Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02253/19.1BELSB
Data do Acordão:04/08/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ANA PAULA PORTELA
Descritores:ASILO
AVERIGUAÇÕES
RISCO
TRATAMENTO DISCRIMINATÓRIO
Sumário:I - Não resultando dos autos que existam motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro e que tais falhas, a existirem “impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante” a que alude o art. 3º nº 2, 2º parágrafo do Regulamento UE nº 604/2013, de 26/6 na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, não se impõe ao SEF qualquer tipo de averiguação.
II - Não existindo qualquer prova da veracidade dos fundamentos de qualquer situação degradante em centros de acolhimento em Itália não tem suporte fático a referência à existência de pareceres emitidos pelos Conselhos para os Refugiados dinamarquês, suíço e português.
Nº Convencional:JSTA00071110
Nº do Documento:SA12021040802253/19
Data de Entrada:03/11/2021
Recorrente:MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Recorrido 1:A………….
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO
Objecto:ACÓRDÃO TCAS
Decisão:PROVIDO
Legislação Comunitária:REG UE 604/2013, de 26/06 (REG DUBLIN III) ART 3.º, 2, 2.º §
CARTA DOS DIREITOS FUNDMAENTIAS DA UE ART 4.º
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

RELATÓRIO:
1.O Ministério da Administração Interna – SEF vem interpor recurso jurisdicional de revista para este STA, do acórdão do TCAS proferido em 10-12-2020, que negou provimento ao recurso interposto da sentença de 06-01-2020 do TAC de Lisboa que havia julgado procedente a ação intentada por A………, nacional da República da Gâmbia, contra o ora Recorrente, de impugnação da decisão da Diretora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que considerara inadmissível o seu pedido de proteção internacional, determinando a sua transferência para Itália, condenando-o “a sanar o défice instrutório de que padece o procedimento relativo ao pedido de protecção internacional formulado pelo Autor, para o efeito reunindo informação actualizada sobre as condições de acolhimento dos refugiados e requerentes de protecção internacional em Itália”.
2. Para tanto alegou em conclusão:
“1ª - Resulta evidente que o Tribunal recorrido na sua ponderação e julgamento do caso sub judice, e refutando a decisão do recorrente, não deu cumprimento às normas legais vigentes em matéria de asilo, mormente no que respeita ao mecanismo da Retoma a Cargo, ao qual a Itália está vinculada;
2ª - O ora recorrente deu início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertencia a Itália impondo a lei como consequência imediata (vinculada) que fosse proferido o ato de inadmissibilidade e de transferência;
3ª - O ora recorrente procedeu à determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo, procedimento regido pelo art. 362 e seguintes da Lei 27/2008, de 30 de junho (Lei de Asilo), tendo, no âmbito do mesmo sido apresentado, aos 16/10/2019, pedido de retoma a cargo às autoridades italianas, aceite.
4ª - Consequente e vinculadamente, por despacho da Diretora Nacional, nos termos dos art.s 19º-A, nº 1, a) e 37º nº 2 da citada lei, foi o pedido considerado inadmissível e determinada a transferência do requerente para Itália, Estado-Membro responsável pela análise do pedido de Asilo nos termos do citado regulamento, motivo pelo qual o Estado português se torna apenas responsável pela execução da transferência nos termos dos artºs 29º e 30º do Regulamento de Dublin;
5ª - "Estamos, portanto, perante um ato estritamente vinculado, sendo que a validade dos atos praticados no exercício de poderes vinculados tem de ser feita em função dos pressupostos de facto e de direito fixados por lei, ou seja pelo confrontação do factualidade dada como provada com o consequência jurídica imediatamente derivada da lei (...) é a própria Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, que no seu artigo 37.º, n.º 2, lhe impunha a atuação levada a efeito” (cf. Acórdão do TCA SUL de 19/01/2012, proc. nº 08319/11);
6ª - Com a devida vénia, afigura-se ao recorrente que o Acórdão, ora objeto de recurso, carece de fundamentação legal, porquanto não logrou fazer a melhor interpretação do regime que regula os critérios de determinação do Estado Membro responsável, em conformidade com o Regulamento (UE) que o hospeda.
7ª - Na verdade, não pode o ora recorrente aceitar o veredicto plasmado no Acórdão que considerou boa a tese do recorrido (Autor).
8ª - Estamos perante um procedimento em que o Estado Membro responsável já estava determinado, sendo este Estado, a Itália, Estado onde foi apresentado o pedido de proteção internacional. Ao deslocar-se para Portugal, cabe às autoridades portuguesas, ora Recorrente, aplicar vinculadamente as regras da retoma a cargo, previstas no artigo 23º do Regulamento (UE) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de julho, e ao Estado italiano cumprir com as obrigações previstas no artigo 18º, do mesmo Regulamento.
9ª - Estatui a alínea a) do nº 1 do art.º 19°-A da Lei 27/2008, de 30 de junho que "O pedido é considerado inadmissível, quando se verifique que está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV".
10ª - Sob a epígrafe «Procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional", o capítulo IV estabelece no art.º 36° que "quando haja lugar à determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de proteção internacional é organizado um procedimento especial regulado no presente capítulo" .
11ª - Quer isto dizer que, recebido o pedido de Proteção Internacional e verificando que, nos termos do n° 1 do art.º 37º, “a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado membro" as autoridades portuguesas, em conformidade com o legalmente estabelecido, iniciam um "procedimento especial", de acordo com o previsto no Regulamento (UE) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho;
12ª - Nesse sentido e em sede de garantias dos requerentes, o regulamento Dublin vem estabelecer no art.º 4° o direito à informação e, no art.º 5º, a realização de uma entrevista pessoal A fim de facilitar o processo de determinação do Estado-membro responsável ( ... ). A entrevista deve permitir, além disso, que o requerente compreenda devidamente as informações que lhe são facultadas nos termos do art.º 4º. ";
13ª - No caso em escrutínio, e em cumprimento do disposto no art. 25.º do Regulamento 604/2013 (Regulamento Dublin) ex vi art.º 36.º, nº2 da Lei 27/2008, foi realizada entrevista pessoal ao requerente que deu origem ao respetivo Relatório;
14ª - A Entidade Demandada, ora Recorrente, observou as exigências previstas no artigo 5º do Regulamento supra mencionado, tendo realizado, antes da decisão que determinou a transferência, uma entrevista pessoal com o requerente, ora Autor e, bem assim, elaborado um resumo escrito, através de relatório/formulário, do qual constam as principais informações facultadas pelo requerente;
15ª - Por outro lado, no âmbito desta entrevista, o recorrido foi informado da aplicação do referido Regulamento quanto aos critérios de determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional que formulou, tendo-lhe sido facultada a possibilidade de pronuncia quanto à eventual decisão de retoma a cargo a proferir pelo Estado onde o pedido foi apresentado, bem como alegar elementos susceptíveis de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade e, consequentemente, a sua transferência para Itália;
16ª - No âmbito do Procedimento Especial previsto no Capítulo IV da Lei de Asilo (artigos 36.º a 40.º) relativo à determinação do Estado-membro responsável pela análise do pedido, na medida em que não se vai analisar o mérito do pedido nem os fundamentos em que se baseiam a pretensão do recorrido, não se impõe à Administração que adoptasse quaisquer outras diligências de prova ou de instrução do pedido;
17ª - Não é aplicável o disposto no art.º 17º nº 2 da Lei do Asilo, afastada pela certeza "especial" do procedimento plasmado no art.º 36º e ss. da referida Lei, tal como se comprova no nº 7 do art.º 37º, que estipula que: "em caso de resposta negativa do Estado requerido ao pedido formulado pelo SEF, nos termos do nº 1 observar-se-á o disposto no capítulo III".
18ª - A tramitação do procedimento de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional obedece a regras de procedimento diferente, que são as estabelecidas pelo Regulamento (UE) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho (Regulamento Dublin). ln casu, a Itália aceitou a retoma a cargo, o que afasta decisivamente a aplicabilidade das normas do capítulo III (e de todas as suas normas), à situação vertente.
19ª - Quanto à questão da existência de eventuais falhas sistémicas nos procedimentos de receção dos pedidos de proteção internacional por parte das autoridades italianas, o Regulamento Dublin, no artigo 3º, n.º 2, prevê, efetivamente, que "Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capitulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável".
20ª - E nos termos do art.º 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) "Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes".
21ª - Ora, quer no tocante ao sistema de análise dos pedidos de asilo na Itália, quer nos elementos constantes nos autos, inexistem quaisquer indícios que permitam concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento de Asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes, que impliquem um risco de tratamento desumano ou degradante, ou que dadas as particulares condições do recorrido a transferência implique um risco sério e verosímil de exposição a um tratamento contrário ao art.º 4º da CDFUE, nem risco objetivo (direto ou indireto) de reenvio para o país de origem, para que Portugal não proferisse a decisão de transferência ora impugnada, motivos esses que o recorrido não invocou quando efetuou pedido de proteção internacional.
22ª - Para melhor corroborar a posição do ora recorrente vejamos a argumentação do TACL no Processo n° 471/19.1BELSB, a qual desde já subscrevemos:
"Em conformidade com a confiança mútua entre o Estados-Membros no âmbito do SECA, existe uma forte presunção e no que as condições materiais de acolhimento oferecidas aos requerentes de proteção internacional nos Estados-Membros serão adequadas, com respeito pelo Direito da União e pelo direito da União e pelos direitos fundamentais. Nesse sentido, vejam-se as considerações expendidas no Acórdão do Tribunal de Justiça, de 21/12/2011, proferido nos processos apensos nºs C-411/10 e C-493/10.
Entendimento que foi vincado muito recentemente pelo TJUE em Acórdão de 19/03/2019, proferido nos apensos C-297/17, C-318/17, C-319/17 e C-438/17, (...) E não poderia ser de outra forma, sob pena de o Sistema Europeu Comum de Asilo se tornar num "Asylum Shopping", em que o requerente de asilo apresenta pedidos de proteção internacional em mais do que um Estado Membro ou escolhe o Estado-Membro onde pretende ver o seu pedido apreciado em detrimento de outros, com fundamento nas condições de receção ou de assistência social que cada estado-membro tem para oferecer (optando pelo estado membro que ofereça melhores condições). Não é este o escopo da concessão de proteção internacional às pessoas que, legitimamente procurem a proteção da União.
Sublinhe-se que, sem prejuízo, como não poderia deixar de ser, da aplicação integral do Convenção de Genebra de 1951, completada pelo Protocolo de Nova Iorque de 31 de janeiro de 1967, o qual assegura que ninguém será enviado para onde possa ser novamente alvo de perseguições ou de maus tratos e ofensas, o Regulamento (UE) nº 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de julho de 2013, criou critérios objetivos e equitativos quanto à determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional, assegurando a igualdade de tratamento de todos os Requerentes e beneficiários de proteção internacional.(...)".
23ª - Na mesma linha, veja-se sentença proferida pelo TACL, no Processo n° 1741/18.1BELSB, a qual também desde já subscrevemos:
"( ... ) como explicita o TJUE, "O artigo 4º da Carta dos Direitos Fundamentais do União Europeia deve ser interpretado no sentido de que: - mesmo não havendo razões sérias para crer na existência de falhas sistémicas no Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo, a transferência de um requerente de asilo no âmbito do Regulamento n.º603/2013 só pode ser feita em condições que excluam que essa transferência implique um risco real e comprovado de o interessado sofrer tratos desumanos ou degradantes, na aceção desse artigo ( ... ).” (itálico nosso) - cfr. acórdão do Tribunal de Justiça de 16/02/2017. proferido no proc. nº C-578/16 PPU (disponível cm www.curia.europa.eu . ( ... )

A este propósito, há que sublinhar, também, que no que respeita às condições de acolhimento no Estado-Membro responsável, este está vinculado pela Diretiva 2013/33/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de proteção internacional.

Assim, e em conformidade com a confiança mútua entre os Estados-Membros no âmbito do SECA, existe uma forte presunção de que as condições materiais de acolhimento oferecidas aos requerentes de proteção internacional nos Estados-Membros serão adequadas, com respeito pelo Direito da União e pelos direitos fundamentais. Neste sentido, vejam-se as considerações expendidas no acórdão do Tribunal de Justiça, de 21/12/2011, proferido nos processos apensos nºs C-411/10 e C- 493/10 (disponível em www.curia.europa.eu “ (…).

Em face do exposto, considerando o princípio segundo o qual os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, determinado em função dos critérios enunciados no capitulo III, do citado Regulamento, conforme dispõem os arts. 3°, 7º, nº 2, 18°, nº 1, al. b) e 23°, não estão reunidos os pressupostos legais para que o pedido de proteção internacional formulado pelo Autor possa ser apreciado por Portugal, como decidiu a Entidade Demandada, não cabendo, pois, às autoridades portuguesas proferir decisão de mérito acerca desse pedido ( ... ).

No caso vertente, reitere-se, não ocorre a violação dos referidos princípios, em virtude de a decisão ora impugnada não ter considerado as circunstâncias pessoais do requerente para efeitos de concessão de proteção internacional, porquanto, não estão reunidos os pressupostos legais para que o pedido de proteção internacional formulado pelo Autor possa ser apreciado em território nacional, não competindo às autoridades portuguesas analisar e proferir decisão acerca desse pedido, para efeitos de saber se ao requerente deve ou não ser concedido o direito de asilo. Tal decisão deverá ser emitida pelo Estado responsável pela análise do pedido ( ... ). “

24ª - Mais recentemente, o TCA Sul por Acórdão de 21/11/2019, sob o processo 1258/19.7BELSB deliberou que “(…) é certo que no procedimento concretamente observado, o SEF nada refere quanto à existência de motivos válidos indiciadores de eventuais falhas sistémicas no procedimento de asilo a observar pelo Estado italiano, nem quanto às condições de acolhimento dos requerentes ai existentes, a fim de ponderar se existe risco para o ora recorrente de vir a sofrer tratamento desumano ou degradante na acepção do art. 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. No entanto e como se viu, o recorrente nada alegou quanto às concretas circunstâncias que viveu em Itália.

Para além disso e quanto à situação geral do país, o TJUE considerou no âmbito do proc. n.º C-163/17, de 19/03/2019 acessível em www.curia.europa.eu parcialmente transcrito na sentença recorrida "que o carácter pouco desenvolvido do sistema social italiano, cujas carências são supridas, no que respeita à população italiana, com a entreajuda e solidariedade familiar, que não existe no que respeita aos beneficiários de protecção internacional, não constitui motivo para entender que os requerentes de protecção internacional que sejam transferidos para a Itália, ficarão em situação de privação material extrema ( ... ) as deficiências que possam existir na aplicação, pelo estado-Membro normalmente responsável pela análise do pedido de protecção internacional, de programas de integração dos beneficiários de tal protecção não pode constituir um motivo sério e comprovado para crer que a pessoa em causa correria, em caso de transferência para esse Estado-membro, um risco real de ser sujeita a tratos desumanos ou degradantes, na acepção do art. 4. º da Carta (...) no que se refere à questão de saber quais são os critérios por referência aos quais as entidades nacionais devem proceder a essa apreciação ( ... ) devem os mesmos ter um nível particularmente elevado de gravidade que depende do conjunto das dados em causa e que seria alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado-Membro tivesse como consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontrasse, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema, que não lhe permitisse fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentar-se, lavar-se e alojar-se, e que pusesse em risco a sua saúde mental ou a colocasse num estado de degradação incompatível com a dignidade humana ( ... )”

25ª - No mesmo sentido se pronunciou o TCA Sul no processo 1361/19.3BELSB em 30/12/2019, “A cláusula de salvaguarda prevista no art. 3.º n.º 2 do Regulamento Dublin III, exige a verificação de um duplo condicionalismo - a) que existam "motivos válidos para crer que há folhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro" e b) e que tais falhas "impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do art. 4. º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia". A nosso ver nenhum dos requisitos se verifica. Com efeito, a A. não tem problemas de saúde e não referiu ter sofrido quaisquer problemas no seu acolhimento em Itália mas apenas problemas familiares no seu país de origem, a Serra Leoa. ( ... ) Tais condicionalismos têm, a nosso ver, de ser apreciados em concreto, por referência à situação concreta de cada requerente, e não em abstracto, com a mera invocação de falhas sistémicas generalizadas (...) tem de haver um risco real para o requerente e a este cabe demonstrar que existem circunstâncias excepcionais que lhe são próprias, o que no caso dos autos não se verifica, nem nunca foi alegado pela requerente, quer nas declarações iniciais, quer na petição do presente recurso, onde apenas é referido o conhecimento comum e generalizado das dificuldades de acolhimento em Itália. Assim o SEF não se encontrava obrigado a fazer quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas do sistema de acolhimento italiano, uma vez que, no caso concreto, inexistem quaisquer indícios de que a A. tenha sido ou venha a ser vítima das mesmas, nomeadamente com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do art. 3.º n.º 2 do Regulamento de Dublin III".

26ª - E recentemente, o STA, no processo 2240/18.7BELSB, por Acórdão de 16/01/2020, "Mas, cremos, esta decisão não poderá manter-se, porque as circunstâncias deste caso, quer no tocante ao conteúdo das declarações do requerente quer ao conteúdo das ditas noticias, não impunham ao SEF o dever de proceder à pesquisa oficiosa de informações relativas ao procedimento de asilo e às condições de acolhimento de refugiados em Itália.

3. Na verdade, das "declarações" prestadas pelo requerente (ponto H do provado), apenas se colhe que ele veio de Itália para Portugal porque não se sentia em segurança dado haver muitos problemas no campo onde estava e porque era muito difícil ir ao hospital. Ou seja, ele invoca essencialmente razões de segurança, e de difícil assistência hospitalar, fazendo-o, diga-se, de forma muito genérica, dado que "não concretiza" qualquer episódio que possa ilustrar a sua queixa. ( ... )

Daí resultar que apenas em casos devidamente justificados, ou seja, naqueles casos em que existam motivos válidos para crer que "há falas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes" que tais falhas impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente por envolver tortura, é que se impõe ao Estado em causa diligenciar pela obtenção de informação atualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamento. Nestes casos, de ponta, não há quaisquer razões de celeridade e eficiência que possam suplantar a proteção devida ao requerente de asilo.

O que obviamente não ocorre neste caso, no qual as queixas do requerente, relativas à sua permanência em campo de "refugiados", em Itália, e desde logo por falta da sua necessária densificação, não são de molde a induzir qualquer "suspeita séria" - motivos válidos - de vir a sofrer - por parte do Estado Italiano - tratamento "desumano ou degradante", nos termos expostos ( ... ).

Assim, os epifenómenos traduzidos nas notícias oficiosamente respigados pelo tribunal, refletem toda essa inusitada situação vivida, nomeadamente em Itália, mas não são aptos a implicar o risco de tratamento desumano ou degradante, mormente tortura, dos requerentes de proteção internacional por parte do Estado Italiano.

Temos, por conseguinte, que as notícias levadas ao acervo factual provado, a título de factos notórios, não deixando de traduzir uma "situação anómala", não são, por si só, e atentos os contornos da situação, suscetíveis de configurar motivos válidos para crer que se preenche - no caso concreto - a hipótese legal prevista no 2º parágrafo do nº 2 do artigo 3º do Regulamento (UE) 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.06.2013. Isto é, elas não constituem razões sérias e verosímeis de que o requerente corra o risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, mormente tortura, por parte das autoridades italianas.”

27ª - Com efeito, no tocante ao sistema de análise dos pedidos de asilo na Itália, afigura-se-nos curial que inexiste qualquer indício que permita concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento de Asilo, único óbice para que Portugal não proferisse a decisão de transferência ora impugnada.

28ª - Efetivamente, em momento algum, o ora recorrido, concretizou em que medida foi sujeito a uma situação de falha sistémica ou tratamento desumano durante a sua permanência em solo italiano.

29ª - Com todo o respeito, cabe aqui apenas reiterar que a ora recorrente deu início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertencia à Itália impondo a lei como consequência imediata (vinculada) que fosse proferido o ato de inadmissibilidade e de transferência.

30ª - Nesta sede, não podia o Estado Português concluir que estava impedido, por força do disposto no segundo parágrafo do nº 2, do artigo 3º do Regulamento (UE) nº 604/2013, de proceder à transferência do recorrido para a Itália.

31ª - Crê-se destarte inequívoco, que o Acórdão a quo carece de legalidade, porquanto, conforme precedentemente explanado, no estrito cumprimento do estatuto pelo direito vigente sobre a matéria, se lhe impunha considerar impoluto o acto da ora Recorrente.

32ª - Ao invés, assim não atuou, razão pela qual ora se pugna pela revogação do douto Acórdão, atenta a correta interpretação e aplicação da lei.

Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso de revista ser admitido (cf. art.º 150º nº 1 do CPTA) e dado provimento, com as legais consequências, com que V. Exas., Venerandos Conselheiros, farão JUSTIÇA!”

3. Não foram deduzidas contra-alegações.

4. O recurso de revista foi admitido pela formação deste STA por acórdão de 18.02.2021.

5. O MP emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, revogando-se o acórdão recorrido e julgando-se improcedente a acção, com a consequente manutenção do acto impugnado e manutenção da decisão recorrida.

6. Notificadas as partes do mesmo, nada disseram.

7. Sem vistos, cumpre decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

- MATÉRIA DE FACTO fixada pelas instâncias:

O acórdão recorrido deu por reproduzida a matéria de facto assente na 1ª instância com relevância para a decisão da causa, e que foi a seguinte:

“A) A 8/10/2019, junto do Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF, o Autor apresentou pedido de protecção internacional, cfr. p.a. apenso aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

B) Verificou-se a existência de um registo no sistema EURODAC, inserido pela Itália, cfr. p.a. apenso aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

C) A 16/10/2019, o Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF formulou pedido de retoma a cargo às autoridades italianas, que aceitaram em 31/10/2019, cfr. p.a. apenso aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

D) A 4/11/2019, a Diretora Nacional do SEF proferiu decisão, que determinou a transferência do requerente para Itália e considerou o seu pedido inadmissível, cfr. p.a. apenso aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


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DO DIREITO

Vem o recorrente interpor recurso do acórdão do TCAS que manteve a decisão de 1ª instância de anulação do ato de 4/11/2019 proferido pela Diretora Nacional do SEF com o fundamento na sua ilegalidade.

Para tanto refere que “ em momento algum o ora recorrido concretizou em que medida foi sujeito a uma situação de falha sistémica ou tratamento desumano durante a sua permanência em solo italiano” , pelo que “ inexiste qualquer indício que permita concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento de asilo, único óbice para que Portugal não proferisse a decisão de transferência ora impugnada.”

A questão a conhecer é, assim, a de saber se deverá ser averiguado pelo SEF se se verificam, em Itália, Estado responsável pela decisão do pedido de asilo, falhas sistémicas nas condições de acolhimento de que resulte um risco de tratamento degradante ou desumano para o A./Recorrido, nos termos do artº 3º nº 2, 2º parágrafo do Regulamento UE nº 604/2013, de 26/6 ( Reg. Dublin III).

Entendeu a decisão recorrida que:

“Decorre das declarações prestadas pelo recorrido ao SEF, em 9/10/2019, que permaneceu em Itália durante cerca de dois anos, que o seu pedido de asilo foi recusado nesse país, que tem problemas de saúde, pois que “ A minha mão direita por vezes treme muito”, que saiu da Gâmbia, seu país de origem por problemas familiares, referindo a final, confrontado com a pergunta se “ tem algo mais a acrescentar” que “ Não quero regressar a Itália porque lá foi muito duro para mim. Quero ficar em Portugal porque gostei sempre deste país e porque aqui acho que vou ter melhor tratamento do que tive em Itália”

Declarações estas finais, prestadas de sopetão, que dificilmente se compaginam com o direito de audiência imposto pelo artº 5º/6 do Tratado de Dublin, que seguramente deverá ter um alcance com utilidade para as pretensões do requerente de asilo, não obstante se tratar de questão não abordada na sentença recorrida.(...)

Decorre do acima referido que o próprio SEF não atentou nas declarações prestadas pelo requerido, quanto à dureza da vida em Itália e às suas condições de saúde, não sendo natural que um jovem sinta tremuras na mão direita, pelo que foi efetivamente feito um alerta sobre as más condições de acolhimento sofridas em Itália.(...)

Tendo sido o pedido de asilo recusado em Itália deixou de fazer sentido fazer apelo à cláusula de salvaguarda referida no art.º3º/2,§2º do Tratado de Dublin III, porém o SEF está sujeito à aplicação do princípio do “non refoulement”, que vincula Portugal, o qual não tem aplicação restrita às condições existentes no país de origem do requerente, que no caso será a Gâmbia, onde refere ter tido problemas familiares.

Aplicar-se-á também ao retorno a Itália, não podendo o SEF ignorar os pareceres emitidos pelos Conselhos para os Refugiados dinamarquês, suíço e português, o último dos quais elaborado em 14/8/2019 e que se encontra junto a numerosos processos, e que dão conta das péssimas condições de acolhimento dos refugiados em Itália, ainda que na condição de “retornados” e que não excluem que os requerentes não vulneráveis, por estarem em boas condições de saúde, posam ser sujeitos a tratos desumanos ou degradantes naquele país, tratamentos esses que não se resumem à prática da tortura, a qual não é praticada na geografia europeia ocidental.

Assim sendo, impunha-se que o SEF averiguasse das concretas condições de acolhimento do recorrido em Itália como bem refere a sentença recorrida, indagando, no mínimo, juntos das suas congéneres italianas quais irão ser as concretas condições de acolhimento, em termos de habitação, alimentação, vestuário, saúde, dinheiro de bolso, o que não fez, alheando-se da situação do recorrido e confiando na sorte.

Resta, pois, com a fundamentação acima referida confirmar a sentença recorrida, por o despacho impugnado proferido pela Diretora Nacional do SEF, em 4/11/2019, padecer de défice instrutório, reabrindo-se o procedimento administrativo para que tal vício seja sanado.

Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso jurisdicional e em confirmar com a fundamentação supra referida a sentença recorrida.”

Então vejamos.

Refere o Regulamento Dublin, no artigo 3º, n.º 2 que "Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4. º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável".

Em suma, a cláusula de salvaguarda prevista neste artº 3º nº 2 do Regulamento Dublin III, exige a seguinte verificação:

“a) - que existam “motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro,” e

b) – e que tais falhas “impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia”.

A este propósito conclui-se no Ac. do TJUE proferido no caso A. Jawo c/Alemanha de 19 de março de 2019, proc. C-163/17, que:

“O artigo 4.º da Carta deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a tal transferência do requerente de proteção internacional, a menos que o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso da decisão de transferência conclua, com base em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados e por referência ao nível de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União, que esse risco é real para o requerente, pelo facto de que, em caso de transferência, este se encontraria, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema.(...)

A este respeito, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência dispõe de elementos apresentados pela pessoa em causa para demonstrar a existência de tal risco, esse órgão jurisdicional deve apreciar, com base em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados e por referência ao nível de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União, a existência de falhas sistémicas ou generalizadas, ou que afetem determinados grupos de pessoas (v., por analogia, Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Cãldãraru, C-404/15 e C-659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.º 89).(...)

“Esse limiar de gravidade particularmente elevado é alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado-Membro tiver por consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontre, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema, que não lhe permita fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentar-se, lavar-se e ter alojamento, e que atente contra a sua saúde física ou mental ou a coloque num estado de degradação incompatível com a dignidade humana (v., neste sentido, TEDH, 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia, CE:ECHR:2011:0121JUD003069609, §§ 252 a 263).

Como tal, o referido limiar não pode abranger situações que se caracterizem por uma grande precariedade ou uma forte degradação das condições de vida da pessoa em causa, quando estas não impliquem uma privação material extrema que coloque a pessoa numa situação de gravidade tal que possa ser equiparada a um trato desumano ou degradante.”

Nos termos do art.º 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) "Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes".

Ora, dos elementos constantes nos autos não resulta a existência de indícios de falhas sistémicas no procedimento de Asilo e nas condições do aqui recorrido que impliquem um risco de tratamento desumano ou degradante ou, dadas as suas particulares condições, um risco sério e verosímil de exposição a um tratamento contrário ao art.º 4º da CDFUE, para que não se proferisse a decisão de transferência aqui em causa.

Na verdade, o aqui recorrido, quer nas declarações que prestou no SEF quando foi ouvido, quer na sua petição inicial, não alegou quaisquer factos concretos que pudessem fundamentar a existência de um risco de vir a ser sujeito a tratamento desumano, não referindo terem ocorrido quaisquer deficiências graves nas suas condições de acolhimento em Itália.

Antes apenas alegando que não queria regressar a Itália “ porque lá foi muito duro para mim” mas sem referir em concreto em que consistiu essa situação de “dureza”.

E a referência a não estar de boa saúde porque “a sua mão direita por vezes treme muito”, assim como não estar a ser medicado, nem com acompanhamento médico não significa, só por si, a alusão a qualquer situação de deficiência de assistência médica em Itália.

Não está, assim, invocado, quer perante o SEF, quer na petição inicial, nem sequer provado nos autos que tenha sido vítima durante a sua permanência em Itália de atos suscetíveis de serem qualificados como desumanos ou degradantes e que, por isso, exista um risco efetivo de poder vir a ser sujeito em Itália a um tratamento desumano, nos termos que se encontram previstos no artº 3º nº 2 do Regulamento UE nº 604/2013.

O A. limitou-se, pois, a invocar em termos genéricos e abstractos as deficiências do acolhimento em Itália, onde esteve durante cerca de 2 anos.

Em suma, das suas declarações não se indicia qualquer falha sistémica no seu acolhimento em Itália nem qualquer risco de tratamento desumano ou degradante, sendo que lhe competia a ele alegar e demonstrar a existência de circunstâncias excepcionais que lhe fossem próprias e não o conhecimento comum e generalizado as dificuldades de acolhimento em Itália.

Pelo que o SEF não se encontrava obrigado a fazer quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas do sistema de acolhimento italiano, uma vez que, no caso concreto, inexistem quaisquer indícios de que o A. tenha sido ou venha a ser vítima das mesmas, nomeadamente com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artº 3º nº 2 do Regulamento Dublin III.

Não resulta, assim, alegada a existência de quaisquer factos que permitam indiciar que o autor vá ser transferido para um país onde se verifiquem deficiências sistémicas no procedimento de asilo e condições de acolhimento que impliquem o risco de ser desrespeitado o seu direito absoluto a não ser sujeito a penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos.

Neste mesmo sentido vai a jurisprudência deste STA como se extrai do acórdão que admitiu a revista:

“8. A questão do deficit de instrução dos procedimentos de decisão de devolução de uma pessoa a um País terceiro quanto às condições atuais existentes no procedimento de asilo e no acolhimento no Estado-Membro considerado responsável [in casu a Itália] para que se possa verificar se, no caso concreto, existem motivos que determinem a impossibilidade de tal transferência, tem vindo a colocar-se na jurisdição administrativa com frequência, constituindo matéria juridicamente relevante e cuja solução é aplicável em casos futuros.

9. Temos, por outro lado, que o TCA/S no juízo que proferiu terá, primo conspectu, decidido ao arrepio da jurisprudência deste Supremo [cfr., nomeadamente, entre outros os Acs. de 16.01.2020 - Proc. n.º 02240/18.7BELSB, de 04.06.2020 - Proc. n.º 01322/19.2BELSB, de 02.07.2020 - Procs. n.ºs 01786/19.4BELSB e 01088/19.6BELSB, de 09.07.2020 - Proc. n.º 01419/19.9BELSB, de 10.09.2020 - Procs. n.ºs 01705/19.8BELSB e 03421/19.1BEPRT, de 05.11.2020 - Procs. n.ºs 01108/19.4BELSB, 01932/19.8BELSB e 02364/18.0BELSB, de 19.11.2020 - Proc. n.º 01301/19.0BELSB], donde se segue a necessidade de recebimento do recurso, para reanálise do assunto com vista a uma esclarecida e melhor aplicação do direito.”

E quanto à referência da decisão recorrida a pareceres emitidos pelos Conselhos para os Refugiados dinamarquês, suíço e português, o último dos quais elaborado em 14/8/2019 e que se encontrariam junto a numerosos processos basta dizer inexiste qualquer prova da veracidade dos fundamentos no que respeita a qualquer situação degradante em centros de acolhimento em Itália pelo que não tem qualquer suporte fáctico a alusão, no caso concreto, aos referidos pareceres.

A este propósito extrai-se, por concordância, do acórdão deste STA de 115/20.9BELSB de 02/04/2021:

“(...) 23. Acresce que, sendo o país de destino da transferência, no caso concreto, um Estado-Membro da União Europeia, vigora o princípio da confiança mútua entre os Estados-Membros que impõe uma presunção de tratamento dos requerentes de asilo e de proteção internacional de acordo com o direito da UE e com os direitos fundamentais nesta vigentes, o que mais afasta a exigência de uma ulterior atividade instrutória, ou a sua justificação, a não ser perante indícios fortes e concretos em sentido contrário, que aqui se não divisam.

24. E este entendimento encontra-se plenamente de acordo com a jurisprudência do TJUE, o qual julgou, no âmbito do proc. C-163/17, em Acórdão de 19/3/2019, que «o caráter pouco desenvolvido do sistema social italiano, cujas carências são supridas, no que respeita à população italiana, com a entreajuda e solidariedade familiar, que não existe no que respeita aos beneficiários de proteção internacional, não pode bastar para basear a conclusão de que um requerente de proteção internacional seria confrontado, em caso de transferência para esse Estado-Membro, com tal situação de privação material extrema. (…) a existência de deficiências na aplicação, pelo Estado-Membro normalmente responsável pela análise do pedido de proteção internacional, de programas de integração dos beneficiários de tal proteção não pode constituir um motivo sério e comprovado para crer que a pessoa em causa correria, em caso de transferência para esse Estado-Membro, um risco real de ser sujeita a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4° da Carta».

E mais referiu o TJUE neste Acórdão: «no que se refere à questão de saber quais são os critérios por referência aos quais as autoridades nacionais competentes devem proceder a essa apreciação, importa sublinhar que, para serem abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 4° da Carta, que corresponde ao artigo 3° da CEDH, e cujo sentido e alcance são, portanto, por força do artigo 52° n° 3 da Carta, iguais aos conferidos por essa Convenção, as falhas referidas no número anterior do presente acórdão devem ter um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa (TEDH, 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia, CE:ECHR:2011: 0121JUD003069609, § 254). // Esse limiar de gravidade particularmente elevado é alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado Membro tiver por consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontre, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema, que não lhe permita fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentarse, lavarse e ter alojamento, e que atente contra a sua saúde física ou mental ou a coloque num estado de degradação incompatível com a dignidade humana (v., neste sentido, TEDH, 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia, CE:ECHR:2011:0121JUD003069609, §§ 252 a 263). //

Como tal, o referido nível não pode abranger situações que se caracterizam por uma grande precariedade ou uma forte degradação das condições de vida da pessoa em causa, quando estas não impliquem uma privação material extrema que coloque a pessoa numa situação de gravidade tal que possa ser equiparada a um trato desumano ou degradante».

E referiu, ainda, o TJUE no mesmo Acórdão:

«- o direito da União assenta na premissa fundamental segundo a qual cada Estado-Membro partilha com todos os restantes Estados-Membros, e reconhece que estes partilham com ele, uma série de valores comuns nos quais a União se funda, como precisado no artigo 2° TUE. Esta premissa implica e justifica a existência da confiança mútua entre os Estados-Membros no reconhecimento desses valores e, portanto, no respeito pelo direito da União que os aplica [Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judicial), C-216/18 PPU, EU:C:2018:586, n° 35 e jurisprudência referida], bem como no facto de que as respetivas ordens jurídicas nacionais estão em condições de fornecer uma proteção equivalente e efetiva dos direitos fundamentais reconhecidos pela Carta, nomeadamente nos artigos 1° e 4° desta, que consagram um dos valores fundamentais da União e dos seus Estados-Membros (v., neste sentido, Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Cãldãraru, C-404/15 e C-659/15 PPU, EU:C:2016:198, nºs 77 e 87).

- o princípio da confiança mútua entre os Estados-Membros tem, no direito da União, uma importância fundamental, dado que permite a criação e a manutenção de um espaço sem fronteiras internas. Mais especificamente, o princípio da confiança mútua impõe, designadamente no que respeita ao espaço de liberdade, segurança e justiça, que cada um desses Estados-Membros considere, salvo em circunstâncias excecionais, que todos os restantes Estados-Membros respeitam o direito da União e, muito particularmente, os direitos fundamentais reconhecidos por esse direito [v., neste sentido, Acórdãos de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Cãldãraru, C-404/15 e C-659/15 PPU, EU:C:2016:198, n° 78, e de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judicial), C-216/18 PPU, EU:C:2018:586, n° 36];

- no contexto do sistema europeu comum de asilo, nomeadamente do Regulamento Dublim III, (…), deve presumir-se que o tratamento dado aos requerentes de asilo em cada Estado-Membro está em conformidade com as exigências da Carta, da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra em 28 de julho de 1951 [Recueil des Traités des Nations Unies, vol. 189, p. 150, n° 2545 (1954)] e da CEDH (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o., C-411/10 e C-493/10, EU:C:2011:865, nºs 78 a 80)».”

Não se impunha, pois, no presente caso, obrigar o SEF a averiguar acerca das indicadas condições no procedimento de asilo e no acolhimento, e, por isso, “ a instruir o procedimento administrativo com informação fidedigna e atualizada sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano e as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália.”


*

Em face de todo o exposto acordam os juízes deste STA em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e julgar a ação administrativa improcedente.

Sem custas (art.º 84.º da Lei nº 27/2008, de 30-06).

Lisboa, 08/04/2021

Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº10-A/2020, de 13.03, o Relator atesta que os Juízes Conselheiros Adjuntos Dr Adriano Cunha e Carlos Luís Medeiros de Carvalho têm voto de conformidade.

Ana Paula Soares Leite Martins Portela