Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0284/14.7BECBR
Data do Acordão:05/05/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE
ILICITUDE
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário:I - Só existe nexo de causalidade adequada quando o facto ilícito seja uma condição adequada do dano.
II - Um facto é condição do dano quando o suprimento do facto ilícito implique necessariamente a supressão do dano.
III – Se, no caso, se impõe a conclusão de que, ainda que as ilicitudes detetadas não tivessem ocorrido, o dano em causa não teria sido evitado, não se pode ter por verificado o nexo de causalidade (entre a ilicitude e o dano), necessário pressuposto da responsabilidade civil extracontratual.
Nº Convencional:JSTA00071453
Nº do Documento:SA1202205050284/14
Data de Entrada:11/29/2021
Recorrente:A…………..
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:CC ART563
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


I – RELATÓRIO

1. A…………. intentou contra o “Estado Português” ação administrativa comum em que peticionou ser o Réu condenado a pagar-lhe o valor correspondente à avaliação do “quinhão hereditário” que adquirira em venda realizada em execução fiscal movida a B…………, por dívida de IRS, no Serviço de Finanças de Cantanhede, e que, não obstante, não logrou integrar no seu património os bens que compuseram esse quinhão hereditário, no âmbito do inventário por óbito do pai do Executado fiscal que correu termos no Tribunal de Cantanhede (proc. nº 1009/08, do 1º Juízo Cível), alegadamente em consequência de conduta ilícita e culposa daquele Serviço de Finanças.

2. Por sentença proferida em 30/3/2019 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra (cfr. fls. 535 e segs. SITAF), julgou-se a ação improcedente, absolvendo-se o Réu do pedido, por se ter entendido que, desde logo, inexistiu “qualquer atuação/omissão ilícita” imputável ao “Estado”, em particular ao Serviço de Finanças de Cantanhede, pelo que não se preenchia este requisito (“ilicitude”) da responsabilidade civil extracontratual do Réu invocada pelo Autor e em que este baseara o seu pedido indemnizatório.

3. Inconformado com esta decisão do TAF/Coimbra, o Autor interpôs recurso de apelação para o Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), o qual, por Acórdão de 21/5/2021 (cfr. fls. 615 e segs. SITAF), negou provimento ao recurso, confirmando o julgamento de improcedência da ação, ainda que com diferente fundamentação já que admitiu uma conduta ilícita por parte do Serviço de Finanças de Cantanhede – por ter «infringido quadro normativo que deriva do disposto (i) na alínea c) do nº 1 do artigo 232º do CPPT e, bem assim, (ii) dos artigos 901º e 930º do CPC», mas sem que resultasse comprovado, nem o Autor sequer o tivesse alegado, que estes incumprimentos legais por parte do Serviço de Finanças foram a causa da impossibilidade de satisfação do crédito do Autor avaliado em 35.973,30€.

Mais explicitou o Ac.TCAN recorrido que «o dano reclamado não é a perda do direito à herança, mas antes a impossibilidade da satisfação do crédito daí resultante, o que nos remete para o domínio do instituto da “perda de chance”, cuja tutela reclama a demonstração séria de que o lesado tinha uma chance [uma probabilidade, séria, real, não fora a atuação que lesou essa chance] de obter uma vantagem que probabilisticamente era razoável supor que almejasse e/ou que a atuação omitida, se o não tivesse sido, poderia ter minorado a chance de ter tido um resultado não tão danoso como o que ocorreu. Assim, impunha-se, no mínimo, que o Recorrente alegasse e demonstrasse que, na data em que formulou o requerimento a que se refere o ponto 17) do probatório, era ainda possível à Administração Fiscal proceder à entrega dos bens adjudicados, atento património do executado existente na data da atuação ilegal da Administração detetada nos autos.
(…) Contudo, tal constitui matéria totalmente estranha aos presentes autos, porquanto não foi alegada pelo Autor, aqui Recorrente, não integrando a causa de pedir.
Pelo que é impossível ao Tribunal estabelecer um nexo de causalidade entre o evento alegado pelo Autor, aqui Recorrente.
O que determina que o facto ilícito e culposo praticado pelo R. não possa ser considerado como causa adequada dos danos sofridos pelo Autor, aqui Recorrente».

4. Mantendo-se inconformado com este julgamento do TCAN, veio o Autor interpor o presente recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (cfr. fls. 652 e segs. SITAF):

«I. O presente recurso preenche os requisitos de admissibilidade, nos termos do artigo 150º do CPTA, na medida em que se tratam de questões que preenchem os conceitos de relevância jurídica, relevância social e ainda culminarão numa melhor aplicação do direito.
II. As questões do instituto da perda de chance, do nexo da causalidade, assim como do ónus da prova, são questões de elevada complexidade jurídica, uma vez que se revestem de importância significativa e sobre os quais existem, quer na doutrina, quer na jurisprudência, debates que estão longe de findar.
III. Considera-se que o douto Acórdão recorrido incorreu em erro na aplicação do direito, pela deficiente aplicação do instituto da perda de chance, pela insuficiente tentativa do estabelecimento do nexo causal, pressuposto da responsabilidade civil extracontratual do Estado, como ainda se fundamenta numa violenta aplicação das regras da repartição material do ónus da prova, quase que “desculpando” o Recorrido da sua conduta ilícita e culposa.
IV. Entende-se que o Tribunal a quo procedeu a uma deficiente aplicação do instituto da perda de chance, uma vez que não estamos perante uma circunstância em que alguém foi afetado num seu direito de conseguir uma vantagem futura, ou de impedir um dano por facto de terceiro.
V. Não se afigura que a aplicação deste instituto possa aqui prevalecer, uma vez que não se trata da “impossibilidade da satisfação de um crédito” como erroneamente julgou o Tribunal a quo.
VI. Trata-se, antes, de um direito e ação à herança ilíquida e indivisa, que já se encontrava concretizado no 1/9 do quinhão hereditário daquela massa patrimonial certa, posteriormente corporizado através do mapa de partilhas, o que afastou qualquer tipo de incerteza que pudesse daí resultar, caindo por terra a tese da perda de chance.
VII. Ademais, ainda que procedesse a tese do instituto da perda de chance – e o disposto aqui vale igualmente para o nexo de causalidade – o Tribunal a quo fundamenta a decisão numa violenta interpretação e aplicação das regras do ónus da prova.
VIII. A solução dada não se pode abstrair dos domínios da vida em causa, da relação entre os particulares e a Administração onde aqueles partem sempre de uma posição desfavorável.
IX. Sendo que o Estado Administrativo actua com poderes de autoridade e em posição de superioridade jurídica perante os destinatários.
X. Devendo ser consideradas estas “esferas de responsabilidade”, em função dos deveres de colaboração, onde sobre cada parte recaí o ónus de provar os factos que ocorrem no seu específico âmbito de atuação.
XI. Afigurando-se, sempre, numa violenta aplicação das regras do ónus da prova, na medida em que a existência ou não dos bens (alegadamente em falta para estabelecer o nexo de causalidade) cabia sempre no específico âmbito de atuação da Administração.
XII. Por último, relativamente ao “nexo de causalidade”, “a mera constatação de que, na hipótese de o dever ter sido observado, o particular lesado se encontraria na mesma situação em que se encontra atualmente pode, no entanto, não excluir a imputação: o aspeto determinante é o da ponderação do fim da norma violada”.
XIII. “Importa averiguar se aquele consiste precisamente em garantir que determinada formalidade ou procedimento seja efetivamente observado, hipótese em que se justifica a manutenção do dever de indemnizar ainda que se conclua que o seu cumprimento hipotético não teria conduzido a outro resultado” – cfr. Nuno Trigo dos Reis, em Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas: Comentários à Luz da Jurisprudência.
XIV. Em face do exposto, torna-se cristalino que a conduta ilícita e culposa do Recorrido se enquadra no exposto, pelo que ainda que não se verificasse uma determinada relação direta e imediata entre o dano e a conduta omissiva da Administração, o pedido deveria sempre proceder.
XV. Não é concebível que, em prol desta conduta da Administração, o Recorrente fique duplamente prejudicado, pelo dinheiro da compra que perdeu e pelos bens que nunca lhe foram entregues.

Nestes termos e nos mais de Direito que V.as Ex.as doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e revogado o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo e, consequentemente, ser o Recorrido condenado no pagamento do valor correspondente ao da avaliação levada a cabo nos autos de inventário (€35.973,30)».

5. O Réu/Recorrido “Estado Português”, representado pelo Ministério Público, apresentou contra-alegações (cfr. fls. 675 e segs. SITAF), que concluiu da seguinte forma:

«I – O presente recurso de revista não incide sobre matérias que se revistam de uma relevância jurídica suficiente para suscitar a emissão de uma terceira pronúncia decisória no mesmo processo, agora por parte do Supremo Tribunal Administrativo, face ao que se prevê no artigo 150º do CPTA, pelo que não deve ser admitido.
II – É manifesto, desde logo, que o objecto da lide se resume nesta fase a saber se foi ou não alegado, demonstrado e estabelecido o nexo causal entre a alegada irregularidade procedimental da administração e o prejuízo que o Recorrente invoca.
III - Trata-se, salvo melhor opinião, de uma matéria cujos contornos estão mais do que estudados, divulgados, assentes e fixados pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo.
IV – Assim, a revista não se reveste de «importância jurídica», ou «social», ou ainda de «importância fundamental», face ao que se dispõe no artigo 150º do CPTA pelo que deve ser rejeitada em sede de apreciação preliminar.
V – Caso assim não se entenda: numa acção baseada em responsabilidade civil extracontratual do Estado o nexo de causalidade entre a acção/omissão da entidade pública visada e o prejuízo do particular e dela decorrente, tem de estar claramente estabelecido.
VI – Se o Autor não invoca nem demonstra que na data em que formulou o seu requerimento constante do ponto nº 17 dos factos provados a Administração Fiscal ainda tinha a possibilidade efectiva de proceder à entrega dos bens que lhe foram adjudicados, tendo em consideração o património pertencente ao executado ainda existente à data da actuação da mesma Administração – ainda que esta possa ter actuado incorrendo em eventual incumprimento de regras procedimentais – não se pode ter por provado o referido nexo de causalidade.
VI – Assim, sendo, também não se pode condenar o Estado com fundamento em responsabilidade civil extracontratual.
VII – Pelo que será de manter a absolvição do Estado Português já decidida em primeira e em segunda instância.

TERMOS EM QUE
A douta decisão proferida por este Tribunal Central Administrativo do Norte deve ser mantida na íntegra e o presente recurso de revista – caso seja considerado admissível – deve ser julgado totalmente improcedente, assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA!».

6. O presente recurso de revista foi admitido por Acórdão de 4/11/2021 (cfr. fls. 696/697 SITAF) proferido pela formação de apreciação preliminar deste STA, prevista no nº 6 do art. 150º do CPTA, designadamente nos seguintes termos:

«(…) 3. 0 autor desta acção administrativa comum – A………… - responsabiliza o ESTADO PORTUGUÊS por conduta ilícita e culposa imputada ao Serviço de Finanças de Cantanhede, e que terá tido por consequência a «não integração no seu património» dos «bens que compõem quinhão hereditário» que ele adquiriu por venda realizada na execução fiscal movida a B………… por dívida de IRS. A seu ver, o Serviço de Finanças não realizou todas as diligências necessárias para assegurar que o «direito adquirido existia e se encontrava ao seu dispor». Exige, do demandado, o pagamento do valor correspondente à avaliação do dito «quinhão hereditário», levada a cabo nos respectivos autos de inventário — que correu termos sob o nº 1009/08.1TBCNT no 1° Juízo cível do Tribunal Judicial de Cantanhede por óbito de C………….

A 1ª instância julgou improcedente a acção, e absolveu o réu do pedido, por «falta do indispensável requisito da ilicitude». Conclui assim: «Ante todo o exposto, não sendo possível imputar ao réu [em particular, ao Serviço de Finanças de Cantanhede qualquer actuação/omissão ilícita, este não pode ser responsabilizado pela falta de entrega ao autor dos bens que vieram a integrar o quinhão hereditário do executado que lhe foi adjudicado no processo de execução fiscal, nomeadamente através do pagamento do valor correspondente ao da avaliação levada a cabo nos autos de inventário [35.973,306]».

Conhecendo de recurso do autor, o tribunal de apelação manteve a «absolvição do réu do pedido», mas agora com fundamento na falta do indispensável nexo de causalidade adequada entre o facto ilícito e culposo e o dano. No acórdão recorrido escreve-se a tal respeito, e além do mais, o seguinte: «Assim, impunha-se, no mínimo, que o recorrente alegasse e demonstrasse que, na data em que formulou o requerimento a que se refere o ponto 17) do probatório, era ainda possível à Administração Fiscal proceder à entrega dos bens adjudicados, atento o património do executado existente à data da actuação ilegal da Administração detectada nos autos. Só através desta alegação e demonstração é que se poderia afirmar (ou não] que a conduta omissiva e censurável da Administração foi; efectivamente, a causa directa, imediata do autor, aqui recorrente, não ter visto satisfeito o seu direito de crédito, implicando perda dessa chance. Contudo, tal constitui matéria totalmente estranha aos presentes autos, porquanto não foi alegada pelo autor, aqui recorrente, não integrando a causa de pedir. Pelo que é impossível ao Tribunal estabelecer um nexo de causalidade entre o evento alegado pelo autor, aqui recorrente, O que determina que o facto ilícito e culposo praticado pelo réu não possa ser considerado como causa adequada da produção dos danos sofridos pelo autor, aqui recorrente. [...] Não se verificando, no caso sub judice, o pressuposto basilar da responsabilidade civil extracontratual relativo ao nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo praticado pelo réu e os danos sofridos pelo autor».

Novamente o autor discorda, e pede revista do acórdão recorrido imputando-lhe «erro de julgamento de direito» quanto ao enquadramento do caso no instituto da «perda de chance», e quanto à apreciação do «nexo de causalidade» e respectivo ónus da prova.

O litígio mostra-se complexo, sobretudo devido à dificuldade de destrinça - bem patente na sentença e no acórdão -, daquilo que é, efectivamente a sua causa de pedir, sendo verdade que as instâncias divergiram quanto ao fundamento do julgamento de improcedência.
Mas o certo é que já se encontra adquirida a conduta ilícita e culposa da administração fiscal, litigando-se apenas a verificação do nexo de causalidade, pois que o dano, para o autor, parece evidente.

O acórdão recorrido não é juridicamente claro na apreciação que fez desse pressuposto do nexo de causalidade, enredando-se, injustificadamente, na teoria da perda de chance e na exigência de um ónus de prova, por parte do autor, que numa apreciação sumária e preliminar, como a que nos é pedida, surge carente de uma «reapreciação» por este tribunal de revista, em nome de uma «melhor aplicação do direito».

7. Colhidos os vistos, o processo vem submetido à Conferência, cumprindo apreciar e decidir.

*

II - DAS QUESTÕES A DECIDIR

8. Constitui objeto do presente recurso de revista saber se o Ac.TCAN recorrido procedeu a um correto julgamento do recurso de apelação interposto pelo Autor, ao confirmar a improcedência da presente ação, ainda que com diferente fundamento do utilizado na sentença de 1ª instância.

Como se expõe no Acórdão que admitiu o presente recurso de revista, estabelecidos os requisitos da ilicitude – no caso, da atuação ilícita do Serviço de Finanças de Cantanhede –, da culpa (presumida dessa atuação ilícita) e do dano – a impossibilidade de o Autor ter integrado no seu património os bens que compuseram o “quinhão hereditário” por si adquirido em venda realizada no âmbito de uma execução fiscal -, resta apurar, na presente revista, a verificação, ou não, do requisito do nexo de causalidade entre aquelas atuações ilícitas detetadas ao Serviço de Finanças e este dano sofrido pelo Autor, por forma a poder decidir-se sobre o invocado direito do Autor a ser indemnizado pelo Réu Estado com fundamento em eventual responsabilidade civil extracontratual deste.


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III - FUNDAMENTAÇÃO

III. A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

9. As instâncias tiveram em consideração os seguintes elementos de facto:

«1) Em 13/10/2000 foi instaurado no Serviço de Finanças de Cantanhede o processo de execução fiscal n.° 07102000001011510, contra o executado B…………, para cobrança de dívida de IRS do ano de 1996, no valor de € 104.126,82 (acordo).
2) No âmbito do referido processo de execução fiscal, foi efetuada a penhora do quinhão hereditário do executado sobre a herança aberta por óbito de C…………, falecido em 03/10/1995, correspondente a 1/9 dos bens relacionados no processo sucessório (cfr. docs. de fls. 169, 179 e 189 a 198 do suporte físico do processo).
3) Pelo ofício n.° 11, de 03/01/2008, o Serviço de Finanças de Cantanhede notificou a co-herdeira D…………, para os efeitos previstos no então art.° 862.° do CPC, da penhora do quinhão hereditário do executado sobre a herança aberta por óbito de C…………, ficando o direito ao referido quinhão à ordem da entidade exequente desde a data da primeira notificação (cfr. doc. de fls. 179 do suporte físico do processo).
4) Em 22/10/2008 foi instaurado no 1.° Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede processo de inventário para partilha da herança aberta por óbito de C…………, o qual correu termos sob o n.° 1009/08.1TBCNT (cfr. doc. de fls. 171 a 174 do suporte físico do processo).
5) Pelo ofício n.° 3633 de 16/12/2008, o Serviço de Finanças de Cantanhede notificou a co-herdeira D…………, nos termos do art.° 249.°, n.° 7, do CPPT, de que, por despacho do Chefe de Finanças, foi designado o dia 30/01/2009, pelas 11h00, para a realização da venda por meio de propostas em carta fechada do bem penhorado (quinhão hereditário) e para exercer, querendo, o direito de preferência previsto no art.° 1409.° do Código Civil (cfr. doc. de fls. 188 do suporte físico do processo).
6) Através de requerimento apresentado no âmbito do processo de inventário, foi requerida a notificação do Serviço de Finanças de Cantanhede “com o propósito de o informar que foi aberto o inventário para partilha da herança aberta pela morte de C…………, e que aí foi exatamente explicado sem quaisquer margens para dúvidas que existe um quinhão hereditário penhorado pela Administração Fiscal, através do qual a mesma poderá preencher com a parte da herança que lhe é devida” (cfr. doc. de fls. 187 do suporte físico do processo).
7) Pelo ofício n.° 1318, de 09/04/2009, o Serviço de Finanças de Cantanhede solicitou ao Tribunal Judicial de Cantanhede informação sobre se foi instaurado algum processo de inventário em nome de C………… e, em caso afirmativo, qual a sua identificação e indicação dos bens relacionados pelo cabeça-de-casal, pedido que obteve o seguinte despacho, de 04/05/2009: “Satisfaça” (cfr. docs. de fls. 199, no verso, e 200 do suporte físico do processo).
8) Pelo ofício n.° 791, de 11/03/2010, o Serviço de Finanças de Cantanhede notificou a cabeça-de-casal da herança, E…………, e fiel depositária no processo de execução fiscal, nos termos do disposto no então art.° 854.° do CPC, de que, por despacho do Chefe de Finanças, foi designado o dia 07/04/2010, pelas 11h00, para a realização da venda por meio de propostas em carta fechada do bem penhorado, constituído pelo direito e ação à herança ilíquida e indivisa que ficou a pertencer ao executado, por óbito de C…………, correspondente a 1/9 dos bens relacionados, sendo o valor base da venda de € 10.500,00 (cfr. doc. de fls. 201 do suporte físico do processo).
9) A cabeça-de-casal da herança apresentou requerimento no processo de inventário, solicitando que fosse notificado o Serviço de Finanças de Cantanhede para que a venda acima referida não fosse realizada, “mais lhe comunicando que através da diligência de conferência de interessados já houve adjudicação dos bens, tendo inclusivamente o quinhão do executado ficado preenchido com bens que ultrapassam largamente aqueles referidos € 10.500,00” (cfr. doc. de fls. 200, no verso, do suporte físico do processo).
10) Em 23/03/2010 foi elaborado o mapa de partilha no processo de inventário, do qual consta o seguinte, no que respeita à composição do quinhão hereditário de B…………:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
(cfr. doc. de fls. 207 e 208 do suporte físico do processo).
11) Sobre o requerimento mencionado no ponto 9) foi proferido despacho em 25/03/2010, no processo de inventário, com o seguinte teor: “Nada cumpre a este Tribunal determinar uma vez que a Fazenda Nacional não é credora da herança. Por outro lado, considerando que não foi ainda homologado o mapa de partilha, o quinhão objeto de penhora pela Fazenda Nacional poderá ser alienado, não podendo incidir evidentemente tal alienação sobre bens determinados mas sobre a quota ideal que o interessado B………… tem direito a receber” (cfr. doc. de fls. 202, no verso, do suporte físico do processo).
12) Pelo ofício n.° 1005, de 07/04/2010, foi o A. notificado de que, abertas as propostas no âmbito da venda judicial no processo de execução fiscal, foi aceite a sua proposta, por ser a de maior valor (€ 15.000,00) (cfr. doc. de fls. 166, no verso, do suporte físico do processo).
13) Em 28/04/2010 o Chefe do Serviço de Finanças de Cantanhede proferiu despacho de adjudicação ao A. do direito e ação à herança ilíquida e indivisa que ficou a pertencer ao executado B………… por óbito de C…………, correspondente a 1/9 dos bens relacionados, mais tendo determinado que se procedesse à emissão do título de transmissão, ao levantamento da penhora e à notificação da fiel depositária para proceder à entrega do bem objeto da venda (cfr. doc. de fls. 169 do suporte físico do processo).
14) Em 28/04/2010 foi emitido em nome do A. o “título de transmissão de bem vendido através de propostas em carta fechada”, relativo ao bem identificado no ponto anterior (cfr. doc. de fls. 170 do suporte físico do processo).
15) Em 14/05/2010 foi proferido, no âmbito do processo de inventário, despacho de homologação da partilha constante do mapa de partilha elaborado em 23/03/2010 e referido supra no ponto 10), com trânsito em julgado em 21/06/2010 (cfr. docs. de fls. 214, no verso, a 215, no verso, do suporte físico do processo).
16) Em 20/06/2011 o A. instaurou, no Tribunal Judicial de Cantanhede, ação de condenação em processo comum e sob a forma ordinária contra, entre outros, B…………, na qual peticionou que este fosse condenado a entregar-lhe todos os bens que lhe foram adjudicados, livres de ónus e encargos, no inventário que correu termos, naquele Tribunal, sob o processo n.° 1009/08.1TBCNT, bem como, caso esses bens já não se encontrassem na esfera do R., a pagar-lhe o valor correspondente ao da avaliação levada a cabo nos autos de inventário (€ 35.973,30), sem prejuízo de avaliação ulterior desses bens, ação que correu termos sob o processo n.° 676/11.3TBCNT (cfr. docs. de fls. 4 a 9 e 60 do suporte físico do processo).
17) Em 09/05/2012 o A. requereu junto do Serviço de Finanças de Cantanhede, nos termos dos art.ºs 901.° e 930.° do CPC, que este providenciasse pelo prosseguimento da execução para entrega de coisa certa dos bens que passaram a compor o quinhão hereditário do executado e dos quais o A. se tornou proprietário, se necessário com o auxílio da força pública, alegando que, “apesar de várias tentativas”, foi “impossível ao requerente obter do executado B………… a entrega material dos bens que adquiriu nos presentes autos” (cfr. doc. de fls. 95 a 100 do suporte físico do processo).
18) Por despacho do Chefe de Finanças de 10/08/2012, foi indeferido o pedido do A. que antecede (cfr. doc. de fls. 102 e 103 do suporte físico do processo).
19) Em novembro de 2012 o A. apresentou novo requerimento junto do Serviço de Finanças de Cantanhede para que este diligenciasse no sentido de lhe serem entregues os bens adquiridos na venda executiva (cfr. doc. de fls. 104 a 108 do suporte físico do processo).
20) Em 19/07/2013 o A. requereu, uma vez mais, junto do Serviço de Finanças de Cantanhede para que este diligenciasse no sentido de lhe serem entregues os bens adquiridos na venda executiva (cfr. doc. de fls. 91, no verso, a 94 do suporte físico do processo).
21) Por sentença de 27/03/2014 do 2.° Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede, proferida no processo n.° 676/11.3TBCNT, foi a ação julgada procedente e, em consequência, foi o aí R. B………… condenado a entregar ao ora A. todos os bens que lhe foram adjudicados no inventário que correu termos no 1.° Juízo Cível do Tribunal de Cantanhede, processo n.° 1009/08.1TBCNT, e, caso não fosse possível a entrega dos bens, foi o mesmo R. condenado a pagar ao A. o valor desses mesmos bens no montante de € 35.973,30, salvo se tiverem aumentado de valor, que deveria ser apurado em incidente de liquidação (cfr. doc. de fls. 120 a 122 do suporte físico do processo).
22) O A. intentou no 1.° Juízo de Execução de Coimbra ação executiva para entrega de coisa certa contra B…………, que correu termos sob o processo n.° 4844/17.6T8CBR, tendo em vista a execução do primeiro segmento condenatório da sentença que antecede, a qual veio a ser extinta por decisão do agente de execução de 05/06/2018 (cfr. doc. de fls. 304 do suporte físico do processo).
23) O A. intentou no 2.° Juízo de Execução de Coimbra ação executiva para pagamento de quantia certa contra B…………, que correu termos sob o processo n.° 8607/18.3T8CBR, tendo em vista a execução do segundo segmento condenatório da sentença referida supra no ponto 21), a qual veio a ser extinta por decisão do agente de execução de 22/02/2019, com fundamento na inexistência de bens (cfr. doc. de fls. 319 do suporte físico do processo)».


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III. B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

10. Como se viu acima, a 1ª instância julgou a ação improcedente uma vez que não divisou, na atuação do Serviço de Finanças de Cantanhede, a prática de qualquer ilicitude, falhando, assim, desde logo, este necessário pressuposto da responsabilidade civil extracontratual assacada pelo Autor ao Réu Estado.

Diferentemente, porém, o TCAN, no Acórdão recorrido, admitiu uma conduta ilícita por parte do Serviço de Finanças de Cantanhede – por ter «infringido quadro normativo que deriva do disposto (i) na alínea c) do nº 1 [lapso: não existe nº 1] do artigo 232º do CPPT e, bem assim, (ii) dos artigos 901º e 930º do CPC», mas sem entender que resultasse comprovado, nem que o Autor sequer tivesse alegado, que estes incumprimentos legais por parte do Serviço de Finanças foram a causa da impossibilidade de satisfação do crédito do Autor avaliado em 35.973,30€.

Estando em questão, na presente revista, apreciar se ocorre o necessário nexo de causalidade entre aquela conduta ilícita, consubstanciada, como julgou o TCAN, nas infracções às duas normas referenciadas, e o dano sofrido pelo Autor (não integração no seu património dos bens que vieram a compor o “quinhão hereditário” por si adquirido em venda realizada em execução fiscal) – único pressuposto da invocada responsabilidade civil extracontratual do Réu Estado que falta estabelecer -, há que analisar as infracções detetadas, pelo TCAN, das referenciadas normas, por parte do Serviço de Finanças, e as suas respetivas implicações.

10.1. A infração ao disposto na alínea c) do artigo 232º do CPPT

A este respeito, e diferentemente do julgado em 1ª instância, o Ac.TCAN recorrido entendeu que o Serviço de Finanças de Cantanhede incumpriu o disposto na alínea c) do art. 232º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), o qual refere:

«“Formalidades da penhora do direito a bens indivisos”

Da penhora que tiver por objecto o direito a uma parte de bens, lavrar-se-á auto, no qual se indicará a quota do executado, se identificarão os bens, se forem determinados, e os condóminos, observando-se ainda as regras seguintes:
(…)
c) Efectuada a penhora no direito e acção a herança indivisa, e correndo inventário, o órgão da execução fiscal comunicará o facto ao respectivo tribunal e solicitar-lhe-á que oportunamente informe quais os bens adjudicados ao executado, podendo, neste caso, a execução ser suspensa por período não superior a 1 ano; (…)».

O Ac.TCAN recorrido entendeu que o Serviço de Finanças de Cantanhede incumpriu esta disposição uma vez que resulta dos autos que, efetuada a penhora, na excução fiscal que corria contra B…………, do direito ao “quinhão hereditário” que este detinha sobre a herança aberta por óbito do seu pai, F…………, cujo processo de inventário corria sob o nº 1009/08 no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Cantanhede, aquele Serviço limitou-se a perguntar a este Tribunal, em 9/4/2009, se ali corria algum processo de inventário por óbito do referido F………… e, em caso afirmativo, qual a sua identificação e indicação dos bens relacionados pelo cabeça do casal (cfr. facto provado nº 7); o que foi satisfeito pelo referido Tribunal, na sequência de despacho do Juíz do processo de inventário, de 4/5/2009, com o teor de “Satisfaça” (cfr. facto provado nº 7).

Ora, o TCAN notou que o Serviço de Finanças não cumpriu, em rigor, o imposto naquela alínea c) do art. 232º do CPPT, pois que nem comunicou ao Tribunal a penhora do direito e ação do executado à herança do ali inventariado, seu pai, nem solicitou que oportunamente o Tribunal informasse quais os bens que viriam a ser adjudicados ao interessado executado.

Textualmente, ponderou o Ac.TCAN recorrido:
«Ora, do circunstancialismo fáctico ora evidenciado destaca-se a “certeza férrea” que a Administração Fiscal não cumpriu as imposições legais que derivam da normação em análise, já que do tecido fáctico apurado, e supra evidenciado, não resulta em momento algum que a Administração Fiscal tenha dado a conhecer expressamente a existência de uma penhora sobre o direito e ação a herança indivisa emergente do óbito de C…………, nem tão pouco solicitado a relação de bens adjudicados ao executado.
Realmente, as circunstâncias da Administração Fiscal, ter solicitado informação, para efeito de instrução do processo de execução fiscal n° 0710200001011510, em que é executado B…………, se corria naquele Tribunal algum processo de inventário judicial em nome de C…………, mais solicitando, em caso afirmativo, a identificação de tal processo judicial e dos bens relacionados pelo cabeça de casal, não permitem concluir no sentido no sentido do preenchimento da previsão constante da alínea c) do nº1. do artigo 232º do CPPT.
Por conseguinte, e não obstante não se acompanhe a alegação do Recorrente de que se impunha ainda a verificação do estado do processo de inventário, é de concluir que vinga a argumentação avançada pelo Recorrente no domínio em análise».

Sucede, porém, que não se divisa como este incumprimento do Serviço de Finanças de Cantanhede pôde, no caso, e em face das circunstâncias, ter sido causa do dano sofrido pelo Autor (isto é, da não integração, no seu património, dos bens, concretos e determinados, que viriam posteriormente a compor, no inventário, o “quinhão hereditário” do executado, pelo Autor adquirido em venda realizada na execução fiscal).

Desde logo, como resulta comprovado nos autos, o Serviço de Finanças comunicou aos restantes co-herdeiros (à viúva, cabeça de casal, e a uma irmã do executado) a existência da execução fiscal e da penhora: à cabeça de casal, em 3/1/2008, para efeitos do disposto no art. 862º do CPC, na versão aplicável em 2008 (realização de penhora de direito a bens indivisos, consistindo unicamente na notificação do facto ao administrador dos bens e aos contitulares), bem como da data designada para a venda do bem indiviso penhorado (30/1/2009, pelas 11 horas), para eventual exercício do direito de preferência, nos termos dos arts. 249º nº 7 do CPPT e 1409º do C.Civil – cfr. factos provados nºs 3 e 5; sendo certo que a cabeça de casal, por sua vez, deu formalmente conta ao Tribunal da existência da execução fiscal, da penhora aí efetuada, da qual tinha sido notificada, e da data designada para a venda do bem indiviso penhorado (direito e ação do executado à quota hereditária do executado) – cfr. requerimentos apresentados pela cabeça de casal no processo de inventário a que se referem os factos provados nºs 6 e 9.

Assim, pese embora, como notado pelo TCAN, o Serviço de Finanças não tenha, em rigor, pelo seu ofício de 9/4/2009 (referido no facto provado nº 7), informado o Tribunal da penhora realizada, em 30/1/2008, do quinhão hereditário – como determinado na alínea c) do art. 232º do CPPT -, essa informação sobre a existência de tal penhora e seus desenvolvimentos, nomeadamente a data designada para a venda desse bem executado, foi sendo prestada, como provado, ao processo de inventário pela cabeça de casal.

Por outro lado, pese também embora o Serviço de Finanças não tenha, por aquele mesmo seu ofício de 9/4/2009, solicitado ao Tribunal a oportuna informação sobre os bens físicos que viessem a compor o quinhão hereditário penhorado – como também determinado na alínea c) do art. 232º do CPPT -, é de notar que o quinhão hereditário em questão, penhorado em 30/1/2008 na execução fiscal, apenas em 21/6/2010 foi preenchido por bens concretos e determinados, na sequência do trânsito em julgado do despacho judicial de homologação da partilha proferido em 14/5/2010 no processo de inventário (cfr. facto provado nº 15).

Isto significa que, ainda que o Serviço de Finanças de Cantanhede tivesse cumprido, em estrito rigor, o determinado na alínea c) do art. 232º do CPPT, solicitando ao Tribunal a oportuna informação sobre os bens que viriam a preencher o quinhão hereditário penhorado, o Tribunal nunca estaria apto a fornecer-lhes essa informação antes de 21/6/2010.

Ora, nessa data de 21/6/2010, já o bem penhorado na execução fiscal – o quinhão hereditário – tinha sido objeto de venda (ao aqui Autor), a qual se efetivara em 28/4/2010 – cfr. factos provados nºs 13 e 14.

Tudo de acordo, aliás, com o esclarecedor despacho proferido pelo juiz do inventário em 25/3/2010, ao tomar conhecimento da iminente venda do quinhão hereditário penhorado na execução fiscal: «(…) considerando que não foi ainda homologado o mapa da partilha, o quinhão objeto de penhora pela Fazenda Nacional poderá ser alienado, não podendo incidir evidentemente tal alienação sobre bens determinados mas sobre a quota ideal que o interessado B………… tem direito a receber» (cfr. facto provado nº 11).

Desta forma, não se vislumbra por que forma, nas circunstâncias do presente caso, o incumprimento, notado pelo TCAN, por parte do Serviço de Finanças de Cantanhede, de tudo o determinado na alínea c) do art. 232º do CPPT, tenha prejudicado os interesses do Autor, e, especificamente, que estes incumprimentos tenham sido causa do dano invocado (não integração no seu património dos bens concretos e determinados que viriam posteriormente a compor o “quinhão hereditário” por si adquirido na venda realizada na execução fiscal). Ou, de outra forma, que o estrito cumprimento do disposto na alínea c) do art. 232º do CPPT – comunicação ao tribunal do inventário da penhora da quota hereditária e solicitação de oportuna informação sobre os bens determinados que viessem a ser adjudicados ao executado -, teria evitado, no caso, o aludido dano sofrido pelo Autor, já que, por um lado, o tribunal do inventário não deixou, como vimos, de tomar oportuno conhecimento da penhora efetuada no processo de execução fiscal, e que, por outro lado, como também vimos, a informação sobre os bens determinados que viriam a ser adjudicados ao executado só poderia ter sido fornecida pelo tribunal do inventário ao Serviço de Finanças de Cantanhede em momento em que já o bem indiviso penhorado (quota hereditária) tinha sido vendido ao Autor.

10.2. A infração ao disposto nos artigos 901º e 930º do CPC

A este respeito, e também diferentemente do julgado em 1ª instância, o Ac.TCAN recorrido entendeu que o Serviço de Finanças de Cantanhede incumpriu o disposto nos artigos 901º e 930º do Código de Processo Civil (CPC), os quais referem:

Art. 901º (“Entrega dos bens”)
«O adquirente pode, com base no título de transmissão a que se refere o artigo anterior, requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens, nos termos prescritos no artigo 930.º, devidamente adaptados».

Art. 930º (“Entrega da coisa”)
«1 - À efectivação da entrega da coisa são subsidiariamente aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições referentes à realização da penhora, procedendo-se às buscas e outras diligências necessárias, se o executado não fizer voluntariamente a entrega; a entrega pode ter por objecto bem do Estado ou de outra pessoa colectiva referida no n.º 1 do artigo 823.º
2 - Tratando-se de coisas móveis a determinar por conta, peso ou medida, o agente de execução manda fazer, na sua presença, as operações indispensáveis e entrega ao exequente a quantidade devida.
3 - Tratando-se de imóveis, o agente de execução investe o exequente na posse, entregando-lhe os documentos e as chaves, se os houver, e notifica o executado, os arrendatários e quaisquer detentores para que respeitem e reconheçam o direito do exequente.
4 - Pertencendo a coisa em compropriedade a outros interessados, o exequente é investido na posse da sua quota-parte.
5 - Efectuada a entrega da coisa, se a decisão que a decretou for revogada ou se, por qualquer outro motivo, o anterior possuidor recuperar o direito a ela, pode requerer que se proceda à respectiva restituição.
6 - Tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.os 3 a 6 do artigo 930.º-B, e caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes».

O Ac.TCAN recorrido entendeu que o Serviço de Finanças de Cantanhede incumpriu estas disposições ao invocar, erradamente, a sua não aplicabilidade em execução fiscal, e portanto no presente caso, indeferindo, consequentemente, o pedido do Autor de prosseguimento da execução.

Afirmou o TCAN a este propósito:
«Dissolvidas as duas primeiras questões, vejamos agora se andou mal [ou bem] a Administrarão Fiscal ao invocar, no seu despacho, a não aplicabilidade dos artigos 901.º e 930.º do Código de Processo Civil à execução fiscal.
A resposta é, manifestamente favorável, às pretensões do Recorrente.
De facto, a este propósito, ressalte-se o teor do aresto do STA, de 09.04.2014, tirado no processo nº. 01869/13, porque esclarecedor da temática em análise:
(…) é pacificamente aceite que no caso de bens vendidos em processo de execução fiscal, mesmo antes de a Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, ter aditado o n.º 2 ao art. 256.º, o adquirente podia, com base no despacho de adjudicação, requerer o prosseguimento da execução contra o detentor dos bens, nos termos prescritos para a execução para entrega de coisa certa (arts. 900.º e 901.º do CPC, na redação aplicável). O que bem se compreende se se atentar em que a venda executiva produz os mesmos efeitos que a realizada através de negócio jurídico translativo (cf. art. 879.º do Código Civil), nomeadamente a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito. Assim, adjudicados os bens, podia o adquirente, nos termos do referido art. 901.º do CPC, sempre na referida redação, providenciar pela respetiva entrega requerendo, com base no despacho de adjudicação, o prosseguimento da execução (Cfr. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, pág. 102.), sendo aplicáveis os termos adaptados do processo para entrega de coisa, previsto nos arts. 930.º e seguintes do CPC. (…) Tem-se também vindo a entender que, uma vez pedida a entrega do bem pelo adquirente, de duas uma: ou a entrega se consuma sem reação jurídica dos que o detinham, ou, ao invés, estes deduzem oposição à execução; na primeira situação, nada obsta a que o pedido seja apreciado e decidido pelo órgão de execução fiscal, enquanto na segunda situação competirá ao tribunal tributário poderá dirimir o conflito (…)”.
Reiterando esta linha jurisprudencial, tem-se, portanto, por assente, que, no âmbito das relações operadas no âmbito de execuções fiscais, mais particularmente, as emergentes da venda judicial de bens penhorados em execução fiscal, resulta inteiramente oponível o disposto nos artigos 901º e 930º do C.P.C..
Assim, e sendo esse o caso dos autos – na sequência da aceitação da sua proposta de aquisição relativa à venda judicial n.º 0710.2010.42, efetuada no âmbito do processo de execução fiscal n.º 0710200001011510, em que figurava como executado B…………, o Recorrente recebeu, em 28.04.2010, o respetivo título de transmissão, pelo qual lhe foi adjudicado o direito e ação à herança ilíquida e indivisa que ficou a pertencer ao referido executado, por óbito de C…………, correspondente a 1/9 dos bens aí identificado - não podia a Administração Fiscal ter indeferido o requerimento do Recorrente melhor identificado no ponto 17 do probatório coligido nos autos com fundamento na inaplicabilidade do disposto nos artigos 901º e 930º do C.P.C.».

Sucede, porém, que não obstante a notada errada interpretação legal seguida pelo Serviço de Finanças de Cantanhede, tal como julgado pelo Ac.TCAN, o certo é que também, aqui, não se consegue vislumbrar em que medida esta circunstância foi causadora do dano sofrido pelo Autor. Por outras palavras, como é que o solicitado prosseguimento da execução fiscal, caso tivesse sido deferido, poderia ter obstado àquele dano.

É que, desde logo, há que ponderar que o bem penhorado na execução fiscal em causa (em 16/12/2008) e posteriormente vendido (ao Autor, em 28/4/2010) era uma quota ideal de uma herança (uma quota hereditária, um bem indiviso) e não um bem determinado. Ora, o que o disposto nos arts. 901º e 930º do CPC (entendidos como aplicáveis) determinam é que “o adquirente pode, com base no título de transmissão, requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens, nos termos prescritos no artigo 930.º, devidamente adaptados” (art. 901º). Mas, tratando-se de uma quota ideal, e não de bem determinado, é essa quota que as disposições dos citados arts. 901º e 930º do CPC têm como objeto quando se referem à “efetivação da entrega da coisa”. Aliás, congruentemente, nos termos do nº 4 do art. 930º, «pertencendo a coisa em compropriedade a outros interessados, o exequente é investido na posse da sua quota-parte».

Repare-se que o art. 901º bem esclarece que o adquirente pode requerer a entrega dos bens “com base no título de transmissão a que se refere o artigo anterior”. E o artigo anterior (art. 900º) prevê que do título de transmissão a emitir tem de constar a identificação dos bens (cuja entrega se poderá requerer com base nesse título).

Assim, pela natureza do bem indiviso que havia sido penhorado e vendido (ao Autor), a “efetivação da entrega da coisa”, nos termos dos aludidos arts. 901º e 930º, que poderia ser almejada pelo prosseguimento da execução, apenas poderia respeitar ao “empossamento” do Autor no bem que havia adquirido na execução (a penhorada quota ideal hereditária), e não nos bens determinados – que não foram o objeto de penhora nem o objeto de venda na execução fiscal - que, posteriormente à aquisição da quota ideal por parte do Autor, vieram a compô-la em processo de inventário.

No aresto deste STA (de 09.04.2014, proc. 01869/13, Secção de Contencioso Tributário), como refere o TCAN, contrariamente ao entendimento manifestado pelo Serviço de Finanças de Cantanhede, expressou-se a aplicabilidade nas execuções fiscais do disposto nos aludidos arts. 901º e 930º do CPC, isto é, “no caso de bens vendidos em processo de execução fiscal” o adquirente pode “com base no despacho de adjudicação, requerer o prosseguimento da execução para entrega da coisa certa”.

Sucede, porém, que o “bem vendido” neste processo de execução fiscal, relativamente ao qual foi emitido ao Autor o respetivo “título de transmissão”, foi uma quota hereditária, pelo que é referentemente a este bem que, com base no despacho de adjudicação e daquele título de transmissão, o Autor adquirente pode pedir a prosseguimento da execução com vista à “efetivação da entrega” desse bem - e não de bens determinados (que viriam posteriormente a compor a quota hereditária) que não foram os bens penhorados na execução fiscal, nem aí vendidos ou adjudicados ao Autor, nem os constantes do título de transmissão que aí lhe foi emitido). Pelo que o prosseguimento da execução, ainda que permitida pelos arts. 901º e 930º do CPC (tidos como aplicáveis em processo de execução fiscal), não conduziriam, neste caso, à satisfação do interesse último do Autor, ou seja, à “integração no seu património dos bens concretos e determinados que viriam posteriormente a compor o “quinhão hereditário” por si adquirido na venda realizada na execução fiscal”.

11. Por tudo o exposto, entende-se não se encontrar verificado o exigido requisito do “nexo de causalidade” entre a ilicitude (no caso, as infrações por parte dos Serviços de Finanças de Cantanhede, apontadas pelo TCAN) e o dano sofrido pelo Autor.

É que, como resulta do já dito, foi penhorado na execução fiscal um bem indiviso (quota hereditária), que se consubstancia pela notificação à cabeça de casal, e foi este mesmo bem indiviso o objeto da venda (e, portanto, da aquisição por parte do Autor), bem como foi esse bem indiviso – quota ideal - o objeto do “título de transmissão” aí emitido a favor do Autor (tendo a cabeça de casal, e fiel depositária, mãe do executado, sido em 30/4/2010 notificada desta venda e para proceder à entrega do bem em causa ao Autor adquirente).

Na execução fiscal não foram penhorados bens determinados, nem foram vendidos, ou adquiridos pelo Autor, bens determinados, nem ao Autor foi emitido “título de aquisição” de algum bem determinado.

Em consequência, munido do “título de aquisição” que ali lhe foi emitido (respeitante ao bem indiviso adquirido, e não a qualquer bem determinado), competia ao Autor exigir por todos os meios legais, judiciais ou extrajudiciais, a entrega dos bens determinados que, posteriormente, aquando da homologação da partilha judicial efetuada no processo de inventário judicial, vieram a preencher essa adquirida quota hereditária.

12. E, nas circunstâncias do caso, não competia ao Serviços de Finanças, no âmbito do processo de execução fiscal, garantir a efetivação da entrega daqueles “bens determinados” ao Autor, os quais – repete-se – não foram os bens penhorados, nem os bens vendidos, nem os bens constantes do título de aquisição ali emitido ao Autor.

Relembremos o disposto na já acima transcrita alínea c) do art. 232º do CPPT, sobre a penhora, em processo de execução fiscal, do direito a bens indivisos:
«c) Efectuada a penhora no direito e acção a herança indivisa, e correndo inventário, o órgão da execução fiscal comunicará o facto ao respectivo tribunal e solicitar-lhe-á que oportunamente informe quais os bens adjudicados ao executado, podendo, neste caso, a execução ser suspensa por período não superior a 1 ano»

E, no seguimento, refere a alínea d):
«d) A penhora transfere-se, sem mais, para os bens que couberem ao executado na partilha».

Deste dispositivo resulta que o que se “transfere, sem mais, para os bens que couberem ao executado em partilha” é “a penhora”; não, obviamente, o direito e ação à quota hereditária que já tenha sido objeto de venda executiva, isto é, não o direito e ação constante do título de aquisição já antes emitido e entregue ao Autor.

E ainda que a execução pudesse ter sido suspensa (pelo prazo máximo de um ano) – cfr. parte final da alínea c) - por forma a aguardar que a partilha da herança eventualmente se efetivasse no inventário, e que, na sequência, a penhora se pudesse transferir “sem mais, para os bens que couberem ao executado na partilha”, esta é apenas uma possibilidade, como tal prevista na lei, que nem sequer consta dos factos provados ter sido, no caso, solicitada (diferentemente, o que a cabeça de casal solicitou ao tribunal do inventário foi que se notificasse o Serviço de Finanças para que a venda não fosse realizada, por já se ter procedido a licitação dos bens no inventário – o que o juiz do inventário indeferiu, referindo que, não havendo ainda partilha homologada, nada haveria a obstar à venda do bem penhorado enquanto bem indiviso – cfr. factos provados nºs 9 e 11, artigos 8º e 12º da p.i. e docs. 10, 13 e 14 juntos com a p.i.).

13. De tudo o exposto, retira-se não ser possível concluir pela verificação do necessário requisito do “nexo de causalidade” entre as infrações legais perpetradas pelo Serviço de Finanças de Cantanhede – como detetado pelo Ac.TCAN recorrido – e o dano sofrido pelo Autor (não integração no seu património dos bens concretos e determinados que vieram a compor o “quinhão hereditário” por si adquirido na venda realizada na execução fiscal) – ou que o eventual não cometimento daquelas infrações tivesse evitado este dano, pelo que se não encontram preenchidos os pressupostos da responsabilização civil extracontratual do Réu Estado – tal como julgou o Ac.TCAN recorrido, ainda que com diferente fundamentação.

14. Note-se, por último, que esta constatação de não verificação do “nexo causal” (entre a conduta ilícita do Serviço de Finanças de Cantanhede e o dano sofrido invocado), a que já chegara o Ac.TCAN recorrido, não representa - contrariamente ao alegado pelo Autor/Recorrente nas alegações deste seu recurso de revista - uma “desculpa da conduta ilícita e culposa” daquele Serviço (cfr. conclusão III), pois o que releva para a decisão da ação indemnizatória é, tão só, apreciar e decidir se essa conduta foi, ou não, a causa daquele dano.

E, por outro lado, não se vê em que medida é que, para chegar a esta conclusão de não verificação do “nexo causal”, se tenha de utilizar, como refere o Autor/Recorrente, “uma violenta interpretação e aplicação das regras do ónus da prova” (cfr., v.g., conclusão XI).

Efetivamente, o ónus da prova dos factos fundamentadores (constitutivos) dos pressupostos ou requisitos da responsabilidade civil – neste caso, do nexo de causalidade - cabe ao lesado e não ao lesante. E, como é evidente, alegando o Autor que a conduta (ilícita) do Serviço de Finanças de Cantanhede lhe causou os danos invocados, a si competia provar tal causalidade, tal nexo causal: o que, aqui, sempre passaria por comprovar que o dano que invoca ocorreu por causa dessa “ilicitude”, e que, sem essa “ilicitude”, o dano não ocorreria (cfr. artº 563° do C. Civil, consagrando a formulação negativa da causalidade adequada, na formulação de Enneccerus-Lehmann). Uma vez que os factos que suportam o nexo causal entre a ilicitude e o dano são constitutivos – não são impeditivos – dos direitos invocados.

E tem-se presente que “o significado essencial do ónus da prova não está tanto a quem incumbe fazer a prova, mas em que sentido deve o tribunal decidir no caso de não se fazer essa prova” (Antunes Varela, anotação ao art. 342º C.Civil Anotado).

Ora, não só não resulta dos autos tal comprovação de causalidade, como – com base na factualidade apurada – transparece precisamente o contrário: que o dano sofrido pelo Autor não ocorreu por causa das específicas infrações do Serviço de Finanças de Cantanhede apontadas pelo TCAN, mais se impondo a conclusão de que, ainda que essas infrações não tivessem sido praticadas, o dano em causa não teria sido evitado. Tudo como resulta de toda a análise supra efetuada.


*

IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202º da Constituição da República Portuguesa, em:

Negar provimento ao presente recurso de revista interposto pelo Autor/Recorrente A…………, mantendo-se, assim, o julgamento do Acórdão do TCAN recorrido, ainda que com diferente fundamentação.

Custas a cargo do Recorrente/Autor.

D.N.

Lisboa, 5 de maio de 2022 – Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha (relator) – José Augusto Araújo Veloso – Maria do Céu Dias Rosa das Neves.