos da Requerente proviria neste caso da actuação desses agentes económicos e não directamente da norma, pelo que se suscitariam diversos problemas: i) fosse o da propriedade do meio, porquanto nesta parte estaria em causa a mera apreciação da conformidade jurídica das normas e não os efeitos lesivos dela imediatamente irradiantes para a esfera jurídica da Requerente; ii) fosse o da competência da jurisdição, caso o seu objectivo fosse o de “arredar” pela via judicial uma possível limitação na entrada num desses espaços comerciais e de serviços por parte de um agente privado que estivesse a cumprir a norma, pois a questão não se podia reconduzir, neste caso, à violação de direitos liberdades e garantias no âmbito de relações jurídico-administrativas.
Por aqui se percebe que não teria qualquer acolhimento a tese da Requerente de que o seu pedido também pretendia abranger eventos familiares realizados fora de domicílios.
Aliás, basta um exercício simples para se compreender o nonsense da questão nesta parte. Imaginemos que o Tribunal se considerava competente para conhecer do pedido da Requerente, o julgava procedente em relação a eventos familiares realizados fora dos domicílios e condenava o Estado e demais entidades públicas a absterem-se de qualquer comportamento que impedisse a sua realização: daí resultaria um título oponível a qualquer estabelecimento comercial e de serviços (a proprietários de restaurantes ou espaços de eventos)? Seria essa decisão oponível a um terceiro que não tinha sido parte no processo? E se o titular dessa actividade económica quisesse assegurar que a lotação prevista na norma era respeitada, estava impedido de o fazer? E estava também proibido de impedir o acesso ao seu estabelecimento comercial por parte da Requerente e de quem ela indicasse como familiar e amigo sem testagem e sem certificado? Percebemos que tudo isto não tem sentido, porque nada disto poderia ser (como efectivamente não era) objecto do pedido formulado.

O meio processual da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, pelas suas características – urgência, efectividade e subsidiariedade –, só pode ser mobilizado para a protecção contra lesões efectivas ou potencialmente efectivas de direitos, liberdades e garantias, no âmbito de relações jurídico-administrativas suficientemente caracterizadas pelos requerentes e quando a sua tutela não possa alcançar-se através dos restantes pedidos processualmente previstos no CPTA.
E a única lesão ou ameaça de lesão a direitos fundamentais que a Requerente caracterizou circunstanciadamente no seu requerimento inicial, foi a da proibição de realização de eventos familiares no seu domicílio ou a participação em eventos desse tipo em domicílios de terceiros, com a alusão, inclusive, às características da sua residência pessoal. Aí disse que temia ver-se impedida de livremente organizar no seu domicílio, durante as férias de Verão, “eventos familiares” e de poder livremente participar em eventos familiares em domicílios de familiares e amigos. Ora, esta alegada lesão ou ameaça de lesão de direitos resultou evidente ser uma falsa questão, por inexistir uma medida adoptada pela Entidade Requerida que lesasse ou ameaçasse lesar o exercício desse direito.
O Tribunal só pode adentrar no mérito do pedido quando o Requerente possa retirar dele algum efeito útil, o que não sucederia neste caso, uma vez que, inexistindo lesão ou ameaça de lesão ao exercício do direito, inexistia utilidade na acção.
Pelas razões avançadas teríamos julgado procedente a excepção de falta de interesse processual da Requerente.
Acrescente-se ainda que, havendo (como explicámos) um continuum entre o disposto no artigo 22.º, n.º 2, al. b do Regime da situação de calamidade a que se referem o n.º 2, as alíneas a) e b) do n.º 3 e os n.ºs 7 e 13 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 101-A/2021, de 30 de Julho e o disposto no artigo 22.º, n.º 2, al. b do Regime da situação de contingência a que se referem o n.º 2, as alíneas a) e b) do n.º 3 e os n.ºs 7, 13 e 17 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 114-A/2021, de 20 de Agosto, o fundamento da falta de interesse processual que se concluía existir no âmbito da vigência daquela primeira norma, manter-se-ia no âmbito da segunda, pelo que, a falta de interesse em agir não se alteraria a partir de 23 de Agosto de 2021.

Suzana Tavares da Silva