Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:08/21.2BALSB
Data do Acordão:06/29/2022
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:GUSTAVO LOPES COURINHA
Descritores:ANULAÇÃO PARCIAL
ACTO DIVISÍVEL
Sumário:As retenções liberatórias na fonte relativas a rendimentos de capitais auferidos por não residentes, declaradas ilegais por desconformidade ao Direito Europeu, por não incidirem sobre os rendimentos líquidos, mas apenas sobre os rendimentos brutos, só podem ser objeto de anulação integral.
Nº Convencional:JSTA000P29661
Nº do Documento:SAP2022062908/21
Data de Entrada:01/20/2021
Recorrente:Z.....
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:MAIORIA COM 3 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


I – RELATÓRIO

I.1 Alegações
I. Z….., inconformada com a decisão arbitral proferida no processo nº 744/2019-T do CAAD, datada de 9 de dezembro de 2020 que correu termos no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), julgou parcialmente procedente o pedido de pronuncia arbitral quanto à anulação dos actos tributários de retenção na fonte indevida de IRC, que foram efectuados a título definitivo, sobre juros auferidos de fonte portuguesa no exercício de 2018, no valor global de € 1.555.310,41, vem dela apresentar Recurso para Uniformização de Jurisprudência, para o Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no artigo 25.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária – RJAT, doravante), na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro, por considerar que a referida decisão arbitral recorrida colide com a decisão arbitral proferida no processo nº 535/2019-T do CAAD, – datada de 16 de abril de 2020, a qual transitou em julgado.

II. Por despacho a fls. 796 do SITAF, o Ex.º Relator junto deste Supremo Tribunal veio admitir o recurso e ordenou a notificação da recorrida para contra alegar e do Ministério Público para emissão de Parecer.

III. A recorrente, veio apresentar alegações de recurso a fls. 6 a 34 do SITAF, no sentido de demonstrar a alegada oposição de julgados, formulando as seguintes conclusões:
A) A decisão arbitral recorrida (Processo 744/2019-T) incorreu em erro de julgamento, porquanto decidiu o tribunal arbitral: “a) julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e, em consequência, anular parcialmente os actos tributários impugnados nos autos na parte em que sujeitaram a tributação o rendimento bruto obtido pelo Requerente em território nacional, e não o seu rendimento líquido, ou seja, deduzido das despesas directamente relacionadas com a sua actividade neste país e
b) condenou a Autoridade Tributária na devolução do imposto indevidamente pago por força dos actos parcialmente anulados, acrescido de juros indemnizatórios nos termos acima determinados”;
B) Nos termos da referida decisão, o Tribunal entendeu que deveria anular parcialmente os atos tributários, na medida em que dos mesmos resulta a tributação do rendimento bruto obtido pela Requerente, em território nacional, e não o seu rendimento líquido, ou seja, deduzido das despesas diretamente relacionadas com a sua atividade neste país;
C) Ao contrário do que decidiu a decisão Arbitral fundamento (Processo n.º 535/2019) na qual o Tribunal Arbitral julgou: “procedente o pedido arbitral e anular os actos tributários de retenção na fonte impugnados, bem como a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa contra ele deduzida; Condenar a Autoridade Tributaria no pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até a data do processamento da respectiva nota de crédito”;
D) Nos termos desta decisão e conforme resulta do Acórdão do TJUE, no âmbito do Processo n.º C-18/15, pode ser exigido ao contribuinte não residente a prova das despesas relacionadas com os rendimentos obtidos no território português, no pressuposto de que essas despesas são dedutíveis em igualdade de circunstâncias com o regime aplicável aos residentes.
E) No entanto, como se reconhece na jurisprudência do STA (de 8 e 22 de março de 2017), esse é um mecanismo que teria de ser criado por via legislativa, de forma a ser acionado perante a administração tributária em termos de permitir a dedução das despesas a posteriori e era ainda inexistente à data dos factos, não competindo aos tribunais a indagação oficiosa, no âmbito do processo jurisdicional, das despesas passíveis de dedução para efeito do apuramento do imposto devido, visto que essa é uma atividade que incumbe primariamente à Administração no exercício da sua função administrativa;
F) Verifica-se uma evidente contradição quanto à mesma questão fundamental de Direito;
G) Para que se tenha por verificada a oposição de acórdãos, é necessário que:
- As situações de facto sejam substancialmente idênticas;
- Haja identidade na questão fundamental de Direito;
- Se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta; e,
- A oposição deverá decorrer de decisões expressas e não apenas implícitas (cfr., entre outros, o Acórdão do STA, de 3 de junho de 2015, processo 0793/14);
H) As presentes alegações demonstram que, no caso em apreço, se encontram reunidos os referidos requisitos para que se tenha por verificada a alegada oposição de acórdãos;
I) Para que se considere que há oposição de acórdãos, entende a jurisprudência do STA que os acórdãos em confronto versem sobre situações fácticas substancialmente idênticas e que se pronunciem sobre a mesma questão fundamental de direito. Ou seja, importa que as soluções opostas tenham sido perfilhadas relativamente ao mesmo fundamento de direito, o se verificou manifestamente;
J) Entre a Decisão arbitral recorrida e a Decisão Arbitral fundamento há uma identidade de situações de facto, na medida que em ambos os casos, a factualidade consignada é a seguinte:
- A parte envolvida é a mesma: a Recorrente;
- No decurso da sua atividade, e em sede do processo de reestruturação do Grupo Z….., a Recorrente adquiriu, no dia 13 de maio de 2016, um portefólio de créditos ao Y….. AG;
- Neste âmbito, a Recorrente passou a auferir juros de fonte portuguesa subjacentes a esse portefólio;
- Sobre os referidos juros, a Recorrente sofreu retenção na fonte, a título definitivo, ao abrigo do regime legal da substituição tributária; - A única diferença dizia respeito aos anos fiscais envolvidos (exercícios de 2016 e 2017 na Decisão Arbitral Fundamento e 2018 na Decisão Arbitral recorrida);
K) No que diz respeito à questão fundamental de Direito, estava em causa em ambos os processos, a decisão sobre se os atos de retenção na fonte se deveriam reputar de ilegais, pela sua desconformidade com o Direito da União Europeia. Em análise pelo Tribunal estava, designadamente, o tratamento diferente dado pelo IRC relativamente aos juros auferidos por entidades residentes ou por entidades não residentes impondo uma carga fiscal mais elevada para as instituições financeiras não residentes;
L) Entende a Recorrente que na senda do que resulta do Acórdão do STA acima mencionado: “encontra-se decisivamente inquinada a quantificação da matéria tributável que suporta os actos de retenção de imposto na fonte. Quantificação que exige a prática de novo acto tributário, sendo impraticável a reforma dos actos impugnados porque o tribunal não pode substituir-se à administração na fixação de outra matéria tributável, sob pena de estar a invadir o núcleo essencial da função administrativa-tributária, substituindo-se à administração na tarefa de determinar e fixar as despesas que as entidades financeiras não-residentes podem deduzir aos rendimentos auferidos em Portugal por forma a tornar a retenção na fonte compatível com o artigo 49º do TCE”;
M) A tributação das entidades residentes sobre os juros líquidos e das entidades não residentes sobre os juros ilíquidos importa um tratamento discriminatório, vedado pelas liberdades de prestação de serviços e de circulação de capitais, previstas nos artigos 56.º e 63.º do TFUE, o qual resulta num vício de inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 8.º da CRP;
N) Nos termos de jurisprudência sobre um caso análogo ao da Recorrente, o STA e o TJUE, no âmbito do processo n.º 0298/13 e do processo C-18/15, já se pronunciaram sobre esta temática;
O) O TJUE, no referido processo C-18/15, pronunciou-se no sentido de que a liberdade de prestação de serviços se opõe a uma legislação nacional como a portuguesa, que tributa as instituições financeiras não residentes pelos rendimentos obtidos em Portugal, sem lhes dar a possibilidade de deduzir as despesas profissionais diretamente relacionadas com a atividade em questão, ao passo que essa possibilidade é reconhecida às instituições financeiras residentes;
P) Conforme resulta do Acórdão do STA supramencionado: “a sanção do primado do Direito Comunitário é a inaplicabilidade da norma estadual em questão, pois «todo o juiz nacional, demandado no quadro da sua competência, tem a obrigação de aplicar integralmente o Direito Comunitário e de proteger os direitos que este confere aos particulares, deixando inaplicável toda a disposição eventualmente contrária da lei nacional, seja anterior ou posterior à regra comunitária. (...) e impedir a formação válida de novos atos legislativos nacionais na medida da sua incompatibilidade com o direito comunitário”;
Q) No âmbito deste processo, o STA veio determinar: “ (i) a anulação dos atos de retenção na fonte sofridos pela instituição financeira não residente ao abrigo das disposições do Código do IRC; (ii) a reconstituição da situação jurídica que existiria no caso de não terem sido praticados esses atos, ou seja, a restituição das quantias indevidamente retidas à referida instituição financeira não residente e o correspondente pagamento de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 100.º e 43.º da LGT, respetivamente”;
R) Conforme depois é clarificado pelo Acórdão do STA de 22 de março de 2017 (Processo n.º 0165/13): “Não constituindo os tribunais órgãos com competência para a tributação, não podem eles assumir a função de mecanismo ou aparelho primário de indagação oficiosa de eventuais despesas dedutíveis ou a função de recepção e selecção das despesas que as entidades não-residentes queiram apresentar e deduzir de forma a serem tributadas pelo rendimento líquido, sob pena de afronta do núcleo essencial da função administrativa-tributária”;
S) Este Acórdão, salientando a decisão no âmbito do Processo n.º 106/77 (“Processo Simmenthal”), recorda que o TJUE veio assinalar que a sanção do primado do direito comunitário é a “a inaplicabilidade da norma estadual em questão, pois «todo o juiz nacional, demandado no quadro da sua competência, tem a obrigação de aplicar integralmente o Direito Comunitário e de proteger os direitos que este confere aos particulares, deixando inaplicável toda a disposição eventualmente contrária da lei nacional, seja anterior ou posterior à regra comunitária. (...) e impedir a formação válida de novos atos legislativos nacionais» na medida da sua incompatibilidade com o direito comunitário”;
T) Ao invés do entendimento da decisão arbitral recorrida, para que se dê a violação do direito comunitário e consequentemente do disposto no art.º 8.º nº 4 da CRP, não é necessário que se demonstre que a base tributável das sociedades financeiras residentes acaba por ficar reduzida, pela dedução das despesas que suportam, e que a mesma é inferior ao que é suportado pelas sociedades não residentes. Esta violação é clara e objetiva e apenas com a anulação total do ato tributário se pode repor a legalidade;
U) É assim manifesto que estamos perante um tratamento desigual e discriminatório, vedado pelas liberdades fundamentais que enformam o ordenamento jurídico da União Europeia, designadamente à luz da liberdade da prestação de serviços e da liberdade de circulação de capitais, com previsão legal nos artigos 56.º e 63.º do TFUE, o qual resulta num vício de inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 8.º da CRP; V) Sendo ilegais os normativos de Direito interno nos quais os atos tributários de retenção na fonte aqui em causa se baseiam, por violadores da constituição, face ao primado do direito comunitário, resta apenas a anulação integral dos referidos atos, não podendo sequer praticar-se novos atos de liquidação considerando as efetivas despesas incorridas, na medida em que os normativos legais de Direito interno assim não o permitem;
W) A jurisprudência acima citada, é inteiramente transponível para o processo dos autos, pelo que o presente recurso deve merecer provimento, determinando-se a revogação da decisão arbitral recorrida, por forma que seja determinada a anulação total dos atos impugnados;
X) Face ao exposto, o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento e encontra-se em manifesta oposição quanto à mesma questão fundamental de Direito com a jurisprudência firmada na Decisão fundamento, devendo ser substituído por novo Acórdão que julgue totalmente procedente o pedido arbitral.

I.2 – Contra-alegações
Não foram produzidas contra-alegações no âmbito da instância.

I.3 – Parecer do Ministério Público,
Foi junto parecer a fls. 801 a 806 do SITAF
“I. DELIMITAÇÃO DO RECURSO
1. O presente recurso de uniformização de jurisprudência vem interposto do acórdão arbitral proferido no processo nº 744/2019-T do CAAD, ao abrigo do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 25º, nº2 e 3 do RJAT, e do artigo 152º do CPTA, e com o fundamento de aquele acórdão se encontrar em oposição com o acórdão do CAAD proferido no processo nº 535/2019, na apreciação que cada uma das decisões fez sobre as consequências da ilegalidade dos atos tributários praticados ao abrigo do disposto no artigo 87º, nº4, do CIRC (1 Artigo 87.º Taxas
4 - Tratando-se de sujeitos passivos que exerçam, diretamente e a título principal, uma atividade económica de….)
1.1 Alega a Recorrente que a decisão recorrida está em frontal oposição a uma outra, proferida no processo n.º 535/2019-T, quanto à mesma questão fundamental de direito, porquanto no primeiro caso o tribunal arbitral considerou que em razão da sua ilegalidade, por violação do direito comunitário, havia lugar à anulação parcial do ato tributário, enquanto no segundo caso o tribunal arbitral considerou que havia lugar à anulação integral do ato tributário.
1.2 Considera a Recorrente que em ambos os casos estamos perante situações de facto similares, com a única diferença de que os atos tributários respeitam a exercícios diferentes.
1.3 Mais conclui que «sendo ilegais os normativos de Direito Interno nos quais o ato tributário de retenção na fonte aqui em causa se baseiam, por violadores da constituição, face ao primado do direito comunitário, resta apenas a anulação integral dos referidos atos, não podendo sequer praticar-se novos atos de liquidação, considerando as efetivas despesas incorridas, na medida em que os normativos legais de Direito Interno assim não o permitem».
2. Como é entendimento pacífico na jurisprudência do STA, a admissibilidade dos recursos por oposição de acórdãos, tendo em conta o regime previsto nos artigos 27.º, alínea b) do ETAF, 284.º do CPPT e 152.º do CPTA, depende de existir contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão invocado como fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito e que não ocorra a situação de a decisão impugnada estar em sintonia com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.
2.1 No que ao primeiro requisito respeita, como tem sido inúmeras vezes explicitado pelo Pleno desta Secção relativamente à caracterização da questão fundamental sobre a qual deve existir contradição de julgados, devem adoptar-se os critérios já firmados no domínio do ETAF de 1984 e da LPTA, para detectar a existência de uma contradição, quais sejam:
- identidade da questão de direito sobre que recaíram os acórdãos em confronto, que supõe estar-se perante uma situação de facto substancialmente idêntica;
- que não tenha havido alteração substancial na regulamentação jurídica;
- que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta;
- a oposição deverá decorrer de decisões expressas, não bastando a pronúncia implícita ou a mera consideração colateral, tecida no âmbito da apreciação de questão distinta (- cfr. Jorge de Sousa e Simas Santos, Recursos Jurisdicionais em Contencioso Fiscal, p. 424, e acórdãos do Pleno da seção de contencioso tributário do STA, de 15/9/2010, recs. nºs. 344/2009 e 881/2009, e de 26 de Setembro de 2007, 14 de Julho de 2008 e de 6 de Maio de 2009, recursos números 452/07, 616/07 e 617/08, respectivamente).
2.2 Delimitação da situação configurada em cada um dos arestos em confronto.
2.2.1 Em ambas as decisões arbitrais em confronto foram analisadas situações em que estava em causa a ilegalidade da tributação de rendimentos de capitais decorrentes de juros obtidos com investimentos financeiros por parte do mesmo sujeito passivo não residente e objeto de retenção na fonte, ao abrigo do disposto nos artigos 94.º, n.º 5 e 87.º, n.º 4, ambos do Código do IRC. Ou seja, em ambos os casos estava em causa «a questão de saber se as instituições financeiras não residentes e sem estabelecimento estável no território português podem ser tributadas pelos rendimentos de capitais obtidos em Portugal através de retenção na fonte, a título definitivo, nos termos dos artigos 87.º, n.º 4, e 94.º, n.º 3, alínea b), e n.º 5, do Código do IRC, sem a possibilidade de deduzirem os encargos directamente relacionadas com a sua actividade, ao contrário do que sucede com as entidades residentes relativamente às quais a tributação incide sobre o lucro tributável».
2.2.2 Tendo em ambos os casos os tribunais concluído pela ilegalidade dos atos tributários decorrente do facto de o sujeito passivo ter sido «… alvo de um tratamento discriminatório relativamente às entidades residentes em território português, em violação do disposto nos artigos 56.º e 63.º, do TFUE, uma vez que não lhe teria sido permitido deduzir as despesas profissionais e de funcionamento incorridas para a obtenção dos rendimentos de capitais. (…) enquanto os residentes seriam tributados com base no seu lucro tributável, isto é, com base no montante líquido de juros obtidos, os não residentes seriam tributados, de forma discriminatória, sobre o montante brutos de juros auferidos em Portugal».
2.2.3 Todavia, enquanto na decisão fundamento o tribunal decidiu julgar «procedente o pedido arbitral e anular os actos tributários de retenção na fonte impugnados, bem como a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa contra ele deduzida; [E] Condenar a Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito.
2.2.4 Já na decisão recorrida o tribunal arbitral concluiu que «deverão ser anulados parcialmente os actos objecto da presente acção arbitral, na medida em que dos mesmos resulta a tributação do rendimento bruto obtido pelo Requerente em território nacional, e não o seu rendimento líquido, ou seja, deduzido das despesas directamente relacionadas com a sua actividade neste país». Tendo decidido julgar «parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e, em consequência, anular parcialmente os actos tributários impugnados nos autos, na parte em que sujeitaram a tributação o rendimento bruto obtido pelo Requerente em território nacional, e não o seu rendimento líquido, ou seja, deduzido das despesas directamente relacionadas com a sua actividade neste país; b) Condenar a Autoridade Tributária na devolução do imposto indevidamente pago por força dos actos parcialmente anulados, acrescido de juros indemnizatórios nos termos acima determinados;».
2.3.4 Mas as decisões arbitrais divergem nas consequências retiradas dessa ilegalidade, pois na decisão recorrida o tribunal decidiu-se pela anulação parcial do ato tributário de retenção, considerando que aquele vício apenas afetava parte do ato tributário, enquanto na decisão fundamento o tribunal se decidiu pela anulação integral do mesmo ato tributário de retenção, sem sequer enunciar a viabilidade daquela outra opção.
E é sobre esta dualidade de soluções que a Recorrente suscita a prolação de acórdão de uniformização de jurisprudência, por entender que se verifica oposição entre as duas decisões.
2.3 Ora, salvo melhor opinião, afigura-se-nos que se mostram reunidos os requisitos supra assinalados para a prolação de acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a questão de saber se verificada a desconformidade do direito nacional com o direito comunitário no que respeita à tributação dos rendimentos de capitais entre sujeitos passivos residentes e não residentes, por no caso dos primeiros o ato de retenção na fonte previsto no artigo 94º ter a natureza de “imposto por conta” (nº3 do art. 94º), e no caso dos últimos ter caráter definitivo (alínea b) do nº3), há ou não lugar à anulação do ato de retenção, com restituição integral do valor retido, acrescido de juros indemnizatórios, ou apenas à sua anulação parcial, com restituição do valor que for apurado em função da prova do montante dos custos suportados pelo sujeito passivo, acrescido dos juros indemnizatórios na parte correspondente.
II. APRECIAÇÃO.
Resulta dos autos que em ambas as situações objecto de apreciação pelo tribunal arbitral, o sujeito passivo apresentou reclamação graciosa contra os atos de retenção na fonte realizado pelo substituto (instituição financeira), ao abrigo do disposto nos artigos 87.º, n.º 4, e 94.º, n.º 3, alínea b), e n.º 5, do Código do IRC, no âmbito do pagamento de juros de aplicações financeiras no decurso dos anos de 2016, 2017 e 2018, cujo montante foi determinado com base na aplicação da taxa reduzida de 15% por efeito da alínea b) do n.º 2 do artigo 11.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e sobre o Capital celebrada entre Portugal e Alemanha.
Sobre a matéria já se pronunciou este tribunal, designadamente no acórdão de 08/03/2017, proferido no processo nº 0298/13 (cuja jurisprudência foi reiterada no acórdão de 22/03/2017, proferido no processo nº 0165/13), no qual se invocou a jurisprudência do acórdão do Tribunal de Justiça de 09/03/1978 (proc. C-106/77 – caso “Simmenthal”), no sentido de que “a sanção do primado do Direito Comunitário é a inaplicabilidade da norma estadual em questão, pois «todo o juiz nacional, demandado no quadro da sua competência, tem a obrigação de aplicar integralmente o Direito Comunitário e de proteger os direitos que este confere aos particulares, deixando inaplicável toda a disposição eventualmente contrária da lei nacional, seja anterior ou posterior à regra comunitária. (...) e impedir a formação válida de novos atos legislativos nacionais» na medida da sua incompatibilidade com o direito comunitário”
Mais se entendeu no referido aresto que «a circunstância de a norma aplicada [art.º 80º, nº 2, al. c) do CIRC] não permitir deduzir as aludidas despesas, constitui discriminação incompatível com uma liberdade económica fundamental da União Europeia, da qual resulta a necessidade de desaplicar essa norma do CIRC e o dever, para a administração tributária portuguesa, de tributar apenas os rendimentos líquidos. E, por tal motivo, encontra-se decisivamente inquinada a quantificação da matéria tributável que suporta os actos de retenção de imposto na fonte. Quantificação que exige a prática de novo acto tributário, sendo impraticável a reforma dos actos impugnados porque o tribunal não pode substituir-se à administração na fixação de outra matéria tributável, sob pena de estar a invadir o núcleo essencial da função administrativa tributária, substituindo-se à administração na tarefa de determinar e fixar as despesas que as entidades financeiras não-residentes podem deduzir aos rendimentos auferidos em Portugal por forma a tornar a retenção na fonte compatível com o artigo 49º do TCE.»
Resulta, assim, da referida jurisprudência que nestas circunstâncias o ato tributário de retenção na fonte fica inquinado de invalidade na sua totalidade, pelo que se impõe a sua anulação integral. E, aparentemente, subjaz a esse juízo, o entendimento do tribunal de que se impõe uma nova quantificação da matéria tributável, em função do rendimento líquido e em resultado da recolha de novos elementos por parte da Administração Tributária.
Como decorre da decisão arbitral recorrida, o tribunal arbitral entendeu que em resultado da desconformidade do direito nacional com o direito europeu, o disposto na alínea c) do nº3 do artigo 94º do CIRC, no qual se prevê que o carácter definitivo das retenções na fonte, não se mostra aplicável, tudo se passando como essas retenções tenham a natureza de imposto por conta, como resulta do corpo do nº3.
É o que resulta do excerto do mesmo aresto em que se deixou exarado: «Assim, e sempre ressalvada melhor opinião, o que haverá que declarar, no caso, é que não tem aplicação, por força do direito da União, tal como declarado pelo TJUE no processo C-18/15, o disposto no art.º 94.º, n.º 3 do CIRC aplicável, na parte em que impõe, imperativamente, que as retenções na fonte de que foram objecto os rendimentos pagos ou colocados à disposição do Requerente no ano de 2018, tenham carácter definitivo, tudo se passando, então, como tendo as mesmas a natureza de imposto por conta».
Ou seja, para o tribunal arbitral resultando a invalidade do ato de retenção do facto de ser considerado uma retenção a título definitivo, essa invalidade ficaria sanada a partir do momento em que se considere ter sido feita a título de imposto por conta, pelo que apenas haveria que anular os efeitos do ato que daí resultavam, que qualificou como anulação parcial, por se presumir que os mesmos provocavam uma aumento na tributação, que desse modo ficava anulado. O mesmo é dizer que o ato tributário seria reduzido na parte correspondente aos custos suportados pelo sujeito passivo que fossem objecto de prova perante a Administração Tributária.
Pese embora a brilhante e sugestiva construção, afigura-se-nos que não deve merecer o acolhimento deste tribunal pelas razões que seguidamente alinhamos.
Como se aludiu na decisão arbitral recorrida, este tribunal (Cfr. acórdão do Pleno de 30/01/2019, proc. 436/18.0BALSB, citado na decisão arbitral recorrida, e demais jurisprudência ali mencionada), tem entendido que «o acto tributário, enquanto acto divisível, tanto por natureza como por definição legal, é susceptível de anulação parcial». E de que «O critério para determinar se o acto deve ser total ou parcialmente anulado passa por aferir se a ilegalidade afecta o acto tributário no seu todo, caso em que o acto deve ser integralmente anulado, ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial».
Todavia e ao contrário do entendido na decisão arbitral recorrida, consideramos que no caso concreto a ilegalidade em causa nos autos afeta o ato tributário no seu todo e não apenas em parte.
Com efeito, a tributação das pessoas coletivas não residentes e que não possuam estabelecimento estável em Portugal é feita de forma analítica (Cfr. a este propósito Gustavo Lopes Courinha, in “Manual do Imposto ….”, Almedina, 2020, pág.45, que refere a este propósito que «a tributação dos rendimentos obtidos pelos não residentes (sem estabelecimento estável em Portugal, sublinhe-se novamente) é de natureza analítica, com a proeminência da qualificação dos rendimentos e com a outorga de regimes isolados para cada rendimento, de acordo com as categorias e regras vigentes no IRS, como estabelecem os artigos 3º/nº1/alínea d) e 56º/nº1 do Código do IRC») e apenas em relação aos rendimentos obtidos no território nacional (art. 4º, nº2, do CIRC) e em regra através do mecanismo de substituição tributária e com efeito liberatório, ou seja, de que resulta a extinção da obrigação tributária.
Daí que no acórdão deste tribunal de 06/05/2020 (proc. 0178/11.4BELRS) se tenha considerado que «Embora o I.R.C. seja considerado um imposto periódico (ou de base temporal, por contraposição aos impostos de obrigação única), o mecanismo de retenção na fonte de I.R.C., a título definitivo como é o caso dos autos, deve ser qualificado/considerado como configurando um imposto de obrigação única. Por outras palavras, a retenção de I.R.C. incidente sobre pagamentos efectuados a entidades residentes no estrangeiro é feita a título definitivo e, como tal, deve considerar-se que o imposto a reter é de obrigação única (cfr. artº.45, nº.4, da L.G.Tributária; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 15/11/2018, proc.8326/15; J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 3ª. edição, 2007, pág.28 e seg.; Rui Marques, Código do IRC anotado e comentado, Almedina, 2019, pág.784).
É o que ocorre com a tributação dos juros pagos por entidade sediada em Portugal, sobre os quais há lugar a retenção na fonte com caráter definitivo, com resulta do disposto nos artigos 87º, nº4, e 94º, nº3, alínea b), do CIRC, uma vez que a aplicação da taxa prevista na lei sobre o montante dos juros brutos é feita a título definitivo e não provisório.
Ora, nestes casos, colocando-se a questão da inaplicabilidade do disposto no artigo 94º, nº3, alínea b), do CIRC, por ofensa do direito comunitário, nos termos supra expostos, o ato tributário praticado ao abrigo do referido normativo, não pode transmutar-se em ato de retenção por conta do imposto devido a final, por estarmos perante um ato definitivo que tem por efeito a extinção da obrigação tributária e o legislador não prever qualquer outro procedimento de tributação desses rendimentos no qual aquele ato pudesse ser inserido.
Assim sendo, reconhecida a ilegalidade de tal ato, impõe-se a sua anulação (integral), e não apenas a sua anulação parcial, porque o vício afeta a globalidade do ato e não apenas parte do mesmo, dado que a lei não prevê qualquer outra forma de determinação da matéria tributável.
III. Em CONCLUSÃO.
Em face do exposto, afigura-se-nos que a oposição dos arestos em confronto deve ser dirimida mediante a prolação de acórdão de uniformização de jurisprudência nos seguintes termos:
- Verificada a desconformidade do direito nacional com o direito comunitário no que respeita à tributação dos rendimentos de capitais entre sujeitos passivos residentes e não residentes, por no caso dos primeiros o ato de retenção na fonte previsto no artigo 94º ter a natureza de “imposto por conta” (nº3 do art. 94º), e no caso dos últimos ter caráter definitivo (alínea b) do nº3), sem possibilidade de o sujeito passivo deduzir os custos suportados, não há lugar à anulação parcial do ato de retenção, mas sim à sua anulação integral, com restituição do valor retido, acrescido de juros indemnizatórios.
E consequentemente, ser revogada a decisão arbitral recorrida que assim não o entendeu.”

I.4 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO

II. 1 – De facto
A decisão arbitral sob recurso exarada a fls. 36 e seguintes do SITAF, considerou como provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma instituição financeira com sede na Alemanha que não possui estabelecimento estável em território português;
b) A Requerente está legalmente autorizada a desenvolver actividade bancária e a prestar serviços de natureza financeira em regime de livre prestação de serviços;
c) Enquanto entidade não residente sem estabelecimento estável a Requerente detém número de identificação fiscal para efeitos de retenção na fonte sobre os rendimentos auferidos em território português;
d) No decurso da sua actividade, e em sede do processo de reestruturação do Grupo Z…., a Requerente adquirido, no dia 13 de Maio de 2016, um portefólio de créditos à instituição Y…… AG (cfr. Documento n.º 3 junto com o pedido arbitral e depoimento prestado pela testemunha ……. no processo arbitral n.º 535/2019- T, aproveitado nos presentes autos);
e) No período compreendido entre 16 de Janeiro de 2018 e 31 de Dezembro de 2018, a Requerente auferiu juros no montante total bruto de € 10.368.736,07;
f) Nesse mesmo período, por referência aos juros auferidos no valor global de € 10.368.736,41, a Requerente efectuou retenções na fonte, a título definitivo, no montante total de € 1.555.310,41, em virtude da aplicação da taxa reduzida de 15% prevista no artigo 11.º, n.º 2, alínea b), da CDT celebrada entre Portugal e a Alemanha (cfr. Documento n.º 4 junto com o pedido arbitral);
g) Neste contexto a Requerente apresentou, em 11 de Abril de 2019, reclamação graciosa, na qual solicitou a anulação dos actos tributários de retenções na fonte de IRC acima indicados, bem como o reembolso do imposto indevidamente retido, por entender que os mesmos violavam os artigos 56.º e 63.º, do TFUE e, consequentemente, o artigo 8.º, da CRP (cfr. Documento n.º 1 junto com o pedido arbitral);
h) A AT não decidiu a reclamação graciosa dentro do prazo previsto para o efeito;
i) A Requerente incorreu em custos de financiamento e honorários relacionados com o portefólio de créditos português (cfr. depoimento prestado pela testemunha ….. no processo arbitral n.º 535/2019-T, aproveitado nos presentes autos).

A decisão arbitral fundamento, proferido pelo Centro de Arbitragem Administrativa no âmbito do processo nº 535/2019-T datado de 16 de abril de 2020, deu como provada a seguinte factualidade:
A) A Requerente é uma instituição financeira com sede na Alemanha, que não possui estabelecimento estável em território português;
B) A Requerente está legalmente autorizada a desenvolver a atividade bancária e a prestar serviços de natureza financeira, em regime de livre prestação de serviços;
C) E nessa condição detém número de identificação fiscal, nomeadamente, para efeitos de retenção na fonte;
D) No decurso da sua atividade, e em sede do processo de reestruturação do Grupo B..., a Requerente adquiriu, no dia 13 de maio de 2016, um portefólio de créditos ao C.. AG (documento n.º 2 junto com o pedido arbitral e depoimento prestado pela testemunha D.....);
E) No período compreendido entre 16 de maio de 2016 e 31 de dezembro de 2017, a Requerente auferiu juros no montante total bruto de € 40.547.913,98 (€ 16.646.908,60 + € 23.901.005,38);
F) Nesse mesmo período, por referência aos juros auferidos nesse indicado valor, a Requerente sofreu retenções na fonte, a título definitivo, no montante total de € 6.082.187,10 (€ 2.497.036,29 + € 3.585.150,81), que resultaram da aplicação da taxa reduzida de 15% por efeito da alínea b) do n.º 2 do artigo 11.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e sobre o Capital celebrada entre Portugal e Alemanha (Documento n.º 3 junto com o pedido arbitral);
G) Relativamente ao período de 2016, desde maio até dezembro, o Requerente auferiu juros de fonte portuguesa, no montante total de € 16.646.908,60, tendo sofrido retenções na fonte, com caráter definitivo, que ascenderam ao montante total de € 2.497.036,29;
H) Relativamente ao período de 2017, desde janeiro até dezembro, a Requerente auferiu juros de fonte portuguesa, no montante total de € 23.901.005,38, tendo sofrido retenções na fonte, com caráter definitivo, que ascenderam ao total de € 3.585.150,81;
I) Neste contexto, a Requerente deduziu, em 27 de dezembro de 2018, reclamação graciosa, na qual solicitou a anulação dos atos tributários de retenções na fonte de IRC e o reembolso do imposto indevidamente retido, por entender que existe uma violação dos artigos 56.º e 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e, consequentemente, do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa;
J) No decurso do procedimento, a Autoridade Tributária solicitou elementos de informação que foram prestados pela Requerente (documentos n.ºs 5 e 6 juntos com o pedido arbitral);
K) A reclamação graciosa não foi decidida dentro do prazo legalmente previsto;
L) A Requerente incorreu em custos de financiamento e honorários relacionados com o portefólio de créditos português (documentos n.ºs 1 a 8 juntos com o requerimento apresentado a 21 de janeiro e depoimento prestado pela testemunha D...).

II.2 – De Direito
I. São três as questões que, nesta instância, importa dirimir:

a) Ocorre efetiva oposição entre a decisão arbitral recorrida e a decisão arbitral fundamento quanto à mesma questão fundamental de Direito?

b) Sendo afirmativa a resposta à questão anterior, pode considerar-se, ainda assim, que o presente recurso deve ser rejeitado pelo facto de a orientação perfilhada na decisão recorrida corresponder à jurisprudência mais recentemente consolidada deste Supremo Tribunal?

c) Sendo negativa a resposta à questão anterior, deve ser provido o recurso?

II. Importa recordar os requisitos de admissibilidade previstos para o presente recurso:

- que a decisão arbitral recorrida se tenha pronunciado sobre o mérito da pretensão deduzida e tenha posto termo ao processo arbitral, nos termos do artigo 25.º, n.º 2 do RJAT;

- que a mesma esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de Direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo ou com outra decisão arbitral, nos termos do mesmo artigo;

- que a orientação perfilhada na decisão arbitral não esteja de acordo com a jurisprudência mais recente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do n.º 3 do artigo 152.º do CPTA, para o qual o n.º 3 do artigo 25.º remete;

- que o acórdão (in casu, a decisão arbitral) fundamento tenha transitado em julgado, nos termos do artigo 688.º, n.º 2 do CPC, aplicável ex vi artigo 140.º, n.º 3 do CPPT.

III. Entende-se que é idêntica a questão fundamental de Direito quando:

- as situações fácticas em ambos os arestos sejam substancialmente idênticas, entendendo-se, como tal, para este efeito, as que sejam subsumidas às mesmas normas legais;

- o quadro legislativo seja também substancialmente idêntico, o que sucederá quando seja o mesmo o regime jurídico aplicável ou quando as alterações legislativas a relevar num dos acórdãos não interfira, nem directa nem indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida;

- quando a divergência entre as decisões (recorrida e fundamento) se verifica ao nível das próprias decisões e não exclusivamente quanto aos respectivos fundamentos.

IV. Vertendo ao caso concreto presente nas decisões arbitrais em confronto, parece inevitável concluir que nos encontramos diante situações de facto e de Direito que são, verdadeiramente, idênticas.

Com efeito, entre a decisão arbitral recorrida e a decisão arbitral fundamento há uma manifesta identidade de situações de facto, uma vez que, atentos os factos consolidados nos respectivos Probatórios, forçosamente se conclui que:

- O Sujeito Passivo é o mesmo: a ora Recorrente;

- No decurso da sua atividade, e em sede do processo de reestruturação do Grupo Z….., a Recorrente adquiriu, no dia 13 de maio de 2016, um portefólio de créditos ao Y…… AG;

- Neste âmbito, a Recorrente passou a auferir juros de fonte portuguesa subjacentes a esse portefólio;

- Sobre os referidos juros, a Recorrente sofreu retenção na fonte, a título definitivo, ao abrigo do regime legal da substituição tributária, cuja ilegalidade se veio alegar em ambos os processos;

- Discutia-se, em ambos os processos, a conformidade com o Direito Europeu dos atos de retenção na fonte: em análise estava o tratamento diferente dado pelo regime interno de IRC relativamente aos juros auferidos por entidades residentes ou por entidades não residentes impondo uma carga fiscal mais elevada para as instituições financeiras não residentes.

Registe-se, por fim, quanto à identidade das situações, que se encontra apenas uma única diferença a registar e que respeita aos anos envolvidos, sendo os exercícios fiscais de 2016 e 2017 objeto de análise na decisão arbitral fundamento, ao passo que o exercício fiscal de 2018 constitui o objeto da decisão arbitral recorrida.

V. Ainda assente é a constatação de que as normas fiscais envolvidas são, não somente as mesmas, como não sofreram qualquer alteração com relevo para o presente caso nos anos em causa (2016/2017 e 2018).

É o que sucede com o artigo 87.º, n.º 4, com o artigo 94.º, n.º 3, alínea b) e, ainda, o artigo 94.º, n.º 5, todos do Código do IRC. É, igualmente, o que sucede com o artigo 11.º, n.º 2, alínea b) da Convenção de Dupla Tributação assinada entre Portugal e a Alemanha, à luz da qual se fixou a taxa concreta de retenção na fonte.

Foi, assim, à luz da mesma redacção destas normas que o Tribunal Arbitral decidiu em sentido oposto nas decisões arbitrais ora em confronto.

VI. Por fim, cabe sublinhar que se denota uma efectiva divergência interpretativa ao nível decisório e não exclusivamente argumentativo ou fundamentador.

Assim, de acordo com a decisão arbitral recorrida, deveria ser promovida a mera anulação parcial dos atos tributários de retenção na fonte contestados, ao invés da sua anulação total, cabendo à AT promover, em sede de execução de julgados, o apuramento do montante das despesas diretamente relacionadas com a atividade da Requerente.

Já na decisão arbitral fundamento, por nítida contraposição, foi julgado procedente o pedido arbitral e determinada a anulação total dos atos tributários de retenção na fonte aí contestados (aliás, com o voto de vencido da Relatora da decisão arbitral recorrida).

Forma-se, pelo exposto, uma inquestionável oposição do segmento decisório das decisões arbitrais.


VII. Cabe, de seguida, apurar se, apesar do exposto, pode o presente recurso não ser admitido pelo facto de a orientação perfilhada na decisão recorrida corresponder à jurisprudência mais recentemente consolidada deste Supremo Tribunal.
Ora, não se vislumbra, tão-pouco por aqui, qualquer obstáculo à uniformização da jurisprudência, uma vez que este Supremo Tribunal não tem suportado a leitura propugnada pela decisão arbitral recorrida; muito pelo contrário.
Acrescente-se, a este respeito, que o Acórdão deste Supremo Tribunal, exarado em 30 de Janeiro de 2019, no âmbito do Processo n.º 436/18 – em que expressamente se estriba a decisão arbitral aqui em crise, para decidir no sentido da mera anulação parcial dos atos de retenção na fonte – não tem paralelo com o objeto da decisão arbitral recorrida.
O objeto daquele douto Acórdão respeitava a correcções de sujeitos passivos de IRC, que eram residentes e se encontravam sujeitos ao regime geral de determinação da matéria colectável. E, por isso, uma vez que apenas uma parte das correcções promovidas pela AT a uma tal matéria colectável haviam sido consideradas ilegais, apenas nessa exata medida se justificava uma anulação, por isso parcial, da liquidação adicional de IRC.
Não é o que se passa, manifestamente, na decisão arbitral recorrida – onde se trata – de atos de retenção na fonte, liberatórios, incidentes sobre rendimentos brutos e de natureza definitiva e única (sem natureza provisória ou de pagamento por conta).
Pelo exposto, pode-se concluir que nada obsta à solicitada uniformização de jurisprudência, em reconhecimento pela aberta oposição das decisões quanto a uma mesma questão fundamental de Direito. A resposta à segunda questão é, por isso, negativa.

VIII. Importa, agora, conhecer de fundo e decidir acerca do provimento ou não do recurso.
E julgamos que o mesmo merece, com efeito, provimento.
Este Supremo Tribunal já teve, por inúmeras vezes, oportunidade de esclarecer as circunstâncias em que entende ser de anular parcialmente um ato tributário. E tais circunstâncias respeitam à divisibilidade do ato tributário anulado – “há que determinar o tipo de ilegalidade que o inquina e analisar se ela é susceptível de o afectar no seu todo, caso em que ele tem de ser integralmente anulado” (Acórdão de 5 de Dezembro de 2018, no Processo n.º 888/05, entre muitos outros - disponível em www.dgsi.pt) – e, mais concretamente, à possibilidade de redução do ato à parte não inquinada “por simples operação aritmética” (Acórdão de 12 de julho de 2017, no Processo n.º 636/17, entre muitos outros - disponível em www.dgsi.pt).
Ora, a razão para este critério, logo se antevê, é que: “Não constituindo os tribunais órgãos com competência para a tributação, não podem eles assumir a função de mecanismo ou aparelho primário de indagação oficiosa de eventuais despesas dedutíveis ou a função de recepção e selecção das despesas que as entidades não-residentes queiram apresentar e deduzir de forma a serem tributadas pelo rendimento líquido, sob pena de afronta do núcleo essencial da função administrativa-tributária.”, mais se explicando que, “pois como já explicou este Supre Tribunal, “Tal violaria o núcleo essencial dos limites da competência dos tribunais tributários, dado que assim se deslocaria para a protecção jurídica destes tribunais a actividade administrativa da esfera da administração tributária, violando grosseiramente os princípios da indisponibilidade e da tipicidade de competências, bem como o princípio da separação de poderes constitucionalmente garantido.” – cfr. Acórdão de 22 de Março de 2017, lavrado no Processo n.º 165/13, disponível em www.dgsi.pt.
Quer dizer, quando a decisão judicial tributária ultrapassar aquilo que é a sua função meramente anulatória – e que é estruturante da instância judicial tributária – e implicar, ao invés, uma iniciativa de lançamento/liquidação (para mais, com reformulação integral da base tributável, como é o caso) – então a anulação parcial torna-se impraticável e só restará a anulação total do ato tributário.

IX. Cabe, pois, questionar se tais critérios, uma vez aplicados ao caso, permitem concluir no sentido da anulação parcial dos atos de retenção definitiva na fonte, salvaguardando a possibilidade de, em execução de julgados, a AT poder refazer a liquidação, em termos conformes ao Direito Europeu, i.e., em consideração das despesas directamente relacionadas com a obtenção dos rendimentos ?
Ora, não vemos como tal possa suceder.
É que não nos encontramos diante um ato qualquer apenas parcialmente incorrecto. A retenção na fonte, que é definitiva e configura o ato de liquidação e pagamento do imposto, encontra-se totalmente errada.
Não é possível extrair da retenção na fonte efectuada a medida exata da ilegalidade, muito menos por “simples operações aritméticas”. Apenas é possível concluir, como fez a sentença recorrida, que a tributação assim calculada incidiu sobre o rendimento bruto, quando deveria ter incidido sobre o rendimento líquido, de modo a respeitar as exigências do Direito Europeu.
Estamos, com efeito, diante de um caso de substituição tributária total, pelo que o substituto tributário não estaria em condições de proceder ao cálculo da base tributável líquida exigida pelos cânones da Não Discriminação – aliás, por alguma razão, os casos de retenção liberatória na fonte incidem, invariavelmente, sobre rendimentos brutos e não líquidos.
Ora, se o substituto tributário, numa retenção liberatória na fonte, não o conseguiu, nem está em condições de fazer, muito menos o pode fazer este ou qualquer outro Tribunal Tributário.

X. A conclusão inevitável é a de que só o contribuinte e a AT estariam em condições de o fazer.
Mas, ao passo, que o primeiro não o podia fazer por a tal obstar a legislação nacional, a AT já o podia (e pode) fazer, em conformidade com o Direito Europeu. Simplesmente, para tal, teria de emitir um novo ato de liquidação oficiosa, precedido de um cálculo complexo das despesas directamente incorridas com a obtenção dos rendimentos brutos, a partir de informação fornecida pelo sujeito passivo e, se necessário, com troca de informações com as suas congéneres germânicas.
Em suma, a AT teria de proceder a um novo ato de liquidação, de acordo com as exigências europeias. Sucede que um tal ato de liquidação teria sempre de ter lugar dentro dos prazos de caducidade, o que não é garantido que possa ainda suceder.
Assim sendo, é inevitável a conclusão de que as tarefas que se exigiriam aos Tribunais no âmbito de uma anulação nos termos pretendidos pela decisão arbitral recorrida são incompatíveis com as funções por estes desempenhadas.
No mesmo sentido se pronunciou, igualmente, o Ministério Público no seu douto Parecer, assim como este Supremo Tribunal, num caso em quase tudo análogo, onde se pode ler, a título de conclusões, que: “I - O art.º 49º do Tratado da Comunidade Europeia (a que corresponde o actual art.º 56º do Tratado de Funcionamento da União Europeia) não se opõe a uma legislação nacional por força da qual a remuneração paga às instituições financeiras não-residentes do Estado - Membro onde os serviços são prestados está sujeita a um procedimento de retenção na fonte do imposto, ao passo que a remuneração paga às instituições financeiras residentes não está sujeita a tal retenção, desde que a aplicação da retenção na fonte às instituições financeiras não-residentes seja justificada por uma razão imperiosa de interesse geral e não ultrapasse o necessário para alcançar o objetivo prosseguido.
II - Todavia, aquela disposição opõe - se a uma legislação nacional, como a contida no art.º 80º, nº 2, alínea c), do CIRC, que tributa as instituições financeiras não-residentes pelos rendimentos de juros obtidos em Portugal sem lhes dar a possibilidade de deduzir as despesas profissionais diretamente relacionadas com a atividade em questão, inviabilizando a tributação do rendimento líquido, ao passo que reconhece essa possibilidade às instituições financeiras residentes.
III - Devendo as instituições financeiras não-residentes ser tratadas da mesma maneira que as instituições residentes, elas têm o direito de apresentar, perante a administração tributária portuguesa, as aludidas despesas profissionais e o direito de as deduzir, isto é, o direito de serem tributadas em Portugal apenas pelo rendimento líquido.
IV - Não constituindo os tribunais órgãos com competência para a tributação, não podem eles assumir a função de mecanismo ou aparelho primário de indagação oficiosa de eventuais despesas dedutíveis ou a função de recepção e selecção das despesas que as entidades não-residentes queiram apresentar e deduzir de forma a serem tributadas pelo rendimento líquido, sob pena de afronta do núcleo essencial da função administrativa-tributária.” – Acórdão de 8 de Março de 2017, lavrado no Processo n.º 298/13, disponível em www.dgsi.pt.
Trata-se de leitura com plena validade no presente caso e da qual não vemos razões para nos afastarmos.


III. Conclusão
As retenções liberatórias na fonte relativas a rendimentos de capitais auferidos por não residentes, declaradas ilegais por desconformidade ao Direito Europeu, por não incidirem sobre os rendimentos líquidos, mas apenas sobre os rendimentos brutos, só podem ser objeto de anulação integral.



IV. Decisão
Em face do exposto, os juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam em tomar conhecimento do Recurso, conceder provimento ao mesmo, anulando a decisão arbitral e determinando que sejam integralmente anulados os atos tributários de retenção na fonte aí declarados ilegais.

Custas pela Recorrida, com isenção de Taxa de Justiça pelo facto de não ter apresentado Contra-Alegações nesta instância de recurso.

Lisboa, 29 de Maio de 2022. - Gustavo André Simões Lopes Courinha (relator) – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Isabel Cristina Mota Marques da Silva – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (Vencido) – José Gomes Correia – Joaquim Manuel Charneca Condesso – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz (Vencido) – Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro – Pedro Nuno Pinto Vergueiro (Vencido) – Anabela Ferreira Alves e Russo.



Vencido.
A questão relativamente à qual a Recorrente ora pretende que se uniformize a jurisprudência – a de saber se a ilegalidade determina a anulação total ou parcial do acto – apenas foi expressamente abordada e decidida no acórdão recorrido; no acórdão fundamento a questão não foi apreciada senão no voto de vencido. O acórdão fundamento não equacionou essa questão, nem cuidou de ponderar de modo explícito se a ilegalidade que determinou a anulação se repercutia total ou parcialmente sobre a validade do acto.
Assim, entendo que o recurso não deveria ser admitido, na medida em que sobre a questão não foi emitida pronúncia expressa no acórdão fundamento.
(Francisco António Pedrosa de Areal Rothes)


Vencido.
Acompanho o voto de vencido do Exmo. Senhor Conselheiro Francisco António Pedrosa de Areal Rothes. Ademais, mesmo que se entenda haver oposição, propendo para a solução propugnada na decisão recorrida, ou seja, a anulação parcial.
(Aníbal Augusto Ruivo Ferraz)


Vencido.
Acompanho o voto de vencido do Exmo. Senhor Conselheiro Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.
(Pedro Vergueiro)