Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01572/19.1BELSB
Data do Acordão:04/04/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
CONDUTA PROCESSUAL NEGLIGENTE
Sumário:A deserção da instância exige que a falta de impulso processual decorra da negligência das partes e esta deve ser avaliada casuisticamente.
Nº Convencional:JSTA000P32071
Nº do Documento:SA12024040401572/19
Recorrente:AA (E OUTROS)
Recorrido 1:COMISSÃO PARA O ACOMPANHAMENTO DOS AUXILIARES DE JUSTIÇA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo

I. RELATÓRIO

1. A Recorrente, AA, melhor sinalizada nos autos, não se conformando com a decisão sumária, proferida no Tribunal Administrativo Sul a 25.03.2023 – cfr. fls. 2104 e ss., ref. SITAF -, que confirmou a decisão recorrida, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, a 28.09.2022 – cfr. fls. 2039 e ss., ref. SITAF -, que, por sua vez, havia julgado extinta a instância, por deserção, por falta de impulso processual dos herdeiros do falecido, nos termos do disposto no art. 281.º, n.º 1, do CPC, ex vi do art. 1º do CPTA, veio da mesma reclamar para a conferência – cfr. fls. 2119 e ss., ref. SITAF -, requerendo que sobre o recurso jurisdicional que havia interposto, recaia acórdão.

2. Por Acórdão do TCAS, proferido em 26.09.2023, foi indeferida a reclamação apresentada para a conferência e confirmada a decisão sumária da Relatora. A Recorrente interpôs, entretanto, nestes autos principais, a habilitação de herdeiros nos termos do disposto no art. 353.º do CPC, aplicável ex vi do disposto no art. 1.º do CPTA, ao abrigo do disposto nos artigos 142.º n.º 3, al. d), 143.º, 144.º e 150.º nº 1 do CPTA.

3. E inconformada com o teor do acórdão do TCAS, dele interpôs recurso de revista, o qual foi admitido por Acórdão de 25.01.2024.

4. No recurso de revista que interpôs, a Recorrente formulou alegações que rematou com o seguinte quadro conclusivo:

1º Vem o presente recurso interposto da douta decisão proferida pelo TCAS e que indeferiu a reclamação e confirmou a decisão sumária da Relatora, por vícios do acórdão e a violação de lei Processual e Substancial, (Cfr. artigo 1.º e n.º 3 do artigo 140.º do CPTA, o artigos 666.º e 615.º do CPC) pretendendo a recorrente a anulação do acórdão recorrido e a substituição por outro, sem definição do regime jurídico aplicável por inviável, que ordene a baixa do processo ao Tribunal recorrido, com vista a que o TCAS diligencie pela fundamentação de facto e de Direito e se pronuncie sobre as questões que deveria ter conhecido, ou que a revogue e a substitua por outra que ordene que os autos prossigam notificando-se as partes para se pronunciarem sobre a deserção da instância, advertindo para as suas consequências, e análise a habilitação de herdeiros entretanto requerida nos autos. A admissão do recurso é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito, além de estar em causa apreciação de uma questão que pela sua relevância jurídica e social se revista de importância fundamental, encontrando-se assim, verificado o requisito do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, como melhor se analisa nas Alegações.

2º O acórdão recorrido padece de nulidade por falta de fundamentação, porquanto a decisão recorrida não discriminou, separadamente, os factos que considerou provados e não provados, resultando, apenas, implicitamente, que teve por certos alguns factos que não enunciou. Tal fundamentação é, manifestamente, insuficiente - e, por conseguinte, equiparável à absoluta falta de fundamentação - por não permitir perceber as razões que justificaram a solução tomada e não outra qualquer e os fundamentos de facto e de direito que a sustentam, tendo violado, o disposto nos artigos 205.º da CRP, 154.º do CPC, n.ºs 2 a 3 do art. 607.º do CPC, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 1.º e do n.º 3 do artigo 140.º do CPTA e do CPTA. O STA está, assim impossibilitado de conhecer da bondade da decisão proferida, pela ausência da factualidade em que se estrutura, tendo sido violado o princípio do contraditório e violado o princípio do duplo grau de jurisdição.

3º O caso dos autos, suscita questões complexas de Direito que não são simples, em face do que é discutido nos autos, não tendo o Tribunal recorrido fundamentado no acórdão a alegada simplicidade das questões em causa, não tendo concretizado em factos o alegado conceito jurídico, pelo que, também neste aspecto, a douta decisão padece de nulidade por falta de fundamento de facto, ao abrigo do disposto na al. b), do nº 1 do artigo 615.º do CPC, ex vi do disposto nos artigos 666.º do CPC, 1.º e 140.º n.º 3 do CPTA.

4º Verifica-se ainda omissão de pronúncia da decisão recorrida quanto às questões suscitadas pela recorrente no que respeita à violação do princípio do contraditório (cfr. artigo 3.º n.º 3 do CPC, ex vi do disposto no artigo 1.º e n.º 3 do artigo 140.º do CPTA) dos princípios da gestão e da cooperação processual e do dever de prevenção deles emergente, questões que a recorrente colocou e que foram completamente ignoradas, nomeadamente, nas conclusões 2.ª, 3.ª, 9.ª 10.ª e 12.ª, o que constitui nulidade do acórdão, que decorre da exigência prescrita no n.º 2 do art. 608.º do CPC, aplicável ao presente processo por força do disposto no artigo 1.º do CPTA,

5º O acórdão recorrido evidencia ainda, uma notória violação de lei processual e substantiva, ao ter confirmado a decisão sumária da Relatora que declarou a extinção da instância destes autos por deserção, por falta de impulso processual dos herdeiros do falecido A, BB. Nos termos do disposto na alínea a) do artigo 1174.º do Código Civil, o mandato caduca por morte do mandante, o que ocorreu nos autos. Repercutindo-se a morte do mandante no mandato, a notificação efectuada ao mandatário não tem eficácia, nem este tem poderes para o que quer que seja. Refere-se no acórdão recorrido que tal questão não foi especificada pela recorrente nas alegações de recurso e que só foi suscitada em sede de requerimento de reclamação para a conferência, e que por isso o Tribunal recorrido não poderia conhecer da mesma. Ora, salvo o devido respeito, a falta, insuficiência e irregularidade do mandato podem e devem, em qualquer altura, ser conhecidas oficiosamente pelo Tribunal, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 48.º do CPC, pelo que, a Lei Processual Civil aqui aplicável impõe ao Tribunal o conhecimento oficioso de tal questão, sobre a qual, a douta decisão recorrida deveria ter-se pronunciado nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA. Pelo que, as questões suscitadas nos autos não são dotadas da alegada simplicidade, suscitando, antes diversas questões de direito.

6º E havendo conhecimento nos autos de que o autor faleceu no estado de casado e do seu cônjuge, bem como da sua última residência, deveria o Tribunal ter ordenado a notificação do cônjuge sobrevivo, sinalizando o sucessível da necessidade da prática de acto processual, alertando-o para as consequências da omissão desse acto, pois, ao contrário do preconizado no douto acórdão recorrido, o desfecho desta questão da deserção da instância prejudica a herança, porquanto a acção foi intentada para anulação de um acto administrativo da CAAJ, decisão final proferida pela mesma no âmbito do Proc. n.º 200/2011, comunicada pelo ofício ...19, datado de 29/5/2019 (Cfr. Doc 1 da PI), sendo que o Órgão de Gestão da CAAJ, aqui Recorrida, omitiu na sua decisão que o pedido de cancelamento da inscrição como agente de execução teve por motivo doença do Autor, (Cfr Doc. nº 2 da PI); omitiu ainda que, por carta registada, datada de 10/4/2017, a esposa do A, AA, aqui Recorrente comunicou à Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, que o seu marido se encontrava gravemente doente e com um grau de senilidade degenerativa bastante avançada, e que “...há muito que não consegue cumprir com as suas obrigações profissionais, facto que já comuniquei pessoalmente há mais de 2 meses e também há algumas semanas a essa Ordem. Face ao exposto e a documentos que passo a juntar, solicito que se digne ordenar a cessação da actividade. Dado o estado das coisas começaram a aparecer multas e contas bloqueadas, o que é como deve calcular, muito confrangedor e prejudicial para a família”, (Cfr Doc. nº 3 da PI). A Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, nada diligenciou perante a situação do falecido A, nomeadamente, a comunicação à CAAJ para cancelamento oficioso da inscrição, por motivo da doença mental daquele, sendo que a situação verificada não foi imputável ao falecido A, por sua acção livre, deliberada e consciente.

7º A esposa do A falecido, aqui recorrente, instruiu a dita comunicação com diversos documentos, a saber:- a declaração médica emitida pelo médico assistente no Hospital da Cuf, datada de 9/1/2017, onde se refere que: “...sofre de doença renal crónica e síndrome neurológico degenerativo que o incapacita para o cabal exercício profissional”, - o Relatório emitido pelo médico assistente no Hospital de Santa Cruz, em 22/3/2017, onde se expõe o historial clínico do A, que esteve aí internado e foi sujeito a intervenções médicas, onde consta que o falecido A encontrava-se em programa regular de hemodiálise nesse hospital que deveria manter o carácter vitalício; -e o Relatório médico, emitido pela Unidade de Cirurgia de Ambulatório do Hospital de Santa Cruz, datado de 6/4/2017 (Cfr. Docs anexos ao Doc. nº 3, Doc nº 4 e Doc 5 da PI).;- Foi seguido ainda em Neurologia no Hospital da Cuf, pelo Dr. CC, “...por demência degenerativa tipo Alzheimer, incapaz para a toma de decisões e assuntos próprios”, (Doc. nº 6 da PI);- O falecido A foi ainda seguido em consulta de psiquiatria no Hospital Cuf Cascais, pela Dra. DD, médica Psiquiatra, a qual declarou em 12/2/2018 (Cfr. Doc 7 da PI): Este é uma doença que tem uma desenvolvimento anos antes sintomas graves são visíveis!. No TAC ao cérebro vê-se que Sr. BB tem uma série de pequenos AVCs, tem cicatrizes no cérebro grande, que causam graves défices cognitivos ao nível da memória, orientação e raciocínio. Com certeza que ao mínimo 5 anos antes, desde 2012, já teve sinais destas limitações mentais”

8º O falecido A encontrava-se numa situação de inimputabilidade ou de incapacidade acidental, sofrendo de anomalia psíquica de demência evolutiva há vários anos, conforme documentação médica junta. Era necessário que a CAAJ tivesse ouvido a testemunha arrolada, mulher do A, aqui Recorrente, sendo certo que nem a OSAE nem a CAAJ fizeram o que quer que fosse com a comunicação enviada por aquela, nomeadamente que tivessem fiscalizado e organizado o processo de encerramento da actividade de Agente de Execução participada naquela comunicação efectuada pela mulher do A (Cfr. Doc. nº 3 da PI), sem prejuízo do poder inspetivo cometido à Ordem, os agentes de execução são fiscalizados pela CAAJ, nos termos do disposto no art. 179º do EOSAE (Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução).

9º Só se podia concluir que a anomalia de que padecia o A falecido foi causal dos comportamentos que lhe estão subjacentes, atendendo ao Relatório de Avaliação Neuropsicológica, datado de 1/7/2017, supra transcrito nestas Alegações de Revista (Cfr. Doc. nº 5 da PI), onde se refere que a anomalia psíquica que padecia o falecido A provocava-lhe desorientação no tempo e no espaço, dificuldades de compreensão, repetição de frases e escrita espontânea, anomia marcada (esta entendida como ausência de regras, situação de desregramento social, em que a acção dos indivíduos não mais é pautada por normas claras), defeito de atenção e controlo mental, defeito grave em todos os sistemas de memória testados, defeito perceptivo e perseveração, defeito visuo-perceptivo grave, defeito executivo grave e alterações cognitivas graves.

10º Competia à CAAJ apurar as circunstâncias concretas da situação em causa, suspender o procedimento administrativo e inclusivamente participar à Procuradoria da República a situação para representar o falecido A. Como pode a R afirmar no parágrafo 7º da pág. 4 de 7 da decisão que consultou o SISAE e constatou que o Agente de execução BB movimentou processos de forma regular, coerente e sistemática, praticando diversos actos entre 7/12/2015 e 16/1/2017, sem apurar primeiro quem os fez e em que circunstâncias, já que perante a documentação médica junta e a participação da mulher do A, o mesmo, Agente de Execução, não tinha saúde mental para o fazer? A decisão objecto de impugnação por via da acção judicial administrativa violou o direito de audição e de defesa, constitucionalmente consagrado no art. 32º nº 10 da CRP. Nos termos do disposto no art. 190º, nº 1, alínea b) da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas aprovada pela Lei nº 35/2014 de 20 de Junho, são circunstâncias dirimentes a privação acidental e involuntária do exercício das faculdades intelectuais no momento da prática das alegadas infrações disciplinares. As circunstâncias dirimentes são aquelas que afastam a responsabilidade disciplinar pela existência de causas que excluem a culpa. Desta forma, ocorrida a referida circunstância dirimente, não há lugar a qualquer responsabilidade. O acto anulável produz efeitos jurídicos, que podem ser destruídos com eficácia retroativa se o acto vier a ser anulado por decisão proferida pelos Tribunais Administrativos ou pela própria Administração (Cfr. art. 163º do CPA), como se pretendeu com a acção administrativa cuja instância a decisão recorrida julgou deserta, sendo por isso que, a decisão recorrida pode prejudicar a herança.

11º Acresce que, nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 276.º do CPC, aplicável aos autos ex vi do disposto no artigo 1.º do CPTA, a suspensão por falecimento da parte só cessará quando for notificada a sentença de habilitação, mas para isso, seria necessário que os sucessores da parte falecida tivessem conhecimento dos autos e da situação processual, o que não ocorreu, porque não eram parte nos autos. Refere o referido Excelentíssimo Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes, na anotação 3 do artigo 281º do CPC, pág. 348 do Código de Processo Civil Anotado que: “3. Atenta a diversidade dos factos que colidem com o regular andamento da causa, na apreciação do condicionalismo da deserção da instância é importante que se ponderem globalmente as diversas circunstâncias, quer as de ordem legal, quer as que se ligam ao comportamento da parte onerada com a iniciativa de dinamizar a instância. Refere ainda na anotação 4 do artigo 281º do CPC que, “4.Daqui pode resultar que, antes de declarar o efeito extintivo da instância decorrente da deserção, se mostre necessário que o juiz sinalize, por despacho, ser aquela a consequência da omissão de algum ato processual, como defendem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anot., vol. I, 4ª ed, pp 571 a 574 e Lebre de Freitas, “Da nulidade da declaração de deserção da instância sem precedência de advertência à parte”, ROA, ano 78º, tt.I-II, pp 194 e ss..Cf. ainda STJ 14-12-16, 105/14 e RL 20-12-16, 3422/15, fazendo valer os princípios da gestão e da cooperação processual e o dever de prevenção deles emergente.”

12º Acresce que, em 28/09/2022, por requerimento com o nº ...51, a Recorrida veio pronunciar-se sobre a deserção da instância, tendo notificado a Recorrente do mesmo, pelo que encontrava-se em curso o prazo para resposta ao mesmo por parte da Recorrente, no exercício do contraditório, ao qual obstou a decisão recorrida de 28/09/2022, que veio julgar logo extinta a instância por deserção, sem que tivesse esperado o decurso desse prazo legal de 10 dias para o exercício do contraditório, e sem que se tivesse ponderado todas as circunstâncias do caso concreto.

13º E é justamente isso que a decisão recorrida não faz, não fundamenta de facto a negligência da conduta processual das partes, e não analisou a existência de negligência e se a mesma ocorreu, em que termos ocorreu, circunstanciando em termos de tempo, modo e lugar essa alegada conduta negligente das partes. Resulta ainda da factualidade da decisão recorrida que deu entrada nos autos o incidente de habilitação de herdeiros.

14º A decisão recorrida consubstancia uma decisão meramente formal, divergente e violadora do princípio da promoção do acesso à justiça, estatuído no artigo 7.º do CPTA, e dos princípios de justiça material, sendo a mesma decorrente de uma interpretação restritiva e meramente literal do regime processual vigente, designadamente do n.º 1 do artigo 281.º do CPC, que deve ser interpretado de forma global e sistemática com as restantes normas jurídicas, nomeadamente, com o disposto nos artigos 269.º a), 270.º n.º 1, 351.º, artigo 3.º n.º 3, todos do CPC.

15º O dever de gestão processual constante do artigo 7.º-A do CPTA, impõe ao Juiz, sem prejuízo do ónus do impulso especialmente imposto por lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou manifestamente dilatório, e ouvidas as partes, (atente-se na conjunção cumulativa “e”), adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual, que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável. Os sucessores do falecido não incorreram numa inércia negligente, nem foram ouvidos sobre isso antes da pronúncia da decisão recorrida datada de 28/09/2022. Não houve o cuidado de se proferir qualquer despacho judicial prévio à douta sentença recorrida, no sentido de ser facultado às partes a possibilidade de se pronunciarem quanto à deserção da instância, nos termos do disposto nos arts. 281º, 3º nº 3, e 6º nº 1 do CPC e artigos 1º, 7º-A do CPTA. (Neste sentido vai a Jurisprudência do STA, acórdãos datados de 28/02/2018 e de 03/10/2019, consultáveis no sítio www.dgsi.pt.).

16º A decisão recorrida não considerou a pretensão da Recorrente manifestamente infundada, como de facto não é. O acórdão recorrido não ponderou globalmente as diversas circunstâncias, quer as de ordem legal, quer as que se ligam ao alegado comportamento da parte onerada com a iniciativa de dinamizar a instância. A decisão recorrida violou, nomeadamente, os artigos 608.º n.º 2, 615.º, n.º 1, al. b) e d) do CPC, aplicável ex vi do disposto nos artigos 666.º do CPC, e 154.º do CPC, e por sua vez, por força do disposto nos artigos 1.º e 140.º n.º 3 do CPTA.

17º Para além disso, a decisão recorrida violou diversas disposições legais processuais e substantivas, como já referimos. Atendendo à tramitação processual anterior à douta sentença recorrida datada de 28/09/2022, verificamos que estava em curso o prazo legal de 10 dias para resposta pela aqui recorrente, ao referido requerimento da Ré Recorrida. Saliente-se que, não foi proferido qualquer despacho judicial prévio à douta sentença recorrida, no sentido de ser facultado às partes a possibilidade de se pronunciarem quanto à deserção da instância, nos termos do disposto nos arts. 281º, 3º nº 3, e 6º nº 1 do CPC, e artigos 1º, 7º e 7º-A do CPTA, o que constitui violação despudorada do princípio do contraditório. Pelo que, impõe-se a revogação da douta decisão recorrida e a sua substituição por outra decisão que ordene que os autos prossigam os seus ulteriores termos, nomeadamente:- notificando-se as partes para se pronunciarem sobre a deserção da instância, -advertindo para as suas consequências, -e análise da habilitação de herdeiros entretanto requerida nos autos.

18º A deserção da instância, nos termos do art.º 281, nº1, do CPC depende da verificação cumulativa de dois pressupostos: um de natureza objetiva, que se traduz na demora superior a 6 meses no impulso processual legalmente necessário, e outro de natureza subjetiva, que consiste na inércia imputável a negligência das partes. Contudo, recai também sobre o Tribunal o dever de cooperação, exercendo ainda o dever de gestão processual em conformidade com o disposto no art.º 6 do CPC, e 7º e 7º A do CPTA, pelo que, em vez de ter proferido, como o fez, o despacho/sentença recorrido, datado de 28/09/2022, o Mº Juiz a quo podia e devia, em obediência ao dever de gestão processual plasmado no artº. 6º do CPC e 7º-A do CPTA e que impende sobre si, ter facultado às partes que se pronunciassem sobre a deserção, no exercício do contraditório, nos termos do disposto no art. 3º nº 3 do CPC, e não o fez, tendo também violado o artigo 281º do CPC.

19º E ainda que, por hipótese de raciocínio tivesse decorrido o prazo de seis meses facultado à parte para impulso do processo, como já se deixou exposto, isso não implicaria a verificação automática da deserção da instância, porquanto, antes de proferir o citado despacho/sentença de deserção, o Meritíssimo Juiz deve (Cfr. artigo 3º nº 3 e artigo 6 do CPC, e artigos 1º, 7º e 7º A do CPTA) logo que verifique que os autos estiveram a aguardar por mais de seis meses o impulso processual de uma, ou de ambas as partes, ouvir os intervenientes processuais, e isso não ocorreu. Na verdade, para que a instância se julgue deserta importa ainda que a falta de impulso processual se deva à negligência das partes, conceito jurídico que não foi concretizado e fundamentado em factos no acórdão recorrido. O princípio da cooperação previsto no art. 7º do CPC, e 8º do CPTA justifica que as partes sejam alertadas para as consequências gravosas que possam advir da sua inércia em impulsionar o processo.

20º O Tribunal Central Administrativo Sul ao proferir o douto acórdão nos termos em que o fez, violou, também, e nomeadamente o disposto nos artigos 608º nº2, 615º, nº 1, al. b) e d) do CPC, aplicável ex vi do disposto nos artigos 666º do CPC, e 154º do CPC, e por sua vez, por força do disposto nos artigos 1º e 140º nº 3 do CPTA, e o disposto nos artigos 1174º al. a) do CC, 281º, 270º, 276º nº 1, al. a), 3º nº 3, 6º e 7º do CPC e 6º, 7º, 7º-A e 8º do CPTA, e os princípios de gestão processual, de cooperação, de promoção do acesso à justiça e o princípio do contraditório.

Nestes termos e nos mais de Direito que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, deve ser admitido o presente recurso de revista e, analisado o mérito do recurso, deve ser dado provimento ao mesmo, devendo o acórdão recorrido ser anulado e substituído por outro, sem definição do regime jurídico aplicável por inviável, que ordene a baixa do processo ao Tribunal recorrido, com vista a que o Tribunal Central Administrativo Sul diligencie pela fundamentação de facto e de Direito e se pronuncie sobre as questões que deveria ter conhecido,

ou ser revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que ordene que os autos prossigam notificando-se as partes para se pronunciarem sobre a deserção da instância, em resultado dos princípios da gestão e cooperação processual e dever de prevenção emergente daqueles, e bem assim, em obediência ao princípio do contraditório, advertindo para as suas consequências, de que a omissão da prática do ato devido para efeitos de impulso processual será, oportunamente, sancionada nos termos do artigo 281º nº 1 do CPC, e que e subsequentemente, deverá apreciar a habilitação de herdeiros entretanto requerida nos autos, tudo com as legais consequências, fazendo-se a costumada JUSTIÇA!

5. A recorrida COMISSÃO PARA ACOMPANHAMENTO DOS AUXILIARES DE JUSTIÇA, com os sinais dos autos, veio apresentar contra-alegações, das quais se extraem as seguintes conclusões:

1. Nas sucessivas instâncias – 1.ª, decisão sumária e acórdão da conferência após reclamação – concluiu-se sempre da mesma forma: a instância extinguiu-se por deserção, por não ter sido atempadamente requerida habilitação dos sucessores. E essa é solução correta.

2. Mas, por ora, o que importa analisar é se os fundamentos invocados pela Recorrente são justificativos da admissibilidade da presente revista. E não são, pois a Recorrente pretende apenas uma nova instância de recurso, mesmo sobre matérias que não foram objeto de qualquer decisão anterior.

3. Uma terceira apreciação do litígio só em condições excecionais é admitida. Como tem sido sucessivamente afirmado pelo STA, “O recurso de revista excepcional, previsto no art. 285.º do CPTT, visa funcionar como “válvula de segurança” do sistema” e “o mesmo é de natureza excepcional, não correspondendo à introdução generalizada de uma nova instância de recurso”.

4. Sobre a admissibilidade do recurso em si mesmo a Recorrente pouco diz e nada leva às conclusões, sendo que a esta cabia alegar e demonstrar que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista.

5. Em primeiro lugar, o presente recurso não pode ser admitido para apreciação das nulidades, de que cabe reclamação e não recurso, nulidades que não foram arguidas tempestivamente.

6. Assim acontece com a invocada “a ausência de factos provados e não provados e de uma análise crítica das provas”, que seria fundamento de reclamação e nunca poderia constituir objeto do recurso de revista excecional, por força do disposto no art. 150.º, n.º 4 do CPTA.

7. A falta de fundamentação, se existisse, no que não se concede, constituiria nova causa de nulidade, a ser objeto de reclamação, mas que o não foi. Quanto às “diversas questões de direito” - caducidade do mandato, ineficácia das notificações e deserção da instância – nenhuma delas se reveste da apelidada complexidade.

8. O único tema do recurso em que a Recorrente invoca a “divisão de correntes jurisprudenciais” respeita à deserção da instância, pelo que todos os demais ficariam fora deste requisito de admissibilidade; acresce que, como se verá, não há qualquer divergência jurisprudencial sobre este tema, nem a mesma, por si só, seria relevante para justificar este recurso.

9. O único interesse em causa é o da herança do Autor, como vem reconhecido pela Recorrente, ao invocar que a “decisão recorrida pode prejudicar a herança”, pelo que o recurso não “extravasa as fronteiras do concreto processo em que é suscitada e das partes nele envolvidas”.

10. No caso, nenhuma das questões objeto do recurso é inédita, não é de elevada complexidade nem gera controvérsia ou dúvidas sérias, na doutrina ou na jurisprudência. Por outro lado, a decisão não contraria jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal.

11. Ainda que o recurso fosse admitido, no que não se concede, o mesmo apenas poderia ser improcedente.

12. Desde logo, quanto às nulidades invocadas. As mesmas, a não ser admissível o recurso, como se crê que deverá ser decidido, não podem ser apreciadas, por intempestivas, pois não foram apresentadas no prazo de 10 dias após a notificação do acórdão.

13. A primeira nulidade invocada é a de falta de fundamentação, porque, ao que diz a Recorrente, “não enumera os factos provados e não provados”, assim violando o princípio do contraditório e o princípio do duplo grau de jurisdição.

14. Mas é falso que a decisão recorrida não enumere os factos provados e não provados. Fá-lo, ao reproduzir a decisão sumária, no capítulo “FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO E DE DIREITO” e a ela aderindo: “A decisão assim proferida é de manter”.

15. Invoca ainda a Recorrente que o acórdão recorrido padece de falta de fundamentação por não ter fundamentado “a alegada simplicidade das questões”. Não se entende o invocado, a não ser como vício imputado à decisão sumária, pois só esta, e não o acórdão, teria de se fundar na simplicidade da decisão.

16. Acresce que parece resultar do que vem invocado pela Recorrente que esta continua a entender a simplicidade como o contrário de “questões complexas de Direito que não são simples, em face do que é discutido nos autos”, mas não é esse o conceito de simplicidade subjacente à possibilidade de existência de decisão sumária.

17. A omissão de pronúncia não se verifica, pois o decidido, de que não se mostra necessária a prévia audição das partes sobre a deserção, demonstra que tais princípios não se podem mostrar violados e a sua apreciação mostra-se prejudicada. Sobretudo, nada na lei impõe, nem tal vem equacionado pela Recorrente, que a extinção da instância esteja dependente de requerimento de requerimento de qualquer das partes,

18. E tal requerimento da Ré é meramente declarativo, nada de novo introduzindo nos autos e foi apresentado quando os autos se mostravam já conclusos para decisão, que surgiu de imediato.

19. Como segundo fundamento da reclamação, invocou a Recorrente a falta de notificação do despacho de suspensão, por caducidade do mandato, por morte do mandante.

20. Tal fundamento, pela primeira vez utilizado pela Recorrente, não podia ser atendido, visto que a reclamação apenas pode ter, como o recurso, por fundamento, o que já antes se invocou e foi apreciado e assim foi decidido.

21. Agora, mudando a argumentação de acordo com o que vai sendo invocado pela Recorrida e decidido pelo Tribunal, vem a Recorrente invocar que a caducidade do mandato é matéria de conhecimento oficioso.

22. No caso em apreço e por força do disposto no art. 333º, nº 2 do Código Civil, uma vez que não se trata de matéria excluída da disponibilidade das partes, aplica-se a norma do art. 303º do mesmo Código, pelo que a caducidade tem de ser invocada por aquela parte a quem aproveita, não sendo de conhecimento oficioso.

23. Ainda que assim não fosse, não procede o invocado, pois de acordo com o n.º 2 do artigo 1175º do Código Civil, a morte do mandante só faz caducar o mandato a partir do momento em que seja conhecida do mandatário, ou quando da caducidade não possam resultar prejuízos para o mandante ou seus herdeiros.

24. A 1.ª causa não foi invocada e a segunda resulta afastada pela própria Recorrente.

25. Se prevalecesse a tese de que o mandato caducava, no que não se concede, era quem agora a subscreve, ou seja, a mesma Mandatária a quem a Recorrente passou a procuração inicial para interposição dos presentes autos, que deveria dar conhecimento aos herdeiros do Autor da suspensão, e não o tribunal, como ora pretende.

26. Como é evidente, tudo o que vem agora invocado sobre as “omissões” da Recorrida e até de quem nem é parte nos autos, sobre as “diligências” da ora Recorrente e sobre o estado de saúde do Autor (cfrs. págs. 13 a 25) é de todo irrelevante, não tendo sido objeto de qualquer decisão prévia nestes autos, nem do recurso anterior, nem podendo ser, pois em nada contendem com a decisão impugnada no anterior recurso.

27. Não pode igualmente ser acolhido o que vem invocado sobre decisão de extinção, por deserção.

28. Resulta do art.º 281.º, n.º 1, do CPC, que a deserção da instância constitui uma sanção imposta à parte que tem o ónus de promover ou impulsionar os termos do processo e que, por negligência, o não faz, determinando a sua paragem por mais de 6 meses.

29. Ora, não há dúvida de que no caso concreto cabia aos herdeiros do Autor, incluindo a ora Recorrente, impulsionar os autos, após a sua suspensão, devido à prova da morte daquele. Mas nada foi feito, por quem o devia fazer, nem qualquer justificação foi dada para tal inação.

30. E não se diga, como ora faz a Recorrente que “os sucessores da parte falecida” não conheciam os autos e a situação processual, por nela não serem parte. Em litigância que volta a raiar a má fé, a Recorrente omite que a ação foi por si instaurada, em nome do Autor, tendo sido ela a passar procuração à Mandatária que a instaurou e que subscreve todos os recursos, incluindo o presente.

31. A Recorrente nada invocou, em nenhum dos recursos ou na reclamação, sobre o que possa ter impedido a junção atempada da habilitação, alegando qualquer causa que pudesse justificar a sua negligência. Não estamos perante caso complexo de habilitação de herdeiros, que pudesse impedir a sua realização dentro dos 6 meses decorridos entre a data do despacho de suspensão e o da extinção, desde logo porque a mesma se encontrava já formalizada aquando do despacho de suspensão.

32. O decidido corresponde à posição da jurisprudência e da doutrina nacionais, que se referem a “negligência objetiva”, revelado pelos elementos constantes dos autos, cabendo à parte onerada com o ónus – os herdeiros – invocar a sua impossibilidade de dar impulso atempado ao processo, tudo conforme identificado nas alegações.

33. A título exemplificativo, cite-se Ac. do STJ de 20/9/2016, Proc. nº 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1: Deixando a Autora de impulsionar o processo, por mais de seis meses, através da dedução do processo incidental de habilitação de sucessores, nem tendo apresentado dentro desse período de tempo qualquer razão impeditiva da não promoção, estamos perante uma omissão de impulso a qualificar necessária e automaticamente como negligente, e que implica a deserção da instância. e “A negligência a que se refere o nº 1 do art. 281º do CPC não é uma negligência que tenha de ser aferida para além dos elementos que o processo revela, pelo contrário trata-se da negligência ali objetiva e imediatamente espelhada (negligência processual ou aparente).

34. E ainda Ac. do STA, de 9/2/2023, Proc. 0706/12.1BEAVR: “I - A negligência, para efeitos de preenchimento do pressuposto legal do n.º 1 do artigo 281.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA (deserção), é fundamentada na inércia processual das partes pelo período temporal superior a seis meses, não reclamando um juízo autónomo sobre a conduta processual, (…) II – O tribunal não está obrigado a notificar os herdeiros processuais da parte falecida para se pronunciarem sobre a deserção (…)”.

35. A necessidade de aviso prévio, pelo tribunal, como invocado pela Recorrente, não se coaduna com o princípio da autorresponsabilização das partes e da preclusão, sobretudo quando representadas por mandatário judicial: competindo às partes o ónus do impulso processual, não pode o Tribunal substituir-se às mesmas (ver nº 1 do art.º 6º do CPC: “…sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes…”) ou alertá-las das consequências do respetivo comportamento omissivo

36. A invocada jurisprudência em sentido contrário – 2 acórdãos -, e continuando a Recorrente sem indicar o respetivo número de processo, não suporta a tese desta.

Termos em que:

a. Não será de admitir o presente recurso;

b. Assim não se decidindo, devem ser julgadas inexistentes as invocadas nulidades e improcedente tudo o mais, negando-se provimento ao recurso.

6. Notificado nos termos do artigo 146º, n.º 1 do CPTA, o Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. De facto

Na decisão recorrida foi dada como assente a seguinte matéria de facto:

1. Do despacho de 15.03.2022, que declarou a suspensão da instância, consta o seguinte - cfr. fls. 2026, ref.ª SITAF:

«(…)

Considerando que:

a) O Autor nos presentes autos é BB (cfr. intróito da petição inicial – registo SITAF n.º ...01);

b) Foi junta aos autos print screen de acesso a base de dados do registo civil, do qual resulta informação do óbito do Autor e que vale como prova desse óbito nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1.º, n.º 1, alínea p), 4.º e 211.º do Código do Registo Civil (cfr. registo SITAF n.º ...61);

c) Nos presentes autos, não foi ainda dado início à audiência de julgamento, nem o processo se encontra inscrito na tabela para julgamento;

Declaro suspensa a presente instância com fundamento no falecimento do Autor, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 269.º, n.º 1, alínea a), 270.º, n.º 1, e 276.º, n.º 1, alínea a), do CPC, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do mesmo Código, todos aplicáveis por remissão do artigo 1.º do CPTA.

Notifique, sendo no caso do Autor na pessoa do seu mandatário constituído nos autos.

Altere o estado do processo no SITAF para “Suspenso”.»

2. Da sentença proferida em 28.09.2022, que determinou a extinção da instância por deserção, consta, designadamente, o seguinte - cfr. fls. 2039, ref.ª SITAF:

«(…) Ordenada vista ao DMMP junto deste Tribunal, para pronúncia sobre a nomeação incidental de curador requerida nos autos, veio aquele informar o Tribunal do óbito do Autor, promovendo a junção aos autos de certidão desse óbito e a competente suspensão da instância.

Juntas aos autos print screen do acesso a base de dados do registo civil, da qual consta a informação do óbito do Autor, por despacho de 15 de Março de 2022, foi declarada suspensa a instância nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 269.º, n.º 1, alínea a), 270.º, n.º 1, e 276.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil (doravante, “CPC”), e sem prejuízo do disposto no artigo 281.º, n.ºs 1 e 5, do mesmo Código, aplicáveis por remissão do artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, “CPTA”)

Notificadas as partes, na pessoa dos seus Ilustres Mandatários, por ofícios de 16 de Março de 2022 (registos SITAF n.ºs ...37 e ...38), estas não vieram, até ao momento, impulsionar os autos, designadamente com a instauração de incidente de habilitação de herdeiros do Autor.

O processo encontra-se a aguardar impulso processual há mais de seis meses. Designadamente da parte dos herdeiros do Autor, com eventual interesse no prosseguimento da lide.

Assim sendo, cabe concluir que a instância encontra-se deserta, nos termos do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 1.º do CPTA. Impondo-se declarar a sua extinção (cfr. artigos 277.º, alínea c), do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 1.º do CPTA). (…)

NOS TERMOS E PELOS FUNDAMENTOS EXPOSTOS:

Determina-se a extinção da instância, por deserção. (…).»

2. De Direito

2.1. Da alegada nulidade por falta de fundamentação

A Recorrente discorda da decisão proferida pelo TCAS e imputa ao acórdão recorrido nulidade por falta de fundamentação, sustentado que este não enumerou, nem enunciou separadamente, os factos provados e não provados e as razões de direito em que suportou a sua decisão, a que acresce não ter fundamentado a alegada simplicidade das questões em apreciação.

No despacho de 7.12.2023, em que admitiu o presente recurso, o Relator sustentou, a respeito desta alegada nulidade, o seguinte: “o acórdão recorrido enunciou os fundamentos de facto e de direito que interessavam para a apreciação do respectivo mérito, sendo certo que a nulidade em causa só opera no caso de a decisão ser totalmente omissa, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito, o que não caso não se verifica”.

E é correcto o que se afirma no mencionado despacho. A fundamentação, quer de facto, quer de direito, é suficiente e adequada para sustentar o que ali se decidiu e permitir à Apelante conhecer dos fundamentos que justificaram a decisão. E tanto é assim que no presente recurso ela não revela qualquer dificuldade em contraditar, quer o decidido, quer as razões que presidiram à decisão judicial com a qual se não conformou, contraditando-as ao longo das alegações do presente recurso. Lembre-se que em causa está apenas o recurso de uma decisão do TAF de Sintra que declarou deserta a instância à luz do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do CPC, por falta de impulso processual das partes, mais concretamente, por não ter sido instaurado o incidente de habilitação de herdeiros do Autor. Assim, a fundamentação de facto e de direito da decisão recorrida está circunscrita à apreciação desta questão e sobre ela é manifesto que não se verifica a alegada falta de fundamentação.

Improcede a nulidade.

2.2. Da alegada nulidade por omissão de pronúncia

Em segundo lugar, a Recorrente imputa também ao acórdão recorrido nulidade por falta de apreciação de algumas questões suscitadas pela Recorrente, em particular a invocada violação do princípio do contraditório e dos princípios da gestão e da cooperação processual, e ainda do dever de prevenção deles emergente.

No já mencionado despacho de 7.12.2023, que admitiu o presente recurso de revista, afirma-se a este respeito o seguinte: “as questões que a recorrente sustenta que o acórdão impugnado não conheceu – omitindo o seu conhecimento – estavam prejudicadas pela solução jurídica que sustentou a confirmação da decisão de deserção da instância”.

E uma vez mais é correcta esta análise. Vejamos. O TCAS considerou que a deserção é um instituto que opera objectivamente pelo mero decurso do prazo sem que exista o necessário impulso processual – neste caso a habilitação de herdeiros – fez essa interpretação do disposto no artigo 281.º do CPC. E – acertada ou não, para este efeito isso não releva – uma tal interpretação daquele preceito legal determina em si que sejam indiferentes as razões pelas quais a dita inércia ocorreu, assim como determina que seja totalmente inútil a apresentação da referida habilitação de herdeiros depois de decorrido aquele prazo, por isso, à luz de uma tal interpretação, não teria qualquer utilidade discutir a alegada violação dos princípios do contraditório, da gestão e da cooperação processual, ou do dever de prevenção deles emergente. Estes argumentos são relevantes para mostrar que uma tal interpretação do artigo 281.º do CPC é incorrecta e, nessa medida, eles relevam apenas em sede de erro de julgamento da decisão, mas não para sustentar uma nulidade em sede de omissão de pronúncia, pois à luz da interpretação adoptada, emitir pronuncia sobre eles seria uma tarefa inútil.

Improcede também esta nulidade.

2.3. Do alegado erro de julgamento

A Recorrente alega, em terceiro lugar, que a decisão recorrida enferma de erro de julgamento por se ter apoiado numa incorrecta interpretação da norma do artigo 281.º do CPC.

No essencial, a Recorrente alega que os pressupostos do instituto da deserção devem ser analisados e interpretados em função do comportamento processual das partes perante a concreta factualidade apurada, designadamente, perante a prova ou não de que o seu comportamento processual se pode qualificar como negligente e não, como fez o Tribunal Recorrido, atendendo única e exclusivamente ao decurso do prazo.

E tem razão a Recorrente.

De resto, esta questão foi já analisada e decidida em acórdão recente deste Supremo Tribunal. Referimo-nos ao acórdão de 09.02.2023, exarado no proc. 0706/12.1BEAVR, integralmente disponível em www.dgsi.pt e para cuja fundamentação aqui remetemos, transcrevendo o trecho essencial da argumentação que há que aplicar também no âmbito dos presentes autos:

«[…] Como se deixou consignado em jurisprudência mais recente do STJ – referimo-nos ao acórdão de 05.05.2022 (proc. 1652/16.5T8PNF.P1.S1), a habilitação dos sucessores nos termos do disposto nos artigos 276.º, n.º 1, al. a) e 351.º do CPC constitui um ónus das sucessores da parte falecida e o incumprimento daquele ónus reclama um juízo de valoração e ponderação do tribunal.

Assim, a extinção da instância por deserção, nos termos do disposto no artigo 281.º do CPC exige, actualmente, a verificação cumulativa de dois pressupostos: i) o decurso do tempo, ou seja, que tenham decorrido mais de seis meses desde que as partes foram notificadas do despacho que determinou a suspensão da instância com fundamento no falecimento da parte [artigos 269.º, n.º 1, al. a), 270.º, n.º 1 e 276.º, n.º 1, al. a) do CPC]; e ii) a conduta negligente das partes.

E estes dois pressupostos são autónomos a partir do momento em que a extinção da instância deixou de ser automática e passou a resultar de uma declaração proferida pelo juiz ou pelo relator ex vi do disposto no artigo 281.º, n.º 4 do CPC.

Por essa razão, não basta – como faz o acórdão recorrido – alegar que a habilitação dos sucessores, nos termos do artigo 351.º do CPC, não foi promovida no prazo de seis meses para que, ipso facto, se tenha como preenchido o pressuposto normativo da deserção do n.º 1 do artigo 281.º do CPC. É ainda necessário fundamentar a negligência da conduta processual das partes.

É certo que, na maior parte dos casos, a negligência é fundamentada na inércia processual pelo período temporal superior a seis meses. E é quase sempre assim porque a jurisprudência também já deixou firmado que “não cumpre ao tribunal promover a audição da parte sobre a negligência, tendo em vista formular um juízo sobre a razão da inércia, por não resultar da lei a realização de tal diligência” (acórdão do STJ de 05.05.2022, antes mencionado). Quer isto dizer que se no caso dos autos o Tribunal não tivesse notificado os herdeiros processuais da parte falecida para se pronunciarem sobre a deserção e se tivesse limitado a declarar a mesma e a consequente extinção da instância nos termos do disposto nos artigos 281.º e 277.º, al. c) do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 1.º do CPTA, nenhum juízo de censura poderia ser endereçado àquela decisão […]».

Também o STJ proferiu, entretanto, decisões recentes sobre esta questão jurídica, em que, uma vez mais, analisou os pressupostos normativos do artigo 281.º do CPC [acórdãos de 20.06.2023 (proc. 19176/16.9T8LSB.L3.S1) e de 07.12.2023 (proc. 18860/16.1T8LSB.L2.S1)], e em que concluiu, essencialmente, que “a deserção da instância exige que a falta de impulso processual decorra da negligência das partes e esta deve ser avaliada casuisticamente”, mas também manteve a posição de que “a verificação da negligência da autora dispensa qualquer audição prévia da mesma quanto às eventuais motivações para a falta de impulso processual”.

Isto significa que não assiste razão à Recorrente na parte em que pretende retirar dos princípios do contraditório e do dever de colaboração processual uma obrigação de o Tribunal admitir que a habilitação de herdeiros pudesse ser apresentada depois de decorrido o prazo de seis meses, mesmo se tivesse ficado provado que a Recorrente tinha tomado conhecimento do despacho de suspensão da instância. O dever de promover o necessário impulso processual é da parte (neste caso da herdeira) e não do Tribunal. E também resulta claro e evidente da jurisprudência antes mencionada, que não existe um dever de o Tribunal notificar a parte previamente à prolação da decisão de deserção para apurar das razões pelas quais aquele impulso processual não foi dado de forma atempada.

Em resuma, o que ressuma da jurisprudência constante antes mencionada – quer do STJ, quer deste STA – é que a deserção não é um instituto jurídico que opere objectivamente, ou seja, não basta provar o decurso do prazo sem a apresentação da necessária habilitação de herdeiros, sendo ainda necessário que o tribunal sustente aquela decisão no elemento subjectivo da negligência da parte, mas, para o efeito, tem de dispor de elementos de facto suficientes para sustentar esse juízo, que é sempre casuístico. Por outras palavras, o tribunal, antes de julgar deserta a instância tem de dar como provado, num caso como o dos autos, que os herdeiros tomaram conhecimento do despacho que determinou a suspensão da instância, algo que não resulta demonstrado nos factos assentes que suportam o acórdão recorrido e que, por isso, impõem que o mesmo se não possa manter. O Tribunal terá de apurar se a aqui Recorrente tomou ou não conhecimento da suspensão da instância para julgar do seu comportamento negligente quanto à não apresentação, em prazo, da necessária habilitação de herdeiros.

III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e ordenar a baixa dos autos.
Custas pelo Recorrido, com dispensa do remanescente da taxa de justiça, atenta a simplicidade da causa e a correcta conduta processual das partes (artigo 6.º, n.º 7 do RCP).

Lisboa, 4 de Abril de 2024. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) - Maria do Céu Dias Rosa das Neves - Ana Celeste Catarrilhas da Silva Evans de Carvalho.