Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 01074/13 |
Data do Acordão: | 07/02/2014 |
Tribunal: | 2 SECÇÃO |
Relator: | DULCE NETO |
Descritores: | IVA ACTO DE LIQUIDAÇÃO IMPUGNABILIDADE FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO |
Sumário: | I - A Administração Tributária tem o dever de fundamentar os actos de liquidação oficiosa de tributos, em conformidade com o princípio plasmado no art. 268º da CRP, acolhido nos arts. 125º do CPA e 77 º da LGT.
II - O acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487º nº 2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, por aceitar ou não o acto. III - A Administração Tributária cumpre este dever de fundamentação quando, estando em causa um acto de liquidação oficiosa de IVA, dá a conhecer ao sujeito passivo as operações aritméticas a que procedeu para determinar o quantum de imposto em dívida, depois de identificar, individualizar e quantificar os factores que utilizou nessas operações: ratio do sector da actividade exercida, volume de negócios, tributação mínima e declarações periódicas em falta. |
Nº Convencional: | JSTA000P17756 |
Nº do Documento: | SA22014070201074 |
Data de Entrada: | 06/14/2013 |
Recorrente: | FAZENDA PÚBLICA |
Recorrido 1: | A............ |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: A FAZENDA PÚBLICA recorreu para o Tribunal Central Administrativo Norte da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, exarada a fls. 53 e segs. dos autos, que julgou procedente a impugnação judicial que A………… deduziu contra a liquidação oficiosa de IVA do ano de 2008, no montante de € 1.496,40. 1.1. Terminou a alegação de recurso com as seguintes conclusões: A. O presente recurso tem por objecto a douta sentença que julgou procedente a impugnação deduzida contra a liquidação oficiosa de IVA nº 10161266, DUC nº 1020 100 16126608, referente aos períodos de 0803T, 0806T, 0809T e 0812T, no montante de € 1.496,40, por haver concluído que a mesma liquidação, ao não dar a conhecer as operações de apuramento do tributo, padece do vício de falta de fundamentação B. Entende a Fazenda Pública que ocorre erro de julgamento de facto e de direito, por duas razões: (i) a primeira: o Tribunal devia rejeitar liminarmente a presente impugnação pois a mesma não devia ser admitida face ao estabelecido no art. 97º, nº 2 do Código do IVA (CIVA), absolvendo a Fazenda Pública da instância, e, sem prescindir; (ii) a segunda: os cálculos constantes na notificação resultam do que se encontra aposto na fórmula. C. Refere o art. 97º nº 2 do CIVA que “Os recursos hierárquicos, as reclamações e as impugnações não são admitidos se as liquidações forem ainda susceptíveis de correção nos termos do art. 78º, ou se não tiver sido entregue a declaração periódica cuja falta originou a liquidação prevista no art. 88º”, ou seja, as garantias referidas no nº 1 do art. 97º do CIVA não poderão ser exercidas enquanto as liquidações forem suscetíveis de correções ou se não tiver sido entregue a declaração periódica cuja falta originou a liquidação prevista no art° 88º do CIVA. D. Como refere JOÃO ANTÓNIO VALENTE TORRÃO, in Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, anotado e comentado, 2005, Almedina, p. 331, “Compreende-se o disposto no nº 2, pois que não sendo definitiva e liquidação, não faz sentido estar a reclamar, recorrer ou deduzir impugnação judicial. É claro que no caso de o sujeito passivo não ter entregue a declaração, também não faria sentido poder exercer os direitos referidos no nº 1, uma vez que ele não pode entregar a declaração que conduzirá à alteração da liquidação.” E. Acrescenta o mesmo autor que “No entanto, se decorrido o prazo de 90 dias a que se refere o artigo 83º, nº 2 (corresponde ao art.º 88º nº 2 em vigor no exercício de 2008), não for apresentada a declaração, a liquidação converte-se em definitiva, não podendo o sujeito passivo impugná-la ou dela reclamar na medida em que deixou passar o prazo para apresentação da declaração”, rematando, a final que “... não nos parece que exista qualquer violação dos direitos do contribuinte, na medida em que se não usou do direito de apresentar a declaração se conformou com a liquidação efectuada oficiosamente”. F. Com efeito, este normativo estabelece uma condição de impugnabilidade - a de que o sujeito passivo só pode impugnar a liquidação oficiosa, efectuada ao abrigo do art. 88º do CIVA, quando entregue a declaração em falta que motivou a emissão dessa liquidação - art. 97º, nº 2 do CIVA. G. Assim, ao não ter verificado da condição de impugnabilidade, o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, uma vez que estamos perante uma exceção de conhecimento oficioso, devendo a Fazenda Pública ser absolvida da instância, nos termos do art. 492º, nº 2 e 495º, ambos do Código do Processo Civil (CPC), ex vi art. 2º, al. e) do CPPT. Sem prescindir, H. A segunda razão prende-se com a fórmula aposta na notificação, cuja sentença determinou que seguindo essa fórmula, não se alcança o resultado notificado à Impugnante, ocorrendo, consequentemente, vício de falta de fundamentação, gerador da anulação do ato tributário de liquidação impugnado. I. A anterior redação do art. 88º do CIVA, dada pela Lei nº 67-A /2007, de 31.12, e aplicável ao caso aqui em discussão, era omissa quanto à quantificação das liquidações oficiosas, atribuindo à AT o “poder” de proceder à sua emissão, “com base nos elementos de que disponha”. J. Neste sentido, foram estabelecidas regras que se traduzem nos seguintes parâmetros: O valor das liquidações oficiosas (f) é determinado pelo produto resultante de um valor mínimo estabelecido (€ 374,10 para os sujeitos passivos trimestrais) pelo número de declarações em falta, se da fórmula “d = rácio da actividade X volume de negócios” não resultar outro valor superior àquele mínimo. K. Contudo, no resultado final a apurar há duas situações a considerar - o valor correspondente a “d” será sempre o valor mínimo estabelecido se o sujeito passivo não tiver apresentado as declarações periódicas no ano anterior e, se maior que o mínimo estabelecido, o mesmo não pode ultrapassar o valor máximo autoliquidado no ano anterior. L. As regras de apuramento das liquidações oficiosas assim determinadas tentaram concretizar o objectivo da sua emissão, designadamente, a entrega das declarações em falta e não apenas o seu pagamento, uma vez que os valores emitidos podem ser inferiores aos montantes efectivamente autoliquidados (caso fossem apresentadas as declarações em falta) mas não serão superiores aos autoliquidados em cada período do ano anterior (caso tivessem sido apresentadas as declarações periódicas desse ano). M. No caso presente, verifica-se que a Impugnante não apresentou declarações periódicas desde o ano de 2004, inclusive. Consequentemente, não houve valores autoliquidados, motivo pelo qual foi considerado o produto do valor mínimo determinado (€ 374,10) pelo número de declarações em falta (4 declarações), o que resultou na emissão de uma liquidação oficiosa no valor de € 1.496,40 (€ 374,10 x 4). N. Nesta medida, não ocorrendo a invocada falta de fundamentação, decidindo da forma como decidiu, a douta sentença recorrida enferma de erro de julgamento de facto e de direito. Termos em que, deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, com as legais consequências.
1.2. A Recorrida apresentou contra-alegações para defender a admissibilidade da impugnação - por entender, em suma, que o art. 97º, nº 2, do CIVA, vedando a impugnação judicial de acto lesivo na esfera jurídica do contribuinte é materialmente inconstitucional, por violação do que dispõe o art. 268º, nº 4, da CRP, bem como para sustentar a manutenção do julgado.
1.3. Por Acórdão proferido a fls. 104 e segs. dos autos, o TCA Norte julgou-se incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer do presente recurso, declarando competente o STA por entender que nele está exclusivamente em causa matéria de direito.
1.4. Remetidos os autos ao Supremo Tribunal Administrativo, o Exmº Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer para dizer que nada tinha a acrescentar ao parecer já emitido a fls. 36 e 37, «uma vez que nada parece obstar ao conhecimento do recurso», sendo que, no invocado parecer, fora sustentado que a impugnação devia improceder por inexistência do alegado vício de falta de fundamentação do acto de liquidação.
a. A impugnante encontra-se colectada pelo exercício da actividade de Restaurantes tipo tradicional, CAE 56101, desde 3 1/12/2001, enquadrada, para efeitos de IVA, no Regime Normal, periodicidade trimestral (cfr. fls. 12 do processo administrativo apenso aos autos, doravante apenas PA). b. Por ofício datado de 10/04/2010 (cf. fls. 5 dos autos), a impugnante foi notificada para efeitos de audição prévia — art. 60° da Lei Geral Tributária nos seguintes termos:
c) Por incumprimento da obrigação de apresentação da declaração periódica de IVA, foi emitida em 03/07/2010, a liquidação oficiosa de IVA nº 10161266, DUC nº 102010016126608, referente aos períodos de 0803T, 0806T, 0809T e 0812T, no montante de € 1.496,40, com a seguinte fundamentação (cf. doc. de fls. 4 dos autos): d) A presente impugnação foi deduzida em 08/01/201 1 (cf. doc. de fls. 3 dos autos). 3. Vem o presente recurso jurisdicional interposto da sentença que julgou procedente a impugnação judicial deduzida pela ora Recorrida contra o acto de liquidação oficiosa de IVA do ano de 2008, no montante de € 1.496,40, impugnação que teve por causa de pedir a falta de fundamentação do acto de liquidação. As questões que a Fazenda Pública, ora Recorrente, coloca à apreciação deste Tribunal são as de saber se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento ao ter admitido a impugnação judicial em face do que dispõe o art. 97º, nº 2, do CIVA, e ao ter julgado que o acto de liquidação não se encontra suficientemente fundamentado. 3.1. Da admissibilidade da impugnação A Recorrente sustenta que esta impugnação judicial é legalmente inadmissível face ao comando ínsito no art. 97º, nº 2, do CIVA, pelo que devia ter sido absolvida da instância. Apesar de a questão ter sido colocada ex novo em sede de recurso, trata-se de uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso (arts. 576º, nºs. 1 e 2 e 578º do CPC), que importa, por isso, conhecer. Como flui da alínea c) do probatório e do documento de fls. 4 aí citado e transcrito, na notificação da liquidação oficiosa de IVA consta que essa liquidação se fundamentou na ausência de entrega das declarações referentes aos períodos de 0803T, 0806T, 0809T e 0812T, e nela se adverte expressamente a impugnante de que não poderá apresentar reclamação ou impugnação judicial quanto a essa liquidação a menos que apresente as respectivas declarações em falta, atento o teor do art. 97º, nº 2, do CIVA. O art. 97º do CIVA (na numeração introduzida pelo Dec. Lei nº 102/2008, de 20/6), integra-se no Capítulo VII, que tem por título «Garantias dos sujeitos passivos», e sob a epígrafe de «Recurso hierárquico, reclamação e impugnação», estabelece no seu nº 2 que «Os recursos hierárquicos, as reclamações e as impugnações não são admitidos se as liquidações forem ainda susceptíveis de correcção nos termos do artigo 78.º, ou se não tiver sido entregue a declaração periódica cuja falta originou a liquidação prevista no artigo 88.º». Da leitura desta norma retira-se que é vedado ao sujeito passivo reclamar ou impugnar a liquidação se esta for ainda susceptível de correcção nos termos definidos no art. 78º, ou se o sujeito passivo não tiver procedido à entrega da declaração periódica cuja falta deu causa à liquidação a que se refere o art. 88º. A questão que a Fazenda Pública suscita prende-se, assim, com a interpretação do art. 97º, nº 2, do CIVA, tendo em conta o regime da liquidação oficiosa previsto no art. 88º do mesmo diploma legal. Ora, no que aqui interessa, o art. 88º do CIVA diz o seguinte: Artigo 88º - Liquidação oficiosa do imposto pelos serviços centrais 1 - Se a declaração periódica prevista no artigo 40.º não for apresentada, a Direcção-Geral dos Impostos procede à liquidação oficiosa do imposto, com base nos elementos de que disponha. 2 - O imposto liquidado nos termos do número anterior deve ser pago nos locais de cobrança legalmente autorizados, no prazo mencionado na notificação, efectuada nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o qual não pode ser inferior a 90 dias contados desde o seu envio. 3 - (…) 4 - A liquidação referida no n.º 1 fica sem efeito nos seguintes casos: a) Se o sujeito passivo, dentro do prazo referido no n.º 2, apresentar a declaração em falta, sem prejuízo da penalidade que ao caso couber; (….)
Sucede que a impugnante defende que a liquidação não se mostra fundamentada no que tange a três pontos a saber: (i) forma como a Administração Tributária apurou o volume de negócios; (ii) forma como apurou o rácio de 3,55% do sector 056101; (iii) forma como a AT apurou o montante de imposto a pagar. A fundamentação da liquidação resulta claramente da notificação a que se alude na alínea c) da factualidade apurada. Efectivamente, procedeu-se à liquidação oficiosa porque a impugnante não apresentou as declarações de IVA dos períodos ali referidos do ano de 2008, ou seja, a Administração Tributária procedeu à liquidação com base nos elementos de que dispunha. Olhando a fundamentação inserta na notificação a que acima aludimos, dela consta a indicação dos factos concretos em que a AT se alicerçou para proceder á liquidação, pois dela constam: - O rácio do sector de actividade a que a impugnante se dedica; - O volume de negócios; - O número de declarações periódicas em falta. Ora, no que tange ao volume de negócios e ao rácio para o sector de actividade, a fundamentação não padece de qualquer obscuridade, contradição ou insuficiência, pois a mesma é admitida nos termos do disposto no art. 77º, nº 2 da LGT, estamos perante uma fundamentação sumária. Basta a sua quantificação e o contribuinte fica a saber que foram esses elementos. (…) Todavia, não se vislumbra como foi apurado o montante de IVA a pagar. Pois, feitas as contas através das fórmulas indicadas na liquidação e com os elementos aí fornecidos, não se alcança o valor mencionado de imposto a pagar. E a ser assim, a liquidação não cumpre o disposto no art. 77º, nº 2, da LGT, que refere que a fundamentação sumária deve dar a conhecer as operações de apuramento do tributo. Destarte, não dando a liquidação a conhecer as operações de apuramento do tributo, forçoso é concluir que padece de falta de fundamentação, sendo por esse motivo anulável.».
Lisboa, 2 de Julho de 2014. – Dulce Neto (relatora) – Isabel Marques da Silva – Pedro Delgado. |