Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0979/16
Data do Acordão:09/15/2016
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:SUSPENSÃO DE EFICÁCIA
MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
PENA EXPULSIVA
FUMUS BONI JURIS
Sumário:I - A classificação de «Medíocre», atribuída a um magistrado do MºPº, faz presumir a sua inaptidão profissional e erige-se como um dado inquestionável no processo disciplinar que porventura se lhe siga.
II - O pedido de suspensão da eficácia de um acto aplicador de uma pena expulsiva carece de «fumus boni juris» se nenhum dos vícios arguidos no meio cautelar contra tal acto tornar aparente a provável procedência da lide principal.
III - Faltando o «fumus boni juris», a providência cautelar soçobra de imediato, sendo inútil averiguar se existem os demais requisitos de que dependeria o seu deferimento.
Nº Convencional:JSTA00069823
Nº do Documento:SA1201609150979
Data de Entrada:08/09/2016
Recorrente:A...
Recorrido 1:CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:SUSPEFIC
Objecto:AC PLENÁRIO CSMP DE 2016/07/12
Decisão:INDEFERIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - SUSPEFIC
Legislação Nacional:CPTA02 ART120 N1 N2.
EMP ART110 ART184.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:

A Dr.ª A……………, identificada como Procuradora-Adjunta, veio requerer que se suspenda a eficácia do acórdão do Plenário do CSMP, datado de …………, que, indeferindo a reclamação que ela deduzira da pronúncia da Secção Disciplinar do mesmo Conselho, manteve a pena de aposentação compulsiva que o acto reclamado lhe aplicara. E a pretensão suspensiva também abrange os «actos subsequentes praticados em cumprimento» desse acórdão de ………
A requerente imputou ao acto punitivo vícios vários, de fundo e de forma, dizendo-os susceptíveis de provavelmente trazerem a procedência da lide principal. Disse que a imediata execução do acto lhe causaria prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação. E, ponderando os interesses públicos e privados em presença, defendeu a notória primazia destes últimos – daí concluindo pelo êxito da providência cautelar.

O CSMP deduziu oposição em que negou as ilegalidades apontadas ao acto, recusou que a imediata execução dele provoque à requerente prejuízos enquadráveis no conceito de «periculum in mora» e entendeu, por último, que uma eventual ponderação dos interesses em presença deverá resolver-se no sentido do indeferimento da providência.

Consideramos provados os seguintes factos, pertinentes à decisão:
1 – A requerente era magistrada do MºPº, com a categoria de Procuradora-Adjunta.
2 – O desempenho funcional dela na comarca de …………., no período compreendido entre ………… e …………, foi classificado de «Medíocre» pelo CSMP.
3 – Na sequência dessa classificação, a requerente foi alvo de inquérito, por inaptidão funcional.
4 – Esse inquérito foi convertido na parte instrutória de um procedimento disciplinar contra a aqui requerente.
5 – No fim desse procedimento, a Secção Disciplinar do CSMP, através de um acórdão de 1/3/2016, cuja cópia consta de fls. 47 a 73 dos autos, aplicou à ora requerente a pena de aposentação compulsiva.
6 – A requerente reclamou desse acórdão para o Plenário do CSMP, mediante a peça cuja cópia consta de fls. 74 e ss. destes autos.
7 – Em ……….., o Plenário do CSMP emitiu o acórdão cuja cópia consta de fls. 99 a 135 destes autos, em que desatendeu a mencionada reclamação e manteve a aplicação da pena de aposentação compulsiva.
8 – A requerente já sofrera uma pena idêntica – aplicada pela Secção Disciplinar do CSMP em ………. e confirmada pelo Plenário do CSMP em …………. – cuja execução foi entretanto judicialmente suspensa.
9 – A requerente é divorciada, vivendo com os seus três filhos, que estão a seu cargo.
10 – As despesas fixas do agregado familiar da requerente esgotam o «quantum» que ela recebia a título de vencimento como magistrada do MºPº.
11 – Se for executada a pena aplicada, a pensão de aposentação a pagar à requerente será muito inferior ao vencimento que ela auferia como Procuradora-Adjunta.

Passemos ao direito.
A requerente visa suspender a eficácia do acórdão de ……….., em que o Plenário do CSMP, indeferindo a reclamação necessária por ela deduzida, manteve a pena de aposentação compulsiva que a Secção Disciplinar do mesmo Conselho lhe aplicara.
Face à nova redacção do art. 120º do CPTA, o deferimento do presente meio cautelar exige a presença cumulativa dos dois requisitos positivos constantes do seu n.º 1 – os quais correspondem aos chamados «periculum in mora» e «fumus boni juris». E pressupõe, ainda, a ocorrência do requisito negativo previsto no n.º 2 do mesmo artigo, ligado a uma ponderação subsequente – como o n.º 2 diz «in initio» – dos «interesses públicos e privados em presença».
Assim, a aferição da bondade desta providência deve metodologicamente começar pela análise dos requisitos ínsitos no n.º 1 do art. 120º do CPTA – sendo indiferente principiar por qualquer deles; e só no caso de ambos se verificarem passaremos ao cotejo imposto no n.º 2 do artigo.
E enfrentaremos já o «fumus boni juris». Na primitiva versão do CPTA, este requisito genérico dos procedimentos cautelares era avaliado a partir de critérios de evidência. Mas o enunciado actual do art. 120º, n.º 1, do CPTA reconduziu o assunto às soluções processuais comuns, enquadrando o requisito no plano da probabilidade de existir o direito exercitado. Assim, a pretensão cautelar da requerente só vingará se for «provável» que a acção principal «venha a ser julgada procedente».
«Provável» é o que tem uma possibilidade forte de acontecer, sendo surpreendente ou inesperado que não aconteça. E, no domínio jurídico em que ora nos situamos, isso exige que algum dos vícios atribuídos pela requerente ao acto suspendendo se apresente já – na análise perfunctória típica deste género de processos – com a solidez bastante para que conjecturemos a existência de uma ilegalidade e a consequente supressão judicial do acto.
A pena expulsiva – de aposentação compulsiva – que o acto aplicou à aqui requerente surgiu na sequência da classificação do desempenho funcional dela, num determinado período, como «Medíocre». E o acto punitivo, para além de aludir à violação de deveres funcionais, alicerçou-se sobretudo na ideia de que a requerente, para além de profissionalmente inapta, revelara uma incapacidade definitiva para se adequar às exigências próprias da magistratura do MºPº.
A requerente discorda dessa pronúncia. Diz que a factualidade de que o acto partiu está errada e distorcida, não tendo praticado qualquer falta disciplinar e, muito menos, com culpa grave; que tais factos não permitiam concluir pela sua incapacidade profissional ou pela sua inadequação definitiva às obrigações funcionais; que o acto, ao ater-se a outros episódios, já disciplinarmente censurados, violou o princípio «ne bis in idem»; que a pena expulsiva é desproporcionada; e que o acto enferma de falta de fundamentação.
Qualquer uma destas denúncias é abstractamente susceptível de inquinar o acto – e de trazer, portanto, o «fumus boni juris» fundante do deferimento da providência. Mas há que ver se, «in concreto», alguma delas possui a seriedade bastante para que, no juízo esquemático e provisório inerente à índole destes autos, consideremos provável o sucesso da causa principal.
Salta imediatamente à vista a improbabilidade de que proceda o vício de forma, por falta de fundamentação. O acto suspendendo espraia-se ao longo de dezenas de páginas, onde detalhadamente se explicam os motivos, factuais e jurídicos, por que o CSMP decidiu daquela maneira, e não de outra qualquer. Aliás, e em rigor, a requerente não chega a negar que o acto contenha múltiplos fundamentos, pois basicamente contrapõe que eles são falsos ou inaptos para daí se extrair a consequência punitiva. Contudo, estas críticas da requerente extravasam já do plano estritamente formal em que se põem e discutem os vícios advindos de uma falta de fundamentação. Ou seja: ao menos «prima facie», o acto suspendendo enunciou fundamentos acessíveis a qualquer destinatário, habilitando-o a compreendê-lo e a defender-se capazmente dele – o que torna muito improvável que a acção principal venha a proceder com base nesse vício de forma. Portanto, esta primeira ilegalidade não suporta o deferimento da providência.
E o mesmo deve dizer-se da invocada violação do princípio «ne bis in idem». O acto delimitou precisamente «in tempore» o desempenho da requerente sob avaliação disciplinar. Ela não nega que essa delimitação esteja correcta; e simplesmente aduz que o CSMP, ao aludir também a comportamentos pretéritos já censurados, acabou por puni-la uma segunda vez pelos mesmos factos.
Esta é, no entanto, uma denúncia assaz exagerada. É verdade que o acto mencionou vários antecedentes avaliativos e disciplinares da requerente. Mas usou isso como adjuvante circunstancial do juízo que importava emitir – e que exclusivamente recaiu sobre a actuação dela no período temporal considerado. Ora, se o acto incidiu somente sobre um certo tempo, distinto daqueles outros a que se reportaram diferentes punições, tudo imediatamente aponta para que improceda a alegação de que foi violado o princípio «ne bis in idem».
Ademais, há uma explicação óbvia para o facto do acto suspendendo ter referido outros episódios da vida profissional da ora requerente. Sempre que disciplinarmente se questione a aptidão de um magistrado para permanecer no exercício de funções, imperioso de torna, para maior esclarecimento e segurança do juízo a emitir, que os comportamentos directamente «sub specie» sejam correlacionados com os restantes passos da carreira do arguido, incluindo as suas vicissitudes disciplinares. E esse «modus faciendi», afinal inerente à natureza melindrosa daquele assunto, traduz um genuíno reforço conceptual e explicativo – em vez de envolver uma qualquer duplicação sancionatória.
O que acabámos de dizer aproxima-nos de um pormenor de grande alcance na análise dos demais vícios arguidos pela requerente e ainda não enfrentados – o qual respeita à origem e à função do acto suspendendo.
Este acto findou um processo disciplinar ultimamente gerado por uma classificação de «Medíocre». O art. 110º do EMP é claríssimo no sentido de que uma classificação dessas faz imediatamente presumir a inaptidão profissional do magistrado em causa – razão por que ele é logo suspenso «do exercício de funções». E tal presunção, se vier a ser confirmada – «primo», no inquérito referido pelo art. 110º, n.º 2, do EMP e, «secundo», no processo disciplinar que eventualmente se lhe siga – determinará a aplicação ao magistrado de uma pena expulsiva (art. 184º, n.º 1, al. c), do EMP).
É óbvio que, nesse género de casos, o procedimento disciplinar não se destina a rever se o arguido foi bem ou mal classificado de «Medíocre»; pois tal acto classificativo, sendo o dado incontornável e certo – e porventura até dotado da força de caso decidido ou resolvido – donde arranca a reacção disciplinar, não está nesta sob novo escrutínio. Assim, e partindo da absoluta certeza, vinda «ab extra», de que o concreto desempenho do arguido foi medíocre, o procedimento disciplinar abre-se e desenrola-se para atingir um essencial objectivo: o de aferir se a inaptidão profissional – sugerida pela classificação de «Medíocre» – existe deveras e com contornos definitivos e irremediáveis, de modo a que o arguido deva ser objecto de uma das penas expulsivas previstas no art. 184º do EMP. O que não obsta a que, na hipótese de se reconhecer aptidão ao magistrado, o processo sirva ainda para o punir de forma mais branda – na proporção das faltas disciplinares aí detectadas.
Esta é a autêntica feição das coisas. E, como veremos de seguida, a requerente parece tê-lo esquecido aquando das arguições dos vícios de que trataremos «infra».
Um deles consiste na denúncia de que o acto incorreu em erro nos seus pressupostos de facto. A tal propósito, a requerente diz que, no período em questão, exerceu sem falhas ou anomalias as funções que lhe estavam atribuídas. E acrescenta que o acto suspendendo não podia penalizá-la, como fez, por tais funções serem simples ou fáceis – já que escolha delas foi da responsabilidade da hierarquia.
Contudo, a questão relacionada com a qualidade do desempenho da requerente ficou resolvida com a classificação – que qualificara o labor dela como medíocre. E o acto, partindo daí, apenas tinha de ver se a arguida era, ou não, e em termos definitivos, profissionalmente inapta.
Ora, foi assim que o acto procedeu. Embora admitindo que a arguida não incorrera em lapsos técnicos, o CSMP estava vinculado à certeza de que ela desempenhara mediocremente as funções. E o acto entendeu que as deficiências detectadas – e justificativas da classificação de «Medíocre» – provinham realmente de uma inaptidão profissional sem remédio.
Para tanto, o acto imputou à requerente uma sucessão de faltas – à margem das que ela justificara – e de atrasos, denotativos de desinteresse ou incúria e perturbadores do serviço. E o acto tomou mesmo essas várias perturbações – tanto mais significativas quanto mais fáceis e elementares eram as tarefas cometidas à requerente – como um genuíno estorvo para o serviço. Ora, nada indicia que o acto haja errado, «de factis», nesse crucial ponto. E a circunstância da sucessão de atrasos e faltas não aparecer exactamente localizada no tempo é irrelevante, pois a inclusão disso no curto período temporal sob análise afasta a ideia de que foram coarctados ou comprimidos os direitos de defesa da aqui requerente.
Por outro lado, se o acto suspendendo não puniu a requerente por um demérito técnico preciso, também será impossível anulá-lo por supostamente – e «a silentio» – o CSMP haver desconsiderado que ela, no exercício das tarefas simples que a hierarquia lhe atribuíra, estava impedida de manifestar qualidades técnicas superiores. Até porque o acto não tinha de refazer a análise qualitativa do trabalho da ora requerente, visto que a avaliação dele como medíocre constituía um elemento inquestionável no processo disciplinar.
Tudo aponta, portanto, para a improbabilidade do acto suspendendo vir a ser anulado por um erro nos seus pressupostos de facto.
E à mesma conclusão se chega quanto a um eventual erro nos pressupostos de direito. O acto encarou as sucessivas faltas e atrasos da requerente, perturbadores da fluidez do serviço, como faltas disciplinares correspondentes à violação dos deveres de prossecução do interesse público, de zelo, de assiduidade e de pontualidade. E, «prima facie», nenhum erro se insinuou nesta qualificação jurídica – cuja bondade, aliás, a requerente se absteve de atacar com detalhe.
Ademais, o acto sublinhou que a requerente, apesar de avisada por anteriores reacções classificativas e disciplinares, insistiu, durante o período temporal em apreço, em faltas e atrasos reveladores de um grave desinteresse pelo serviço – e, ainda, de uma autêntica e irremediável inaptidão funcional. E nada indicia que este juízo seja erróneo. Afinal, qualquer magistrado do MºPº classificado de «Medíocre» sabe ou deve saber que está a um passo de ser havido como profissionalmente inapto (art. 110º do EMP); de modo que, sem um significativo «tour de force» da sua parte, dificilmente escapará a um juízo de definitiva inaptidão. Ora, o acto revela – sem que, como acima vimos, haja motivo para censurá-lo nesse ponto – que a requerente negligenciou vários deveres no período indagado no procedimento disciplinar. E a gravidade desse desinteresse da requerente também se mede pela inércia por si manifestada após se saber sob a ameaça da anterior classificação de «Medíocre» – que, aliás, acabou por lhe ser aplicada. Sendo assim, a ideia, constante do acto, de que ela revelou – no período de tempo em análise, sendo indiferente o que se passou depois – uma incapacidade definitiva para se adaptar às exigências das funções parece imune a um qualquer erro, seja na recepção dos factos, seja na respectiva qualificação «de jure». O que, afinal, significa que, também por esta via, parece improvável que o acto suspendendo venha a ser anulado nos autos principais.
Deste modo, o acto não errou quanto aos factos que coligiu, nem quanto à consideração de que eles traduziam uma ofensa de deveres funcionais reveladora de um desinteresse grave da requerente pelas exigências inerentes às funções de magistrado. E, como tudo isso se passou após ela já estar incursa numa classificação de «Medíocre» – sendo notada assim por duas vezes – afigura-se-nos harmoniosa e adequada a conclusão que o CSMP tirou: a de que a requerente revelara uma inaptidão definitiva para o exercício da magistratura. Deste modo, também não colhe a ideia de que o acto será provavelmente erradicado por ofensa do princípio da proporcionalidade, visto que o juízo de inadequação funcional foi correctamente extraído de premissas cuja verosimilhança não está eficazmente questionada.
Assim, e percorridas as várias ilegalidades a que a requerente expôs o acto punitivo, conclui-se que nenhuma delas contém a «vis destructiva» que tornaria provável uma futura anulação dele. Isto denota que o presente meio cautelar está desprovido do «fumus boni juris». E, faltando este requisito, essencial ao deferimento da providência, esta fracassa de imediato – o que inutiliza e prejudica o prosseguimento da indagação, desde logo para averigurar se a requerente alegou e demonstrou cabalmente o «periculum in mora».

Nestes termos, acordam em indeferir a presente suspensão de eficácia.
Custas pela requerente.

Lisboa, 15 de Setembro de 2016. – Jorge Artur Madeira dos Santos (relator) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – José Francisco Fonseca da Paz.