Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0596/09.1BEPRT 0411/18
Data do Acordão:05/04/2022
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IRC
DESCONSIDERAÇÃO DE CUSTOS
FISCAL
PROVISÃO
TÍTULO EXECUTIVO
ANULAÇÃO
PROVEITOS
Sumário:I - A desconsideração fiscal de uma provisão para despesas para crédito vencido implica a anulação do correspondente proveito, tendo presente que, no caso, tais despesas não se encontravam garantidas e que não surge controvertido que a cobrança não se realizou até ao final do terceiro mês posterior ao vencimento do crédito.
II - Apesar de não competir à AT corrigir a contabilidade dos contribuintes, mas apenas corrigir a relevância fiscal dos dados contabilísticos, os princípios do inquisitório e da verdade material, impõem-lhe, no âmbito do apuramento da matéria tributável, não só retirar relevância fiscal aos elementos de facto resultantes de actos dos contribuintes que os favoreçam indevidamente, mas também atribuir relevância tributária a situações de facto que os favoreçam.
Nº Convencional:JSTA000P29342
Nº do Documento:SA2202205040596/09
Data de Entrada:08/07/2020
Recorrente:BANCO A…………, S.A.
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional de revista do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte no processo n.º 596/09.1BEPRT
Recorrente: “Banco A…………, S.A.”
Recorrida: Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no art. 150.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), do acórdão por que o Tribunal Central Administrativo Norte ( Disponível em http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/-/41a94e61c835b53180257e05004fe91d.), concedendo parcial provimento ao recurso jurisdicional por ela interposto, manteve a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto na parte que se refere às correcções respeitantes a provisões para despesas com crédito vencido, parte em que julgou improcedente a impugnação judicial por ela deduzida contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) e juros compensatórios referente ao ano de 2005.

1.2 A Recorrente apresentou alegações, com conclusões do seguinte teor:

«1.ª Em face do decidido em segundo grau de jurisdição considera a Recorrente verificar-se a violação de lei substantiva na interpretação conferida aos artigos 104.º, n.º 2 e 266.º da CRP, aos artigos 55.º e 58.º da LGT e ao artigo 6.º do RCPIT, conjugados com as disposições consagradas nos artigos 17.º e 34.º do Código do IRC, no Aviso n.º 3/95 e na Instrução n.º 4/96, ambos do Banco de Portugal, e no Plano de Contas para o Sistema Bancário, cumprindo dilucidar da obrigatoriedade de efectuar a anulação do proveito correspondente às despesas com créditos vencidos, quando se conclua pela desconsideração fiscal da provisão, colocando-se, em concreto, a questão de saber se os artigos 17.º, n.º 1 e 34.º, n.º 1, alínea d), do Código do IRC, em conjugação com a disciplina contabilística e normativa do Banco de Portugal, devem ser interpretados no sentido de que a desconsideração fiscal de uma provisão para despesas para crédito vencido implica a anulação do correspondente proveito, tendo presente que tais despesas não se encontravam garantidas e que não surge controvertido, independentemente da percentagem de provisionamento, que a sua cobrança não se realizou até ao final do terceiro mês posterior ao vencimento do crédito;

2.ª Encontram-se preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista previstos no artigo 150.º do CPTA, desde logo porque a questão de saber se a desconsideração fiscal de uma provisão para despesas para crédito vencido implica a anulação do proveito correspondente é matéria com amplo interesse objectivo, isto é, que torna manifestamente útil a presente revista, e que seguramente transpõe os limites do caso concreto e se repetirá em futuros casos, atenta a relevância fiscal das provisões no sector bancário, a premência de, com os tempos de crise económica e financeira que se vêm vivendo em Portugal e com as dificuldades e constrangimentos que publicamente se assiste no seio de grandes instituições financeiras, que a relevância fiscal dos seus dados contabilísticos se afirme como uma matéria clara, isenta de dúvidas e que reflicta uma tributação do lucro das instituições financeiras tão real quanto possível, o aumento muito significativo da constituição ou reforço de provisões para crédito vencido (actualmente designadas de imparidades) e a susceptibilidade de as dúvidas interpretativas se repetirem em vários litígios, quer atendendo à disseminação da prática por diversas instituições financeiras, quer ainda porque, no caso do ora Recorrente, a anulação do proveito correspondente às despesas com crédito vencido provisionadas e fiscalmente não relevadas já deu origem à dedução de diversas impugnações judiciais contra as liquidações adicionais emitidas pelos serviços de inspecção tributária (cf. impugnações judiciais que correm termos sob os números 106/03/22 e 931/06.4BEPRT, junto do Tribunal Central Administrativo Norte, e sob os números 1874/05.4BEPRT, 1913/05.9BEPRT, 530/08.6BEPRT, 967/11.3BEPRT, 584/11.3BEPRT e 1388/12.6BEPRT, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto);

3.ª Trata-se o caso concreto claramente de um tipo, porquanto para o ora Recorrente e para qualquer instituição financeira o tratamento fiscal das provisões para crédito vencido e as consequências fiscais da sua desconsideração são temáticas essenciais, pelo que se afigura inequívoca a relevância social de importância fundamental;

4.ª Por outro lado, resulta evidente a relevância jurídica da questão e que assume igualmente importância fundamental, já que não se trata de uma questão meramente teórica, mas de verdadeira utilidade prática, estando em causa a aplicação de um regime contabilístico a que têm sido atribuídas determinadas consequências fiscais e que tem funcionado numa relação de simetria entre custo e proveito, sendo que a interpretação do Tribunal recorrido vem lançar dúvida sobre a existência dessa relação de simetria pelo facto de se estar perante uma antecipação ou previsão da despesa;

5.ª Deste modo, entende o Recorrente que a relevância jurídica de importância fundamental reside no facto de se impor clarificação sobre o alcance da anulação dos proveitos correspondentes aos custos fiscalmente desconsiderados quando aos mesmos não subjaz uma despesa efectivamente incorrida mas uma antecipação/previsão da despesa;

6.ª A litigiosidade em torno desta questão não tem conduzido à mesma resposta, o que antecipa a necessidade de revista para uma melhor aplicação do direito;

7.ª Com efeito, se o Tribunal recorrido considerou que não se impunha a anulação do proveito correspondente à provisão fiscalmente desconsiderada, o Recorrente já obteve em sede arbitral resposta diametralmente oposta, em situação exactamente idêntica, ainda que referente ao outro exercício, na decisão proferida no processo arbitral n.º 29/2012 - T, em 15.06.2012, que correu termos junto do Centro de Arbitragem Administrativa (disponível em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/), em que o Tribunal determinou, numa interpretação conjugada dos normativos contabilísticos e dos princípios e regras que norteiam a actividade da administração tributária, que se impunha a anulação contabilística do proveito correspondente à despesa com crédito vencido;

8.ª Deste modo, afigura-se ao Recorrente que a presente questão interpretativa move-se num terreno de nebulosidade e indefinição que, a julgar pelo número de litígios que ainda aguardam decisão, permite concluir pelo agravamento dessa indeterminação;

9.ª Assim, considera a Recorrente que tal interpretação proferida em segundo grau de jurisdição é susceptível de se aplicar em numerosos novos litígios administrativos e judiciais, gerando uma avultada incerteza e instabilidade e fazendo antever como objectivamente útil a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo para uma melhor aplicação do Direito;

10.ª O acórdão recorrido decidiu, salvaguardando o devido respeito, em violação de lei substantiva na interpretação conferida aos artigos 104.º, n.º 2 e 266.º da CRP, aos artigos 55.º e 58.º da LGT e ao artigo 6.º do RCPIT, conjugados com as disposições consagradas nos artigos 17.º e 34.º do Código do IRC, no Aviso n.º 3/95 e na Instrução n.º 4/96, ambos do Banco de Portugal, e no Plano de Contas para o Sistema Bancário;

11.ª Encontra-se subjacente à decisão recorrida o entendimento, segundo se depreende, de que as provisões são meras antecipações ou previsões de despesas e que, como tal, o seu não reconhecimento fiscal não implica a anulação contabilística do proveito correspondente por não se tratarem de verdadeiros custos;

12.ª Ora, entende o Recorrente que constitui matéria de facto dada por provada pela Tribunal a quo e não contestada que se está perante despesas com crédito vencido, sem garantia, cuja cobrança não se realizou até ao final do terceiro mês posterior ao vencimento do crédito, já que a única questão que a administração tributária suscitou foi a de todas as despesas poderem ser provisionadas à taxa de 100%, não colocando em causa que as mesmas eram elegíveis para efeitos da provisão;

13.ª Neste contexto, afigura-se ao Recorrente que a interpretação que o Tribunal efectuou incorreu em violação de lei substantiva, na medida em que se impunha a anulação do proveito correspondente às despesas com o crédito vencido, sob pena de se tributar um proveito inexistente;

14.ª Com efeito, no Plano de Contas Para o Sistema Bancário estabelecia-se no ponto 4 ii) do Capítulo VII, relativamente à contabilização de juros e de despesas, o seguinte: “As despesas relativas a estes créditos cujos juros são incorporados na conta de resultados serão registadas na conta «289 – Despesas de crédito vencido». A regularização dos juros relativos aos restantes créditos vencidos será efectuada através de débito das respectivas contas de proveitos se se referirem ao exercício em curso. Caso contrário será debitada a conta «6718 – Perdas relativas a exercícios anteriores». O registo destes juros, bem como das respectivas despesas, passará a ser realizado (…) nas contas extrapatrimoniais”;

15.ª Desta norma resulta que aquelas despesas ficam registadas em contas extrapatrimoniais, tendo como contrapartida um débito de uma conta de proveitos ou da conta 6718 – Perdas relativas a exercícios anteriores, o que implica em qualquer caso que o valor daquelas despesas não releve positivamente para efeitos da determinação do lucro tributável do ano em que deve concretizar-se tal débito;

16.ª É por isso que, não sendo atribuída relevância fiscal às despesas com crédito vencido, não pode deixar de se anular o proveito correspondente;

17.ª E se assim é, facilmente se constata que a leitura que se fez do disposto nestas normas contabilísticas, conjugadas com os artigos 17.º e 34.º do Código do IRC, foi errónea, pois que o legislador contabilístico pretendeu que o resultado tributável não fosse afectado;

18.ª Simultaneamente, é feita uma errónea interpretação dos princípios previstos nos artigos 104.º, n.º 2 e 266.º da CRP, bem como dos artigos 55.º e 58.º da LGT, pois que não é por se tratar de uma mera previsão ou antecipação de despesa que deixa de haver um correspondente proveito que tenha de ser anulado;

19.ª Em suma, considera a Recorrente que, de acordo com o disposto nas disposições contabilísticas aplicáveis e ao abrigo do disposto nos princípios e normas supra referidas, se impunha a anulação do proveito e, desta forma, aquela correcção padece de ilegalidade;

20.ª Impõe-se, pois, concluir que o acórdão recorrido procedeu a uma incorrecta interpretação e aplicação dos artigos 17.º, n.º 1 e 34.º, n.º 1, alínea d), do Código do IRC, na redacção à data aplicável, conjugados com as disposições normativas do Banco de Portugal e os demais princípios e normas supra indicados, devendo interpretar-se tais normas no sentido de que a desconsideração fiscal de uma provisão para despesas para crédito vencido implica a anulação do correspondente proveito, tendo presente que tais despesas não se encontravam garantidas e que não surge controvertido, independentemente da percentagem de provisionamento, que a sua cobrança não se realizou até ao final do terceiro mês posterior ao vencimento do crédito;

21.ª Em face da enunciada violação de lei substantiva, não pode o acórdão recorrido manter-se.

Por todo o exposto, e o mais que o ilustrado juízo desse Venerando Tribunal suprirá, deve o presente recurso de revista ser admitido, devendo ser julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido na parte ora em discussão, assim se cumprindo com o DIREITO e a JUSTIÇA!».

1.3 A Recorrida não contra-alegou.

1.4 A Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal Administrativo emitiu parecer no sentido de que seja concedido provimento ao recurso. Isto, com a seguinte fundamentação: «[…]

O Recorrente defende, que, a não se considerar legalmente admissível a constituição de uma provisão de 100% para as despesas, o proveito correspondente às despesas com créditos vencidos, sem garantia, deve ser imediatamente anulado, quando a cobrança daquelas não se faça até ao final do terceiro mês posterior ao vencimento do crédito.
A Sentença recorrida parece assim não entender, mesmo não pondo em causa que as despesas referidas se reportam a créditos vencidos há mais de três meses, sem garantia.
Mas na verdade, as contas extrapatrimoniais destinando-se a fornecer informação relativa a eventos que possam implicar ulteriores modificações do património, não relevam para efeitos patrimoniais, não podem ser consideradas no apuramento do balanço, pelo que não constituem um valor a considerar na determinação do lucro tributável.
Por isso, parece-me que tem razão o Recorrente ao defender que, a não se atribuir relevância fiscal ao provisionamento das referidas despesas de crédito vencido, deverá entender-se que o valor destas despesas não releva para efeitos fiscais, por dever ser transferido para uma conta extrapatrimonial (sem prejuízo de, eventualmente, vir a ser considerado se se concretizar a sua cobrança). Assim, parece-nos que é de concluir que a desconsideração fiscal de uma provisão para despesas para crédito vencido implica a anulação do correspondente proveito, pelo que é de declarar a ilegalidade da liquidação impugnada.
Assim, em face de todo o exposto e em conclusão, emito parecer no sentido da procedência do recurso».

1.5 Por acórdão de 17 de Junho de 2020 desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, proferido pela formação a que alude o n.º 5 do art. 150.º do CPTA, a revista foi admitida (Acórdão disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/eebea53ac8fb15cd8025858f0052083a.), com a fundamentação de que nos permitimos destacar o seguinte segmento: «[…]

A propósito da correcção relativa a “provisões para crédito vencido” o TCA Norte julgou improcedente quer a nulidade invocada, quer o erro de julgamento alegado, tendo consignado a propósito o seguinte:
«Por último, se diga que a desconsideração fiscal do montante provisionado não implica a anulação do proveito respeitante à despesa sob pena da violação dos princípios constitucionais da legalidade, da justiça, da igualdade e da proporcionalidade plasmados no art. 266.º da Lei Fundamental.
Com efeito, uma coisa é a desconsideração, como custo, da provisão da despesa (art. 23.º, n.º 1 alínea h) do Código do IRC); outra, bem diferente, a desconsideração como custo da despesa (indevidamente) provisionada (art. 23.º, n.º 1 alínea e) do mesmo Código). Nem toda a despesa dedutível é provisionável.
Compreende-se que assim seja, pois “caso fossem aceites como custo fiscal a totalidade ou, pelo menos, a generalidade das provisões que a empresa decidiu constituir, estaria aberto caminho fácil para se evitar, ou pelo menos, adiar a tributação (para se conseguir uma redução artificial do lucro tributável, através da constituição de provisões excessivas) ” - vd. Rui Duarte Morais, “Apontamentos ao IRC”, Almedina, a pág. 120.
E assim de duas uma: ou a despesa indevidamente provisionada teve lugar na medida provisionada e deverá ser levada a custo no exercício da sua efectivação, segundo a regra de periodização do art. 18.º, do Código do IRC; ou a despesa prevista, antecipada (porque a provisão mais não é do que uma antecipação da despesa, ou do montante dela, segundo regras de prudência), não se vem, afinal, a concretizar e então nada há para levar a custo do exercício. Se a contabilização da provisão fosse reconhecida fiscalmente, nesta última situação, de falta de efectivação da despesa provisionada, haveria lugar a reversão da provisão, lançada contabilisticamente em proveitos.
Portanto, nada há para anular na conta de proveitos por via da desconsideração fiscal da provisão em causa, porque se está perante uma previsão de despesa e não perante uma despesa efectiva ou real.
Improcede também o recurso por este fundamento».
É precisamente o julgado a propósito da correcção para “crédito vencido” que o recorrente pretende ver revisto através do presente recurso, concretamente a questão de saber se os artigos 17.º, n.º 1 e 34.º, n.º 1, alínea d), do Código do IRC, em conjugação com a disciplina contabilística e normativa do Banco de Portugal, devem ser interpretados no sentido de que a desconsideração fiscal de uma provisão para despesas para crédito vencido implica a anulação do correspondente proveito, tendo presente que tais despesas não se encontravam garantidas e que não surge controvertido, independentemente da percentagem de provisionamento, que a sua cobrança não se realizou até ao final do terceiro mês posterior ao vencimento do crédito.
O recorrente fundamenta a admissão da revista na relevância social fundamental da questão para a generalidade das instituições bancárias, alegando que a relevância fiscal das provisões no sector bancário é um tema recorrente e que afecta diversas instituições de crédito. Tornou-se ainda mais premente, com os tempos de crise económica e financeira que se vêm vivendo em Portugal e com as dificuldades e constrangimentos que publicamente se assiste no seio de grandes instituições financeiras, que a relevância fiscal dos seus dados contabilísticos se afirme como uma matéria clara, isenta de dúvidas e que reflicta uma tributação do lucro das instituições financeiras tão real quanto possível, que a questão é tanto mais relevante quando se assiste a um aumento muito significativo da constituição ou reforço de provisões para crédito vencido (actualmente designadas de imparidades) e que esta é uma temática cujas dúvidas interpretativas tem susceptibilidade de se repetir em vários litígios, quer atendendo à disseminação da prática por diversas instituições financeiras, quer ainda porque, no caso do ora Recorrente, a anulação do proveito correspondente às despesas com crédito vencido provisionadas e fiscalmente não relevadas já deu origem à dedução de diversas impugnações judiciais contra as liquidações adicionais emitidas pelos serviços de inspecção tributária, maioritariamente ainda pendentes de decisão nos tribunais administrativos e fiscais, identificando pelos respectivos números de processo 8 impugnações pendentes no TCA-Norte e TAF do Porto. Alega ainda que a questão tem relevância jurídica fundamental evidente, já que está em causa a aplicação de um regime contabilístico a que têm sido atribuídas determinadas consequências fiscais e que tem funcionado numa relação de simetria entre custo e proveito, sendo que a interpretação do Tribunal recorrido vem lançar dúvida sobre a existência dessa relação de simetria pelo facto de se estar perante uma antecipação ou previsão da despesa, impondo-se a clarificação sobre o alcance da anulação dos proveitos correspondentes aos custos fiscalmente desconsiderados quando aos mesmos não subjaz uma despesa efectivamente incorrida mas uma antecipação/previsão da despesa. Alega, finalmente, que a admissão da revista é também claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, atento a que a litigiosidade em torno desta questão não tem conduzido à mesma resposta, que o Recorrente já obteve em sede arbitral resposta diametralmente oposta, em situação exactamente idêntica, ainda que referente ao outro exercício (processo arbitral n.º 29/2012-T, em 15.06.2012), pelo que se lhe afigura que a presente questão interpretativa move-se num terreno de nebulosidade e indefinição que, a julgar pelo número de litígios que ainda aguardam decisão, permite concluir pelo agravamento dessa indeterminação, afigurando-se-lhe necessária a intervenção deste STA para melhor aplicação do Direito, pois o julgado suscita fundadas dúvidas e, em consequência, incerteza e instabilidade na resolução dos litígios nos quais se discuta a interpretação das disposições normativas supra indicadas, instabilidade que é de molde a justificar a revista para melhor aplicação do direito.
Com o Ministério Público junto deste Supremo Tribunal entendemos que efectivamente se justifica a admissão da revista sobre a questão de saber se a desconsideração fiscal de provisão para crédito vencido implica ou não a anulação simétrica na conta de proveitos, fundamentalmente pelo interesse social fundamental da questão para o sector bancário e para que a decisão do STA, confirmando ou infirmando o decidido, possa servir de paradigma para futuros casos, contribuindo para maior certeza e segurança jurídicas».

1.6 Cumpre apreciar e decidir a questão, tal como definida pelo acórdão proferido pela formação a que alude o n.º 5 do art. 150.º do CPTA, ou seja, «saber se a desconsideração fiscal de provisão para crédito vencido implica ou não a anulação simétrica na conta de proveitos», não perdendo de vista que tais créditos não se encontravam garantidos e que a sua cobrança não se realizou até ao final do terceiro mês posterior ao vencimento do crédito.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

O acórdão recorrido efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«1. Em 30.5.2008 o Banco A………… apresentou Declaração de Substituição Modelo 22 relativa ao exercício de 2005, cujo teor aqui se dá por reproduzido. – cfr. doc. de fls. 63 e ss. dos autos.

2. Entre 2007 e 2008, em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI200700318, o Banco A…………, S.A. foi objecto de acção inspectiva, ao exercício de 2005, pela Direcção de Serviços de Inspecção Tributária. – cfr. doc. de fls. s/n do p.a. apenso aos autos.

3. Por ofício remetido em 13.8.2008, o Banco A…………, S.A. foi notificado para exercer o direito de audição ao Projecto relatório de inspecção elaborado no âmbito da acção inspectiva referida no ponto anterior e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. – cfr. docs. de fls. s/n do p.a. apenso aos autos.

4. O Banco A…………, S.A. exerceu o direito de audição ao Projecto relatório de inspecção elaborado no âmbito da acção inspectiva referida em 2. supra. – cfr. doc. de fls. 304 e ss. dos autos.

5. Em 5.9.2008 foi elaborado o Relatório de Inspecção Tributária do qual consta, entre o mais, o seguinte:
“[...]
[omissis]
[...]”
– cfr. doc. de fls. s/n do p.a. apenso aos autos.

6. Entre o mais constam dos Anexos ao Relatório de Inspecção Tributária referido no ponto anterior:
- Documento do Banco A………… com a referência 00507932, do qual consta “Creditar 23.000,000” e “Pagamento ao ……………. referente ao Troféus e Patrocínio A………… ao evento ……………. 2005”;
- Recibo n.º 0214, emitido pelo ………… em 26.7.2005 do qual consta que “recebemos do [...] Banco A…………, S.A. [...] a importância de vinte e três mil euros” correspondente a Donativo …………. 2005”. – cfr. doc. de fls. 108 dos autos;
- Conteúdo da página de internet do “………… 2002”, da qual consta “A magia do Bridge de alta competição, pela mão do …………. e com os patrocínios sempre essenciais do [...] A………… [...]”;
- Conteúdo da página de internet da “............”, colocado em 20.6.2006, do qual consta, entre o mais, “A 47.º edição do ………… [...] Patrocinadores satisfeitos [...] A…………”;
- Conteúdo da página de internet da “ralismadeira.com”, colocado em 29.7.2008, do qual consta, entre o mais, “A Comissão Organizadora do ………… assina amanhã pelas 11 horas, com o banco A………… o contrato de patrocínio relativo à edição número 49 da prova. Patrocinador do …………, há vários anos [...]”.
– cfr. docs. de fls. s/n do p.a. apenso aos autos.

7. O Banco A………… foi notificado do relatório referido no ponto anterior em 15.9.2008. – cfr. doc. de fls. s/n do p.a. apenso aos autos.

8. Na sequência do procedimento de inspecção referido nos pontos anteriores foram emitidas a Demonstração de Liquidação de IRC referente à Liquidação n.º 2008 8500036787 de 8.10.2008, na qual se apurou um valor a reembolsar de € 10.234.694,99, a Demonstração de Compensação n.º 2008 00007060923, de 28.11.2008 e Nota de Cobrança n.º 2008 00001498383 com o valor de € 14.095,74. – cfr. docs. de fls. 69 e ss. dos autos cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

Mais se provou que,

9. Em 26.7.2005 o ………… emitiu o recibo n.º 0214 do qual consta que “recebemos do [...] A…………, S.A. [...] a importância de vinte e três mil euros” correspondente a Donativo ………… 2005”. – cfr. doc. de fls. 108 dos autos.

10. Em Janeiro de 2006 o Centro de Estudos Fiscais (CEF) da Direcção Geral dos Impostos emitiu a Informação n.º 10/2006, da qual consta:
[omissis]
- cfr. doc. de fls. 72 e ss. dos autos.

11. Na sequência de reunião realizada em 20.1.2006, sob o assunto “Normas de Contabilidade Ajustadas (NCA): Impacto para efeitos de tributação em IRC”, entre o Ministro das Finanças, representantes do Centro de Estudos Fiscais (CEF), da Direcção de Serviços de Inspecção Tributária, do Banco de Portugal, do …………, do Banco…………, do Banco A…………, da ………… e …………, foi elaborado o “Resumo da Reunião Técnica realizada em 20 de Janeiro de 2006”, com o seguinte teor:
[omissis]
[...]
– cfr. doc. de fls. 82 e ss. dos autos.

12. Na sequência da reunião referida no ponto anterior o CEF elaborou Informação da qual consta, entre o mais:
[omissis]
– cfr. doc. de fls. 96 e ss.

13. No âmbito do Plano de Contas do Sector Bancário os imóveis abrangidos pelo ponto III-1.1.1.5 do Relatório a que se refere o número 5 supra seriam objecto de reintegrações em conformidade com os documentos de fls. 99 a 106 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido».

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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

Na sequência de uma acção de fiscalização, a AT procedeu a diversas correcções à matéria colectável declarada pela ora Recorrente com referência ao IRC do exercício do ano de 2005 – e consequente liquidação adicional –, sendo que ora nos interessa aquela que respeita ao valor registado na conta “# 1581 – Despesas de crédito vencido”. A AT não aceitou para efeitos fiscais o montante declarado pela ora Recorrente a título de provisões para despesas com crédito vencido porque entendeu que essas despesas não podem ser objecto de provisionamento.
A ora Recorrente discordou desse entendimento e impugnou judicialmente a liquidação, sustentando, designadamente, que inexistia fundamento legal para a desconsideração fiscal daquela provisão, que foi constituída nos termos do disposto no Aviso n.º 3/95, do Banco de Portugal. Mas também logo invocou na petição inicial, a título subsidiário, que, caso não fosse aceite a provisão, então a AT deveria proceder à anulação do proveito correspondente; ou seja, sustentou, em primeira linha, que deveria ser aceite a provisão; mas, em segunda linha, que, a manter-se o entendimento da AT, haveria de anular-se o proveito correspondente ao débito da despesa em causa, conforme impunham os arts. 104.º, n.º 2 e 266.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), o art. 55.º da Lei Geral Tributária (LGT) e o art. 6.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária (RCPIT).
O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto confirmou a legalidade daquela correcção, motivo por que a Impugnante recorreu para o Tribunal Central Administrativo Norte, insistindo, para além do mais que ora não releva, no argumento de que, a não se considerar legalmente admissível a constituição da referida provisão, deve ser imediatamente anulado o proveito correspondente às despesas, não garantidas, respeitantes a créditos cuja cobrança não se realizou até ao final do terceiro mês posterior ao seu vencimento.
O Tribunal Central Administrativo Norte, que manteve a sentença na parte em que recusou a ilegalidade da referida correcção, também não deu razão à Recorrente no que respeita a esse argumento. Entendeu que «a desconsideração fiscal do montante provisionado não implica a anulação do proveito respeitante à despesa sob pena da violação dos princípios constitucionais da legalidade, da justiça, da igualdade e da proporcionalidade plasmados no art. 266.º da Lei Fundamental». Após diversos considerandos, concluiu: «ou a despesa indevidamente provisionada teve lugar na medida provisionada e deverá ser levada a custo no exercício da sua efectivação, segundo a regra de periodização do art. 18.º, do Código do IRC; ou a despesa prevista, antecipada (porque a provisão mais não é do que uma antecipação da despesa, ou do montante dela, segundo regras de prudência), não se vem, afinal, a concretizar e então nada há para levar a custo do exercício. Se a contabilização da provisão fosse reconhecida fiscalmente, nesta última situação, de falta de efectivação da despesa provisionada, haveria lugar a reversão da provisão, lançada contabilisticamente em proveitos. // Portanto, nada há para anular na conta de proveitos por via da desconsideração fiscal da provisão em causa, porque se está perante uma previsão de despesa e não perante uma despesa efectiva ou real».
A Recorrente veio então interpor o presente recurso de revista, ao abrigo do disposto no art. 150.º do CPTA ( Entretanto, a reforma do regime dos recursos em processo tributário, efectuada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro, levou a que o recurso excepcional de revista passasse a ter previsão no art. 285.º do CPPT.). Pede a este Supremo Tribunal a reapreciação da questão que enunciou como sendo a de «[s]aber se os artigos 17.º, n.º 1 e 34.º, n.º 1, alínea d), do Código do IRC, em conjugação com a disciplina contabilística e normativa do Banco de Portugal, devem ser interpretados no sentido de que a desconsideração fiscal de uma provisão para despesas para crédito vencido implica a anulação do correspondente proveito, tendo presente que tais despesas não se encontravam garantidas e que não surge controvertido, independentemente da percentagem de provisionamento, que a sua cobrança não se realizou até ao final do terceiro mês posterior ao vencimento do crédito».
A formação do n.º 6 do art. 150.º do CPTA admitiu a revista com o fundamento que sintetizou nos seguintes termos: «[…] entendemos que […] se justifica a admissão da revista sobre a questão de saber se a desconsideração fiscal de provisão para crédito vencido implica ou não a anulação simétrica na conta de proveitos, fundamentalmente pelo interesse social fundamental da questão para o sector bancário e para que a decisão do STA, confirmando ou infirmando o decidido, possa servir de paradigma para futuros casos, contribuindo para maior certeza e segurança jurídicas».
Cumpre, pois, apreciar essa questão.

2.2.2 A PROVISÃO PARA DESPESAS COM CRÉDITOS VENCIDOS – REPERCUSSÃO DA SUA DESCONSIDERAÇÃO SOBRE A CONTA DE PROVEITOS

2.2.2.1 A Recorrente sustenta – como vem sustentando desde a petição inicial, a título subsidiário, ou seja, para a eventualidade de não vingar a sua alegação de que é ilegal a correcção por ter sido desconsiderada a provisão para despesas por créditos vencidos – que, a não se considerar legalmente admissível a constituição dessa provisão, o proveito correspondente às despesas com créditos vencidos há mais de três meses, sem garantia, deve ser imediatamente anulado.
Como deu conta a Recorrente, a questão foi já respondida afirmativamente pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), por acórdão de 15 de Junho de 2012, proferido no processo com o n.º 29/2012-T ( Disponível em
https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?s_processo=29%2F2012-T&s_data_ini=&s_data_fim=&s_resumo=&s_artigos=&s_texto=&id=143.).
Porque concordamos com o que aí foi decidido quanto a esta questão, vamos seguir de perto a fundamentação expendida no acórdão arbitral, de que transcreveremos alguns trechos, dispensando o uso das aspas apenas para agilizar o texto.
Vejamos, pois, se a desconsideração fiscal da provisão, tendo presentes as regras legais e contabilísticas aplicáveis, implica a anulação do proveito correspondente à despesa com crédito vencido.

2.2.2.2 Comecemos por recordar essas regras:
O Plano de Contas para o Sistema Bancário (PCSB), aprovado pelo Banco de Portugal através da Instrução n.º 4/96, ao abrigo da competência que lhe é atribuída pelo art. 115.º, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.), e por várias vezes alterado, no ponto 4 ii) do Capítulo VII, que tem como epígrafe «Contabilização de juros e de despesas após o vencimento», estabelece o seguinte (Disponível em https://www.bportugal.pt/sites/default/files/anexos/instrucoes/15-98i28.pdf.):
«São transferidos para a conta “288 – Juros vencidos a regularizar”, os juros vencidos na data em que a cobrança se deveria ter efectivado ficando a aguardar, pelo período máximo de 3 meses, a respectiva regularização contabilística, de acordo com os critérios estabelecidos a seguir.
Os juros de créditos sobre ou com garantia das entidades indicadas no Aviso n.º 3/95 que rege a constituição de provisões continuarão a ser contabilizados como proveitos, com contrapartida nas respectivas subcontas da conta “28 – Crédito e juros vencidos”, durante todo o tempo em que os créditos se mantenham nesta situação.
Igual tratamento será dado aos juros de créditos com garantias reais até que seja atingido o limite de cobertura, prudentemente avaliado.
As despesas relativas a estes créditos cujos juros são incorporados na conta de resultados serão registadas na conta “289 – Despesas de crédito vencido”.
A regularização dos juros relativos aos restantes créditos vencidos será efectuada através de débito das respectivas contas de proveitos se se referirem ao exercício em curso. Caso contrário será debitada a conta “6718 – Perdas relativas a exercícios anteriores”. O registo destes juros, bem como das respectivas despesas passará a ser realizado, a título de “pro memoria”, nas contas extrapatrimoniais “993 – Juros vencidos” e “994 – Despesas de crédito vencido» (negrito nosso).
Destas directivas contabilísticas resulta que as despesas de crédito vencido sem garantia, ao fim de 3 meses, ficam apenas registadas em contas extrapatrimoniais. Sobre as contas extrapatrimoniais, refere-se na Classe 9 do Anexo à instrução n.º 4/96, do Banco de Portugal:
«As contas desta classe registam as responsabilidades ou compromissos assumidos pela instituição ou por terceiros perante esta e que não estão relevados em contas patrimoniais, nomeadamente: as responsabilidades por assinatura, os compromissos financeiros relacionados com acordos e facilidades de crédito irrevogáveis, os compromissos decorrentes de contratos relativos a operações a prazo sobre divisas, taxas de juro e cotações, as compras e vendas de activos com opção ou compromisso firme de recompra, os valores dados e recebidos a título de garantia, as obrigações relacionadas com a prestação de serviços bancários (de administração, de guarda e cobrança de valores, etc.).
Prevêem-se ainda outras contas destinadas a fornecer informação complementar que é exigida para efeitos de publicidade externa e a considerada de utilidade para a gestão das próprias instituições» (Disponível em https://www.bportugal.pt/sites/default/files/anexos/instrucoes/4-96i12.pdf .).
Como se vê pelo transcrito ponto 4 ii) do Capítulo VII do PCSB, o efeito do registo das despesas com crédito vencido em conta extrapatrimonial, que acompanha o registo dos respectivos juros noutra conta extrapatrimonial, é o de o respectivo montante ser debitado da respectiva conta de proveitos ou da conta “6718 – Perdas relativas a exercícios anteriores”, o que implica, em qualquer dos casos, que o valor daquelas despesas não releve positivamente para efeitos da determinação do lucro tributável do ano em que deve concretizar-se tal débito. Na verdade, as contas extrapatrimoniais destinam-se a fornecer informação relativa a eventos que possam implicar ulteriores modificações do património para efeitos de publicidade externa e de gestão das instituições, mas não relevam para efeitos patrimoniais, não sendo consideradas no apuramento do balanço, pelo que não constituem um valor a considerar na determinação do lucro tributável (cfr. art. 17.º do CIRC, na redacção aplicável).
Por isso, tem razão a Recorrente ao defender que, a não se atribuir relevância fiscal ao provisionamento das referidas despesas de crédito vencido – como o fez o Tribunal Central Administrativo Norte, sufragando o entendimento da AT –, deverá também entender-se que o valor destas despesas não releva para efeitos fiscais, por dever ser transferido para uma conta extrapatrimonial (sem prejuízo de, eventualmente, vir a ser considerado se se concretizar a sua cobrança).
É certo que a ora Recorrente, ao invés de registar aquelas despesas numa conta extrapatrimonial, efectuou uma provisão e que não compete à AT a elaboração ou alteração da contabilidade, mas apenas corrigir a relevância fiscal dos dados contabilísticos.
No entanto, o art. 58.º da LGT e o art. 6.º do RCPIT, que definem os princípios do inquisitório e da verdade material, impõem à AT a realização oficiosa de todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material, a nível do apuramento da situação tributária do contribuinte, o que permite concluir que é dever da AT, no âmbito do apuramento da matéria tributável, não só retirar relevância fiscal aos elementos de facto resultantes de actos dos contribuintes que os favoreçam indevidamente, mas também atribuir relevância tributária a situações de facto que os favoreçam, independentemente de estes terem praticado os actos que deveriam evidenciá-las. Isto é, o mesmo dever de busca da verdade material que permite à AT retirar relevância contabilística a erros praticados pelo contribuinte na elaboração da contabilidade que o favoreçam, também lhe impõe que atribua relevância a outros erros contabilísticos que o prejudiquem. Trata-se, afinal, de um corolário do princípio da legalidade, no seu entendimento mais amplo, do qual decorre que, no cumprimento da legalidade a que está adstrita, a AT deve procurar conformar a sua actuação com a lei em sentido material, de modo a lograr na aplicação da lei aos casos concretos a repartição dos encargos tributários legalmente determinada; exige-se-lhe, pois, que procure e releve, tanto quanto lhe for possível, todos os factos que permitam a mais completa e fidedigna percepção da situação tributária do contribuinte.
Assim, não havendo obstáculo à relevância fiscal da situação de facto concernente às referidas despesas com crédito vencido, é de concluir que tem razão a Recorrente quanto à questão que suscitou na presente revista. É, pois, de anular a liquidação impugnada na parte em que deu relevo positivo ao valor das referidas despesas na fixação da matéria tributável que lhe está subjacente.
Por tudo quanto deixámos dito, o acórdão recorrido não pode manter-se na parte em que vem posto em causa e, a final, será revogado nessa parte e, em substituição, julgar-se-á procedente a impugnação judicial e anular-se-á a liquidação na parte em que deu relevo positivo ao valor das referidas despesas na fixação da matéria tributável que lhe está subjacente.


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2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - A desconsideração fiscal de uma provisão para despesas para crédito vencido implica a anulação do correspondente proveito, tendo presente que, no caso, tais despesas não se encontravam garantidas e que não surge controvertido que a cobrança não se realizou até ao final do terceiro mês posterior ao vencimento do crédito.

II - Apesar de não competir à AT corrigir a contabilidade dos contribuintes, mas apenas corrigir a relevância fiscal dos dados contabilísticos, os princípios do inquisitório e da verdade material, impõem-lhe, no âmbito do apuramento da matéria tributável, não só retirar relevância fiscal aos elementos de facto resultantes de actos dos contribuintes que os favoreçam indevidamente, mas também atribuir relevância tributária a situações de facto que os favoreçam.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão no segmento recorrido e, em consequência, julgar procedente a impugnação judicial quanto à questão das despesas com crédito vencido e anular a liquidação na parte correspondente a essas despesas.

Custas pela Recorrida [cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi da alínea e) do art. 2.º do CPPT], que não suporta taxa de justiça no presente recurso porque não contra-alegou.

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Lisboa, 4 de Maio de 2022. - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro.