Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01375/12
Data do Acordão:02/14/2013
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:VALENTE TORRÃO
Descritores:IRC
ENCARGOS FISCAIS
DESPESAS DE REPRESENTAÇÃO
RETROACTIVIDADE DA LEI FISCAL
Sumário:I - A tributação autónoma sobre encargos com viaturas ligeiras de passageiros e despesas de representação incide sobre a despesa, constituindo cada ato de despesa um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC no fim do período respetivo.
II - Sendo assim, independentemente de a tributação autónoma ser devida com referência a um determinado período que coincide com o ano civil, a cada ato de despesa deve ser aplicada a taxa em vigor na data da sua realização.
III - Deste modo, sofre de inconstitucionalidade, por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal consagrado no artigo 103.°, n.º 3, da Constituição da República, a norma do artigo 5.º da Lei n.° 64/2008, de 5 de dezembro, que determinou que o agravamento da taxa de 5% para 10% sobre despesas de representação e encargos com viaturas ligeiras de passageiros, resultante da nova redação dada ao artigo 81.°, n.º 3, alínea a), do CIRC, produzisse efeitos a partir de 1 de janeiro de 2008, na medida em que representa uma aplicação da lei nova a factos tributários integralmente ocorridos antes da sua entrada em vigor.
IV - As novas taxas, por isso, apenas podem ser aplicadas aos atos de despesa posteriores à entrada em vigor da alteração do citado artº 81º, nº 3, alínea a) do CIRC.
Nº Convencional:JSTA00068120
Nº do Documento:SA22013021401375
Data de Entrada:12/04/2012
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A..., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF LISBOA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT
Área Temática 2:DIR FISC - IRC
Legislação Nacional:CIRC01 ART81 N1 N2 N3 N4
L 55-B/2004 DE 2004/12/30
L 67-A/2007 DE 2007/12/31
Jurisprudência Nacional:AC TC 18/2011 PROC204/2010; AC TC 617/2012 PROC150/12 DE 2012/12/19 ; AC STA PROC0281/11 DE 2011/07/06; AC STA PROC0757/11 DE 2012/06/14
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A Fazenda Pública veio recorrer da decisão do Mmº Juiz do TAF de Lisboa que julgou procedente a impugnação deduzida por A…….., Ldª, com os demais sinais nos autos, contra a liquidação de IRC relativo ao exercício de 2008, apresentando, para o efeito, alegações nas quais conclui:

Iª) - Pelo elenco de fundamentos acima descritos, infere-se que a douta sentença, ora recorrida, julgou procedente a impugnação à margem referenciada com as consequências aí sufragadas, por ter considerado que a Lei n.° 64/2008, de 05/12 enfermava do vício de inconstitucionalidade uma vez que retroagia os seus efeitos a factos passados, o que era proibido nos termos do art.° 103.°, n.° 3 da CRP.

IIª) - Neste âmbito, o thema decidendum, assenta em determinar se a Lei n.° 64/2008, de 05/12, era ou não inconstitucional e se a Autoridade Tributária a deveria ou não aplicar, face ao princípio da legalidade a que está obrigada.

IIIª) - A Fazenda Pública considera que a Lei n.° 64/2008, de 05/12 não é inconstitucional uma vez que no Ac. do Tribunal Constitucional com o n.° 18/2011, de 12/01 se pronunciou pela sua constitucionalidade, pelo que se acompanha na íntegra a fundamentação do Ac. supra, para o qual remetemos.

IVª)- Assim, não tendo sido decretada a inconstitucionalidade da lei, não se vislumbra quaisquer motivos para que a Autoridade Tributária a não aplique, até porque as taxas de tributação autónoma são evidenciadas na Mod. 22, aos encargos suportados, sendo que os mesmos são declarados no final do ano, não sendo, também, por este motivo inconstitucional

Vª) - Pelo exposto, somos de opinião que o douto Tribunal "ad quo", esteou a sua fundamentação na errónea apreciação das razões de direito, em clara e manifesta violação da Lei n.° 64/2008, de 05/12, designadamente no seu art.° 5.° que altera as taxas de tributação autónoma dos art.°s 81.° e 96.° do CIRC.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação improcedente, com as devidas consequências legais.

2. O MºPº emitiu o parecer que consta de fls. 220/221.

3. Com interesse para a decisão foram dados como provados em 1ª instância os seguintes factos:

A) A impugnante apresentou declaração periódica - Modelo 22 - relativa ao exercício de 2008 - cfr. de fls. 123 a 142 do processo administrativo tributário, 34 a 37 do processo de reclamação graciosa, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.

B) Tendo preenchido o campo 365 da dita declaração com o valor de 18.138,75 € - cfr. de fls. 136 do processo administrativo tributário, 37 do processo de reclamação graciosa, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.

C) Sendo que 16.188,07 € respeitava a tributação autónoma - encargos dedutíveis em virtude de despesas de representação e relacionadas com viaturas ligeira de passageiros - cfr. de fls. 41 a 58 do procedimento de reclamação graciosa, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.

D) A interessada - ora impugnante - aplicou a taxa de 5% - confissão, cf. de fls. 41 a 58 do procedimento de reclamação graciosa, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.

E) A Administração Fiscal corrigiu o mencionado campo e emitiu liquidação n.° 2009 2610156477 de IRC, da qual resultou o valor de € 32.376,14 - cfr. de fls. 49 dos autos, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.

F) A Administração Tributária aplicou a taxa de 10 % aos referidos encargos, com base na alteração legal operada pela Lei 64/2008, de 5 de dezembro - cfr. de fls. 97 a 100 dos autos, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.

G) Foi apresentada reclamação graciosa, que mereceu, em 10/05/2010, despacho de indeferimento - cfr. de fls. 143 a 147 do processo administrativo tributário, 78 a 82 do procedimento de reclamação graciosa, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.

H) Em 22/08/2009, a impugnante procedeu à entrega, nos cofres do Estado, do montante apurado pela Administração Tributária - por acordo, cfr. de fls. 146 do processo administrativo tributário.

4. Colhidos os vistos legais cabe agora decidir.

5. A questão objeto do presente recurso consiste em saber se a nova redação dada ao artº 81º, nº 3 a) do CIRC, alterado pelo artigo 5º da Lei 64/2008 de 5/12, na parte em que faz retroagir a 1/1/2008 a aplicação do agravamento da taxa de 5% para 10%, sobre as despesas de representação e encargos com viaturas ligeiras de passageiros, viola ou não a Constituição da República, nomeadamente o princípio da não retroatividade da lei fiscal consagrado no artº 103º, nº3 da CRP e 12º, nºs. 1 e 2 da Lei Geral Tributária.

5.1. A decisão recorrida, louvando-se em jurisprudência deste STA, entendeu que a aplicação das novas taxas de tributação do artº 81º, nº 3 do CIRC, alteradas pela Lei nº 64/2008, só seriam aplicáveis a partir da entrada em vigor da citada lei – 05.12.2008. A aplicação a factos anteriores a essa data representa violação do princípio da irrectroactividade fiscal consagrado no artº 103º da CRP.

5.2. A recorrente Fazenda Pública, por sua vez, sustenta entendimento contrário invocando os seguintes argumentos:
O Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 18/2011, de 12 de janeiro, pronunciou-se pela constitucionalidade da Lei nº 64/2008.
Assim, não tendo a norma em apreciação nos autos sido declarada inconstitucional não havia motivos para que a Administração Tributária a não aplicasse, até porque as taxas de tributação autónomas são evidenciadas na Mod 22 aos encargos suportados, sendo que os mesmos são declarados no final do ano, não sendo, também por isso, inconstitucional.

6.Vejamos então qual destas teses em confronto colhe, em nosso entender, apoio legal.

6.1. O artigo 81.º do CIRC, sob a epígrafe «Taxas de tributação autónoma», na redação dada pela Lei nº 55-B/2004, de 30 de dezembro, entretanto alterada pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, determinava, na parte relevante, o seguinte:
1 - As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como custo nos termos do artigo 23.º
2 – A taxa referida no número anterior é elevada para 70% nos casos em que tais despesas sejam efetuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, atividades de natureza comercial, industrial ou agrícola.
3 – São tributados autonomamente, à taxa de 5% os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras ou mistas, motos ou motociclos, efetuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjetivamente e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.
4 – São tributados autonomamente, à taxa de 15%, os encargos dedutíveis respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja superior a € 40 000, quando suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior que apresentem prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores àquele a que os referidos encargos digam respeito.(…)

Após a redação introduzida pela Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, os n.ºs 3 e 4 do mesmo preceito passaram a determinar o seguinte:
3 – São tributados autonomamente, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica:
a) À taxa de 10 %, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, efetuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjetivamente e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola;
b) À taxa de 5 %, os encargos dedutíveis, suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior, respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujos níveis homologados de emissão de CO2 sejam inferiores a 120 g/km, no caso de serem movidos a gasolina, e inferiores a 90 g/km, no caso de serem movidos a gasóleo, desde que, em ambos os casos, tenha sido emitido certificado de conformidade.
4 – São tributados autonomamente, à taxa de 20 %, os encargos dedutíveis, suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior, respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja superior a € 40 000, quando os sujeitos passivos apresentem prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores àquele a que os referidos encargos digam respeito.

A Lei n.º 64/2008 entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, conforme prevê o seu artigo 6º, mas a produção de efeitos retroage a 1 de janeiro de 2008, em função do que estabelece o artigo 5º do mesmo diploma.

Deste modo, a Lei n.º 64/2008, através da nova redação dada à alínea a) do n.º 3 do artigo 81.º do CIRC, operou um agravamento da taxa de tributação aplicável aos encargos mencionados no anterior n.º 3 dessa disposição, que se torna aplicável, por virtude da retroação de efeitos, aos encargos e despesas já realizados pelos contribuintes no decurso do ano de 2008 e até à data em que a lei iniciou a sua vigência.

6.2. O Tribunal Constitucional, pelo seu acórdão nº 18/2011, proferido no Processo nº 204/2010, julgou não verificada a inconstitucionalidade da alínea a) do nº 3 do citado artº 81º do CIRC por estarem em causa normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei, situação que se considerou ser correspondente à de retroatividade inautêntica, não coberta pela regra do artigo 103.º, n.º 3.

Para assim decidir o Tribunal Constitucional, apelou à doutrina do Acórdão do mesmo Tribunal nº 399/2010, de 27 de outubro de 2010, que julgou inteiramente transponível para o caso em análise, segundo o qual «o legislador da revisão constitucional de 1997, que introduziu a atual redação do artigo 103.º, n.º 3, apenas pretendeu consagrar a proibição da retroatividade autêntica, ou própria, da lei fiscal, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente», enquadrando assim a questão colocada como de mera retrospetividade ou retroatividade inautêntica.

6.3.Porém, este STA manifestou entendimento divergente sobre esta questão, tendo-se pronunciado em sentido contrário nos acórdãos de 06.07.2011-Processo nº 281/11 e de 14.06.2012 – Processo nº 0757/11.

Assim, no primeiro aresto citado ficou escrito, para além do mais, o seguinte:

“6.4.O artigo 103.º, n.º 3, da CRP, introduzido no texto constitucional na revisão de 1997, estabelece o seguinte: "Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei".
Antes dessa revisão constitucional, porém, a Comissão Constitucional (cfr. Parecer n.º 25/81, Acórdão n.º 444, Parecer n.º 14/82) e, posteriormente, o Tribunal Constitucional (cfr. Acórdão n.º 11/83 e Acórdãos n.º 66/84 e n.º 141/85) decidiram que, apesar de não se poder retirar da Constituição uma proibição radical de impostos retroativos, tal deveria considerar-se constitucionalmente vedado quando essa retroatividade fosse «arbitrária e opressiva» e violasse «de forma intolerável a segurança jurídica e a confiança que as pessoas têm obrigação (e também o direito) de depositar na ordem jurídica que as rege». «A retroatividade tributária terá o beneplácito constitucional» se a confiança dos destinatários da norma for «materialmente injustificada» ou se ocorrerem «razões de interesse geral que a reclamem e o encargo para o contribuinte não se mostrar despro-porcionado» (cfr. Parecer n.º 14/82).
Também na doutrina J. M. Cardoso da Costa - "O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal", in
Perspetivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição, Vol. II, Coimbra, 1997, p. 418).- considerava que “[a] linha demarcadora do âmbito da retroatividade fiscal constitucionalmente admissível passará, desde logo, pela distinção entre situações tributárias «permanentes» e «periódicas» e «factos» cuja eficácia fiscal se esgota ou se firma «instantaneamente», para cada um deles «de per si» (maxime, pela distinção entre «impostos periódicos» e «impostos de obrigação única»), e passará provavelmente, depois, no que concerne àquele primeiro tipo de situações, pela distância temporal que já tiver mediado entre o período de produção dos rendimentos e a criação (ou modificação) do correspondente imposto. Isto, de todo o modo, sem prejuízo do relevo de outras circunstâncias, cujo possível peso não poderá ignorar-se.”
Recentemente, no acórdão n.º 128/2009, o Tribunal Constitucional considerou que a natureza necessariamente fluida dos critérios utilizados levou a que
, “em diversos arestos, o Tribunal viesse dar como boas leis fiscais retroativas. Foi o que sucedeu, por exemplo, nos Acórdãos n.º 11/83 e 66/84 (este último em Acórdãos, 4.º Vol. p. 35) e ainda nos Acórdãos n.ºs 67/91, 1006/96, 1204/96 e 416/02.). Noutros casos, ao invés, o Tribunal entendeu que, por inexistirem razões de interesse público que prevalecessem sobre o valor da segurança jurídica, as normas retroativas seriam intoleráveis e, consequentemente, constitucionalmente ilegítimas (Cfr., por exemplo, os Acórdão ns.º 409/89, 216/90, 410/95 e 185/2000, também disponíveis no mesmo lugar).”

6.5. Após a revisão constitucional de 1997, houve consagração expressa do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, mas o seu sentido não é unívoco.
Como sustenta Alberto Xavier, não basta afirmar que a lei fiscal não pode ser retroativa, pois a concretização deste princípio envolve sérias dificuldades, atendendo a que se podem descortinar dentro dele diversos graus, sendo que, do ponto de vista constitucional, alguns são mais gravemente desvalorados do que outros (Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, Lisboa 1974, p. 196 e segs; idem, "O problema da retroatividade das leis sobre imposto de renda", in Textos Selecionados de Direito Tributário, coord. de Sampaio Dória, São Paulo, 1983, p. 77 e segs. Mais recentemente, cfr. Américo Fernando Brás Carlos, Impostos – Teoria Geral, 3ª ed., Coimbra, 2010, p. 142 e segs).
Assim, um caso em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga e um outro caso em que o facto tributário tenha ocorrido ao abrigo da lei antiga, mas os seus efeitos, designadamente os relativos à liquidação e pagamento, ainda não estejam totalmente esgotados não terão necessariamente o mesmo desvalor constitucional, uma vez que a primeira situação é do ponto de vista da eventual afetação da situação jurídica do contribuinte mais grave que a segunda. E estes dois casos diferenciam-se também de um terceiro em que o facto tributário que a lei nova pretende regular na sua totalidade não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes se continua formando na vigência da lei nova, como acontece nos presentes autos.
A qualificação que a doutrina atribui a cada uma destas situações não é de todo convergente, verificando-se, todavia, um certo consenso em considerar a primeira situação descrita como retroatividade autêntica (cfr. Casalta Nabais, Direito Fiscal, p. 147; Américo Fernando Brás Carlos, Impostos, p. 145 e segs.; Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, Lisboa, 1996, p. 414 e segs.). Em relação aos segundo e terceiro casos enunciados, há quem considere que ambas as situações se enquadram na retroatividade inautêntica, enquanto outros apenas incluem a segunda situação nesta categoria, defendendo que o terceiro caso já não se integra em qualquer tipo de retroatividade, mas sim na retrospetividade (cfr. Américo Fernando Brás Carlos, Impostos, p. 145 e segs.; Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, Lisboa, 1996, p. 419 e 420).
6.6. Independentemente dos graus de “retroatividade” que a doutrina consagra, os trabalhos preparatórios da IV Revisão Constitucional elucidam-nos sobre o espírito do nº 3 do artº 103º citado. (V. discussão na reunião da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, de 9 de outubro de 1996 (cfr. DAR, II Série, RC, n.º 36, de 10 de outubro de 1996, p. 1081).
Assim, de acordo com a proposta apresentada pelo PS: «A lei fiscal não pode ser aplicada retroactivamente, sem prejuízo de as normas respeitantes a impostos diretos poderem incidir sobre os rendimentos do ano anterior».
Segundo a proposta apresentada pelo PCP: «A lei que criar ou aumentar impostos não pode ter efeito retroativo, sendo vedada a tributação relativa a factos geradores ocorridos antes da respetiva lei».
Finalmente a proposta apresentada pelo PSD foi a seguinte «Ninguém poder ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».
Parece então resultar daqui que o legislador apenas pretendeu incluir, no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, a proibição da retroatividade autêntica, própria ou perfeita da lei fiscal, o que não é contrariado pela letra do preceito, uma vez que o texto constitucional apenas se refere à natureza retroativa tout court. Por outro lado, resulta igualmente dos trabalhos preparatórios, de forma cristalina, que não se pretenderam integrar no preceito as situações em que o facto tributário que a lei nova pretende regular não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes continuando a formar-se na vigência da lei nova, pelo menos, quando estão em causa impostos diretos relativos ao rendimento (como é claramente o caso dos presentes autos).
6.7. Também o Tribunal Constitucional, na sua mais recente jurisprudência em matéria fiscal, designadamente nos acórdãos nºs 128/2009 e 85/2010, considerou que a retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, CRP é somente a autêntica. Disse-se no primeiro acórdão:
Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e em que medida, ser retroativas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroativa, sendo a expressão «retroatividade» usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.”
E mais adiante:
“A retroatividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a retroatividade própria ou autêntica. Ou seja, proíbe-se a retroatividade que se traduz na aplicação de lei nova a factos (no caso, factos tributários) antigos (anteriores, portanto, à entrada em vigor da lei nova).”
Na doutrina, e defendendo a retroatividade autêntica e não a imprópria ou "inautêntica" V. Casalta Nabais, Direito Fiscal, p. 147; Rui Guerra da Fonseca, Comentário à Constituição Portuguesa, II volume, coordenação de Paulo Otero, pp. 872 e segs., Américo Fernando Brás Carlos, Impostos, p. 145 e segs.); em sentido contrário V. Paz Ferreira - Constituição da República Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo II, Coimbra, 2006, p. 223, seguindo a posição de Diogo e Mónica Leite de Campos e Jorge Bacelar Gouveia.
6.8. Aqui chegados importa então apurar se o artº 5º da Lei nº 64/2008, de 5 de dezembro pode aplicar-se retroactivamente à tributação autónoma prevista no artº 83º, nº 1, alínea a) do CIRC.
Adotando o entendimento de que artigo 103.º, n.º 3, da CRP apenas pretendeu consagrar a proibição da retroatividade autêntica, ou própria, da lei fiscal, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando a lei é aprovada até ao final do ano a que corresponde o imposto, a situação dos autos não é idêntica à tratada no Acórdão 399/2010 do Tribunal Constitucional, tal como se escreveu Acórdão 18/11, de 12 de janeiro de 2011, do Tribunal Constitucional, proferido no Processo nº 204/2010.
É que, no caso dos presentes autos não está em causa imposto sobre o rendimento (como sucedia no citado acórdão 399/2010), mas sim tributação autónoma sobre a despesa. Como bem refere a recorrente “as tributações autónomas tributam despesa e não rendimento, são impostos indiretos e não diretos, que penalizam determinados encargos incorridos pela empresa e apuram-se de forma totalmente independente do IRC e Derrama devidos no exercício, não se relacionando sequer com a obtenção de um resultado positivo. Em boa verdade, as tributações autónomas constantes do Código do IRC poderiam estar inscritas num outro código ou em diploma autónomo” (Conclusão VIIª das alegações).
Por outras palavras, como salienta o srº Conselheiro Vítor Gomes no seu voto de vencido, aposto no citado acórdão nº 204/2010, “Embora formalmente inserida no CIRC e o montante que permita arrecadar seja liquidado no seu âmbito e a título de IRC, a norma em causa respeita a uma imposição fiscal que é materialmente distinta da tributação nesta cédula, pelo que não podem ser invocados argumentos semelhantes àqueles que naquele segundo acórdão foram mobilizados no sentido de não se configurar um caso de retroatividade proibida pelo n.º 3 do artigo 103.º da Constituição. Com efeito, estamos perante uma tributação autónoma, como diz a própria letra do preceito. E isso faz toda a diferença. Não se trata de tributar um rendimento no fim do período tributário, mas determinado tipo de despesas em si mesmas, pelas compreensíveis razões de política fiscal que o acórdão aponta”.

Deste modo, o facto revelador de capacidade tributária que se pretende alcançar é a simples realização dessa despesa, num determinado momento. Cada despesa é, para este efeito, um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC no fim do período, sendo irrelevante que esta parcela de imposto só venha a ser liquidada num momento posterior e conjuntamente com o IRC.

Sendo assim a taxa a aplicar a cada despesa é a que vigorar à data da sua realização, uma vez que o facto tributário se verifica no momento em que se incorre nas despesas sujeitas a tributação autónoma.
Em resumo e concluindo como no voto de vencido acima referido, “O facto gerador de imposto em IRC determina-se por relação ao fim do período de tributação (n.º 9 do artigo 8.º do CIRC), mas a tributação autónoma agora em causa não comunga desse pressuposto, porque não atinge o rendimento (artigo 1.º do CIRC) mas a despesa enquanto tal”.
Por isso, as novas taxas introduzidas pela Lei nº 64/2008, de 5 de dezembro, só são aplicáveis às despesas realizadas após a sua entrada em vigor, uma vez que não estamos perante rendimento reportado a determinado período e norma publicada nessa fase final do período de tributação, à semelhança do decidido relativamente ao n.° 1 do artigo 68° do Código do IRS, na redação que lhe foi dada pelo artigo 1° da Lei n.° 11/2010, de 15 de junho, quando conjugada com o disposto nos artigos 2.º e 3.º da mesma Lei e, também, do mesmo n.° 1 do artigo 68° do Código do IRS, na redação que lhe foi dada pelo artigo 1° da Lei n.° 12-A/2010, de 30 de junho, quando conjugada com o disposto no n.° 1 do artigo 20° da mesma Lei. (Acórdão 399/2010).
Assim sendo, estamos perante retroatividade autêntica ou própria da lei fiscal, proibida pelo nº 3 do artº 103º da CRP, uma vez que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tinha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, relativamente a despesas já realizadas.
O recurso, merece, por isso provimento”.

Esta doutrina foi mantida no Acórdão de 14.06.2012, no qual se escreveu também o seguinte:

“Com efeito o Acórdão 18/11 julgou inteiramente transponível para a análise da questão decidenda a doutrina do Acórdão 399/2010 do Tribunal Constitucional, o qual se pronunciou sobre a inconstitucionalidade da norma constante do n.° 1 do artigo 68° do Código do IRS, na redação que lhe foi dada pelo artigo 1° da Lei n.° 11/2010, de 15 de junho, quando conjugada com o disposto nos artigos 2.º e 3.º da mesma Lei e, também, do mesmo n.° 1 do artigo 68° do Código do IRS, na redação que lhe foi dada pelo artigo 1° da Lei n.° 12-A/2010, de 30 de junho, quando conjugada com o disposto no n.° 1 do artigo 20° da mesma Lei, normas essas referentes à criação de um escalão adicional de tributação em sede de IRS, com taxa de 45%, e ao aumento do valor das taxas de todos os escalões de IRS .
Trata-se, no entanto, de situação bem diversa da que é objeto dos presentes autos.
Assim enquanto que as despesas sobre as quais incide a tributação autónoma constituem factos tributários instantâneos ou de obrigação única, as normas objeto de análise no Ac. 399/10 eram relativas a um imposto periódico (alteração de escalões de IRS) com factos tributários de formação sucessiva.
Isso mesmo foi devidamente sublinhado no voto de vencido do Consº Vítor Gomes, exarado no referido acórdão 18/11”.
E mais adiante:

“Neste sentido se pronuncia também Rui Duarte Morais, nos seus Apontamentos ao IRC, pág. 202, sublinhando que as tributações autónomas incidem sobre certas despesas dos sujeitos passivos, as quais são havidas como constituindo factos tributários.
E do mesmo modo afirma Paula Rosado Pereira (O Princípio da não retroatividade da lei fiscal no campo da tributação autónoma de encargos, in Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano IV, nº 2, pag. 220.) que na tributação autónoma não existe um facto tributário de formação sucessiva - que apenas está completo no fim do período de tributação, como ocorre nos impostos periódicos -, mas sim um facto tributário de formação instantânea.
Assim, conclui aquela autora, a aplicação de um agravamento da taxa de tributação autónoma, relativamente a encargos incorridos previamente à entrada em vigor da nova lei que prevê tal agravamento, corresponde a uma aplicação de lei nova a um facto tributário inteiramente ocorrido no passado.
Este é, também, o nosso entendimento.
Propendemos, pois, para acolher a posição sufragada no recente acórdão nº 0281/11 deste Supremo Tribunal Administrativo (2ª Secção), de 6-7-2011, que entendeu que a nova taxa de 10%, resultante do artº 5º da Lei nº 64/2008, de 5 de dezembro, apenas devia ser aplicada aos atos de despesa posteriores à alteração legislativa que estipulou o agravamento (de 5% para 10%), sob pena de violar o princípio da não retroatividade fiscal consagrado na Constituição (retroatividade autêntica/própria, cfr. artº 103º nº3 da CRP)”.

6.5. Ora, não existem razões para se seguir agora entendimento diverso do afirmado nos arestos acima transcritos deste Supremo Tribunal, pelo que temos de entender, sob pena de violação do princípio da irretroatividade da lei fiscal consagrado no artº 103º, nº 3 da CRP, que as novas taxas introduzidas pela Lei nº 64/2008, de 5 de dezembro, só são aplicáveis às despesas realizadas após a sua entrada em vigor, uma vez que não estamos perante rendimento reportado a determinado período e norma publicada nessa fase final do período de tributação.

Razão acrescida para se decidir neste sentido, resulta ainda do facto de o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 617/2012, de 19.12.2012- Processo nº 150/12 e em Plenário ter decidido pela inconstitucionalidade da norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do CIRS, com a argumentação que se transcreve:

“Contudo, como vimos, embora a referida Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, tenha entrado em vigor em 6 de dezembro de 2008, o seu artigo 5.º, n.º 1, determinou que tal alteração produzia efeitos a partir de 1 de janeiro de 2008.
Ora, tendo já ocorrido o facto que deu origem à obrigação tributária posteriormente agravada por lei nova, as razões que presidiram à consagração da regra de proibição da retroatividade neste domínio estão integralmente presentes, uma vez que importa prevenir o risco abstrato de que a lei publicada com retroação de efeitos provoque agravos financeiros desrazoáveis, pela impossibilidade em que se encontravam os contribuintes afetados, vinculados a tais factos já ocorridos, de prever e prover quanto às suas consequências tributárias, determinadas por lei futura.
Assim, não pode a lei, sob pena de violação da proibição imposta no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, agravar o valor da taxa de tributação autónoma, relativamente a despesas já efetuadas aquando da sua entrada em vigor, pelo que, tendo a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, determinado a retroação de efeitos a 1 de janeiro de 2008 da alteração do artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, violou a referida proibição constitucional.”
Na verdade, embora a tributação de determinados encargos esteja formalmente inserida no Código do IRC e o respetivo montante seja liquidado no âmbito daquele imposto, tal tributação é uma imposição fiscal materialmente distinta da tributação em IRC. Enquanto aquela incide, excecionalmente, sobre a realização de determinadas despesas, a última incide sobre determinados rendimentos, funcionando apenas como elo entre elas a circunstância dessas despesas serem dedutíveis no apuramento destes rendimentos, visando-se com a criação daquele imposto reduzir a vantagem fiscal resultante da dedução desses custos. Mas a existência do imposto aqui em análise em nada influi no montante do IRC, atuando de forma perfeitamente autónoma relativamente a este, pelo que o seu funcionamento deve ser encarado somente segundo os elementos que o caracterizam.
Assim, esgotando-se o facto tributário que dá origem a esta tributação autónoma, no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação, embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha apenas aefetuar no fim de um determinado período tributário, a aplicação de um agravamento da respetiva taxa, relativamente a encargos ocorridos previamente à entrada em vigor da nova lei que prevê esse agravamento, corresponde a uma aplicação de lei nova a um facto tributário anterior, verificando-se uma situação de retroatividade autêntica proibida perlo artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Pelas razões expostas, deve ser julgada inconstitucional, por violação do n.º 3, do artigo 103.º, da Constituição, a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal, julgando-se improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público e confirmando-se a decisão recorrida”.

7. Nestes termos e pelo exposto, nega-se provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela Fazenda Pública.
Lisboa, 14 de fevereiro de 2013. - Valente Torrão (relator) - Ascensão Lopes - Pedro Delgado.