Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01190/09
Data do Acordão:03/03/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANTÓNIO CALHAU
Descritores:IMPOSTO DE SELO
USUCAPIÃO
VALOR PATRIMONIAL
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
Sumário:I – Não correspondendo à realidade o documentado numa escritura de justificação notarial de usucapião, a liquidação efectuada pela AT com base nos termos constantes dessa escritura está ferida de ilegalidade decorrente de posterior constatação de erro nos seus pressupostos de facto.
II – Pelo imposto de selo tributam-se, inter alia, os actos de aquisição de imóveis, incluindo o acto de aquisição por meio de usucapião.
III – Tendo sido adquirido por usucapião apenas o prédio rústico onde foi edificado um prédio urbano, só o valor daquele deve ser considerado para efeitos de incidência de imposto de selo.
Nº Convencional:JSTA00066326
Nº do Documento:SA22010030301190
Data de Entrada:12/03/2009
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF BRAGA PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR FISC - SELO.
Legislação Nacional:CIS03 ART1 ART2 ART3 ART5 ART13.
DL 287/2003 DE 2003/11/12 ART31 N3.
LGT98 ART11 N3.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC922/09 DE 2010/01/27.; AC STA PROC1124/09 DE 2010/01/13.
Referência a Doutrina:CARDOSO DA COSTA CURSO DE DIREITO FISCAL 1972 PAG266.
ALBERTO XAVIER CONCEITO E NATUREZA DO ACTO TRIBUTÁRIO PAG263.
CASTANHEIRA NEVES QUESTÃO DE FACTO QUESTÃO DE DIREITO PAG264.
BAPTISTA MACHADO INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO E AO DISCURSO LEGITIMADOR 1991 PAG187.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I – A representante da Fazenda Pública, não se conformando com a decisão do Mmo. Juiz do TAF de Braga que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A…, residente em …, e, consequentemente, anulou a liquidação de imposto de selo n.º 421440, no montante de € 2.776,00, dela vem interpor recurso para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões:
1.ª- A douta decisão em recurso violou o artigo 92.º, n.º 1, e artigo 98.º, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do CN (Código do Notariado).
2.ª- Violou, ainda, o artigo 1.º, n.º 1 e n.º 2, o artigo 5.º, n.º 1, alínea r) e o artigo 13.º, todos do CIS (Código do Imposto Selo).
3.ª- Sem inscrição matricial de prédio (rústico ou urbano) e, em consequência, de direitos aí inscritos, não é legalmente admissível, por falta de objecto, escritura pública de justificação, e, por isso, escritura pública pela qual se corrige ou se rectifica essa escritura pública de justificação.
4.ª- Da escritura pública de rectificação celebrada em 10 de Outubro de 2007 não consta a inscrição matricial (artigo da matriz), bem como, certidão de teor do artigo da matriz de prédio rústico pelo que não existe escritura pública de rectificação válida.
5.ª- Sem escritura válida por ter sido celebrada contra legem não existe documento a corrigir a escritura pública celebrada em 22 de Março de 2006 pelo que apenas esta pode ser considerada.
6.ª- Perante a escritura pública de justificação, celebrada em 22 de Março de 2006, relativa a prédio urbano, o IS nasce com a celebração dessa escritura, sendo calculado sobre o valor desse prédio determinado pelas regras do CIMI (Código do Imposto Municipal sobre Imóveis).
7.ª- Com a reforma do património pelo Decreto-Lei 287/03, de 12 de Novembro, (IMI, IMT e IS) foi integrado no âmbito da incidência objectiva do IS (Imposto Selo), como transmissão gratuita, a aquisição por via da usucapião o direito de propriedade ou qualquer outro direito real de gozo sobre imóvel.
8.ª- Tratou-se de mera inclusão numa categoria própria do direito fiscal uma vez que a usucapião como aquisição originária do direito não assenta numa transmissão de direito – muito menos gratuita ou onerosa.
9.ª- O legislador do CIS ficcionou a aquisição por usucapião como transmissão gratuita pois inclui-a nessa categoria – cfr. Acórdão do TCA (Tribunal Central Administrativo Sul), de 23.06.2009.
10.ª- Ao incluir a usucapião numa categoria própria do direito fiscal, o imposto nasce com a celebração da escritura de justificação, sendo calculado sobre o valor do prédio determinado pela aplicação das regras do CIMI.
Contra-alegando, veio a impugnante dizer que:
A- O Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” julgou a presente impugnação procedente e consequentemente anulou a decisão que indeferiu a reclamação graciosa apresentada pela recorrida.
B- O referido prédio urbano é um investimento patrimonial da recorrida e seu marido, construído a expensas dos mesmos, não podendo ser considerado uma transmissão gratuita, tendo sido apenas o prédio rústico verbalmente transmitido.
C- Assim o Imposto de Selo devido deverá apenas incidir sobre o prédio rústico, pois só este foi adquirido originariamente.
D- Carecendo, por isso, a construção da habitação num terreno usucapiado originariamente adquirido de qualquer incidência normativa.
E- A aquisição por usucapião para efeitos fiscais só ocorreu no momento em que o documento que a titula (Escritura de Justificação e Rectificação) foi celebrado, e apenas nessa data se tornou definitiva, como decorre do disposto no artigo n.º 5, al. r) do CIS.
F- Ora o valor do imóvel é o valor patrimonial que consta da matriz no momento da transmissão.
G- O Imposto de Selo devido deverá recair sobre o valor patrimonial de um prédio rústico com as características (área, localização) do justificado.
H- O Imposto Selo deverá ser calculado, após obtenção do valor patrimonial, segundo as regras estabelecidas no CIMI nos artigos 17.º e seguintes.
O Exmo. Magistrado do MP junto deste Tribunal emite parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente, revogando-se o julgado recorrido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Mostram-se provados os seguintes factos:
a) No dia 22 de Março de 2006, foi celebrada no Cartório Notarial de …, em …., a escritura de justificação cujo teor consta de fls. 20 a 25 e aqui se dá por reproduzido.
b) Nessa escritura disse a ora impugnante, através do seu procurador, que, juntamente com o seu marido, é dona e legítima possuidora do prédio urbano composto de casa de habitação, situado no lugar da …, …, …, inscrito na matriz predial sob o artigo 287.
c) Mais declarou ter adquirido tal prédio por compra meramente verbal que fizeram a B… e mulher C….
d) E ainda que está na detenção e fruição do prédio há mais de 20 anos, mantendo uma posse pacífica, pública e contínua que lhes faculta a aquisição do prédio por usucapião.
e) Por escritura pública celebrada em 10 de Outubro de 2007, cujo teor consta de fls. 29 a 31, a impugnante, através do seu procurador, declarou rectificar a escritura celebrada em 22 de Março de 2006, no sentido de que a impugnante adquiriu o terreno onde implantaram o prédio referido na alínea b).
f) Em 8 de Junho de 2006 foi efectuada a declaração modelo 1 do IMI, tendo o prédio referido na alínea b) sido avaliado e inscrito na matriz predial com o valor de 55.520,00 euros.
g) Em 4 de Setembro de 2007, a administração tributária procedeu à liquidação do imposto do selo com o n.º 421440 relativo à transmissão a que se reporta a escritura pública atrás referida na alínea a), no montante de 2.776,00 euros.
h) O prazo para pagamento voluntário da quantia liquidada e a que se refere a alínea anterior terminou em 30 de Novembro de 2007.
i) Em 23 de Novembro de 2007, a impugnante apresentou reclamação graciosa contra a referida liquidação.
j) Essa reclamação graciosa foi indeferida por despacho notificado à impugnante em 1 de Julho de 2008.
k) A petição inicial da presente impugnação judicial foi apresentada em 9 de Julho de 2008.
III – Vem o presente recurso interposto da sentença do Mmo. Juiz do TAF de Braga que julgou procedente a impugnação judicial deduzida pela ora recorrida contra a liquidação de imposto de selo devido a aquisição por usucapião de um prédio urbano.
Para tanto entendeu o Mmo. Juiz a quo que embora o imposto de selo incida sobre as transmissões gratuitas de imóveis, incluindo as que têm lugar através da aquisição por usucapião, uma vez que o prédio urbano aqui em causa era integrado por edifício construído pela impugnante e seu marido, através do investimento de activos patrimoniais seus, em terreno que estava na sua posse e que haviam adquirido por usucapião, não podia considerar-se que aquele prédio urbano lhe tivesse sido transmitido e muito menos que a ter ocorrido transmissão ela tenha sido gratuita, pelo que seria ilegal a liquidação impugnada que considerou verificada tal transmissão e que incidiu sobre a mesma tomando em linha de conta o valor do edifício que integra o prédio urbano.
Sobre esta questão se pronunciou já este Tribunal no sentido de que, tendo sido adquirido por usucapião apenas o prédio rústico onde foi erguida uma construção, só o valor daquele deve ser considerado para efeitos de incidência de imposto de selo (v., entre outros, os acórdãos de 13/1/10, 20/1/10 e 27/1/10, proferidos nos recursos n.ºs 1124/09, 773/09 e 922/09, respectivamente).
Vejamos. Revogado que foi, a partir de 1/1/2004, o Código da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações pelo DL 287/2003, de 12/11, as transmissões gratuitas de imóveis passaram a ser reguladas pelo Código do Imposto de Selo, cujo artigo 1.º, no que aqui interessa, dispõe que o imposto de selo incide sobre todos os actos, contratos, documentos, títulos, livros, papéis e outros factos previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens.
Para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral, são consideradas transmissões gratuitas, designadamente, as que tenham por objecto direito de propriedade ou figuras parcelares desse direito sobre bens imóveis, incluindo a aquisição por usucapião, sendo sujeitos passivos do imposto neste caso os respectivos beneficiários [artigos 1.º, n.º 3, alínea a) e 2.º, n.º 2, alínea b) do CIS].
Constituindo o imposto encargo do adquirente dos bens, nos termos do preceituado no artigo 3.º, n.ºs 1 e 3, alínea a) do mesmo CIS.
Por seu turno, no que toca ao nascimento da obrigação tributária, determina a alínea r) do artigo 5.º do CIS que esta se considera constituída nas aquisições por usucapião na data em que for celebrada a escritura de justificação notarial.
Sendo que, de acordo com o que dispõe o n.º 1 do artigo 13.º do CIS, o valor dos imóveis a atender nas transmissões a título gratuito é o valor patrimonial tributário constante da matriz nos termos do CIMI ou o determinado por avaliação, quanto aos prédios omissos ou inscritos sem valor patrimonial.
Por último, estabelece o artigo 11.º, n.º 3 da LGT que “deve atender-se à substância económica dos factos tributários”.
É no confronto com este quadro normativo que importa apurar se a liquidação impugnada se encontra ferida de ilegalidade.
Ora, de acordo com o probatório fixado, o que resulta é que no caso em apreço a AF tributou o prédio urbano integrado por edifício construído pelos impugnantes em terreno que estava na sua posse e que adquiriram por usucapião, considerando ter o mesmo sido-lhes transmitido, quando não foi isso que sucedeu.
O que lhes foi efectivamente transmitido por usucapião foi, sim, um prédio rústico sobre o qual os mesmos edificaram aquele prédio urbano.
E, assim sendo, como se acentua no acórdão desta Secção de 21/10/09, no recurso 652/09, «O que é certo, no entanto, é que o acto tributário tem que ter por base uma situação de facto ou de direito, concreta, prevista abstracta e tipicamente na lei fiscal como geradora do direito ao imposto. Tal base é, pois, o pressuposto de facto ou o facto gerador da imposição – cf. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 1972, p. 266.
No Direito Fiscal vigora o princípio da tipicidade, que se traduz no brocardo latino nullum tributum sine lege, ou nullum vectigal sine lege, paralelo àquele outro, vigente no Direito Penal, nullum crimen sine lege. Assim como não há crime que não corresponda a uma definição legal, a um tipo legal, também não haverá imposto que não corresponda a uma definição legal, a um tipo legal. Nisto consiste a tipicidade do imposto. O facto tributável, com ser um facto típico, só existe como tal, desde que na realidade se verifiquem todos os pressupostos legalmente previstos, que, por esta nova óptica, se convertem em elementos do próprio facto, bastando a não verificação de um deles para que não haja, pela ausência de tipicidade, lugar à tributação. No Direito Tributário, a tipologia é dominada não só por um princípio de taxatividade como também por um princípio de exclusivismo. Opera-se o fenómeno que a lógica jurídica designa por implicação intensiva. Verifica-se a implicação intensiva sempre que os elementos enunciados no pressuposto não são apenas suficientes, mas ainda necessários para a verificação da consequência: se esses elementos se verificarem, segue-se a consequência, mas esta só se segue se eles se verificarem – cf., sobre o princípio da tipicidade em Direito Fiscal, Alberto Pinheiro Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, p. 263 e ss. Sobre o conceito de "implicação intensiva", cf. Castanheira Neves, Questão-de-facto-Questão-de-direito, p. 264, e ainda J. Baptista Machado, Introdução ao Estudo do Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1991, 5.ª reimpressão, p. 187.
A tributação resulta, assim, da verificação concreta de todos os pressupostos tributários, como tais previstos e descritos, abstractamente, na lei de imposto.».
Por outro lado, no caso em apreço, é patente que não corresponde à realidade o que vem documentado na escritura de justificação notarial de 22/03/06 [alínea a) do probatório] ou seja, a aquisição por usucapião de um prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo 287, da freguesia de ....
Na verdade, como se verifica da alínea e) do probatório o que foi adquirido por usucapião foi antes um prédio rústico sobre o qual veio a ser construído a expensas do ora recorrente um prédio urbano e tanto assim que, em momento posterior, veio a ser celebrada nesse sentido uma escritura de rectificação da primitiva.
Sendo assim, e tendo em conta que deverá atender-se à substância económica dos factos tributários (artigo 11.º, n.º 3 da LGT), a liquidação efectuada pela Administração Tributária mostra-se ferida de uma ilegalidade superveniente em decorrência de posterior constatação de erro nos pressupostos de facto em que a mesma assentou (v. neste mesmo sentido o acórdão de 27/1/10, proferido no recurso n.º 922/09).
Não tendo, por isso, qualquer relevância para o caso a alegada invalidade da escritura pública de rectificação efectuada em 10/10/2007.
Neste contexto, como vem entendendo a mais recente jurisprudência deste Tribunal, o acto de aquisição por usucapião de imóvel objecto dessa aquisição é, de facto, incidente de tributação em imposto de selo, não o sendo, porém, já o acto de aquisição de benfeitorias entretanto realizadas no mesmo imóvel pelo sujeito beneficiário da usucapião.
E como só o prédio rústico foi, no caso em apreço, objecto de tal forma de aquisição, só o valor deste deve ser considerado na determinação do valor a atender para efeitos de imposto de selo.
A decisão recorrida que assim entendeu deve, por isso, ser confirmada.
IV – Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do STA em negar provimento ao recurso, confirmando, assim, a decisão recorrida, e anulando-se, em consequência, a liquidação impugnada na parte respeitante ao valor das benfeitorias.
Custas pela Fazenda Pública, na 1.ª instância e neste STA, fixando-se a procuradoria em 1/8.
Lisboa, 3 de Março de 2010. – António Calhau (relator) – Miranda de Pacheco – Pimenta do Vale.