Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0983/09
Data do Acordão:02/18/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL NÃO ADUANEIRA
CÚMULO JURÍDICO
APLICAÇÃO DA LEI MAIS FAVORÁVEL
Sumário:I - Por força do artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008 de 31 de Dezembro [Orçamento do Estado para 2009], que deu nova redacção do artigo 25.º do RGIT, a regra do cúmulo material das contra-ordenações tributárias em concurso foi substituída pela regra do cúmulo jurídico.
II - E porque esse regime se apresenta abstractamente mais favorável ao arguido, deve ser aplicado sempre que as coimas aplicadas a cada uma das contra-ordenações ainda não tenham sido cumpridas.
Nº Convencional:JSTA00066289
Nº do Documento:SA2201002180983
Data de Entrada:10/12/2009
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF LISBOA PER SALTUM.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - CONTRA ORDENAÇÃO.
Legislação Nacional:RGCO ART3 ART32.
RGIT01 ART3 B ART25.
CP95 ART2 N4.
L 59/2007 DE 2007/09/04.
L 64-A/2008 DE 2008/12/31 ART113.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A..., S.A., recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão que o Tribunal Tributário de Lisboa proferiu em 30 de Dezembro de 2008 no recurso judicial interposto da decisão administrativa que aplicou à arguida uma coima única no montante de € 25.956,60 por força do cúmulo material das coimas de € 14.076,00 e € 11.880,60 aplicadas, respectivamente, no processo de contra-ordenação fiscal n.º 3247200506033539 e apenso n.º 3247200506033547.
Rematou as alegações de recurso com as seguintes conclusões:
A- Tendo sido notificada em 8 de Janeiro de 2009 da decisão recorrida proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, no âmbito do recurso de contra-ordenação n.º 2834/06.3 BELSB, a ora Recorrente vem pelo presente interpor recurso dessa sentença para o Supremo Tribunal Administrativo.
B- Uma vez que o prazo para a referida interposição apenas termina no dia 28 de Janeiro de 2009, o presente recurso deve considerar-se tempestivo.
C- O objecto do presente recurso respeita unicamente a matéria de direito, em especial à aplicação retroactiva de regime mais favorável.
D- Nestes termos, a decisão recorrida sustentou, nos termos do disposto no artigo 25.° do RGIT, a exclusão da regra da cumulação jurídica, pelo que as três coimas em que foi condenada a Recorrente deveriam ser cumuladas materialmente.
E- De facto, de acordo com o previsto no artigo 25.° do RGIT, na versão vigente antes da alteração introduzida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, que aprovou o OE para 2009, existindo concurso de contra-ordenações, “as sanções aplicadas (...) são sempre cumuladas materialmente”
F- Contudo, o artigo 113.° do OE para 2009 eliminou o regime da acumulação material das coimas, consagrando a solução do cúmulo jurídico para efeitos de determinação da coima única a aplicar. De tal forma que, o regime de concurso agora previsto no RGIT e inteiramente sobreponível ao previsto no artigo 19.° do RGCO.
G- O regime actualmente vigente no RGIT substancialmente mais favorável para o arguido quando comparado com o anterior regime assente na acumulação material das coimas.
H- De acordo com o regime da acumulação material (o que foi aplicado no âmbito da decisão recorrida e posteriormente revogado pelo OE para 2009), e atentos os valores de cada uma das três coimas parcelares em que foi condenada a Recorrente, esta seria condenada no pagamento de uma coima única no valor global de € 38.281,60.
I- Por sua vez, de acordo com o novo regime de cumulação jurídica das coimas concretamente aplicáveis, a Recorrente incorre no pagamento de uma coima a fixar entre o limite mínimo de € 14.076,00, e o limite máximo de € 30.000,00.
J- Inferindo-se do exposto que, a coima concreta a fixar dentro dos limites identificados será sempre menor que o montante resultante da acumulação material.
K- Assim, o novo regime agora consagrado é claramente mais favorável.
L- Dispõe o n.º 2 do artigo 3.° do RGCO que, “Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada”.
M- Ora, como prescreve a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, e, uma vez que a decisão recorrida ainda não transitou em julgado, há que aplicar o disposto na nova redacção do artigo 25.° do RGIT, porque claramente mais favorável ao arguido Recorrente.
1.2. O Exm.º Procurador Geral Adjunto em funções no Tribunal Tributário de Lisboa apresentou contra-alegações, que finalizou com as seguintes conclusões:
a. A situação objecto dos autos é regulada pelo disposto no art.° 25.º do RGIT;
b. Após a prolação da douta sentença e antes do seu trânsito em julgado, entrou em vigor a nova redacção dada ao artigo 25.º do RGIT pela Lei n.º 64-A/2008, de 31/12, ao art.° 25.º do RGIT;
c. Relativamente ao anterior regime, o novo regime do artigo 25.º do RGIT é mais favorável à arguida;
d. Nos termos do disposto no n.º 2 do art.° 3.º do Dec. Lei n.º 433/82, de 27/10, ex vi al. b) do art.° 3.º do RGIT, na situação dos autos, deve ser aplicado o disposto no art.° 25.º do RGIT, na sua actual redacção.
e. O recurso jurisdicional é procedente.
1.3. O Exm.º Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido de que devia ser concedido provimento ao recurso.
1.4. Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir.
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2. Na decisão recorrida foi fixada a seguinte matéria de facto:
1. Em 16 de Novembro de 2003, foi levantado o auto de notícia de fls. 2 contra a recorrente, imputando-lhe a prática de uma infracção prevista e punida nos arts. 26°, n.º 1 e 40.°, n.º 1, alínea a), do CIVA e 114.°, n.º 2 e 26.°, n.º 4, do RGIT, porquanto, exercendo a actividade com a CAE 051430, e registada em IVA no regime normal de periodicidade mensal, não entregou simultaneamente com a declaração periódica que apresentou fora do prazo legal, a prestação tributária necessária para satisfazer totalmente o imposto exigível, no montante de Euros 281.518,76.
2. Por despacho do chefe de finanças de Lisboa 2, por delegação de competências, datado de 4 de Julho de 2006, foi proferida a decisão sob recurso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzida, através da qual a reclamante foi condenada ao pagamento uma de coima única no montante de Euros 25.956,60 (cf. fls. 18 a 20, dos autos).
3. A recorrente foi notificada da decisão referida no ponto anterior em 11 de Julho de 2006 (cf. fls. 22 e A/R anexo, dos autos).
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3. O inconformismo do Recorrente, integrante do objecto do presente recurso jurisdicional, reconduz-se à questão de saber a decisão recorrida enferma de erro de aplicação e de interpretação do direito ao desatender a pretensão formulada pela arguida, ora Recorrente, no sentido de que lhe fosse fixada, em cúmulo jurídico, uma coima única resultante do concurso das infracções subjacentes ao presente processo de contra-ordenação fiscal (n.º 3247200506033539 e apenso n.º 3247200506033547), bem como ao processo de contra-ordenação fiscal n.º 3247200506043666, o qual deveria ser apensado a estes autos para o aludido efeito.
Tal pretensão da arguida foi julgada improcedente na decisão recorrida com o argumento de que as sanções aplicadas em processo de contra-ordenação fiscal são sempre cumuladas materialmente, o que exclui a pretendida cumulação jurídica e, consequentemente, a solicitada apensação. Em sustentação dessa tese, afirmou-se que não há «relativamente às contra-ordenações tributárias, o cúmulo jurídico das coimas que resulta do art. 19.º do RGCO, o que se justifica “pela importância fundamental para o funcionamento das instituições públicas que têm os créditos fiscais e as fortes razões de prevenção geral que a amplitude e a frequência da prática de contra-ordenações tributárias faz sobressair” (LOPES DE SOUSA, Jorge, e SANTOS, Manuel Simas - Regime Geral das Infracções Tributárias, anotado, 3ª edição, Lisboa, Áreas editora, 2008, pág. 284)» e invocou-se a doutrina contida no acórdão do TCA Sul de 27/11/2007, no recurso n.º 01804/07.
Assim, a questão que urge resolver é a de se saber qual o regime de punição do concurso de contra-ordenações fiscais: se o regime do cúmulo material, se o regime do cúmulo jurídico.
Em primeiro lugar, convirá recordar que o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que consagra o regime geral do ilícito de mera ordenação social (RGCO), é lei subsidiária em relação ao Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), por força do disposto no artigo 3.º, alínea b) deste regime legal. E que o artigo 3.º desse Decreto-Lei n.º 433/82 estabelece o seguinte:
Artigo 3º
Aplicação no tempo
1 - A punição da contra-ordenação é determinada pela lei vigente no momento da prática do factor ou do preenchimento dos pressupostos de que depende.
2 - Se a lei vigente ao tempo da prática do factor for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgamento e já executada.
3 - Quando a lei vale para um determinado período de tempo, continua a ser punida a contra ordenação praticada durante esse período.
Este preceito, que preconiza a possibilidade de aplicação da lei posterior mais favorável ao arguido, ainda que em relação a decisões transitadas mas não executadas, está em consonância com o disposto no n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal Sendo o Código Penal subsidiariamente aplicável no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações fiscais por força do artigo 32.º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro. na alteração produzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro Que procedeu à vigésima terceira alteração ao Código Penal de 1982., acolhendo a regra constitucional plasmada no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa de que «Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais grave do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido».
No caso sub judice, tanto na altura em que foram praticadas as infracções tributárias que originaram os aludidos processos contra-ordenacionais, como altura em que foi proferida a decisão recorrida, vigorava o artigo 25.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na redacção conferida pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que impunha, expressa e claramente, o cúmulo material das coimas ao estabelecer que «As sanções aplicadas às contra-ordenações em concurso são sempre cumuladas materialmente».
Todavia, por força do artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008 de 31 de Dezembro [Orçamento do Estado para 2009], esse preceito do RGIT passou a ter a seguinte redacção, vigente desde 1 de Janeiro de 2009:
ARTIGO 25.º
Concurso de contra-ordenações
1 - Quem tiver praticado várias contra-ordenações é punido com uma coima cujo limite máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infracções em concurso.
2 - A coima aplicável não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contra-ordenações em concurso.
3 - A coima a aplicar não pode ser inferior à mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contra-ordenações.
Donde resulta, nitidamente, que a regra do cúmulo material foi substituída pela regra do cúmulo jurídico, pois que quem tiver praticado várias contra-ordenações é punido com uma coima única com o valor máximo da soma das coimas aplicadas, desde que este não ultrapasse o dobro do limite máximo mais elevado das contra-ordenações em concurso e o valor mínimo correspondente ao valor da mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contra-ordenações.
E porque esse regime se apresenta abstractamente mais favorável ao arguido, deve ser aplicado sempre que as coimas aplicadas ainda não tenham sido cumpridas.
Por conseguinte, é inequívoco que a arguida, ora Recorrente, tem o direito de requerer que se pondere a aplicação do novo regime ao concurso de infracções subjacentes ao presente processo de contra-ordenação n.º 3247200506033539 (apresentação fora de prazo da declaração periódica de IVA relativa a período de 2003/03) e seu apenso n.º 3247200506033547 (apresentação fora de prazo da declaração periódica de IVA relativa a período de 2003/02), bem como ao processo de contra-ordenação n.º 3247200506043666 (apresentação fora de prazo da declaração periódica de IVA relativa a período de 2003/06) e o direito de requerer que se proceda à apensação deste processo para os aludidos efeitos.
Nesta conformidade, impõe-se a revogação da decisão recorrida e a baixa dos autos ao tribunal de 1ª instância para que aí seja efectuada a requerida apensação e proferida decisão de aplicação de uma coima única à arguida nos termos do artigo 25.º da RGIT na redacção dada pelo artigo 113.º, da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro.
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4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e ordenar a baixa do processo à 1ª instância para que aí seja efectuada a requerida apensação e proferida nova decisão que tenha em conta o regime previsto no artigo 25.º da RGIT na redacção dada pelo artigo 113.º, da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro.
Sem custas.
Lisboa, 18 de Fevereiro de 2010. Dulce Neto (relatora) – Pimenta do Vale - Valente Torrão.