Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0872/14.1BEALM
Data do Acordão:04/28/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:IRC
TRIBUTAÇÃO AUTONOMA
Sumário:I - As tributações autónomas de encargos com “viaturas ligeiras” e “despesas de representação” a que aludia a alínea a) do n.º 3 do artigo 81.º do Código do IRC (na redacção dada pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro) e a que alude a alínea a) do n.º 3 do seu artigo 88.º (na redacção posterior) não violam os princípios constitucionais da tributação das empresas pelo rendimento real e da proporcionalidade;
II - Mesmo antes das alterações introduzidas no Código do IRC pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, os encargos fiscais com estas tributações autónomas não eram dedutíveis para efeitos de IRC.
Nº Convencional:JSTA000P27594
Nº do Documento:SA2202104280872/14
Data de Entrada:09/24/2019
Recorrente:A................., LTD
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. RELATÓRIO

1.1. A…………., LDA., com o número de identificação fiscal ………… e com domicílio fiscal no …………, Pinhal Novo, 2950-……… Palmela, interpôs o presente recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada que julgou improcedente a impugnação judicial da decisão da Senhora Chefe da Divisão de Gestão e Assistência Tributária (DGAT) da Unidade de Grandes Contribuintes (UGC) de 23 de julho de 2014 que determinou o indeferimento do pedido de revisão oficiosa dos atos de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas referentes aos exercícios de 2009 e 2010, procedimento que ali correu termos com o n.º 38.RO/UGC/2014.

Recurso este que foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Notificada da sua admissão, a Recorrente apresentou alegações e formulou as seguintes conclusões: «(…)

A. O presente recurso vem interposto contra a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, a qual julgou integralmente improcedente a impugnação judicial interposta pela então Impugnante, ora Recorrente, contra os atos de autoliquidação de IRC dos períodos de tributação de 2009 e 2010 e a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa que, por sua vez, havia sido intentada contra tais atos;

B. Considera a Recorrente que a sentença em crise padece de manifesto erro de julgamento, na medida em que, em face da natureza jurídico-fiscal das TA, as mesmas deverão ser qualificadas como um imposto sobre a despesa/consumo e não sobre o rendimento. Pelo menos era essa a conclusão que resultava das normas aplicáveis nos anos de 2009 e 2010, ora em causa;

C. Se as diferenças inequívocas entre a natureza do IRC e da TA não fossem de per se suficientes, a total independência entre os dois tributos resulta igualmente evidente quando se analisam os factos tributários que despoletam um e outro imposto ou a respetiva dinâmica;

D. Da codificação ou técnica legislativa adotada nesta matéria não resulta a natureza do imposto, dependendo esta do facto jurídico objeto de tributação e, essencialmente, da capacidade contributiva concreta do sujeito passivo que se pretende alcançar - a obtenção de rendimento, o seu uso ou dispêndio ou a titularidade ou transmissão do seu património;

E. É pacífico concluir que as TA são prestações pecuniárias, pois pagas em numerário ou equivalente e são também um tributo unilateral, pois não existe uma contrapartida direta por parte do Estado ao seu pagamento. E são ainda prestações coativas, pois encontram- se previstas na lei, independentemente da manifestação de vontade do sujeito passivo, não podendo os elementos essenciais da relação jurídica tributária serem alterados por vontade das partes (cfr. n.º 2 do artigo 36.° da LGT);

F. Acresce que a dimensão material da TA respeita à capacidade dos sujeitos passivos relacionada com a estrutura de consumo adotada e não a relativa à obtenção de rendimentos. A base de apuramento das TA não considera, em momento algum, nem é influenciada, pela magnitude do acréscimo ou decréscimo da riqueza de um sujeito económico entre o início e o final de um determinado período de tributação;

G. Precisamente porque o legislador entendeu não serem aceitáveis, do ponto de vista fiscal, determinados comportamentos dos contribuintes, decidiu onerar fiscalmente determinadas despesas, tendo por objetivo, não apenas a obtenção de receita fiscal, mas alcançar uma determinada justiça social, onerando os consumos entendidos como excessivos ("ou de luxo"), tal como previsto no artigo 104.º da CRP;

H. Mas, não é pelo facto de ao Estado ser impossível ou difícil a tributação em sede de impostos sobre o rendimento de determinadas operações (e.g. pagamento de ajudas de custo, utilização de viatura para fins pessoais, etc.), na esfera dos indivíduos que delas beneficiam, que as TA, na esfera das empresas que as suportam, passam a ser um imposto sobre o rendimento;

I. Enquanto que, no caso do IRC, se está perante um imposto anual, de formação sucessiva que visa tributar o agregado de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, líquidos das despesas que lhe estão inerentes. Nas TA o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, tratando-se de um facto instantâneo e autónomo (mas cuja mera liquidação se protela para o final do exercício económico);

J. É nessa medida que a Recorrente considera que ocorre uma inequívoca violação do princípio constitucional da tributação pelo rendimento real, vertido no artigo 103.º, n.º 4, da CRP, nas suas vertentes de respeito pela capacidade contributiva do contribuinte, de garantia da igualdade entre os contribuintes e de proporcionalidade da carga tributária, atenta a desconsideração pelo rendimento efetivamente recebido pelo contribuinte para efeitos de incidência tributária no âmbito das TA;

K. Com efeito, sendo uma tributação indiciária sobre a despesa, sem que o tributo em causa tenha qualquer ligação com a tributação do lucro, não existe qualquer ligação (mínima/média/razoável/fundamental, ou qualquer que seja) com o rendimento ou lucro real;

L. Ocorre mesmo a violação do princípio da proporcionalidade, pelo facto de a TA, sendo um imposto sobre o consumo/despesa, consubstanciar atualmente um verdadeiro imposto de arrecadação de receita;

M. Acresce a todo o exposto isto que já foi proferida uma decisão consonante com a posição aqui defendida pela Recorrente, pelo Tribunal Arbitral do CAAD, que julgou o Processo n.º 304/2013-T, a qual foi junta aos autos pela Recorrente e que viria a ser "desconsiderada" pelo Tribunal a quo, em face da existência de uma outra decisão arbitrai em sentido contrário;

N. Mas considera a Recorrente que da identificada decisão arbitral resultam efetivamente sustentados os factos e os argumentos esgrimidos na p.i. de impugnação e que suportam a sua posição;

O. No aludido Processo n.º 304/2013-T, o Tribunal Arbitrai considerou que "as tributações autónomas só podem ser deduzidas, se os respectivos gastos fiscais também forem dedutíveis. De outro modo, estamos perante um gasto que não é indispensável para a obtenção dos proveitos";

P. Ainda segundo esse entendimento arbitral, constata-se que "Desde logo, estabelece a al. a) do n.º 1 do artigo 45.º que não é dedutível o IRC e quaisquer outros impostos que direta ou indiretamente incidam sobre os lucros. Ou seja, o IRC não é dedutível o que parece lógico: o imposto a pagar não deve ser deduzido ao mesmo imposto";

Q. Concretizando o Tribunal Arbitral o seu entendimento da seguinte forma: "há que atender a que, pela sua natureza intrínseca, qualquer dedução de imposto ao lucro tributável, reduz a carga fiscal a suportar pelo contribuinte. A dedução dos impostos sobre o património ou do imposto do selo reduz a taxa efectiva de imposto do sujeito passivo. Tal não constitui qualquer menorização ou violação dos objectivos e fins do imposto deduzido mas apenas a operacionalização da dedução dos gastos suportados para apuramento do lucro tributável”;

R. Ainda segundo tal decisão: "Em primeiro lugar, a dedução das tributações autónomas não anula a carga tributária suportada pelo contribuinte: o imposto devido a título de tributações autónomas será sempre claramente superior à eventual redução de IRC obtida com a sua dedução. Em segundo lugar, no caso concreto, não ficou demonstrado que a eventual dedução ponha em causa os fins de combate à evasão fiscal e antiabuso da norma. Como vimos, as inúmeras alterações ao regime permitem concluir que as tributações autónomas não visam apenas combater a evasão fiscal mas configuram um mecanismo de substituição tributária ou até recolher mais receitas fiscais";

S. Bem como, que "Constituindo as tributações autónomas um regime excepcional no enquadramento constitucional de tributação do rendimento, devem ser objecto de uma interpretação restritiva e enquadrar-se no conjunto das normas fiscais previstas na nossa ordem jurídica, nomeadamente quanto ao apuramento do lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC que exercem a título principal uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola";

T. Ainda com relevância para o presente recurso, tal decisão referiu que "a desconsideração fiscal, na sede do sujeito passivo de IRC, de um encargo fiscal que visou, essencialmente, penalizar os eventuais benefícios obtidos por terceiros, constituiria uma clara violação dos princípios da justiça e proporcionalidade",

U. Daí que se tenha decidido as despesas com TA, relativas a encargos dedutíveis em sede de IRC, deveriam "ser deduzidas ao lucro tributável, nos termos do artigo 17.º e 23.º do Código do IRC, nomeadamente os encargos com viaturas, despesas de representação, ajudas de custos e compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador";

V. Pelo que entende a Recorrente que os argumentos constantes daquela decisão arbitral são suscetíveis de alterar o sentido da decisão sob recurso, a que acrescem todos os argumentos acima expendidos, encontrando a posição da Recorrente apoio no princípio da legalidade e da justiça e nos demais princípios elencados;

W. Pelo que deverá a decisão proferida pelo Tribunal a quo ser revogado e, em consequência, sancionado o aludido entendimento, ordenando-se a reposição da correta situação

Pediu fosse o presente recurso julgado procedente e fosse anulada a sentença ora recorrida, com as demais consequências legais.

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

1.2. Recebidos os autos neste Tribunal, foi ordenada a abertura de vista ao Ministério Público.

O Exm° Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer de que, pelo seu interesse, transcrevemos o seguinte:

«(…).

1. Quanto à questão da dedução ao IRC do valor das tributações autónomas.

(…) É controversa a qualificação das "tributações autónomas" e designadamente a sua inserção no Código do IRC, mas afigura-se-nos que atualmente não há grande disparidade no entendimento sobre a sua natureza de imposto de obrigação única, diversa da natureza de imposto periódico do IRC, assim como a sua qualificação de imposto sobre a despesa e não sobre o rendimento.

No acórdão do STA de 27/09/2017, proc. 0146/16, fez-se uma análise aprofundada sobre os entendimentos doutrinais e jurisprudenciais da figura das "tributações autónomas" [Na doutrina: RUI MORAIS (Cfr. Apontamentos ao IRC, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 202/203; Sobre o IRS, Almedina, Coimbra, 2006, p. 138 e 172), SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2007, pág. 407. / Na jurisprudência, acórdãos do STA de 06/07/2011, proc. 0281/11, de 21/03/2012, proc. 0830/11, de 12/04/2012, proc. 077/12, de 14/06/2012, proc. 0757/11, e de 17/04/2013, proc. 0166/13], tendo concluído que os mesmos vão no sentido de que «embora a tributação autónoma de encargos esteja formalmente inserida no Código do IRC e o respectivo montante seja liquidado no âmbito daquele imposto, a tributação autónoma é uma imposição fiscal materialmente distinta da tributação em IRC».

Todavia, considera o STA no referido aresto que essa diversa natureza do tributo não é de molde a considerar a sua dedução para efeitos de IRC, na medida em que «a teleologia das tributações autónomas impõe a recusa da dedutibilidade dos encargos fiscais suportados com as mesmas. (...) mal se compreenderia que a intenção do legislador, que é a de atenuar ou mesmo anular o efeito financeiro decorrente da dedução, fosse depois contrariada pela dedução dos encargos com essas tributações. Se a tributação autónoma serve, nestes casos, para fazer face à dificuldade de controlo rigoroso de despesas de carácter empresarial e de carácter pessoal, desincentivando a realização das mesmas, e para compensar a perda de receita fiscal decorrente dessa realização, constituindo, ao final, uma redução do montante dos custos dedutíveis na determinação da matéria tributável, não faria sentido que, depois, fosse permitir a dedução dos encargos com a tributação autónoma. A não ser assim, estaria afinal (e ao arrepio da apontada natureza das tributações autónomas como imposição tributária sobre despesas) a permitir-se que as tributações autónomas influíssem na determinação da base tributável para efeitos de tributação em IRC».

Adotando este entendimento, não vemos razões suficientes para no caso concreto alterar o mesmo, pelo que se nos afigura ser de reiterar também nestes autos, considerando o valor das tributações autónomas não dedutível para efeitos do apuramento da matéria tributável do IRC dos anos de 2009 e 2010.

2. Quanto à questão da violação do princípio constitucional da tributação pelo rendimento real.

(…) Como se deixou exarado no acórdão do STA supra referenciado (de 27/09/2017, proc. 0146/16), ainda que as tributações autónomas incidam sobre determinadas despesas e não sobre o rendimento, certo é que «...existe uma ligação intrínseca entre as tributações autónomas e os impostos sobre o rendimento, sendo que aquelas, na modalidade considerada, visarão obviar à erosão da base tributável, à diminuição do rendimento tributável operada através da realização dessas despesas».

Por outro lado e como deixou igualmente exarado no acórdão do Tribunal Constitucional n° 197/2016, de 13 de Abril de 2016, «...a tributação autónoma não interfere no método destinado a determinar os resultados empresariais, nem implica que a matéria coletável que servirá base à tributação em IRC passe a incluir lucros ou rendimentos que a empresa não tenha efetivamente auferido.

Por identidade de razão, as disposições impugnadas não põem em causa o princípio da capacidade contributiva. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado, o princípio da capacidade contributiva, apesar de se não encontrar expressamente consagrado na Constituição, mais não será do que «a expressão (qualificada) do princípio da igualdade, entendido em sentido material, no domínio dos impostos, ou seja, a igualdade no imposto». E, nesse sentido, constitui o corolário tributário dos princípios da igualdade e da justiça fiscal e do qual decorre um comando para o legislador ordinário no sentido de arquitetar o sistema fiscal tendo em vista as capacidades contributivas de cada um (cfr. o acórdão n.º 187/2013 e a jurisprudência aí citada).

Cabe recordar que a tributação autónoma incide sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico. E o objetivo do legislador - como se referiu — é o de desincentivar a realização de despesas que possam repercutir-se negativamente na receita fiscal e reduzir artificiosamente a própria capacidade contributiva da empresa».

Do mesmo modo o legislador identifica «... um conjunto de despesas que são passíveis de tributação autónoma e o regime é aplicável a todos os contribuintes que se encontrem na situação legalmente descrita».

Assim sendo, não se descortina em que termos o princípio da tributação das empresas pelo rendimento real é afetado pela incidência das tributações autónomas em causa nos autos, sendo certo que a Recorrente também não concretizou os termos em que se verifica a alegada desproporcionalidade dessa tributação (sendo certo que a finalidade de obtenção de receita é inerente ao imposto, independentemente da sua natureza e de o legislador assumir outras finalidades complementares, como designadamente o combate à evasão fiscal e aplicação de mecanismos de substituição tributária).

Entendemos, assim, que a norma que prevê as tributações autónomas em causa nos autos não viola o invocado princípio da tributação pelo rendimento real consagrado no artigo 104°, n°2, da CRP ou o disposto no n°4 do mesmo preceito legal.

3. Em face do exposto entendemos que a sentença recorrida não padece do vício que lhe é assacado pela Recorrente, motivo pelo qual se impõe a sua confirmação, julgando-se improcedente o recurso.».

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


***

2. Dos fundamentos de facto

Foi o seguinte o julgamento da matéria de facto em primeira instância: «(…)

1. A Impugnante é a sucursal em Portugal de uma entidade estrangeira que, no âmbito do seu objecto social, prossegue, a título principal, a actividade de fabricação e comercialização de componentes e acessórios para veículos automóveis e seus motores — cfr. artigo 13.º da petição inicial, admitido por acordo;

2. No exercício da sua actividade, a Impugnante encontra-se sujeita ao regime geral de tributação em sede de IRC, adoptando um período de tributação coincidente com o ano civil — cfr. artigo 14.º da petição inicial, admitido por acordo;

3. No dia 31 de Maio de 2010, a Impugnante submeteu a declaração anual de rendimentos Modelo 22 de IRC relativa ao ano de 2009 — cfr. fls. 35 a 39 do processo administrativo apenso aos autos;

4. Na declaração anual de rendimentos Modelo 22 de IRC referida no ponto anterior, a Impugnante fez constar no campo 211 do Quadro 7 — IRC e outros impostos incidentes directa ou indirectamente sobre lucros [art.º 42.º, n.º 1, alínea a)] -, o valor de € 3.953.870,94, e no campo 365 do Quadro 10 — Tributações Autónomas -, o valor de € 50.797,03 — cfr. fls. 35-v e 36-v do processo administrativo apenso aos autos;

5. O valor das tributações autónomas referidas no ponto anterior tinha na sua génese o preenchimento do campo 421 do Quadro 11 — encargos com viaturas [art.º 81.º, n.º 3, alínea a)] -, no valor de € 494.956,88, e o preenchimento do campo 414 do Quadro 11 — despesas de representação (art.º 81.º, n.º 3) -, no valor de € 13.013,43 — cfr. fls. 36-v do processo administrativo apenso aos autos;

6. No dia 31 de Maio de 2011 a Impugnante submeteu, via internet, a declaração anual de rendimentos Modelo 22 de IRC, relativa ao ano de 2010 — cfr. fls. 37 a 39 do processo administrativo apenso aos autos;

7. No dia 12 de Agosto de 2012 a Impugnante submeteu, via internet, declaração de substituição da declaração anual de rendimentos Modelo 22 de IRC, relativa ao ano de 2010 — cfr. fls. 40 a 42 do processo administrativo apenso aos autos;

8. Na declaração de substituição da declaração anual de rendimentos Modelo 22 de IRC referida no ponto anterior, a Impugnante fez constar no campo 724 do Quadro 7 — IRC e outros impostos incidentes directa ou indirectamente sobre lucros [art.º 45.º, n.º 1, alínea a)] -, o valor de € 229.240,63 e no campo 365 do Quadro 10 — Tributações Autónomas -, o valor de € 37.426,69 — cfr. fls. 42-v do processo administrativo apenso aos autos;

9. O valor das tributações autónomas referidas no ponto anterior tinha na sua génese o preenchimento do campo 421 do Quadro 11 — encargos com viaturas [art.º 88.º, n.º 3, alínea a)] -, no valor de € 339.015,26, e o preenchimento do campo 414 do Quadro 11 — despesas de representação (art.º 88.º, n.º 3) no valor de € 35.251,66 — cfr. fls. 42-v do processo administrativo apenso aos autos;

10. Com data de registo de entrada nos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira de 2 de Junho de 2014, a Impugnante apresentou pedido de revisão dos actos tributários referentes às autoliquidações dos períodos de tributação de IRC de 2009 e 2010 — cfr. fls. 2 a 34 do processo administrativo apenso aos autos;

11. Em 23 de Julho de 2014, a Chefe da Divisão de Gestão e Assistência Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes da Autoridade Tributária e Aduaneira, estribando-se em informações anteriores, proferiu despacho a indeferir o pedido de revisão formulado pela Impugnante referido no ponto anterior — cfr. documento n.º 1 da petição inicial.

II- B - DOS FACTOS NÃO PROVADOS

Compulsados os autos, analisados os articulados e atenta a prova documental constante dos mesmos, não existem quaisquer factos com relevância para a decisão, atento o objecto do litígio, que devam julgar-se como não provados.».


***

3. Dos fundamentos de Direito

3.1. A Recorrente insurge-se contra a douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada que julgou improcedente a impugnação judicial da decisão de indeferimento do pedido de revisão dos atos de autoliquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas dos exercícios de 2009 e 2010, que tinha em vista a anulação das tributações autónomas nos valores de € 50.797,03 e de € 37.426,69 e, subsidiariamente, a dedução dos encargos respectivos em IRC e derramas e a consequente anulação parcial dos impostos correspondentes, nos mesmos exercícios.

E apoia a sua pretensão à revogação daquela decisão em dois fundamentos essenciais: a ilegalidade das tributações autónomas e a dedutibilidade dos encargos correspondentes.

A ilegalidade das tributações autónomas, porque as normas de incidência respectiva violam os princípios constitucionais da tributação pelo lucro real e da proporcionalidade [ver as conclusões “B” a “L”].

A dedutibilidade dos encargos correspondentes, porque as despesas com tributações autónomas devem ser deduzidas ao lucro tributável, nos termos dos artigos 17.º e 23.º, ambos do Código do IRC [ver as conclusões “M” a “W”].

É manifesto que a primeira parte do recurso se relaciona com a decisão de improcedência do pedido principal e a segunda parte com a decisão de improcedência do pedido subsidiário.

Ou seja, a Recorrente pretende a revogação da decisão de improcedência do pedido de anulação das tributações autónomas e, subsidiariamente, a revogação da decisão de improcedência do pedido de anulação parcial da liquidação em IRC e derramas (na parte em que não concedeu na dedutibilidade dos encargos com tributações autónomas).

Na prática, a Recorrente pretende que as tributações autónomas não são devidas (por serem inconstitucionais as normas de incidência respectiva). E que, se assim não for entendido, os encargos correspondentes são dedutíveis.

3.2. Comecemos, então, pela primeira questão: a de saber se as tributações autónomas violam os princípios da tributação pelo rendimento real e da proporcionalidade.

Como se sabe, o princípio da tributação das empresas pelo rendimento real é um imperativo consagrado no n.º 2 do artigo 104.º do texto constitucional e que exprime a ideia de que o meio mais adequado para realizar a justiça na tributação das empresas pelo seu rendimento é apurar os rendimentos ou dos lucros que esta efectivamente obteve.

Não diz o preceito o que se entende por «rendimento real», mas está assente na doutrina e na jurisprudência que é o rendimento que se apura utilizando o processo contabilístico de determinação da situação económica da empresa num determinado período.

No limite, proíbe-se a determinação dos rendimentos das empresas que abstraia destas regras e que se centre no denominado «rendimento normal», isto é, o rendimento que a empresa poderia obter em condições consideradas normais.

Como decorre dos artigos 251.º e seguintes da douta petição inicial, a ora Recorrente vinha defendendo nos autos que as denominadas «tributações autónomas» são uma «tributação indiciária sobre a despesa» porque tributam encargos de forma totalmente independente do IRC e ainda que a empresa tenha prejuízos. Sendo por essa razão que – no seu entendimento – não se conformam com este princípio constitucional.

Subjacente à sua alegação estava, por isso, o entendimento segundo o qual, através destas formas de tributação, não se tributa sequer rendimento. E muito menos, por isso, o rendimento real da empresa.

Implícito na sua alegação estava, por outro lado, o entendimento segundo o qual, através do preceito constitucional inserido no artigo 104.º, n.º 2, se impõe na Constituição que as empresas sejam tributadas (fundamentalmente) pelo seu rendimento.

Analisemos o primeiro problema: nas tributações autónomas tributa-se rendimento?

Temos como incontroverso que aquilo que se designa unitariamente por «tributações autónomas» abrange realidades materialmente muito dispares e que reclamam, por isso, uma análise também diferenciada. De certa forma, pode até dizer-se que que as «tributações autónomas» são também autónomas entre si.

Faz sentido, por isso, reconduzir a nossa análise às tributações autónomas previstas na alínea a) do n.º 3 do artigo 81.º do Código do IRC (na redacção dada pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro), quanto ao exercício de 2009, e na alínea a) do n.º 3 do seu artigo 88.º (na redacção posterior), quanto ao exercício de 2010.

Isto é, às tributações autónomas de encargos relativos a despesas de representação e os relacionados com certas viaturas. Porque são as que estão em causa nos autos. É o que deriva dos pontos 5 e 9 dos factos provados.

O Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo, ao menos desde que foi proferido o acórdão de 6 de Julho de 2011, tirado no processo n.º 281/11, que as tributações autónomas sobre encargos com viaturas ligeiras de passageiros e despesas de representação incidem sobre a despesa, constituindo cada ato de despesa um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC no fim do período respectivo.

Ou seja, não incidem sobre rendimento, não dependem da existência de um rendimento, não obedecem às mesmas regras de determinação nem interferem com o seu apuramento. São impostos autónomos, que operam de forma independente e são agregados ao IRC para efeitos de cobrança.

Não incidem sobre rendimento (do sujeito passivo), desde logo, porque não têm como pressuposto nenhum acréscimo na esfera patrimonial da empresa, mas a manifestação da riqueza que deriva da aplicação de valores na realização de certas despesas.

Não dependem da existência de um rendimento (na esfera patrimonial do sujeito passivo), porque a tributação tem lugar mesmo quando a empresa não tem rendimento.

Não obedecem às mesmas regras, além do mais, porque a matéria colectável respectiva não é determinada de acordo com as regras do balanço nem sequer relacionada com um determinado período de tributação.

Regras que, por outro lado, não interferem no seu apuramento, porque o gasto é tributado porque foi incorrido, e não porque foi deduzido ou porque esteja relacionado com a obtenção de proveitos ou com a manutenção da fonte produtora.

Poderia contrapor-se que as tributações autónomas, operando embora pelo lado da despesa, estão materialmente conexionadas com o rendimento dos sujeitos passivos. No fundo, que também se tributa rendimento por ali (o rendimento que a malha fiscal lançada pelo IRC não consegue tributar).

E que, por conseguinte, o rendimento real da empresa vai para além do rendimento tributável em IRC e inclui o rendimento implícito na realização da despesa tributada autonomamente.

Mas este entendimento apela a um conceito empírico de rendimento que nada tem a ver com o conceito constitucional de rendimento real, porque supõe apenas a existência da receita necessária para suportar a despesa e prescinde integralmente dos métodos contabilísticos de determinação do rendimento tributável.

Por isso se diz que «o rendimento real não é um facto empírico puro, muito menos ligado ao individual, mas uma situação de vida já valorada» [cit. ANA PAULA DOURADO, in, «O Princípio da Legalidade Fiscal…», Almedina 2007, pág. 619] (…); e que «só pode ser alcançado se forem usados os meios mais idóneos para a sua determinação, tal como foram formulados pela prática contabilística» [cit. J.L. SALDANHA SANCHES, in «Manual de Direito Fiscal», 3.ª edição, Coimbra Editora 2007, pág. 371].

Deve, assim, responder-se à pergunta concretamente formulada no sentido negativo: nas tributações autónomas previstas na alínea a) do n.º 3 do artigo 81.º do Código do IRC (na redacção dada pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro) e na alínea a) do n.º 3 do seu artigo 88.º (na redacção posterior) não se tributa rendimento: tributa-se despesa autonomamente.

Não acompanhamos, por isso, a douta sentença recorrida quando conclui, suportada em ampla remissão para decisão arbitral, que as tributações autónomas não são um imposto sobre a despesa e que não extrapolam do âmbito do imposto sobre o rendimento.

O que, diga-se de passagem, nada contrapõe ao entendimento segundo o qual as tributações autónomas integram ainda a periferia do IRC (um IRC em sentido amplo) ou, como também já foi dito, um «IRC paralelo» (dentro de uma conceção lata de IRC, que e abranja as diversas tributações avulsas incidentes sobre as empresas e, designadamente, as que se encontram inseridas no próprio Código do IRC).

Porque do que se trata aqui não é de saber o que é que enquadra num sistema de tributação que partilhe um certo enquadramento normativo (um mesmo sistema de regulação) ou o elemento subjetivo de conexão (as empresas), mas saber se certas tributações autónomas das empresas partilham com o IRC o mesmo objecto de tributação (se tributam rendimento). E é a esta questão específica que se responde negativamente.

Importa, então, abordar o segundo problema: o de saber do artigo 104.º, n.º 2, da Constituição deriva que as empresas devam ser tributadas (fundamentalmente) pelo seu rendimento.

A esta questão respondemos negativamente. No preceito consagra-se um princípio de tributação nos impostos sobre o rendimento das empresas (e não nos impostos sobre as empresas).

É uma conclusão a que se chega sobretudo atendendo ao enquadramento sistemático do preceito constitucional: ali se enunciam os diferentes modelos de tributação, tomando por referência as diversas manifestações de riqueza, o rendimento, o património e o consumo; os dois primeiros números têm em vista os impostos sobre o rendimento (das pessoas físicas e das empresas, respectivamente) e os outros dois os impostos sobre o património e o consumo.

O Acórdão do Tribunal Constitucional parcialmente transcrito na sentença recorrida (acórdão n.º 197/2016, de 13 de Abril de 2016), ao concluir (a propósito de outra tributação autónoma) que as normas dos artigos 13.º e 14.º do artigo 88.º do Código do IRC não violam o princípio da tributação do rendimento real, parece ter subjacente o mesmo entendimento. Porque o que ali se disse, no fundo, foi que a tributação autónoma, na medida em que não interfira com o modelo constitucional de tributação dos rendimentos das empresas, não pode contender com aquele princípio.

Dizendo de outro modo: os impostos sobre a despesa não contrariam o princípio da tributação pelo rendimento real precisamente porque não são impostos sobre o rendimento nem interferem com o seu funcionamento.

Deve, pois, concluir-se, logo por aqui, que a Recorrente não tem razão quando pretende que estas tributações autónomas, pelo facto de não incidirem sobre o rendimento por ela efectivamente obtido, atentam contra o princípio da tributação pelo rendimento real.

Consequentemente, a douta sentença recorrida deve ser confirmada neste segmento, ainda que com fundamentação diversa.

Mas a Recorrente também entende que a tributação autónoma em causa «ultrapassa o âmbito dos objectivos de correcção de comportamentos subjacentes à criação da mesma, visando indubitavelmente a prossecução de receita tributária» (ver ponto 66 das doutas alegações de recurso) e que, por isso, ocorre a violação do princípio da proporcionalidade (ver a conclusão “L”).

Importa contrapor desde já que não é pelo facto de um certo imposto visar (apenas) a obtenção de receita que deve ser considerado desproporcionado. Porque a obtenção da receita como forma de prover às necessidades financeiras do Estado e das entidades públicas é a finalidade normal dos impostos. A desproporção não pode, por isso, ser surpreendida da finalidade prosseguida, mas na relação entre os meios e os fins. Assim, um imposto será desproporcionado se, por exemplo, for excessivo ou confiscatório.

Mas a Recorrente nada alega nesta parte, sendo que a natureza excessiva ou confiscatória não pode derivar apenas do facto da tributação não estar relacionada com o rendimento, visto que o mesmo sucede com outros impostos sobre a despesa e com impostos sobre o património.

É possível, no entanto, que a Recorrente tivesse pretendido dizer algo bem diverso: que a finalidade principal que presidiu à criação da tributação autónoma tivesse sido a de desincentivar a realização despesas correspondentes e de prevenir abusos (nomeadamente os que se traduzam na redução artificiosa da capacidade contributiva da empresa) e que, todavia, o meio escolhido é completamente desadequado para a realização desse fim, servindo a tributação autónoma apenas para a obtenção de receita (violação do princípio da proporcionalidade na vertente da adequação).

Não se vê, no entanto, que a tributação autónoma destas despesas não seja, em abstracto, um meio adequado a desincentivar os comportamentos tributados autonomamente. Poderá até dizer-se que a tributação agravada ou progressiva comportamentos considerados desnecessários e evitáveis induzem a evitar os comportamentos tributados. Sendo, por isso, objectivamente adequados à realização dessa finalidade.

A questão que se poderia colocar seria outra: a de saber se existiria um meio mais adequado a evitar esses comportamentos, em particular o de obstar à dedução da despesa para efeitos de IRC.

Mas, como se referiu no acórdão do Tribunal Constitucional acima indicado, é irrelevante que a finalidade pudesse ser alcançada por outra via, porque «a escolha dos meios destinados a obter um certo efeito de política fiscal se enquadra na margem de livre conformação legislativa».

Pelo que o recurso também não merece provimento por aqui.

3.3. Passemos à segunda questão, a de saber se os encargos com as tributações autónomas são dedutíveis (se eram dedutíveis antes do aditamento do artigo 23.º-A ao Código do IRC pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro).

A Recorrente entende que sim, socorrendo-se, mais uma vez, da argumentação vertida numa decisão arbitral.

Esta questão tem sido decidida de forma uniforme pelo Supremo Tribunal Administrativo e sempre no mesmo sentido: o de que mesmo antes das alterações introduzidas no Código do IRC pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, os encargos fiscais com as tributações autónomas (incluindo as tributações respeitantes a “encargos com viaturas” e “despesas de representação”) não eram dedutíveis para efeitos de IRC.

Por se tratar de jurisprudência uniforme e com a qual concordamos integralmente iremos remeter-nos para a fundamentação do acórdão de 27 de Setembro de 2017, tirado no processo n.º 0146/16, que nos dispensamos de transcrever, não só por já se encontrar transcrita na própria sentença recorrida, mas também por se encontrar disponível, em redacção integral no endereço electrónico www.dgsi.pt.

Pelo que o recurso não merece provimento.


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4. As conclusões

4.1. As tributações autónomas de encargos com “viaturas ligeiras” e “despesas de representação” a que aludia a alínea a) do n.º 3 do artigo 81.º do Código do IRC (na redacção dada pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro) e a que alude a alínea a) do n.º 3 do seu artigo 88.º (na redacção posterior) não violam os princípios constitucionais da tributação das empresas pelo rendimento real e da proporcionalidade;

4.2. Mesmo antes das alterações introduzidas no Código do IRC pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, os encargos fiscais com estas tributações autónomas não eram dedutíveis para efeitos de IRC.


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5. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 28 de Abril de 2021. - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Gustavo André Simões Lopes Courinha – José Gomes Correia.