Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01191/14
Data do Acordão:06/17/2015
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
REQUISITOS
Sumário:I – O recurso excecional de revista tem por objecto uma decisão proferida em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo, devendo ser admitido quando esteja em causa, designadamente, a necessidade melhor aplicação do direito, o que implica, naturalmente, a existência de prévia decisão do TCA sobre a questão controvertida.
II – Não pode ser admitida revista se a decisão proferida pelo TCA incidiu sobre questão diversa da colocada no recurso de revista. Por outro lado, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, mesmo que se situe na distribuição do ónus da prova e nas regras que sobre essa distribuição resultam da Lei Geral Tributária e do Código Civil, também não pode ser objecto do recurso excepcional de revista, quando a questão colocada não se enquadra na ressalva contida na parte final do nº 4 do artigo 151º do CPTA.
Nº Convencional:JSTA000P19158
Nº do Documento:SA22015061701191
Data de Entrada:10/31/2014
Recorrente:A... LDA
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A………….., LDA, com os demais sinais dos autos, interpõe recurso de revista excepcional, ao abrigo do disposto no artigo 150º do CPTA, do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte que concedeu provimento ao recurso que a Fazenda Pública interpôs da sentença do TAF do Porto que, por sua vez, julgara procedente a impugnação judicial que deduzira contra a liquidação oficiosa de IRC referente ao exercício de 1998.

1. Terminou as alegações do recurso com o seguinte quadro conclusivo:

1. Visa o presente recurso de revista pôr em crise os fundamentos de direito do douto acórdão proferido que julgou procedente o recurso interposto pela Autoridade Tributária, julgando improcedente a Impugnação Judicial interposta pela Recorrida, alterando a sentença de 1ª instância nessa conformidade.

2. Situando a questão sub judice na apreciação da validade e força probatória da declaração de rendimentos respeitante ao exercício de 1998 apresentada pelo sujeito passivo posteriormente à emissão de uma liquidação oficiosa determinada pela Administração Tributária (doravante AT), nos termos do artigo 90º, nº 1, alínea b), do CIRC, face ao não cumprimento daquela obrigação declarativa pelo contribuinte dentro do prazo legal (cfr. artigo 120º, n.º 1 do Código do IRC), e da qual resultou o apuramento de um prejuízo fiscal, o acórdão sub judice:

· preconiza e defende que efectuada oficiosamente uma liquidação, esta só poderá ser anulada, nomeadamente por inexistência de facto tributário ou excesso de liquidação, se o contribuinte reclamar ou impugnar tal liquidação;

· preconiza e defende que a demonstração da inexistência ou não verificação do facto tributário é da inteira responsabilidade do sujeito passivo;

3. Salvo o mui e devido respeito, o acórdão sob recurso enferma de vício!

Senão vejamos

4. É matéria dada como provada nos autos que:

b) a impugnante apresentou, em 11.07.2003, uma reclamação graciosa contra a liquidação de IRC do ano de 1998;

h) a liquidação do IRC foi efectuada pela Administração fiscal nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 83º do CIRC;

i) a impugnante apresentou a declaração de rendimentos respeitante ao ano de 1998 em 24 de Outubro de 2002;

j) na declaração de rendimento efectuada pela impugnante, esta declarou prejuízos fiscais reportados ao ano de 1997 no valor de Euro 61.909,36;

k) a reclamação graciosa foi objecto de indeferimento por parte da Administração fiscal - cfr. despacho de fls. 15/16 e 21 do PA - com o fundamento de que “a declaração oficiosa mantém-se válida, não relevando, para o efeito, a entrega de uma declaração, por parte da reclamante, em data posterior a data em que aquela foi efectuada” (fls. 16 in fine do PAT);

l) o tribunal de 1ª instância considerou a prova documental apresentada como mais adequada e idónea, prescindindo da produção de prova testemunhal por se afigurar uma diligência inútil (cfr. despacho de 29.06.2011, a fls. 77);

m) a Impugnante foi notificada em 4.07.2011 para proceder à junção dos documentos dos factos invocados, designadamente, do facto do volume de vendas de 1997 ter ascendido a Euro 88.894,53 (cfr. despacho de 29.03.2011, a fls. 75).

5. A Recorrente não discute a legitimidade da devolução de poderes à AT para proceder à liquidação oficiosa do imposto face à inércia do sujeito passivo, mas antes o imediato repúdio e rejeição da presunção de veracidade e boa-fé que impende sobre as declarações tributárias quando apresentadas fora do prazo legal.

6. Hoje são diversas as situações em que em virtude de uma interpretação errónea do disposto no nº 1 do artigo 74º da LGT, os contribuintes que, pelos mais diversos motivos, procedem à sua entrega de declarações fora do prazo legal para o efeito, veem ser-lhe negada a presunção de boa-fé das suas declarações, estabelecida naquele preceito.

7. Tal interpretação faz sujeitar a generalidade dos contribuintes à manutenção das liquidações oficiosas, entretanto, realizadas e, bem assim, à sua defesa nos competentes processos de execução fiscal e impugnação.

8. Muito embora o tribunal “a quo” tenha entendido que as declarações tributárias entregues pelo sujeito passivo fora dos prazos legais estão destituídas da presunção legal de veracidade com assento no artigo 75º, nº 1, da LGT, entende a Recorrente que a resposta à questão não se afigura tão automática e cristalina, seja pelos princípios normativos que enformaram a presunção legal de veracidade, seja pela não exclusão literal daquela força probatória pelo mero decurso do tempo.

9. No entender da Recorrente aceitar a interpretação efectuada no acórdão de que se recorre é atestar a irrelevância atribuída à razão de ser e fundamento da presunção legal de veracidade e boa-fé estabelecida naquele preceito.

10. Com efeito, subsumir-se a existência de veracidade (por presunção) exclusivamente por referência a um determinado período temporal ou prazo legal, com exclusão automática do tempo restante, parece significar afinal que o comportamento do sujeito passivo, se cumprido dentro dos prazos legais, é movido por boa-fé, sem mais, mas se cumprido extemporaneamente (e sem embargo da responsabilidade contra-ordenacional e penalização moratória e compensatória correspondentes) está imediatamente excomungado daqueles ditames e ferido nas suas “boas intenções”.

11. Entende a Recorrente, que esta absolutização do tempo para além de merecer uma posição crítica per se, deve ser igualmente discutida enquanto orientação seguida para a resolução deste e de futuros casos em que o contribuinte, em cumprimento da lei fiscal, procede à entrega da sua declaração de rendimentos fora do prazo legal de entrega.

Se não vejamos:

12. O próprio legislador não se sente perturbado com a possibilidade de apresentação de declarações substitutivas de que resulte imposto superior durante quase todo o decurso do prazo de caducidade de liquidação (cfr. artigo 59º, n.º 3, alínea b), ponto III) do CPPT), pelo que em homenagem aos princípios constitucionais da tributação pelo rendimento real e da capacidade contributiva, se impõe também a solução inversa, ou seja, a apresentação de declarações de que resulte imposto inferior ao liquidado oficiosamente.

13. Com o Estado de Direito Democrático, elevou-se a relação do cidadão com o Estado.

14. Esta passou a não estar mais assente numa sujeição a poderes arbitrários e opacos, mas antes baseada numa dimensão relacional paritária, apoiada na confiança e cooperação recíprocas, ou seja, ao Direito Tributário não era mais lícito olhar para o contribuinte como um “profissional da evasão fiscal”, mas sim, e até prova em contrário, como um cidadão de boa-fé.

15. A incorporação dessa ideologia dá-se pela “consideração dos valores reais efectivos do rendimento e dos bens sujeitos a imposto, como objecto da tributação em termos do princípio de capacidade contributiva; a dignidade da pessoa humana na consagração do valor da declaração e da contabilidade como presunção de verdade e força probatória.”

16. Conforme nota sagazmente Lima Guerreiro, “é de todo incorrecta a ideia que a presunção de boa-fé constitui uma das substanciais inovações da Lei Geral Tributária perante um sistema anterior de inexistência dessa presunção, que suporia não disporem anteriormente da presunção de verdade as declarações do cidadão-contribuinte. A presunção da boa-fé é, na verdade a razão de ser da presunção da verdade declarativa”.

17. Neste seguimento, entende a Recorrente que se o legislador presume a boa-fé do sujeito passivo (cfr. artigo 59º, nº 2 da LGT), daí decorre necessariamente que tem de confiar nas suas declarações da mesma, de modo que tal princípio não se compatibiliza com o facto dessa boa-fé apenas valer afinal para certos períodos temporais e já não para outros, como se o contribuinte se metamorfoseasse de «bom» para «mau» com o mero decurso do tempo.

18. Ademais, a presunção apenas desonera a quem beneficia a prova do que ela indicia, não estando nunca impedida a prova do contrário ou a sua elisão por parte da AT - seja em relação às declarações tempestivas, seja em relação a quaisquer outras apresentadas fora do prazo legal.

19. No entender da Recorrente o artigo 75º, nº 2, da LGT mais não faz do que evidenciar que certos factos desde logo permitem rejeitar aquele tratamento merecedor de veracidade, neles não figurando, nem expressa, nem indirectamente, o decurso do tempo de per se.

20. Na verdade, brigando a presunção de veracidade com a natureza qualitativa das informações prestadas, logo, com o seu conteúdo material, não se alcança como a variável tempo corrompesse o (des)apego à boa-fé do sujeito passivo.

21. Porquanto, a rejeição da presunção de veracidade decorrente da mera entrega fora do prazo legal das declarações tributárias não encontra, no entender da Recorrente, eco no nº 2 do art. 75º da LGT, nem tal facto se mostra harmonizável com o princípio normativo que presidiu à sua atribuição, pois que não é o simples decurso do tempo que descaracteriza a veracidade do conteúdo daquelas declarações, mas antes a viciação da sua materialidade, o que tanto pode suceder para as declarações tempestivas, como para as extemporâneas.

22. Por outro lado, diga-se, ainda, que a AT goza, também nestas situações, de idênticos recursos e mecanismos de fiscalização e controlo da situação tributária auto-revelada pelo sujeito passivo.

23. Ora, a perda daquela presunção não decorre da lei, quanto interpretada de forma integrada e una, nem o desmerecimento das declarações tributárias se revela digno de tutela pelo decurso do tempo, caso contrário teria de se aditar aqui outro problema: qual o prazo relevante para a germinação desta degradação? Um dia, um mês ou um ano?

24. Crê, assim, a Recorrente que a declaração por ela apresentada deve continuar a merecer um tratamento legal análogo, o que, conforme é bom de ver, em caso algum inibe a AT de prosseguir na descoberta da verdade material (cfr. artigo 58º da LGT) e da tributação pelo rendimento real, princípios que regem todo o procedimento tributário, e que não são por isso interrompidos ou abafados com o decurso do prazo legal de apresentação das declarações de rendimentos.

25. A Recorrente defende, pois que no caso em análise, a declaração de rendimentos apresentada pelo sujeito passivo, após a liquidação oficiosa promovida pela AT, devia ser credora do mesmo tratamento de presunção de boa-fé, sem prejuízo a AT pudesse solicitar todos os esclarecimentos que entendesse pertinentes (cfr. artigo 59º, nº 4 da LGT) em ordem a testar a credibilidade da mesma, se motivos houvesse para dela dissentir, assim se cumprindo o disposto no artigo 90.º, n.º 10 do Código do IRC.

26. Acontece que, não foi isso que se verificou no presente caso!

27. No entender da Recorrente, recebida a comunicação sobre a identificação, qualificação e quantificação dos factos tributários, a administração tributária deveria ter tomado, quanto à situação, uma de duas posições:

a) ou considera como indúbia, e acata, expressa ou tacitamente, a verdade da realidade assim revelada, e se limita a dar seguimento aos actos posteriores do circuito - liquidando o imposto ou configurando a auto-liquidação,

b) ou reage contra a presunção de verdade da revelação do sujeito activo, ilidindo-a através da demonstração de caracteres viciosos que porventura a inquinem e lhe invalidem os pressupostos de presunção que a lei lhe confere, tudo nos estritos termos dos princípios da legalidade da prossecução do interesse público e do inquisitório.

28. Ora, tal como bem consta na sentença proferida pelo tribunal de primeira Instância, “a Administração Fiscal, não colocou em causa os elementos mencionados nas referidas declarações, confirmando, até os mesmos, na medida em que em 13.12.2002 emite uma nota de liquidação com a importância a pagar de zero, conforme fls. 6 do PA”.

29. Mais diga-se, que não pode relevar para efeitos de inversão do ónus da prova o facto da Administração Tributária alegar no seu despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada que “a declaração oficiosa mantém-se válida, não relevando, para o efeito, a entrega de uma declaração, por parte da reclamante, em data posterior a data em que aquela foi efectuada” (fls. 16 in fine do PAT).

30. Tal decisão subsume-se numa tomada de posição vaga, imprecisa e inválida, que não de per si fazer inverter o ónus da prova, nem tão pouco revogar a presunção legal de veracidade estabelecida na lei fiscal.

31. A Administração Tributária tem como dever legal o de prosseguir pelo objectivo da tributação pelo rendimento real.

32. Com efeito, aquela em momento algum defendeu existir erros ou caracteres viciosos que porventura, fossem passíveis de inquinar e invalidar os pressupostos de presunção que a lei lhe confere,

33. Antes aceitou-os!

34. Em 1998, a Recorrente teve um lucro tributável de Euro 21.594,39, que foi absorvido na sua totalidade pelos prejuízos fiscais do ano anterior no valor de Euro 61.909,36,

35. Pelo que tal facto, inviabiliza per se o pagamento de qualquer colecta em sede de IRC no que se refere ao ano de 1998.

36. Defende o Tribunal “a quo” que a “Impugnante dispensou-se da exibição de prova, nomeadamente documental, que atestasse a veracidade dessa declaração e, daí infirmasse a factualidade e, ademais, o cálculo apurado pela AT, no estrito cumprimento da lei (...)”,

37. Afirmando, inclusive, que “tal prova não seria difícil”.

38. Ora, não pode a Recorrente discordar mais com o decidido, pois que só, em 04.07.2011, foi a Recorrida notificada para proceder à junção dos documentos dos factos invocados, designadamente, do facto do volume de vendas de 1997 ter ascendido a Euro 88.894,53 (cfr. despacho de 29.03.2011, a fls. 75).

39. Conclui-se, pois, que não só é errónea e inválida a interpretação que decide pela invalidade e falta de força probatória da declaração de rendimentos respeitante ao exercício de 1998 apresentada pelo sujeito passivo posteriormente à emissão de uma liquidação oficiosa determinada pela Administração Tributária,

40. como é ilegal e despropositada a interpretação feita no sentido de onerar o sujeito passivo com a obrigação de apresentação de documentação ou elementos da sua contabilidade, após verificados e ultrapassados 14 (catorze) anos desde os factos tributários na origem do Imposto em liquidação - tudo em clara desconformidade com o disposto no nº 4 do artigo 123º do CIRC que, à data, exigia a manutenção dos elementos contabilísticos por um prazo de 10 (dez) anos.

41. Conclui-se, pois, que o acórdão sub judice ao decidir pela invalidade e falta de força probatória da declaração de rendimentos respeitante ao exercício de 1998 apresentada pelo sujeito passivo posteriormente à emissão de uma liquidação oficiosa determinada pela Administração Tributária faz uma errónea interpretação e aplicação do disposto no nº 1 do artigo 75º da LGT e artigo 59º, nº 3, alínea b), ponto III do CPPT.

42. Porquanto, nega-se razão ao acórdão sub recurso, impondo-se a sua revogação, por padecer do vício de violação do disposto nos artigos 75º n.º 1, 55º e 58º da LGT e n.º 4 do artigo 123º do CIRC, confirmando-se a decisão da 1ª instância!


1.2. A Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.

1.3. O Exm.º Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de que o recurso devia ser admitido, argumentando seguinte:

«(…) no acórdão recorrido resulta ser válida a liquidação efetuada pela A. T. nos termos dos artigos 16º, 82º al. b) e 83º nº 1 al. c) do CIRC, em face do não cumprimento da obrigação declarativa pelo contribuinte dentro do prazo legal e da que a AT ter procedido a liquidação de IRC.

E mais se decidiu que a tal não obstava que a recorrente tivesse, antes de decorridos 4 anos desde o ano de tributação que remonta já a 1998, apresentado declaração em que deduziu prejuízos fiscais os quais foram reportados ao ano anterior.

Aliás, foi ainda considerado que resultando da dita declaração não haver imposto a pagar tal não obstava à dita validade contrariamente ao decidido em 1.ª instância, o que se sustentou em 2 acórdãos proferidos pelo TCA Sul.

E defende-se no recurso interposto a controvérsia desse entendimento em face do previsto nos artigos 75º nº 1 da LGT e no art. 59º nº 3 al. b) ponto III do CPPT e de posição doutrinal que se identifica a fls. 146.

É de concordar com tal, tanto mais que o dito art. 75º nº 1 da LGT foi posteriormente alterado pela Lei de OE de 2013 de modo a admitir a não aplicação do aí previsto em face de outros requisitos de que depende a dedução de impostos, resulta ainda ter a dita questão importância fundamental por a questão se poder vir ainda a repetir, tendo a dita norma se mantido com a anterior redação durante vários anos.

Assim, no caso, resulta passível de sérias divergências a aplicação efetuada do previsto nos então vigentes artigos 16º, 82º al. b), 83º nº 1 al. c) e 95º nº 1 do CIRC, na versão aplicável à data dos factos. // Parece, pois, ser de admitir o recurso interposto.»

1.4. Colhidos que foram os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir em conferência, tendo em conta que constitui jurisprudência actualmente pacífica nesta Secção de Contencioso Tributário que o recurso de revista excepcional, previsto no artigo 150º CPTA, é admissível no âmbito do contencioso tributário.

2. Segundo o disposto no nº 1 do artigo 150º do CPTA, «das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito», competindo a decisão sobre o preenchimento de tais pressupostos, em termos de apreciação liminar sumária, à formação prevista no nº 5 do referido preceito legal.

Tal preceito prevê, assim, a possibilidade recurso de revista excepcional para o STA quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito. Razão por que a jurisprudência tem reiteradamente sublinhado a excepcionalidade deste recurso, referindo que ele só pode ser admitido nos estritos limites fixados no preceito, sob pena de se desvirtuarem os fins tidos em vista pelo legislador.

Por conseguinte, este recurso só é admissível se for claramente necessário para uma melhor aplicação do direito ou se estivermos perante uma questão que pela sua relevância jurídica ou social se revista de importância fundamental, sendo que esta importância tem de ser detectada, não perante o interesse teórico ou académico da questão, mas perante o seu interesse prático e objectivo.

Deste modo, e como tem sido explicado nos inúmeros acórdãos proferidos por esta formação, que aqui nos dispensamos de enumerar, a relevância jurídica fundamental deve ser detectada perante questões de direito (substantivo ou processual) que apresentem especial ou elevada complexidade (seja em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, seja de um enquadramento normativo especialmente intrincado, complexo ou confuso, seja da necessidade de compatibilizar diversos regimes legais, princípios e institutos jurídicos) ou quando a sua análise suscite dúvidas sérias ao nível da jurisprudência e/ou da doutrina.

Assim, o que em primeira linha está em causa no recurso excepcional de revista não é a solução concreta do caso subjacente, por não se tratar de um recurso ordinário mas, antes, de uma válvula de segurança do sistema, pelo que a relevância da questão a apreciar há-de emergir de uma especial complexidade das operações exegéticas a efectuar.

Por outro lado, a relevância social fundamental verificar-se-á quando estiver em causa um caso que apresente contornos indiciadores de que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto e das partes envolvidas no litígio, representando uma orientação para a resolução desses futuros casos, e se detecte um interesse comunitário significativo na resolução da questão.

Finalmente, a clara necessidade da revista para uma melhor aplicação do direito há-de resultar da necessidade de garantir a uniformização do direito, estando em causa matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória, impondo-se a intervenção do órgão de cúpula da justiça como condição para dissipar dúvidas e alcançar melhor aplicação do direito.

Pelo que a admissão do recurso terá lugar, designadamente, quando o caso concreto contém uma questão bem caracterizada e passível de se repetir em casos futuros e se suscitem fundadas dúvidas por se verificar uma divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais, gerando incerteza e instabilidade na resolução dos litígios, tornando-se objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema. Ou quando esteja em causa uma decisão ostensivamente errada ou juridicamente absurda ou insustentável.

No caso vertente, está em causa uma impugnação judicial deduzida contra acto de liquidação oficiosa de IRC, levada a efeito nos termos do artigo 83º, nº 1, alínea c), do CIRC, ao qual a impugnante contrapunha a posterior declaração de rendimentos que apresentou para além do prazo legal, sustentando que era esta (e não aquela) que devia relevar para a determinação do imposto, pedindo, por isso, a anulação da liquidação oficiosa.

Na 1ª instância, a impugnação foi julgada procedente, no entendimento de que, da factualidade vertida nos autos resultava que a Administração Tributária não questionara os dados evidenciados pela contribuinte na declaração que apresentou, «confirmando até os mesmos, na medida em que em 13.12.2002 emite uma nota de liquidação com a importância a pagar de zero) conforme fls. 6 do PA e que aqui se dá por reproduzida.».

Todavia, o TCAN revogou essa decisão e julgou a impugnação improcedente com a seguinte argumentação:

«(…) efectuada oficiosamente uma liquidação, esta só poderá ser anulada, nomeadamente por inexistência de facto tributário ou excesso de liquidação, se o contribuinte reclamar ou impugnar tal liquidação e demonstrar que “in casu” não existiu facto tributário ou se verificou excesso de liquidação.

A simples apresentação tardia de uma declaração de rendimentos da qual vem a resultar inexistência de imposto ou imposto diverso do anteriormente liquidado não anula automaticamente a anterior liquidação, por tal não resultar do artigo 95º acima citado. É que, a ser assim, bastaria a um contribuinte não apresentar a sua declaração de rendimentos em tempo; depois apresentava uma declaração de rendimentos em que não declarasse rendimentos e a liquidação oficiosa ficaria pura e simplesmente anulada.

Ora, não é esse o sentido da lei. A liquidação só poderá ser anulada oficiosamente, nos casos previstos na lei, pela Administração Tributária na sequência de decisão proferida em reclamação graciosa ou por determinação de Tribunal Tributário.

Temos então que, no caso concreto, a anulação da liquidação só poderia ter lugar - em face do fundamento invocado pela recorrente - inexistência de facto tributário - mediante decisão proferida em procedimento de reclamação graciosa ou de impugnação judicial. …”.

Ora, lendo a petição inicial, crê-se que resulta evidente que este é o caminho trilhado pela ora Recorrida quando se propõe discutir a inexistência de facto tributário, alegando no seu art. 12º que “por via da impugnação judicial, pode a liquidação oficiosa ser anulada desde que o contribuinte demonstre que a matéria colectável que resulta da liquidação por si apresentada é real e reflecte o imposto efectivamente devido”.

Diga-se ainda que neste âmbito, o Ac. do T.C.A. Sul de 25-09-2007, Proc. nº 01911/07, www.dgsi.pt, aponta que “efectuada liquidação oficiosa em sede de IRC, ao abrigo do artº 83º, nº 1, alínea b) do CIRC, esta poderá ser corrigida, se for caso disso (nº 10 do mesmo artigo), o que poderá suceder, nomeadamente, se o contribuinte apresentar posteriormente a declaração até então omitida e a Administração Tributária aceitar os rendimentos aí declarados, ou outros que possam vir a ser apurados, mas diferentes dos considerados na liquidação oficiosa”. […]

Tendo em atenção o documento de fls. 33 dos autos que correspondente à liquidação emitida na sequência da declaração apresentada pela ora Recorrida, temos que a mesma apresenta para todos os elementos indicados os valores descritos reduzidos a zeros, o que significa que está em causa a emissão de uma liquidação que deriva da entrada no sistema da declaração apresentada pela Recorrida, que se reconduz a uma autoliquidação que, em função dos seus termos, deu origem a uma liquidação como a descrita.

Por outro lado, é sabido que a AT não anulou a liquidação oficiosa em causa, antes, ao invés, indeferiu a reclamação graciosa contra essa liquidação (pontos 1 e 5 do probatório), sendo que, como emerge expressa e inequivocamente da fundamentação do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, “a Declaração oficiosa mantém-se válida, não relevando, para o efeito, a entrega de uma declaração, por parte do reclamante, em data posterior a data em que aquela foi efectuada” (fls. 16, in fine do PAT). Assim sendo, não se pode acompanhar o raciocínio da decisão recorrida quando entende que a “Administração Fiscal, não colocou em causa os elementos mencionados nas referidas declarações, confirmando até os mesmos, na medida em que em 13.12.2002 emite uma nota de liquidação com a importância a pagar de zero) conforme fls. 6 do PA e que aqui se dá por reproduzida.”.

Como se viu, a leitura da decisão recorrida não se afigura como a melhor, tanto mais que, como se disse, efectuada oficiosamente uma liquidação, esta só poderá ser anulada, nomeadamente por inexistência de facto tributário ou excesso de liquidação se o contribuinte reclamar ou impugnar tal liquidação e demonstrando que “in casu” não existiu facto tributário ou se verificou excesso de liquidação.

(…)

No entanto, tendo presente o exposto em sede de petição inicial, é ponto assente que a Impugnante intentou fazer prova dos prejuízos fiscais patenteados na Declaração de IRC de 1998 apenas em função da própria Declaração apresentada após a notificação da liquidação oficiosa feita pela AT, o que vale por dizer que a Impugnante dispensou-se da exibição de prova, nomeadamente documental, que atestasse a veracidade dessa Declaração e, daí, infirmasse a factualidade e, ademais, o cálculo apurado pela AT, no estrito cumprimento da lei, nos termos dos então vigentes artigos 16º, 82º al. b) e 83º nº 1 al. c), todos do CIRC.

E tem de dizer-se que tal prova não seria difícil.

Com efeito, e na medida em que lhe cabia demonstrar a ocorrência dos declarados prejuízos fiscais, tal deveria corresponder à simples análise dos elementos da sua escrita, da sua contabilidade que, de forma natural, deveriam evidenciar os termos da declaração apresentada pela ora Recorrida, situação que não se verificou nos autos, limitando-se a ora Recorrida a juntar o contrato de sociedade, a Dec. Mod. 22 apresentada e um contrato-promessa de arrendamento, matéria manifestamente insuficiente para evidenciar aquilo que está em causa (…).

Sendo assim, como é, não pode manter-se a decisão recorrida no sentido da anulação da liquidação impugnada com base na declaração entretanto apresentada, pois que no âmbito da presente impugnação a aqui Recorrida não logrou demonstrar documentalmente, tal como se lhe impunha, que os elementos constantes da aludida declaração, maxime, com referência aos invocados prejuízos fiscais.».

Neste recurso, a Recorrente insiste que a declaração de rendimentos que apresentou, ainda que para além do prazo legal, beneficia da presunção da veracidade, sustentando que nem a Administração Tributária questionou os elementos constantes dessa declaração, nem a decisão da reclamação graciosa que deduziu contra essa liquidação oficiosa é susceptível de inverter o ónus da prova, nem seria razoável ou lícito exigir ao impugnante que fizesse prova documental de factos ocorridos há 14 anos. É neste contexto que defende que o acórdão recorrido errou na interpretação e aplicação da lei e violou a disciplina legal contida nos artigos 75º, nº 1, 55º e 58º, da LGT, e 123º, nº 4, do CIRC.

Razão por que pretende que, neste recurso excepcional de revista, seja reapreciada a questão da validade e valor probatório da declaração de rendimentos relativa ao exercício de 1998, que apresentou fora do prazo legal (já depois de ter ocorrido liquidação oficiosa), advogando que a matéria assume relevância jurídica e social pela sua utilidade jurídica, que extravasa os limites da situação singular face à possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros, e face à necessidade de obter uma melhor aplicação e uniformização do direito.

Desde logo, há que dizer que toda a tese da Recorrente gira em torno de um quadro factual que, tendo sido equacionado e acolhido na 1ª instância, foi expressamente arredado pelo TCAN em sede de recurso.

Com efeito, da análise da factualidade vertida nos autos o tribunal de 1ª instância concluíra que a Administração Tributária não pusera em causa, e confirmara mesmo, o conteúdo da declaração de substituição apresentada pela contribuinte, mas o TCAN, reapreciando os mesmos factos, afastou inequivocamente essa interpretação, concluindo que a Administração Tributária não aceitara tal declaração e mantivera incólume a declaração oficiosa. E foi sobre esta base factual que o TCAN emitiu pronúncia de direito.

Torna-se, pois, claro que o julgamento assentou em pressupostos diversos daqueles que a Recorrente equaciona neste recurso. E tal significa que o acórdão do TCAN não incidiu sobre a questão que a Recorrente coloca neste recurso.

Ora, como se viu, o recurso de revista excepcional tem por objecto as decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo, o que implica, obviamente, uma prévia decisão sobre a questão que se controverte.

E não sendo este o caso, não pode ser admitida a revista.

De resto, mesmo que se entendesse que a Recorrente intentava dirigir o recurso contra o julgamento da matéria de facto, sempre o presente recurso seria inadmissível. É que, como decorre do que dispõem os nºs. 3 e 4 do artigo 150º do CPTA, o recurso de revista excepcional é destinado ao controlo exclusivo da aplicação do direito, não comportando o controlo do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos, mesmo que se situe na distribuição do ónus da prova e nas regras que sobre essa distribuição resultam da Lei Geral Tributária e do Código Civil, excepto quando esteja em causa uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova, ou que fixe a força de determinado meio de prova, e a situação vertente não se enquadra nesta ressalva.

Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, torna-se evidente que este recurso excepcional de revista não pode ser admitido.

3. Termos em que acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo que integram a formação referida no nº 5 do artigo 150º do CPTA, em não admitir a revista.
Custas pela Recorrente.


Lisboa, 17 de Junho de 2015. – Dulce Neto (relatora) – Casimiro GonçalvesIsabel Marques da Silva.