Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0659/15
Data do Acordão:06/17/2015
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:LEGITIMIDADE ACTIVA
RECLAMAÇÃO DE DECISÃO DO ÓRGÃO DA EXECUÇÃO FISCAL
Sumário:A mera expectativa de vir a ser herdeiro legitimário na herança que venha a ser aberta por óbito do progenitor não confere ao filho do sócio de sociedade comercial unipessoal legitimidade para reclamar contra o acto do órgão de execução fiscal que determinou a venda de imóvel propriedade dessa sociedade no âmbito de execução fiscal que contra ela foi instaurada e se encontra pendente.
Nº Convencional:JSTA00069252
Nº do Documento:SA2201505170659
Data de Entrada:05/22/2015
Recorrente:A............
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF BEJA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Legislação Nacional:CCIV66 ART2132 ART2157.
CPC13 ART30.
CPPTRIB99 ART276.
Jurisprudência Nacional:AC STJ PROC4A3915 DE 2005/01/25.
Referência a Doutrina:GALVÃO TELES - DIREITO DAS SUCESSÕES 4ED PAG110.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A…………, com os demais sinais dos autos, recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão proferida pelo TAF de Beja que, na reclamação que deduziu contra o acto do órgão de execução fiscal que determinou a venda de bem imóvel da sociedade comercial B…………, Unipessoal Ld.ª, julgou verificada a excepção da ilegitimidade do reclamante e absolveu a Fazenda Pública da instância.
Rematou as alegações de recurso com as seguintes conclusões:

A. No Serviço de Finanças de Odemira foi instaurado o processo executivo n.º 0302201001002309, para cobrança de várias dívidas fiscais, designadamente IRS, constando como devedora a sociedade comercial unipessoal B…………, Unipessoal Ld.ª, detida exclusivamente por B………...

B. O Serviço de Finanças de Odemira determinou a venda por 70% do valor patrimonial do imóvel rústico inscrito sob o artigo 38º da Secção AR/AR da freguesia de ………, propriedade da sociedade - 11.780,50 (€ 16.829,28 x 70%).

C. Valor patrimonial este que nunca foi actualizado pelo coeficiente de actualização determinado anualmente por Portaria.

D. No auto de penhora do imóvel, que antecedeu a venda, ficou a constar que o imóvel vale cerca de € 3.000.000,00.

E. O recorrente A………… é filho do sócio único da sociedade executada, B…………, que tem 83 anos e que se encontra muito debilitado a nível de saúde.

F. O “thema decidendum” prende-se com a questão de se saber se o filho legítimo tem legitimidade para reclamar da decisão do órgão de execução fiscal que ordenou a venda de um prédio rústico propriedade de uma sociedade unipessoal, cujo único sócio é o seu pai.

G. Entende o recorrente que não está verificada a excepção da ilegitimidade conducente à absolvição da Fazenda Pública da instância.

H. A legitimidade processual tem como pressuposto a relação jurídica material formulada pelo autor.

I. A legitimidade, enquanto pressuposto processual, não é imutável, os factos supervenientes que podem ser atendíveis no momento da decisão podem ter repercussão no pressuposto processual legitimidade das partes.

J. Da análise do artigo 30º nº 3 do CPC conclui-se que o critério supletivo de aferição da legitimidade processual se deve basear no interesse em demandar ou contradizer, face ao objecto do processo.

K. No que directamente diz respeito ao processo de execução de natureza tributária regem as normas constantes dos artigos 153.º e sgs. do CPPT.

L. A legitimidade das partes deve ser determinada de acordo com a lei vigente no momento em que é proferida a decisão sobre a mesma (cfr. o aresto do STJ, de 14/11/94, CJ. - STJ, 1994, tomo III, pág.137 e sgs.; Acórdãos do TCA Sul­ 2.ª Secção de 27/11/2012, proc.5948/12 e de 14/11/2013, proc.7029/13).

M. A legitimidade activa para requerer a anulação do despacho da venda depende do fundamento (causa de pedir) que servir de base ao pedido.

N. Como se destila da jurisprudência vertida no Acórdão nº 1236/09.4TVLSB.L1-7 de 22-06-2010, do Tribunal da Relação de Lisboa, “(...) a legitimidade dos herdeiros legitimários terá de ser aferida em função do que o autor alegue na petição inicial não necessitando que alegue a existência de um prejuízo efectivo.

O. A legitimidade de terceiros deve ser casuisticamente aferida, revestindo natureza preventiva do direito a acautelar a reclamação dos actos do órgão de execução fiscal, sendo também equiparada a uma verdadeira providência cautelar de natureza administrativa.

P. No caso vertente, o interesse em demandar resulta da necessidade de impedir a venda por um valor muitíssimo inferior ao real valor do imóvel, aliado ao facto de o bem, a brevíssimo trecho, fazer parte do acervo hereditário do recorrente.

Q. É esse o direito e interesse legítimo do terceiro que fundamenta a sua legitimidade.

R. As expectativas de herdar o imóvel rapidamente são elevadíssimas, e serão frustradas se o mesmo for vendido por um valor que na sua base é de € 11.780,50, quando é a própria Autoridade Tributária no auto de penhora que valorou os € 3.000.000,00.

S. O valor de base da venda não poderia ser dissemelhante do que consta do Auto de Notícia, existindo um evidente depauperar da herança, pois o recorrente ver-se-á na contingência de poder ficar privado de um activo de grande valor, que afectará o seu quinhão hereditário e a própria intangibilidade da legítima, a coberto de uma ilegalidade do OEF.


1.2. A Recorrida não apresentou contra-alegações.

1.3. O Exmº Procurador-Geral Adjunto junto do Supremo Tribunal emitiu douto parecer no sentido de que o recurso não merecia provimento, porquanto «A apreciação da legitimidade depende de se considerar ter sido afectado num direito ou interesse legítimo, nos termos do previsto no dito art. 276º», e o direito do reclamante, como herdeiro, «ainda não existia à data do ato impugnado», nem a expectativa jurídica de vir a herdar o imóvel integra aquele interesse legítimo.

1.4. Com dispensa de vistos, dada a natureza urgente do processo, cumpre decidir.

2. Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte matéria de facto:

1 - No Serviço de Finanças de Odemira corre termos o processo de execução fiscal nº 0302201001002309 e apensos para cobrança de dívidas fiscais, nomeadamente IRS liquidado na sequência de acção inspectiva levada a cabo;

2 - É executada na execução fiscal a sociedade comercial “B…………, Unipessoal, Ld.ª” da qual é sócio único B…………, com domicílio fiscal em ………, ………;

3 - No âmbito do processo de execução fiscal foi proferido em 11/09/2014 0 seguinte despacho: “Proceda-se à venda do bem penhorado nos autos por meio de Leilão Electrónico nos termos do art. 248º do CPPT e da Portaria nº 219/2011 de 1 de junho. Nos termos do nº 2 do art. 248º do CPPT a venda irá decorrer no prazo de quinze dias sendo o valor base o correspondente a 70% do determinado nos termos do art. 250º do CPPT ou seja € 11. 780,50 (€ 16.829,28X70%). (…) O bem objecto desta venda tem a seguinte descrição: Prédio rústico situado em “Herdade da ………” com a área total de 298,534 ha, sem inscrição própria na matriz mas a destacar do artigo 260; secção AR/AR1 1, actual artigo 38º secção AR/AR Freguesia e concelho de ………, Distrito de Setúbal, descrita na CRP de ……… sob o nº 3123/20050118, com o valor patrimonial de 16.829,28€. (…)”;

4 - O sócio único da sociedade executada foi notificado quanto ao despacho referido em 3 em 12/09/2014;

5 - A este despacho não reagiu;

6 - O imóvel descrito em 3 encontra-se registado como propriedade da sociedade unipessoal atrás referida;

7 - O aqui reclamante A………… é filho do sócio único da sociedade executada.

8 - Em 01/12/2014 deu entrada neste TAF a petição inicial que deu origem aos presentes autos.

3. Como se viu, estamos perante reclamação do acto do órgão de execução fiscal que, no âmbito da execução fiscal nº 0302201001002309 e apensos que pende no Serviço de Finanças de Odemira contra a sociedade “B………, Unipessoal Ldª”, determinou a venda de um prédio rústico que pertence à sociedade executada e cujo único sócio é o pai do reclamante.
Intentando questionar o anunciado valor de venda do imóvel, o reclamante sustenta a sua legitimidade para a reclamação face à alegada iminência de sucessão hereditária nos termos dos artigos 2132º e 2157º do Código Civil e o seu interesse na defesa do acervo hereditário.
Decidindo a questão prévia da legitimidade do reclamante, suscitada pela Fazenda Pública, o tribunal a quo deu por verificada essa excepção com a seguinte argumentação:

«No caso vertente invoca o reclamante que os seus futuros e incertos direitos de vir a receber herança advinda de seu pai se encontram, somente e potencialmente, afectados atendendo a que é seu herdeiro legítimo e legitimário nos termos dos arts. 2132º e 2157º do CC.
Ora, como o probatório elegeu, o bem que se encontra penhorado na execução fiscal não se encontra na esfera jurídica de B………… mas antes no património da sociedade comercial e por esta detida.
Analisadas as disposições contidas nos artigos 103º nº 2 da LGT e 276º do CPPT verifica-se ser reconhecida aos interessados, sejam o executado ou outros, o direito a reclamar judicialmente de todos os actos que tenham potencialidade lesiva, ou seja, que tenham capacidade de afectar a sua esfera jurídica.
Todavia, levar a cabo o exercício de aí pretender integrar o caso em apreço entende o Tribunal tratar-se de excesso interpretativo. Com efeito, tal pressupõe reconhecer-se que tal direito configura um direito remoto que assenta na manutenção do bem em nome de uma sociedade até que ocorra o decesso do sócio único e que o mesmo venha, por essa via, a integrar um acervo hereditário do qual o reclamante deterá quota legítima e legitimária.
Como bem invoca o Ilustre Representante da Fazenda Pública o reclamante não pode mais que arrogar-se uma expectativa de herança, futura, incerta e indeterminada, a qual não lhe permite a defesa de quaisquer direitos em concreto.
Ademais, como bem refere a Exma. Magistrada do Ministério Público, o bem encontra-se na titularidade de uma sociedade pelo que é por demais evidente que a construção jurídica em que assenta a reclamação se mostra insustentada do ponto de vista da legitimidade.
No que respeita à jurisprudência a que ambas as partes recorrem - Acórdão do TCA Norte de 23/09/2010, proferido no processo nº 00620/10.5 BEPRT – ainda que com diversos pontos de vista, tem o Tribunal que assentar que a potencialidade lesiva que ali se invoca sob o nº 1 do sumário deve ser concreta e não abstracta como se arroga o reclamante.
Ademais, o meio processual de que se socorre o Reclamante, de natureza urgente, visa acautelar a repercussão negativa imediata das decisões proferidas pelos órgãos de execução fiscal. Manifestamente esse não é o enquadramento dos autos pois a decisão reclamada - valor fixado para venda do imóvel - não se traduz de forma imediata em prejuízo irreparável para o direito que invoca.
Pelo exposto, entende o Tribunal verificar-se a aludida excepção da ilegitimidade do Reclamante em consequência do que deve ser a Fazenda Pública absolvida da instância.».
Dissente o reclamante, ora recorrente, do assim decidido, insistindo que a expectativa de vir a herdar o imóvel a breve trecho lhe confere legitimidade para impedir a venda do imóvel pelo preço anunciado, de molde a salvaguardar o seu quinhão hereditário e a intangibilidade da legítima.
Deste modo, a questão que se coloca neste recurso é a de saber se, face à expectativa de ser herdeiro legitimário na herança que venha a ser aberta por óbito do pai, o filho do único sócio de sociedade unipessoal tem legitimidade para reclamar do despacho que determinou a venda de um imóvel da propriedade dessa sociedade, no âmbito de um processo de execução fiscal instaurado contra essa sociedade.
Vejamos.
Sob a epígrafe «Legitimidade das partes», o artigo 30º do CPC estabelece, no seu nº 1, que «O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer» e, no seu nº 2, que «O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha».
Quer isto dizer que a legitimidade activa ocorrerá quando exista um interesse directo em demandar, isto é, quando da procedência da acção possa derivar uma utilidade para o demandante.
É incontroverso, à luz do que dispõe o artigo 276º do CPPT, que a possibilidade de reclamar das decisões proferidas pelo órgão de execução fiscal assiste não só ao executado mas também a qualquer terceiro que por elas possa ser afectado nos seus direitos e legítimos interesses, isto é, desde que se trate de acto que represente ou detenha, relativamente a si, uma lesividade objectiva e concreta, imediata e actual. Ou seja, para além do executado, terá também legitimidade para deduzir a reclamação a que se refere o art. 276º do CPPT qualquer terceiro que possa colher uma utilidade concreta, directa e actual (e não meramente abstracta, indirecta e potencial) da procedência do pedido de anulação do acto reclamado.
Todavia, no caso em apreço, não se vê em que medida o reclamante pode retirar uma utilidade concreta, directa e actual da anulação do despacho que determina a venda do prédio que pertence a uma pessoa colectiva por 70% do seu valor patrimonial.
É que, ao contrário do que o recorrente defende, a alegada expectativa de vir a ser herdeiro legitimário do único sócio dessa pessoa colectiva, por ocasião do seu futuro óbito, ainda que estimado para breve, não lhe confere, directa ou indirectamente, qualquer direito sobre o prédio em causa ou, sequer, qualquer direito de defesa de um acervo hereditário que inexiste antes da morte do autor da sucessão, como clara e proficientemente se explica no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 25/01/2005, no processo nº 04A3915, e que, por isso, aqui nos limitaremos a transcrever nos seguintes moldes:
«[…] Importa considerar que:
Primeiro: em vida do autor da sucessão os herdeiros legitimários, segundo o nosso ordenamento jurídico, apenas podem reagir em defesa da sua legítima relativamente a negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar - artº 242º, nº 2, do CC; […]
Segundo: As normas que regulam a sucessão legitimária são, sem qualquer dúvida, normas cogentes, imperativas, pois o autor da sucessão não pode por sua vontade furtar-se-lhes (artº 2027º). Simplesmente, a finalidade da lei ao instituir a legítima não é a de limitar directamente, em vida do de cujus, os seus poderes de disposição sobre os bens que lhe pertencem; é, sim, a de garantir à data da abertura da sucessão - que é a do falecimento daquele (artº 2031º) - uma certa porção de bens a determinados herdeiros, com obediência a uma ordem e a regras que o próprio legislador também dita (artº 2157º).Por isso mesmo é que no artº 2162º do mesmo código se diz que a legítima é calculada atendendo ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança.
Por conseguinte, não se encontrando aberta a sucessão do réu B, não se vê como pode logicamente sustentar-se que os negócios concluídos atingiram a legítima da autora. […]
Terceiro: em vida dos pais os filhos não dispõem de nenhum direito subjectivo aos bens daqueles, nem sobre esses bens, designadamente aos bens em concreto que possam integrar a sua quota hereditária. Com efeito, o domínio e posse dos bens da herança só se adquire pela aceitação e esta só pode ter lugar após a abertura da sucessão, isto é, depois da morte do de cujus (artºs 2028º e 2050º).
O mesmo sucede com a vocação sucessória (artº 2032º). A doutrina nacional é unânime em considerar que, antes da devolução sucessória, o legitimário tem uma expectativa jurídica; algo que, como refere o Prof. Galvão Teles, "é mais do que a esperança e menos do que o direito. Mais do que a esperança porque beneficia duma protecção legal traduzida em providências tendentes a defender o interesse do titular e a assegurar-lhe quanto possível a aquisição futura do direito.
Menos do que o direito porque ainda não é este: é o seu germe, o seu prenúncio ou guarda avançada, como que o direito em estado embrionário. A expectativa do legitimário é o embrião do seu futuro ius sucedendi, só nascido com a morte do de cujus" (Direito das Sucessões, 4ª edição, 110).».
Torna-se, pois, claro que a expectativa jurídica invocada pelo reclamante é insusceptível de lhe conferir legitimidade para reclamar do acto que determinou a venda do imóvel pertencente à sociedade executada e à qual, como se viu, o reclamante é totalmente estranho.
Razão por que nenhuma censura merece a sentença recorrida.

4. Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 17 de Junho de 2015. – Dulce Neto (relatora) – Ascensão LopesAna Paula Lobo.