Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0269/22.0BELSB
Data do Acordão:11/24/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ANA PAULA PORTELA
Descritores:ASILO
AVERIGUAÇÕES
RISCO
Sumário:O SEF não se encontra obrigado a fazer quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas do sistema de acolhimento quando não existam indícios de que o requerente tenha sido ou venha a ser vítima das mesmas, nomeadamente com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artº 3º nº 2 do Regulamento Dublin III.
Nº Convencional:JSTA00071610
Nº do Documento:SA1202211240269/22
Data de Entrada:10/12/2022
Recorrente:MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS
Recorrido 1:A...........
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:L27/2008 (C/ ALTS DA L26/2014) ART19-A, N1,AL.A) ART36 ART37
Legislação Comunitária:REGULAMENTO UE Nº604/2013, DE 26 JUNHO, ART3º, N2, §2º
CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA ART4
Aditamento:
Texto Integral: RELATÓRIO:

1. O MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, vem interpor recurso de revista para este STA, do acórdão do TCA Sul, proferido em 11.08.2022, que, em sede de reclamação para a conferência da Decisão Sumária de 11.07.2022 no mesmo TCAS, deduzida pelo SEF, indeferiu a reclamação, confirmando a decisão que havia concedido provimento ao recurso da sentença do TAC de Lisboa, revogando-a, e, conhecendo em substituição, condenara a Entidade Demandada a reconstituir o procedimento relativo ao pedido de proteção internacional formulado por A……….., nacional da Guiné, titular do pedido de asilo nº 1359/21 – 789.21PT, no âmbito da ação administrativa que este intentara contra o Ministério da Administração Interna, impugnando a Decisão do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de 4.1.2022.

2. Para tanto, alegou em conclusão:
“1ª - Resulta evidente que o Tribunal ad quo na sua ponderação e julgamento do caso subjudice, e refutando a decisão do recorrente, não deu cumprimento às normas legais vigentes em matéria de asilo, mormente no que respeita ao mecanismo da Retoma a Cargo, ao qual a França está vinculada;
2ª - Está in casu em causa o abalo na confiança jurídica, corolário do princípio da certeza e segurança que se impõe a um Estado de direito, também, e sobretudo, na aplicação da justiça, como outrossim e diretamente, o princípio da legalidade;
3ª - As condições descritas pelo ora recorrido em sede de alegações, não se traduzem na “privação material extrema que coloque a pessoa numa situação de gravidade tal que possa ser equiparada a um trato desumano ou degradante”, no seguimento do que vem sendo o entendimento do TJUE.;
4ª - Compulsados os autos verifica-se que não foi feita uma alegação concreta, densa e particularmente grave pelo Recorrido para que se possa concluir pela aplicação da “cláusula de salvaguarda”, previsto no art.º 3°, 2º parágrafo do nº 2, do Regulamento Dublin ou para imposição à Entidade Administrativa da promoção de diligências instrutórias;
5ª - Assim sendo, não se vislumbra, por força das declarações do próprio Recorrido, que a Entidade Demandada omitiu qualquer dever instrutório, isto é, que devesse ter averiguado outros factos que se revelassem adequados e necessários à tomada de decisão, antes de ditar a transferência do A. para França;
6ª - No âmbito do Procedimento Especial previsto no Capítulo IV da Lei de Asilo (artigos 36.º a 40.º) relativo à determinação do Estado-membro responsável pela análise o pedido, na medida em que não se vai analisar o mérito do pedido nem os fundamentos em que se baseiam a pretensão do requerente, não se impõe à Administração que adotasse quaisquer outras diligências de prova ou de instrução do pedido, ao contrário do invocado pelo douto acórdão ora recorrido;
7ª - Entendimento análogo foi sufragado esmagadoramente em diversos Acórdãos do TCA Sul (proc. nºs 1258/19.7BELSB, 1353/18.0BELSB, 1740/18.3BELSB, 559/19.9BELSB, 743/19.5BELSB, 1069/19.0BESNT, 2195/19.0BELSB, 2206/19.0BELSB, 1662/19.8 BELSB, 1733/19.3 BELSB, 1708/19.2 BELSB, 1069/19.0 BESNT e 2368/19.6 BELSB);
8ª - Acresce também o Acórdão proferido pelo STA aos 16/01/2020, no Proc. 2240/18.7BELSB bem como Acórdão de 23 de abril, proferido no âmbito do Processo 916/19.0BELSB. Assim como decorre do comunicado de imprensa n.º 33/19 do Tribunal de Justiça da União Europeia, Luxemburgo, de 19 de março de 2019;
9ª - Neste contexto, o douto Acórdão carece de legalidade, porquanto, conforme precedentemente explanado, no estrito cumprimento do estatuto pela lei nacional da União Europeia sobre a matéria, se lhe impunha considerar impoluto o ato do ora Recorrente.
10ª - Ao invés, assim não atuou, razão pela qual ora se pugna pela revogação do douto Acórdão, atenta a correta interpretação e aplicação da Lei.

Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso de revista ser admitido (cf. art.º 150º nº 1 do CPTA) e dado provimento, com as legais consequências, com que V. Exas., Venerandos Conselheiros, farão JUSTIÇA!”
3. A………., deduziu contra-alegações, concluindo:
“1. A ausência de notificação ao autor da decisão das autoridades francesas em aceitar a sua transferência consiste num grave vício procedimental, por violar o dever de fundamentação, nos termos do art. 152º do Código de Procedimento Administrativo, e art. 26º, nº 03 do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho.
2. A exposição dos fundamentos de facto e de direito pode ser sintética por parte da Administração, porém não podem ser lacónica, ainda mais quando se estão em causa direitos fundamentais substantivos do próprio autor como direito de asilo (art. 33º da CRP), o direito à integridade pessoal (art. 25º, nº 02 da CRP) e o direito de proteção à saúde (art. 64º, nº 01, da CRP).
3. A decisão da Administração não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspetos, de facto e de direito, que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do ato.
4. A notificação em questão foi fator de grande relevância para as autoridades portuguesas fundamentarem a decisão de transferência do autor, visto que integra “o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do ato”, e não circunstância fáctica acessória
5. A decisão do Estado Francês sobre a matéria não poderia ser sigilosa, visto que impactava diretamente a situação jurídica do requerente, e a ausência de notificação consistira, ainda, um vício no direito de tutela jurisdicional e ao acesso à informação.
6. Caso as autoridades francesas aceitassem o pedido de retoma a cargo do cidadão, não há nenhuma garantia de que o processo será retomado e concluído, posto que a demora para a apreciação e decisão do pedido de proteção internacional formulado pelo recorrente demora há mais de dois anos.
7. A ausência de notificação completa dessa decisão, bem como a falta de notificação, prejudicou a elaboração da ação e do recurso subsequente.
8. A obrigatoriedade de instruir o procedimento com informação fidedigna e atualizada sobre o funcionamento do procedimento de asilo francês e as condições de acolhimento dos respetivos requerentes nesse Estado-Membro não consiste em apenas violação do princípio inquisitório e deficit instrutório, mas uma violação da interpretação literal do no 2º parágrafo, do nº 2, do artigo 3º do Regulamento (UE) 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho.
9. O ónus de prova dessas condições de transferência é exclusivamente imputado ao Estado Português, e não do Estado Francês ou do beneficiário de asilo.
10. O autor não se limitou a apresentar as dificuldades de acolhimento de conhecimento comum e generalizado, mas buscou fundamentar com base na situação de pobreza extrema pelas quais passou na França, dentre as quais: a) não teve acesso a benefícios sociais; c) dormiu nas ruas, sem acesso a qualquer abrigo ou centro de recolhimento; d) teve problemas estomacais durante o período que esteve na França; d) solidão, pela ausência de contacto com a sua família.
11. O Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não pode ignorar a situação económica e social que se encontra atualmente o Estado Francês, designadamente, quanto às deficiências sistémicas nas medidas de acolhimento dos requerentes de asilo ou proteção internacional, sendo que o contexto de pressão migratória, como aquele com que, desde 2015, os Estados Membros se confrontam não pode resultar numa diminuição das garantias previstas nos vários normativos que vinculam os estados membros da União Europeia, o que acontece com os requerentes de asilo e proteção internacional na França.
12. O facto de o Estado Francês não ter se pronunciado no prazo de dois anos não pode, em concreto, significar que o país tomou todas as medidas e que o seu silêncio equivale a uma recente aceitação tácita, mas sim que está, por razões evidentes e conhecidas de toda a ordem jurídica comunitária, sobrelotado de pedidos.
13. Ainda que demonstrado que o demandado remetesse, em 13/12/2021, um pedido de retoma a cargo do autor às autoridades francesas e que estas, em 27/12/2021, aceitassem essa retoma, a obrigatoriedade do cumprimento do disposto no 2º parágrafo, do nº 2, do artigo 3º do Regulamento (UE) 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho não pode ser dispensada.
14. A situação descrita não implica em dizer que se trata de um asylum shopping, visto que a escolha por Portugal, aconteceu por falhas sistémicas de acolhimento do autor ocorridas na França e na Itália, não restando uma opção real de escolha, além do país em que se encontra atualmente.
15. A moldura legal que acima se expendeu, máxime, os artigos 19.º-A, n.º 1, alínea a), e 37.º, n.º 2,ambos da Lei de Asilo, em conjugação com os artigos 3.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, alínea b),23.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, todos do Regulamento (UE) n.º 604/2013, de 26.06 não pode ser aplicada negando a eficácia de outros dispositivos do próprio Regulamento (2º parágrafo, do nº 2, do artigo 3º do Regulamento (UE) 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho), das Convenções de Direitos Humanos (art. 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, dos artigos 1º, 3º, 18º e 19º, nº2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do artigo 78º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia) e um princípio fundamental do Direito Internacional (do princípio da não expulsão, previsto no artigo 33º, nº1, 1ª parte, da Convenção de Genebra de 1951).
16. A tese da constitucionalidade do princípio da não-expulsão e das Convenções de Direitos Humanos tem guarida nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, da CRP) e da não-taxatividade dos direitos fundamentais (art. 16, nº 1 da CRP). Este último inciso preconiza que tem posição de constitucionalidade os direitos fundamentais constantes de regras aplicáveis de direito internacional, como no caso em tela.
17. Conforme a jurisprudência que vem se consolidando no Tribunal Central Administrativo Sul, conforme bem lembrado pela sentença ora recorrida, no sentido de que existe “um verdadeiro dever legal dos Estados-Membros apreciarem acerca da eventual ocorrência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional, antes de procederem à transferência daqueles para outro Estado-Membro em obediência aos critérios indicados no Capítulo III do Regulamento.”
18. A tortura é apenas um exemplo de tratamento desumano ou degradante, dentre outros.
19. Da jurisprudência do STJ já se deduz que o conjunto de situações humanas que podem estar sujeitas a um tratamento desumano ou degradante são múltiplas, em especial aquelas em que se ocorre uma violação sistemática de direitos humanos.
20. Para integrar o âmbito do entendimento a aplicar o princípio da não-expulsão, o tratamento deve atingir um grau mínimo de severidade, cuja definição tem sido reiteradamente considerada relativa e depende de variados fatores relacionados com a duração da sujeição a esse tratamento, os efeitos mentais e físicos induzidos e elementos relacionados com o perfil ou circunstâncias de especial vulnerabilidade da vítima.
21. Conforme jurisprudência do TEDH, tratamento desumano é todo aquele que é praticado intencionalmente, por vezes durante horas ininterruptas, com vista a causar graves sofrimentos físicos e/ou mentais; tratamento degradante é aquele que provoca nas vítimas sentimentos de medo, angústia e inferioridade, causando humilhação e aviltamento.
22. A situação em concreto não se trata de migração por simples situação de dificuldades económicas no Estado Francês, mas por uma situação qualificada de pobreza extrema, que, por consistir numa múltipla violação de direitos fundamentais e humanos, consiste também numa situação de tratamento degradante.
23. A jurisprudência do TEDH define os conceitos de tratamento degradante sem limitar se são resultados provocados por ação ou omissão estatal. No caso em análise, certamente a situação de violação sistemática de direitos humanos teve contribuição da omissão do Estado Francês.
Em face do exposto, requer que V. Exas não deem provimento ao recurso de revista interposto.”
4. O recurso de revista foi admitido pela formação deste STA por acórdão de 22.09.2022.
5. O MP notificado, em 13.10.2022,emitiu parecer nos termos e para efeitos dos art.s 146º, nº 1 e 147º, nº 2 CPTA, no sentido de negação de provimento ao recurso.
6. Este Parecer foi notificado às partes.
7. Sem vistos dada a natureza urgente do processo (art. 84º Lei nº 27/2008, de 30.06. e art. 36º, nº 2, CPTA), cumpre decidir.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO
De Facto
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
1. Em 20.12.2016, o A. foi identificado pelas autoridades competentes em Itália, aí tendo sido recolhidas as suas impressões digitais (cf. cópia do “EURODAC – FingerprintForm” com a referência ITIBO03L9Q junta a fls. 2 do processo administrativo no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
2. Em 08.05.2017, o A. foi novamente identificado pelas autoridades competentes em Itália, aí tendo sido recolhidas as suas impressões digitais (cf. cópia do “EURODAC – FingerprintForm” com a referência IT1RE022RC junta a fls. 3 do processo administrativo no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
3. Em 07.11.2019, o A. foi identificado pelas autoridades competentes em França, aí tendo sido recolhidas as suas impressões digitais (cf. cópia do “EURODAC – FingerprintForm” com a referência FR19930331470 junta a fls. 4 do processo administrativo no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
4. Em 02.11.2021, o A. apresentou um pedido de proteção internacional junto do R. (cf. declaração comprovativa de apresentação do pedido de proteção internacional junta a fls. 15 do processo administrativo no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
5. Em 15.11.2021, o A. prestou declarações junto do SEF, cujo auto se reproduz parcialmente infra:(…)


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(cf. auto de declarações junto a fls. 18-27 do processo administrativo no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
6. A final do auto de declarações a que se alude no ponto anterior, consta um quadro com a designação de “Relatório”, segundo o qual:


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(cf. cópia do auto de declarações junta a fls. 18-27 do processo administrativo no SITAF).
7. Em 22.11.2021, o A. apresentou um requerimento junto do R., cujo teor se reproduz parcialmente infra:


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(cf. cópias da mensagem electrónica e requerimento juntas a fls. 28-31 do processo administrativo no SITAF, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).
8. Em 22.11.2021, o SEF remeteu um pedido de retoma a cargo do A. às autoridades italianas, ao abrigo do 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento (EU) n.º 604/2013 (cf. cópia do processo de determinação da responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional junta a fls. 32-37 do processo administrativo no SITAF, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).
9. Em 26.11.2021, as autoridades italianas responderam à solicitação a que se alude no ponto anterior, declinando a retoma a cargo do A. (cf. cópia do ofício junta a fls. 38 do processo administrativo no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
10. Em 30.11.2021, o R. elaborou novo relatório, cujo teor se reproduz parcialmente infra:

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(cf. cópia do relatório junta a fls. 47-49 do processo administrativo no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
11. Em 09.12.2021, o A. apresentou novo requerimento junto do R., cujo teor se reproduz parcialmente infra:

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(cf. cópias da mensagem electrónica e requerimento juntas a fls. 50-53 do processo administrativo no SITAF, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).
12. Em 13.12.2021, o SEF remeteu um pedido de retoma a cargo do A. às autoridades francesas, ao abrigo do 18.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento (EU) n.º 604/2013 (cf. cópia do processo de determinação da responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional junta a fls. 54-58 do processo administrativo no SITAF, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).
13. Em 27.12.2021, as autoridades francesas responderam à solicitação a que se alude no ponto anterior, aceitando a retoma a cargo do A., ao abrigo do 18.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento (EU) n.º 604/2013 (cf. cópias da mensagem eletrónica e do ofício juntas a fls. 59-61 do processo administrativo no SITAF, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).
14. Em 04.01.2022, foi elaborada a informação n.º 0003/GAR/2022, cujo teor se reproduz parcialmente infra:
(…)


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(cf. cópia da informação junta a fls. 63-72 do processo administrativo no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
15. Em 04.01.2022, foi proferido despacho pelo Senhor Diretor Nacional Adjunto do SEF, sancionando o teor da informação a que se alude no ponto anterior, considerando o pedido de proteção internacional apresentado pelo A. como inadmissível, ao abrigo dos artigos 19.º-A, n.º 1, alínea a), e 37.º, n.º 2, ambos da Lei n.º 27/2008, de 30.06, e determinando a sua transferência para a França (cf. cópia da decisão junta a fls. 73 do processo administrativo no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
16. Em 21.01.2022, o A. foi notificado da decisão referida no ponto anterior (cf. termo de notificação junto a fls. 79 do processo administrativo no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
17. Em 10.06.2021, o sítio eletrónico https://www.rfi.fr/br/ noticiava que:
“O chefe de Estado francês solicitou aos ministros dessa área que ativassem "dispositivos em vigor" e intensificassem negociações com os países de origem para possibilitar o retorno de estrangeiros ilegais. O pedido foi feito durante uma reunião na quarta-feira (9). O encontro teve a participação do primeiro-ministro francês, Jean Castex, do ministro do Interior, Gerald Darmanin, do chanceler Jean-Yves LeDrian e de um representante do ministro da Justiça, Eric Dupond-Moretti.
"Os pedidos de asilo têm sido deturpados: os estrangeiros pedem sistematicamente asilo sabendo que a análise do dossiê vai durar meses e assumimos as despesas de maneira muito vantajosa", comentou um assessor do governo. "A imigração em nosso país é cada vez menos aceite", acrescentou. De 120 mil candidatos ao asilo por ano, 20 mil obtêm a condição de refugiados, 20 mil voltam para seus países de origem e 80 mil permanecem ilegalmente no território francês.
A expulsão de estrangeiros em situação irregular é dificultada por razões políticas, diplomáticas e mediáticas, reconhece a Presidência francesa, apesar da taxa de execução das decisões relativas às expulsões terem aumentado em um terço. No fim de 2020, ela estava entre 13% e 14%, contra 30% para a Europa. Ações de associações de defesa de direitos humanos, de ajuda aos imigrantes e até pedidos de parlamentares dificultam o processo no território francês. (…)”(notícia disponível online emhttps://www.rfi.fr/br/fran%C3%A7a/20210610-com-controle-da-epidemia-fran%C3%A7a-quer-acelerar-expuls%C3%B5es-de-clandestinos).
18. Em 17.11.2021, a Euronews noticiava que:
“Em França, foi desmantelado um grande campo de migrantes em GrandSynthe, no norte do país. Um campo ilegal, instalado num terreno baldio industrial e que abrigava aproximadamente mil pessoas - principalmente cidadãos iraquianos, paquistaneses e sírios. Esta operação teve lugar calmamente na terça-feira, mas num contexto de tensões diplomáticas entre Paris e Londres sobre a questão da migração - já que existem grandes diferenças entre França e Reino Unido no que toca à imigração ilegal.
Os obstáculos foram discutidos na segunda-feira durante uma videoconferência entre o Ministro do Interior de França, Gerald Darmanin e a homóloga britânica Priti Patel - concordaram em reforçar a sua cooperação operacional.
Entretanto, no terreno, aproximadamente 500 migrantes foram levados de autocarro para centros de alojamento - não houve qualquer aviso prévio sobre o desmantelamento do campo.”(notícia disponível online em https://pt.euronews.com/2021/11/17/desmantelamento-de-campo-de-migrantes-em-franca).
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O DIREITO
O Ministério da Administração Interna vem interpor recurso de revista do acórdão de 11.08.2022 do TCA/S que manteve a decisão sumária da Relatora, de 11.07.2022, que concedeu provimento ao recurso de apelação que havia sido deduzido por A……… revogando a sentença de 09.03.2022, do TAC/LSB-JAC] e julgando procedente a ação administrativa e condenando o R. «a reconstituir o procedimento relativo ao pedido de proteção internacional formulado pelo Autor, instruindo o pedido nos termos explicitados supra».
Como se diz no recurso que admitiu a revista:
“A questão do deficit de instrução dos procedimentos de decisão de devolução de uma pessoa a um País terceiro quanto às condições atuais existentes no procedimento de asilo e no acolhimento no Estado-Membro considerado responsável [in casu a França] para que se possa verificar se, no caso concreto, existem motivos que determinem a impossibilidade de tal transferência, tem vindo a colocar-se na jurisdição administrativa com frequência, constituindo matéria juridicamente relevante e cuja solução é aplicável em casos futuros.
Temos, por outro lado, que apresenta-se como diametralmente divergente o juízo firmado pelas instâncias quanto à questão, sendo que o juízo do TCA/S, não se revelando como dotado de óbvia plausibilidade, mostra-se carecido de um melhor e mais esclarecido aprofundamento, justificando-se, nessa medida, a necessidade da intervenção clarificadora na matéria do órgão de cúpula da jurisdição, cientes de que o mesmo parece ter, primo conspectu, decidido ao arrepio da jurisprudência deste Supremo Tribunal [cfr., nomeadamente, entre outros os Acs. de 16.01.2020 - Proc. n.º 02240/18.7BELSB, de 04.06.2020 - Proc. n.º 01322/19.2BELSB, de 02.07.2020 - Procs. n.ºs 01786/19.4BELSB e 01088/19.6BELSB, de 09.07.2020 - Proc. n.º 01419/19.9BELSB, de 10.09.2020 - Procs. n.ºs 01705/19.8BELSB e 03421/19.1BEPRT, de 05.11.2020 - Procs. n.ºs 01108/19.4BELSB, 01932/19.8BELSB e 02364/18.0BELSB, de 19.11.2020 - Proc. n.º 01301/19.0BELSB, de 18.01.2021 - Proc. n.º 01542/19.0BELSB, de 04.02.2021 - Proc. n.º 0115/20.9BELSB, de 11.03.2021 - Proc. n.º 02295/19.7BELSB, de 08.04.2021 - Proc. n.º 02253/19.1BELSB, de 22.04.2021 - Proc. n.º 01039/19.8BELSB, de 27.05.2021 - Proc. n.º 01357/19.5BELSB].”
Entende o recorrente que não é exigível ao SEF que, previamente à tomada de decisão de transferência do requerente de proteção, averigue o modo de funcionamento do procedimento da mesma natureza e a verificação das condições de acolhimento dos refugiados no Estado responsável pela retoma quando não existam indícios concretos de falhas sistémicas nos procedimentos de asilo em causa.
A questão que aqui cumpre conhecer é, assim, a de aferir a correta interpretação e aplicação da legislação do pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados-Membros da EU por um nacional de um país terceiro, nomeadamente quanto à questão de o SEF, enquanto entidade nacional administrativa instrutora do procedimento administrativo do pedido de proteção internacional, ter de averiguar da existência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes do Estado-Membro determinado como responsável em primeiro lugar pela análise do pedido de proteção internacional, independentemente de existirem indícios das referidas falhas.
O acórdão recorrido considerou ilegal o ato, por défice de instrução no procedimento, com base no entendimento de que:
“(...) Neste tocante, não podemos concordar com a sentença recorrida na parte em que declara que, no caso dos autos, não é possível concluir pela existência de um qualquer cenário de “risco de tratamento desumano ou degradante”. Entendimento que assentamos nos normativos legais convocados e, cremos, sem contrariar a jurisprudência uniformemente adotada pelo Supremo Tribunal Administrativo, que acolhemos, e foi assim sintetizada, em acórdão do STA, de 11.03.2021 (proc. nº 94/20), disponível para consulta em www.dgsi.pt:
(i) “Cada pedido de proteção internacional deve ser apreciado tendo em consideração a situação e as circunstâncias pessoais específicas do requerente e no estrito cumprimento da disciplina jurídica existente e vigente”;
(ii) (“A constatação da existência de falhas sistémicas num determinado país de acolhimento não é necessariamente sinónimo de que os requerentes de proteção internacional vão ser sujeitos a tratamentos desumanos e degradantes nesse país”;
(iii) (“Só quando existam motivos válidos para crer que, no país de destino, há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e que essas falhas implicam o risco de tratamento degradante é que se justifica diligenciar pela obtenção de informação atualizada sobre a existência de um risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamento”.
(iv) “Não ocorre um “deficit instrutório” quando não resulta do procedimento qualquer indício sério e concreto de que, em resultado da sua transferência para Itália, o A. virá a sofrer tratamento desumano ou degradante na aceção do art.º 4.º, da CDFUE”.
O ora recorrente, nacional da República da Guiné, requereu proteção internacional ao Estado Português no dia 02.11.2021, sendo que já o tinha feito anteriormente em Itália, nos anos de 2016 e 2017, e em França, a 07.11.2019. (...)
Perante a circunstância de um pedido anterior ter já sido solicitado às autoridades francesas (estando ainda em análise) e perante a aceitação de retoma pelo Estado Francês, foi proferida decisão de inadmissibilidade de apreciação do pedido de proteção formulado e determinada a transferência do Requerente, ora recorrente, para França, ao abrigo do disposto no art.º 37º n.º 2 da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho.
A Entidade Demandada observou o regime geral.
Sucede que, a título de exceção, estabelece o n.º 2 do art.º 3.º, do Regulamento (EU) n.º 604/2013, de 26/06, que “caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue à análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável". (...)
A este propósito, refere-se no AC. do TJUE C-163/17, de 19/03/2019, Abubacarr Jawo c. Bundes Republik Deutschland – disponível para consulta em https://curia.europa.eu – o seguinte:
“ (...) Esse limiar de gravidade particularmente elevado é alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado-Membro tiver por consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontre, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema, que não lhe permita fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentar-se, lavar-se e ter alojamento, e que atente contra a sua saúde física ou mental ou a coloque num estado de degradação incompatível com a dignidade humana (v., neste sentido, TEDH, 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia, CE:ECHR:2011:0121JUD003069609, §§ 252 a 263).
Como tal, o referido limiar não pode abranger situações que se caracterizem por uma grande precariedade ou uma forte degradação das condições de vida da pessoa em causa, quando estas não impliquem uma privação material extrema que coloque a pessoa numa situação de gravidade tal que possa ser equiparada a um trato desumano ou degradante.”
No caso em apreço, o Requerente declarou que saiu da Guiné a 01.02.2016, esteve em Itália cerca de 2 anos e 9 meses, em França cerca de 1 mês (com entrada a 07.11.2019) e em Espanha cerca de 2 anos e 3 meses (onde não pediu asilo) e chegou a Portugal a 01.11.2021.
Relativamente à sua estada em França, declarou que o seu pedido de proteção internacional foi registado, não sabendo o seu estado porque, entretanto, foi embora; que não fez qualquer diligência (parecendo significar que não foi convocado para qualquer diligência, como seja a entrevista, ao contrário do que aconteceu em Itália); que não teve qualquer apoio durante a instrução do pedido; que estava com dores na barriga e não conseguia ser atendido.
Em sede de audiência prévia, esclareceu que, em França, os cartões bancários de apoio aos requerentes são apenas entregues no final do mês e que o requerente apresentou o seu pedido de asilo no início de Novembro e saiu do país antes do final desse mesmo mês, pelo que nunca teve acesso a esse apoio pecuniário. Mais esclareceu que, durante o mês que esteve em França, não teve acesso a condições de acolhimento, nem mesmo sendo um requerente de asilo; não foi colocado num centro de acolhimento; dormiu sempre na rua, numa altura em que estava muito frio no país.
Resulta, pois, das declarações do Requerente que, em França, na qualidade de requerente de proteção internacional, foi deixado à sua sorte, não lhe sendo fornecidas as condições mínimas, quais sejam alojamento e alimentação. Situação que se coaduna com a apressada saída do país, ao contrário do que sucedeu em Itália.
Ora, a circunstância de, entre o início e o final de Novembro de 2021, o Requerente não ter logrado aceder a quaisquer benefícios sociais, a confirmar-se, configura um tratamento desumano e degradante; que não encontra justificação – pelo contrário, configura uma agravante - na alegada situação de as autoridades francesas apenas carregarem os cartões bancários no final de cada mês e o Requerente ter formulado o seu pedido de proteção internacional no início do mês (em 07.11.2019).(...)
Termos em que procede este fundamento do recurso.”

Então vejamos.
As normas aqui chamadas à colação são, pois, o art.ºs 4.º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e 3.º, n.º 2, segundo parágrafo, do Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013 (Regulamento de Dublin) e os art.ºs 19.º-A, n.º 1, al. a), 36.º e 37.º, todos da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho, alterada pela Lei n.º 26/2014, de 5 de Maio (Lei do Asilo).
Como se extrai do acórdão por nós relatado no Proc. 1322/19.2BELSB de 04/06/2020:

“A cláusula de salvaguarda prevista no artº 3º nº 2 do Regulamento Dublin III, exige a seguinte verificação:
“a) - que existam “motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro,” e
b) - e que tais falhas “impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia”.
A este propósito conclui-se no Ac. do TJUE proferido no caso A. Jawo c/Alemanha de 19 de Março de 2019, proc. C-163/17, que: (...)
“Por seu turno, as notícias pesquisadas oficiosamente pelo tribunal também não são, atento todo o circunstancialismo em que surgem, de forma a impor essa condenação.
Não poderemos escamotear o facto delas se referirem a um Estado-membro da «União Europeia», tal como o Estado Português, responsável desde logo pelo cumprimento da respectiva Carta dos Direitos Fundamentais, bem como noticiarem ocorrências relativas a uma situação inusitada: a do fluxo anormal de imigração ilegal de cidadãos de países africanos para a Europa, via Itália.
Esta «imigração ilegal», que ocorre por muitos e variados motivos, visando todos eles a melhoria das condições de vida do imigrante, não se pode confundir simplesmente com a situação do refugiado. Este, que em sentido amplo não deixa de ser imigrante, busca refúgio em país estrangeiro por recear, com razão, ser perseguido no seu país de origem em consequência de atividade exercida em favor da democracia, da liberdade social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou em virtude da sua raça, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social [ver artigo 2º, alínea ac), da Lei nº 27/2018, de 30.06, redação dada pela Lei nº 26/2014, de 05.05].
Foi esta avalancha de imigração ilegal, constituída por um universo de imigrantes onde se integrarão potenciais refugiados, mas não só, que provocou um deficit nas condições do seu acolhimento por parte de Itália, e terá provocado uma reação política hostil na mira de suscitar a participação solidária dos demais Estados-membros na resolução do problema.
Assim, os epifenómenos traduzidos nas notícias oficiosamente respigadas pelo tribunal, refletem toda essa inusitada situação vivida, nomeadamente, em Itália, mas não são aptos a implicar o risco de tratamento desumano ou degradante, mormente tortura, dos requerentes de proteção internacional por parte do Estado Italiano.
Temos, por conseguinte, que as notícias levadas ao acervo factual provado, a título de factos notórios, não deixando de traduzir uma «situação anómala», não são, por si só, e atentos os contornos da situação, suscetíveis de configurar motivos válidos para crer que se preenche - no caso concreto - a hipótese legal prevista no 2º parágrafo do nº2 do artigo 3º do Regulamento [EU] 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.06.2013. Isto é, elas não constituem razões sérias e verosímeis de que o requerente corra o risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, mormente tortura, por parte das autoridades italianas.”
Aliás, recentemente, por Acórdão de 21/5/2020 no P. 1300/19, a formação do 150º, não admitiu revista interposta por Requerente de asilo relativamente a Ac. do TCA que julgara neste mesmo sentido.”
Conforme resulta de 7 da matéria de facto, em 22/11/2021 o requerente apresentou requerimento onde vem apresentar esclarecimentos e correções ao seu pedido de proteção internacional e onde refere que em França os cartões bancários de apoio aos requerentes apenas são entregues no final do mês sendo que saiu do país antes do final do mesmo mês, pelo que nunca teve acesso a esse apoio pecuniário.
No requerimento de 9/12/2021 (ponto 11 da matéria de facto) é reafirmada a mesma factualidade e acrescentado que em França não teve acesso a condições de acolhimento, nem mesmo sendo requerente de asilo, tendo dormido na rua quando estava frio, teve problemas de estômago e por isso decidiu sair no final do mês de Novembro.
E, contrariamente ao decidido na decisão recorrida, não é pela circunstância de entre 7/11/2021 e o final (nem sabemos a data ao certo) de Novembro de 2021, o requerente não ter logrado aceder a quaisquer benefícios sociais, que apenas ocorreriam precisamente no momento em que foi embora (o que não tem qualquer lógica) que estamos perante uma situação de tratamento desumano e degradante.
Esta situação procedimental tal como resulta estar a ser regulamentada em França tem presente a distinção que importa fazer entre refugiados e migrantes assim como a quantidade inusitada destes últimos, não se podendo considerar que a mesma implica qualquer risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia apenas porque os benefícios sociais são aferidos no final do mês.
E, também, não podemos esquecer que a França, como Estado-Membro da União Europeia, está sujeita às obrigações decorrentes da aplicação da legislação europeia, nomeadamente em matéria de procedimento de asilo (Regulamento Dublin III), de acolhimento dos requerentes de proteção internacional (Diretiva 2013/33/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2013), e aos órgãos da própria União Europeia.
Pelo que, inexistindo indícios concretos de falhas sistémicas nos procedimentos de asilo em França, não se impõe obrigar o SEF a averiguar acerca das condições no procedimento de asilo no país de acolhimento, procedendo a diligências instrutórias de averiguação sobre eventuais falhas do sistema francês na apreciação dos pedidos de proteção internacional ou nas condições de acolhimento dos requerentes.
Não estamos, pois, perante uma situação donde, da inadmissibilidade do pedido de proteção em Portugal do aqui recorrente, possa decorrer a sua transferência para outro Estado-Membro que o vá colocar numa situação equiparada a “tratos desumanos ou degradantes”.
E, por isso, não se impõe ao SEF qualquer averiguação oficiosa sobre o funcionamento do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional nesse Estado-membro da União Europeia.
*
Em face de todo o exposto acordam os juízes deste STA em conceder provimento a este recurso de revista, revogar o acórdão recorrido e julgar improcedente a ação.
Sem custas - artigo 84º da Lei nº27/2018, de 30.06, redação dada pela Lei nº 26/2014, de 05.05.


Lisboa, 24 de Novembro de 2022. - Ana Paula Soares Leite Martins Portela (relatora) - Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha - José Augusto Araújo Veloso.