Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0344/10
Data do Acordão:05/19/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JORGE LINO
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
PENHORA
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
PRESTAÇÃO DE GARANTIA
Sumário:I - A penhora de créditos do devedor inscreve-se dentro dos poderes da entidade exequente de nomear bens à penhora, designadamente nos termos do n.º 4 do artigo 215.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
II - No entanto, a penhora de créditos pelo órgão da execução fiscal, antes da pronúncia devida sobre a insuficiência de garantia prestada, apresenta-se violadora do princípio legal e constitucional da boa-fé que deve nortear a actuação da Administração Fiscal, e que consiste fundamentalmente na «confiança suscitada na contraparte», nos termos do artigo 6.º-A do Código de Procedimento Administrativo (e também do artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa).
Nº Convencional:JSTA00066430
Nº do Documento:SA2201005190344
Data de Entrada:04/26/2010
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF VISEU PER SALTUM.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART165 ART199 N8 ART215 N4.
CPC96 ART3 N3 ART201 N1 ART202 ART205.
CONST97 ART18 ART20 ART266 N1 N2.
CPA91 ART6-A N1 N2 A B ART125 N1.
Referência a Doutrina:LEBRE DE FREITAS E OUTROS CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO ANOTAÇÃO AO ART3.
Aditamento:
Texto Integral: 1.1 “A…, SA” vem recorrer da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, em que, nos presentes autos de reclamação de actos do órgão da execução fiscal, «nega-se provimento à reclamação reafirmando-se o despacho reclamado».
1.2 Em alegação, a recorrente formula as seguintes conclusões.
1. A ora recorrente reclamara contra a penhora dos seus créditos sobre clientes, porquanto havia oferecido garantia e nunca a Administração Fiscal se pronunciou sobre a mesma, nem a notificou sobre a sua decisão.
2. Alegou ter havido violação do direito de contraditório.
3. E alegou que a decisão do órgão fiscal era nulo, por ser ilegal, por não ter sido dada oportunidade à recorrente para se pronunciar.
4. A douta decisão veio fundamentar que o facto de a ora recorrente ter apresentado garantia e de sobre a mesma o Serviço de Fianças não se ter pronunciado que não coarcta os direitos daquela.
5. O que está errado, com o devido respeito, pois os direitos da recorrente foram coarctados, tendo-lhe sido efectuadas penhoras quando a mesma ofereceu garantia e sem que nada lhe tenha sido comunicado.
6. Violou a douta sentença o disposto nos artigos 266° e 268° da CRP, em especial o disposto no n° 3 deste último artigo.
7. Havendo lugar à garantia, não há lugar a penhora.
8. Pelo que também errou a douta sentença ao confundir o disposto no art° 215º com o art° 169° CPPT.
9. Não houve fundamentação que tivesse sido notificada à recorrente.
10. Assim, a douta sentença, ao alegar que houve fundamentação, errou, violando o disposto no art° 125° CPA.
Termos em que, revogando ou anulando a douta decisão, se fará justiça.
1.3 Não houve contra-alegação.
1.4 O Ministério Público neste Tribunal emitiu o parecer de que o recurso merece provimento – apresentando a seguinte fundamentação.
As conclusões das alegações delimitam o âmbito do recurso. A Recorrente alega em síntese que:
– A decisão recorrida ao “fundamentar que o facto da ora recorrente ter apresentado garantia e de sobre a mesma o Serviço de Finanças não se ter pronunciado que não coarcta os direitos daquela”, viola os artigos 266° e 268° da CRP.
“Havendo lugar a garantia não há lugar a penhora” como resulta do disposto no artigo 169° do CPPT.
– A sentença recorrida ter entendido, erradamente, estar devidamente fundamentado o acto da Administração Fiscal que considerou não terem idoneidade os bens indicados para reforço da garantia.
O artigo 169° do CPPT prevê a suspensão de execução até à decisão do pleito em caso de reclamação graciosa, impugnação judicial ou recurso judicial que tenham por objecto a legalidade da dívida exequenda desde que tenha sido constituída garantia nos termos do artigo 195º ou prestada nos termos do artigo 199º, ambos do CPPT, ou a penhora garanta a totalidade da quantia exequenda e do acrescido.
Foi dado como provado que a ora Recorrente demonstrando ter deduzido oposição e impugnação, “requereu, em 19-11-2007, a suspensão da execução oferecendo à penhora cinco bens imóveis.” (ponto C do probatório). A Recorrente constituiu hipoteca voluntária sobre aqueles bens, requerendo que “após averiguação da idoneidade da garantia prestada” se suspendesse a execução (ponto E do probatório).
O Órgão de Execução Fiscal suspendeu a execução enquanto aguardava informação sobre o valor de um dos imóveis, esclarecendo logo a Recorrente que caso o valor total a garantir não fosse coberto pelo valor dos imóveis, seria “notificada para proceder ao reforço de tal garantia sob pena de, não o fazendo, os autos prosseguirem os termos normais até à garantia de tal valor” (ponto F do probatório).
O OEF, por despacho de 27/09/2007, entendeu mandar reforçar a garantia em € 546 821,46, determinando a notificação da Recorrente para, no prazo de 30 dias, proceder àquele reforço, sob pena de “tal não acontecendo, interrompe-se a suspensão da execução e a mesma prosseguirá os seus termos” (ponto G do probatório).
A Recorrente, respeitando aquele prazo, veio oferecer, para reforço da garantia prestada, oitenta e cinco contentores reforçados, no valor estimado de € 637 500,00 (ponto K do probatório).
Este requerimento só veio a ser apreciado por despacho de 24/11/2009, já depois de ter sido ordenada a remoção da suspensão da execução e o desenvolvimento de todas as diligências necessárias conducentes à obtenção de bens e ou direitos que se mostrassem suficientes para garantir o montante em falta (pontos H e L do probatório).
Podemos assim concluir da matéria de facto dada como provada que, por um lado a Recorrente satisfez, atempadamente, a determinação recebida no sentido de reforçar a garantia e, por outro, a Administração Fiscal, entidade com competência para apreciar a idoneidade das garantias, nos termos do n° 8 do artigo 199º do CPPT, só procedeu a tal apreciação cerca de 2 anos depois e após ter ordenado a remoção da suspensão da execução e ordenado a penhora de créditos.
A apreciação da idoneidade do reforço da garantia constitui um acto em matéria tributária, que pode afectar os direitos e interesses legítimos do contribuinte, pelo que só produz efeito em relação a este quando lhe seja validamente notificado. É o que resulta do artigo 36°, n° 1 do CPPT e emerge do n° 3 do artigo 268° da CRP ao estabelecer que “os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos.”
Se Administração Fiscal tivesse apreciado a idoneidade do reforço de garantia em devido tempo e sempre antes de ordenar a penhora de créditos, a Recorrente poderia reagir contra esse despacho através de reclamação ou, muito simplesmente, oferecer outros bens ou direitos em substituição dos apresentados.
Ao contrário da decisão recorrida, entendemos que a omissão da apreciação da idoneidade do reforço da garantia e a sua notificação à Recorrente, constitui formalidade prescrita na lei que pode influir no exame da causa, sendo por isso mesmo geradora de nulidade.
1.5 Tudo visto, cumpre decidir, em conferência.
Em face do teor das conclusões da alegação, bem como da posição do Ministério Público, a questão essencial que aqui se coloca é a de saber se, notificada a executada reclamante, ora recorrente, para reforçar a garantia prestada, e tendo oferecido mais bens para o efeito, o órgão da execução fiscal podia ter prosseguido com a execução fiscal – que estava suspensa –, efectuando penhoras de créditos, sem que primeiramente se tivesse pronunciado sobre a idoneidade dos bens adicionalmente oferecidos como garantia.
2.1 Em matéria de facto, a sentença recorrida assentou o seguinte.
A) No âmbito da execução n° 2585200701003291 e apensos do Serviço de Finanças de Nelas, onde se visa a cobrança coerciva de IRC e IVA dos anos de 2003 e 2004 e juros compensatórios no montante global de 865 338,89 €, a aqui Reclamante “A…, S.A.”, ali executada, pretendendo a suspensão dos autos veio “indicar como garantia” bens móveis sitos nas instalações em Canas de Senhorim, Nelas e Zona Industrial de Ovar, cfr. fls. 37 a 47 e 396 a 400 aqui dados como reproduzidos, o mesmo se dizendo dos demais elementos infra referidos;
B) O Exm.o Chefe de Finanças pronunciando-se sobre o requerido proferiu, em 04-07- 2007, o seguinte despacho:
“…o direito de nomear bens à penhora considera-se sempre devolvido ao exequente, mas o órgão de Execução Fiscal poderá admiti-lo…
No caso em apreço, os bens oferecidos à penhora ficarão à disposição da executada para os utilizar nas suas instalações e que, face ao seu uso continuado, inevitavelmente ocorrerá uma desvalorização…
Assim, decorridos os 30 dias após a citação sem que haja motivo para a suspender a mesma prosseguirá na penhora de bens, obedecendo à prioridade a que se refere o nº 1 do artigo 219º do CPPT.”, vide fls. 48;
C) Reagindo ao despacho vindo de aludir a Executada, demonstrando ter deduzido oposição e impugnação, requereu, em 19-11-2007, a suspensão da execução oferecendo à penhora cinco bens imóveis, cfr. fls. 51 a 73;
D) Respondeu o Exm.o Chefe de Finanças dizendo: “…uma vez que os bens … são pertença de terceiros, os mesmos só serão de aceitar como garantia desde que a interessada proceda à constituição de hipoteca voluntária e… consequente registo na Conservatória…”, vide fls. 74;
E) A Executada ora Reclamante, em 03-08-2007, veio informar e documentar a constituição de hipoteca sobre seis bens, requerendo, após averiguação da idoneidade da garantia prestada, se suspenda a execução, cfr. fls. 85 a 158;
F) O Órgão de Execução Fiscal, em 07-08-2007, apreciando o requerido, dizendo que o valor patrimonial simulado de cinco dos seis bens, no seu conjunto, se apurou ser de €568 660,00, aguardando-se que o SF de Ovar se pronuncie sobre o valor de um dos bens,
“…caso tal valor, adicionado ao apurado nos bens deste concelho, não corresponda ao valor total a garantir, € 1 115 481,46, será notificada para proceder ao reforço de tal garantia sob pena de, não o fazendo, os autos prosseguirem os termos normais até à garantia de tal valor”.
Suspendeu a execução, vide fls. 160;
G) O Órgão de Execução Fiscal, após ter recebido a informação do SF de Ovar sobre o valor do bem em falta que se considerou ser € 20 000,00, considerando esse valor e o dos outros cinco bens (€ 568 660,00), por despacho de 27-09-2007, entendeu que o reforço da garantia se eleva a € 546 821,46, determinando a notificação da executada para, no prazo de 30 dias, proceder ao reforço, “… tal não acontecendo, interrompe-se a suspensão da execução e a mesma prosseguirá os seus termos”, despacho notificado à executada e seu Mandatário respectivamente em 11-10 e 08-10, ambos de 2007, cfr. entre outros fls. 176 a 180;
H) A Exequente, em 11-11-2009, por via de auditoria interna à situação tributária da Executada, porque se apurou que as notificações vindas de aludir não determinaram nenhuma reacção da Executada e mesmo assim a suspensão da execução e o “desenvolvimento de todas as diligências necessárias conducentes à obtenção de bens e ou direitos que se mostrem suficientes para garantir o montante em falta de € 546 821,45”, vide fls. 181 e 183
I) A executada, em 19-11-2009, veio oferecer com garantia bens móveis, tesoura enfardadeira e máquina enfardadeira “que se encontram nas instalações sitas em Ovar” atribuindo, respectivamente os valores de € 440 000,00, €124 500,00, vide fls. 245 a 248;
K) Com Requerimento de teor idêntico, apresentado a 09-11-2007, a Executada veio oferecer, para reforço da garantia prestada, oitenta e cinco contentores reforçados “que se encontram armazenados nas nossas instalações em Canas de Senhorim e zona industrial da Taboeira, Aveiro”, a que atribuiu o valor total de € 637 500,00 (7500x85, requerendo se admita o reforço, cfr. fls. 249 a 255);
L) Começando por referir que o requerimento referido em K) Fiscal “se encontrava totalmente fora de ordem de fora dos presentes autos, só sendo descoberto quando apresentado duplicado devidamente carimbado pelos serviços”, o órgão de Execução por despacho de 24-11-2009, apreciou o requerido, aludindo:
Que as imagens de contentores com ferrugem e com sinais evidentes de utilização põem em causa a alegada qualidade de novos, invocada pela Executada;
às relações especiais entre a executada e a empresa vendedora, com pessoas coincidentes quer na participação social quer no âmbito dos respectivos Conselhos de Administração;
ser desaconselhável, tal como já tinha sido dito no despacho de 2007-07-04 (vide e B) a penhora de coisas móveis não sujeitas a registo,
decidiu-se que “os bens oferecidos para penhora, não apresentam viabilidade de penhora face à imprescindível apreensão dos mesmos condicionando de forma directa a actividade operacional da empresa e não são susceptíveis de acautelar os interesses da Fazenda Nacional, pela continuada desvalorização, pelo que não deverão ser alvo de penhora, para efeitos de garantia nos autos, tendo em conta que persistem outros bens pertencentes à empresa, insusceptíveis de depreciação e de acautelarem efectivamente os interesses da Fazenda Nacional”.
Idêntica decisão proferiu quanto aos móveis indicados em 19-11-2009.
Sobre a apreciação intempestiva do requerido em 09-11-2007 defendeu que tal omissão não configura nulidade insanável; não reveste a natureza de acto nulo; mesmo que, por hipótese se considere acto nulo, ele não influi nas decisões tomadas, devendo manter-se o despacho que ordenou a continuidade das penhoras de bens ou direitos para garantia dos autos, até ao limite do valor já supra aludido, ou seja € 546 821,46, despacho notificado à Reclamante em 26-11-2009, vide fls. 284 a 290;
M) A Executada/Reclamante, na sequência do despacho e notificação vindos de aludir, em 30-11-2009, esclarecendo que só agora soube da penhora de créditos, a qual foi ordenada sem antes se apreciar a insuficiência dos bens oferecidos para reforço da garantia violando-se a lei e as normas de cooperação entre a AT e o contribuinte, requereu se considerasse ilegal o despacho, bem como todos os actos posteriores, devendo ordenar-se o levantamento imediato das penhoras, cfr. fls. 341 a 353;
N) Na mesma data do referido requerimento a Executada/Reclamante apresentou a reclamação agora em apreciação, vide fls. 354 a 388 e 3 a 33;
O) A Entidade Reclamada pronunciando-se sob a reclamação manteve o despacho reclamado, cfr. fls. 389 a 393;
2.2 Quanto à “nomeação de bens à penhora” em processo de execução fiscal, reza o n.º 4 do artigo 215.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, que «O direito de nomear bens à penhora considera-se sempre devolvido ao exequente, mas o órgão da execução fiscal poderá admiti-la, nos termos da lei, nos bens indicados pelo executado, desde que daí não resulte prejuízo».
E, «sobre reclamação dos interessados» (como se expressa o artigo 202.º do Código de Processo Civil), pode ser declarada a nulidade decorrente da «prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva», «quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa» (n.º 1 artigo 201.º do Código de Processo Civil), no prazo em que, «depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele» (artigo 205.º do Código de Processo Civil).
Como é entendimento consabido e pacífico, o processo de execução fiscal muito embora nele devam ser praticados actos materiais, goza de natureza judicial – pelo que nele vigoram as pertinentes normas aplicáveis ao processo judicial.
Nos termos do n.º 3 artigo 3.º do Código de Processo Civil, «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
Este preceito resulta «duma concepção moderna do princípio do contraditório, mais ampla do que a do direito anterior». «Não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção». «Este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma concepção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão» – cf. Lebre de Freitas Lebre de Freitas, e Outros, no Código de Processo Civil Anotado, em anotação ao artigo 3.º.
E, assim, pela prática do exercício do contraditório previsto no artigo 3.º do Código de Processo Civil, não só se dá cumprimento a um imperativo legal, como se alcança um exercício de funções públicas «com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé», de que se fala no n.º 2 do supracitado artigo 266.º da Constituição – do mesmo passo se dando cumprimento real a princípios constitucionais de irreprimível força jurídica, como sejam os de acesso a uma tutela jurisdicional efectiva mediante um processo leal, equitativo, com previsão nos artigos 18.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Aliás, de acordo com a Constituição da República Portuguesa, mormente o seu artigo 266.º, «A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos» [n.º 1]; e «Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé» [n.º 2].
Portanto: os órgãos e agentes administrativos, nos termos constitucionais, por sobre estarem subordinados à lei, devem ainda, no exercício das suas funções, actuar com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé – o que de resto, tem consagração na lei ordinária, designadamente no artigo 6.º-A do Código de Procedimento Administrativo, o qual, sob a epígrafe “Princípio da boa fé” reza que «No exercício da actividade administrativa e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa fé» [n.º 1]; e que «No cumprimento do disposto nos números anteriores, devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas, e, em especial: a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa; o objectivo a alcançar com a actuação empreendida» [alíneas a) e b) do n.º 2].
2.3 No caso sub judicio, na sentença recorrida escreve-se, além do mais, ipsis verbis:
Mas regressemos à análise da omissão da análise/pronúncia tempestiva do requerimento apresentado pela Reclamante a indicar como reforço de garantia 85 contentores e sua relevância na execução.
Imputa a Reclamante à referida omissão, conjugada com o despacho a ordenar a penhora de créditos, o vício da nulidade.
Analisando o artigo 165º do CPPT facilmente se verifica que o vindo de referir não é situação que se enquadre na previsão da referida norma. O mesmo se pode afirmar das nulidades previstas no Código de Processo Civil, vide artigos 195 e segs.
Mas poderá a situação enquadrar-se na regra geral sobre nulidades prevista no artigo 201º do diploma vindo de referir (Regras gerais sobre a nulidade dos actos).
1. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
A omissão pode “influir no exame ou na decisão da causa”?
Para responder temos de considerar que: a omissão de pronúncia teve como contrapeso para a Reclamante o facto de, ao contrário do referido no despacho referido em G), datado de 27-09-2007, só em 11-11-2009, vide H) é que foi decidida a penhora dos créditos, apesar de durante esses dois anos existir uma necessidade de reforçar a garantia no montante de € 546 821,45; logo a seguir, treze dias depois, se pronunciou o órgão de Execução Fiscal sobre o requerimento da Reclamante apresentado em 09-11-2007, veja-se K) e L); entre H) e L) apenas se concretizou, com depósito de quantia, o já aludido crédito no montante de € 3 689,70, depositado por B… (quanto a este crédito a Reclamante “abdicou de tal quantia, que ficará como garantia” cfr. Documento de fls. 282 o qual constitui o documento nº 6 que instruiu a reclamação ora em análise.
Face ao quadro vindo de referir, ciente de que a omissão de pronúncia atempada constitui formalidade que a lei prescreve, ponderando todas as circunstâncias, concluímos que, em concreto, a irregularidade cometida não influi no exame ou na decisão da causa.
Na verdade, com excepção do crédito já aludido no montante de € 3 689,70 e sobre o qual a Reclamante tomou a posição também já referida, não ficou a Reclamante coarctada nos seus direitos e o presente processo é disso o exemplo.
Analisemos agora a segunda questão: a consideração da inidoneidade dos bens indicados para o reforço da garantia é fundada ou a censura que a Reclamante lhe faz deve ser atendida?
Também quanto a esta questão cumpre ter presente toda a tramitação do processo executivo, nomeadamente, logo no seu início, o indeferimento de requerimento da Executada a indicar bens para a garantia, de natureza idêntica ou análoga aos que apresentou posteriormente, vejam-se as als. A, B, J, e K) da factualidade assente. Indeferimento que não foi questionado pela Reclamante. Apesar do vindo de referir Esta, quando foi notificada para reforçar a garantia no montante € 546 821,45, apresentou os bens já referidos. É caso para dizer que a Reclamante não se pode queixar de surpresa ou de falta de coerência no que o Órgão de Execução Fiscal decidiu quanto aos bens aceites para garantia. Na verdade a fundamentação que agora se questiona, no fundamental, é similar à usada para o indeferimento do requerimento referido em A).
A análise da fundamentação do indeferimento dos requerimentos apresentados pela Reclamante já supra se iniciou.
Começou o Órgão de Execução Fiscal por dizer que: Nos termos do artigo 215º, nº 3 do Código de Procedimento e Processo Tributário o executado em processo de execução fiscal não tem o direito de nomear bens à penhora, mas apenas o de indicar bens a penhorar, competindo ao órgão de Execução decidir sobre a sua admissão, desde que, conforme expressamente se refere na mesma disposição legal, daí não resulte prejuízo.
Depois analisando os bens e os elementos juntos pela Reclamante concluiu que “os bens oferecidos para penhora, não apresentam viabilidade de penhora face à imprescindível apreensão dos mesmos condicionando de forma directa a actividade operacional da empresa e não são susceptíveis de acautelar os interesses da Fazenda Nacional, pela sua continuada desvalorização, pelo que não deverão ser alvo de penhora, para efeitos de garantia nos autos, tendo em conta que persistem outros bens pertencentes à empresa, insusceptíveis de depreciação e de acautelarem efectivamente os interesses da Fazenda Nacional”.
Nos termos do artigo 125º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo, “A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituirão neste caso parte integrante do respectivo acto”.
Pelo que se deixou exposto entendemos que a fundamentação existe. Do despacho em causa é possível extrair o percurso cognitivo seguido pelo agente; é possível saber a razão porque se decidiu em determinado sentido e, consequentemente, permite, como permitiu à Reclamante exercer o seu direito de contestação do decidido.
Em suma, sem necessidade de mais considerações, a reclamação apresentada deve improceder porque o despacho que ordenou a penhora dos créditos não padece do vício imputado antes a sua validade se reafirma face ao concretamente apurado e, quanto ao indeferimento dos bens indicados para garantia, a alegação e prova apresentadas pela Reclamante não se afiguram suficientes para alterar o juízo de inidoneidade da garantia constante do despacho reclamado [fim de citação].
Na verdade, e compulsando o espesso probatório supra assente – o que melhor se recolhe dos elementos dos autos – não se vislumbra alguma “irregularidade” tipificada como nulidade processual, ou que possa influir ou prejudicar o normal desenrolar da execução fiscal a caminho do seu objectivo específico: a satisfação do credor tributário pela via coerciva. Nem, de resto, a reclamante, ora recorrente, aponta nessa direcção. A este respeito, a reclamante, ora recorrente, fala apenas de violação do princípio do contraditório. Não indica, porém, qual a questão de direito ou de facto que o órgão da execução fiscal tenha decidido e sobre a qual tivesse precisado de ouvir a reclamante, ora recorrente. E nenhuma “decisão surpresa” se vê que no caso tenha sido proferida pelo órgão da execução fiscal – sendo certo que «O direito de nomear bens à penhora considera-se sempre devolvido ao exequente», nos termos da lei processual fiscal. De resto, a reclamante, ora recorrente, não reclama do excesso da penhora. E, como se vê, tudo se apresenta muito clara e suficientemente fundamentado, como de imediato ressalta do minucioso probatório acima registado, donde logo ressalta que o órgão da execução fiscal se moveu sempre em busca da apreensão para os autos de bens e valores suficientes para pudessem assegurar a cobrança coerciva das dívidas sob execução fiscal.
Acontece, porém, que, e conforme diz o Ministério Público neste Tribunal, «Podemos assim concluir da matéria de facto dada como provada que, por um lado a Recorrente satisfez, atempadamente, a determinação recebida no sentido de reforçar a garantia e, por outro, a Administração Fiscal, entidade com competência para apreciar a idoneidade das garantias, nos termos do n° 8 do artigo 199º do CPPT, só procedeu a tal apreciação cerca de 2 anos depois e após ter ordenado a remoção da suspensão da execução e ordenado a penhora de créditos».
Com esta sua conduta acabada de exprimir pelo Ministério Público, a qual tem assento nos elementos dos autos, julgamos que a Administração Fiscal não actuou de acordo com a lei ordinária, e constitucional, que impõem uma actuação em conformidade com a «confiança suscitada na contraparte», nos termos do artigo 6.º-A do Código de Procedimento Administrativo – cf. também o artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa.
Pelo que, apresentando muito embora uma bem elaborada e aparentemente muito bem fundada argumentação, a sentença recorrida julgamos que não gozará de acerto, ao não ter atentado que, uma vez notificada a executada reclamante, ora recorrente, para reforçar a garantia prestada, e tendo oferecido mais bens para o efeito, o órgão da execução fiscal não podia ter prosseguido a execução fiscal – que estava suspensa – efectuando penhoras de créditos, sem que primeiramente se tivesse pronunciado sobre a idoneidade dos bens adicionalmente por ela oferecidos como garantia.
Estamos, deste modo, a dizer – e dada a resposta à questão decidenda – que não pode subsistir a sentença recorrida, que, por tal sinal, terá de ser revogada.
Como assim, resta-nos concluir, em síntese, que a penhora de créditos do devedor inscreve-se dentro dos poderes da entidade exequente de nomear bens à penhora, designadamente nos termos do n.º 4 do artigo 215.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
No entanto, a penhora de créditos pelo órgão da execução fiscal, antes da pronúncia devida sobre a insuficiência de garantia prestada, apresenta-se violadora do princípio legal e constitucional da boa-fé que deve nortear a actuação da Administração Fiscal, e que consiste fundamentalmente na «confiança suscitada na contraparte», nos termos do artigo 6.º-A do Código de Procedimento Administrativo (e também do artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa).
3. Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida, anulando-se a decisão reclamada.
Sem custas.
Lisboa, 19 de Maio de 2010. – Jorge Lino (relator) – Casimiro Gonçalves – Dulce Neto.