Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0936/16.7BEPNF
Data do Acordão:11/24/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:JUNTA MÉDICA
ACIDENTE DE SERVIÇO
CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES
INCAPACIDADE PERMANENTE
Sumário:A deliberação colegial da Junta Médica constituída nos termos do artigo 38º do Decreto-Lei nº 503/99, de 20/11, só pode ser posta em causa e, eventualmente, removida, nas condições previstas no artigo 39º do mesmo diploma legal, ou seja, por deliberação colegial de outra Junta Médica, a Junta de Recurso, composta nos termos do nº 2 do mesmo preceito.
Nº Convencional:JSTA00071612
Nº do Documento:SA1202211240936/16
Data de Entrada:09/27/2022
Recorrente:CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES, IP
Recorrido 1:MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (E OUTROS)
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:DL 503/99, DE 20/11, ART38
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. A CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES, IP (“CGA”), Ré na presente ação administrativa urgente por acidente de serviço, prevista no DL nº 503/99, de 20/11, proposta por A……………….., interpõe recurso de revista do Acórdão proferido em 9/6/2022 pelo Tribunal Central Administrativo Norte (cfr. fls. 458 e segs. SITAF), que negou provimento ao recurso de apelação e que manteve a decisão proferida pelo TAF/Penafiel em 29/11/2021 (cfr. fls. 341/342 SITAF), de determinar, oficiosamente, a realização de prova pericial pelo INML (Instituto Nacional de Medicina Legal) tendente a esclarecer “a divergência das partes quanto à matéria de facto” que, no caso, “reside na divergência entre a alegada incapacidade da Autora e o nexo causal entre esta alegada incapacidade e o acidente sofrido em 22.12.2004”.

2. A Recorrente/Ré “CGA” conclui do seguinte modo as suas alegações de presente recurso de revista (cfr. fls. 483 e segs. SITAF):

«1.ª Verificam-se, no presente caso, os pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso de revista para o STA, uma vez que o tema em causa é sensível, colocando em crise a competência das Juntas Médicas a quem o legislador atribuiu a tarefa de avaliar e graduar a incapacidade decorrente de acidentes de trabalho e doenças profissionais, admitindo que as mesmas possam ser colocadas em causa por um juízo formulado por outra avaliação, realizada por um único médico e fora do contexto legal previsto no Decreto-Lei n.º 503/99, de 20/11.
2.ª A decisão recorrida desbrava, também, um caminho contrário à orientação jurisprudencial tradicionalmente seguida por este STA, de acordo com a qual, só nos casos de «erro manifesto de apreciação» ou «erro grosseiro» é que os Tribunais poderão anular os atos praticados no âmbito da discricionariedade técnica da Administração.
3.ª Nos termos do disposto no art.° 150.°, n.° 1 do CPTA, das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o STA quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma boa administração da justiça e uma melhor aplicação do direito.
4.ª Estamos perante matéria que suscita dificuldades superiores ao comum e extravasa do caso concreto, pelo que considera a CGA ser importante para a boa administração da justiça a sua apreciação e decisão pelo Supremo Tribunal Administrativo.
5.ª Como resulta do voto de vencido lavrado na decisão recorrida, está em causa saber se é ou não admissível a produção de prova pericial com vista ao apuramento do acerto da avaliação efetuada pela Junta Médica colegial prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 38º do D.L. nº 503/99.
6.ª Apesar de o Tribunal a quo concluir, na página 11 do Acórdão, que “…quer se entenda ou não que o juízo técnico que a Junta Médica da CGA elaborou se insere na discricionariedade técnica e integra reserva de administração, é nosso entendimento firme que nada obsta à produção de prova pericial com vista ao apuramento do acerto [ou desacerto] dos pressupostos subjacentes que esteiam a decisão impugnada.”, a CGA considera que os Tribunais não têm os conhecimentos específicos da ciência médica que permita aferir do “…acerto [ou desacerto]…” de uma avaliação clínica efetuada por uma Junta Médica.
7.ª Isto é, os Tribunais não dispõem dos conhecimentos próprios da ciência médica que os habilite a decidir se a melhor avaliação clínica é a que consta plasmada no Auto da Junta Médica cujo resultado foi impugnado pela Recorrida (e respetiva documentação clínica de suporte) ou se é a que resulta da perícia médico-legal que o Tribunal a quo considera dever realizar-se.
8.ª Impondo-se, também, perguntar se será admissível que uma Junta Médica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 38º do D.L. nº 503/99, de composição colegial, possa colocada em causa por um juízo formulado por outra avaliação, realizada por um único médico e fora do contexto legal previsto no Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro.
9.ª No entendimento da CGA tal não é admissível, nem fará sentido a realização de um novo exame feito no INML, quando na Junta Médica cujo resultado foi impugnado já interveio um médico do INML (cfr. n.ºs 1 e 3 artigo 38º do Decreto-Lei nº 503/99).
10.ª Por outro lado, a decisão recorrida desbrava um caminho contrário à orientação jurisprudencial tradicionalmente seguida por este STA, de acordo com a qual só nos casos de «erro manifesto de apreciação» ou «erro grosseiro» é que os Tribunais poderão anular os atos praticados no âmbito da discricionariedade técnica da Administração (cfr., de entre outros, os Acórdãos do STA de 16/1/1986, processo n.º 20.919; de 22/3/1990, processo n.º 18.093; de 16/2/2000, processo n.º 38.862; e de 30/1/2002, processo n.º 47.657, todos disponíveis na base de dados do IGFEJ em www.dgsi.pt).
11.ª Sendo certo que o conceito de «erro manifesto de apreciação» ou «erro grosseiro» encontra-se bem definido pela jurisprudência: “Para que ocorra um erro manifesto, é indispensável que o ato administrativo assente num juízo de técnica não jurídica tão grosseiramente erróneo que isso se torne evidente para qualquer leigo”.
12.ª No caso concreto, nenhuma das instâncias apontaram «erro manifesto de apreciação» ou «erro grosseiro» à avaliação efetuada à interessada pela Junta Médica realizada em 2017-10-17, nos termos do art.º 38.º do Decreto-Lei n.º 503/99, composta por 3 médicos, um deles indicado pelo INML, de cujo Auto não consta qualquer voto de vencido ou ressalva (cfr. Documento junto aos autos a coberto do requerimento com ref.ª da peça processual: 201051)
13.ª Pelo que considera a CGA que a realização da perícia médico-legal agora determinada pelo Tribunal a quo consubstancia a realização de um ato inútil como resulta do Acórdão do TCA Sul, proferido no âmbito do recurso jurisdicional n.º 3486/08, de 2008-02-28 em que se decidiu, relativamente a uma questão conexa, que: «A averiguação da capacidade ou incapacidade da ora recorrente para se manter ao serviço (…) compete àquela junta médica da CGA, não aos juízes, nem a quaisquer peritos médicos nomeados “ad hoc” para o efeito».
14.ª Tratando-se de matéria que cai no campo da discricionariedade técnica da Junta Médica da CGA, a sindicabilidade dos seus pareceres pelo Tribunal deve cingir-se, como é jurisprudencialmente pacífico, à eventual falta de fundamentação.
Nestes termos e com o douto suprimento de V.ª Ex.ªs deve o presente recurso jurisdicional ser julgado procedente, com as legais consequências»

3. Não foram apresentadas contra-alegações.

4. O presente recurso de revista foi admitido pelo Acórdão de 8/9/2022 (cfr. fls. 2003/2004 SITAF) proferido pela formação de apreciação preliminar deste STA, prevista no nº 6 do art. 150º do CPTA, designadamente nos seguintes termos:

«(…) A questão que a Recorrente pretende ver apreciada nos autos é a de saber se num caso de acidente em serviço, como é o presente, é admissível a realização de prova pericial. Defende que a atribuição de competência à Junta Médica, prevista no art. 38°, n° 1, aI. a) do DL n° 503/99, de 20/11, não permite tal produção de prova pericial, tanto mais que na própria junta médica já intervém um médico do INML (n°s 1 e 3 do art. 38° do DL n° 503/99).
O TAF decidiu admitir a perícia médico-legal requerida, tendo por objeto a análise da situação de incapacidade da autora na sequência de acidente de serviço que sofreu em 22.12.2004, ao abrigo do disposto no art. 467°, no 3 do CPC.
O acórdão recorrido, com um voto de vencido, entendeu que o despacho recorrido devia manter-se, negando provimento ao recurso da CGA interposto daquele despacho.
A CGA interpõe revista alegando que o acórdão recorrido fez incorreta aplicação do art. 38°, n° 1, al. a) do DL n° 503/99, por não ser admissível que o juízo de uma Junta Médica, de composição colegial, possa ser colocada em causa por um juízo formulado por outra avaliação, realizada por um único médico e fora do contexto legal do referido DL n° 503/99 (n°s 1 e 3 do art. 38°).
Como se vê, as instâncias decidiram de forma consonante, tendo o acórdão recorrido um voto de vencido no sentido de que resulta do n° 1 do art. 38° do DL n° 503/99, de 20/11 que a confirmação e graduação da incapacidade permanente é da competência da junta médica da CGA, a qual nos casos de acidente em serviço, como é o caso, tem a constituição prevista no n° 2 daquele preceito, e que o sinistrado, nos termos do n° 1 do art. 39° pode solicitar à CGA a realização de junta de recurso, o que não sucedeu.
Ora, a questão de saber se num caso de acidente em serviço, a produção de prova pericial com vista ao apuramento do acerto dos pressupostos de facto e científicos é incompatível com a discricionariedade técnica da Administração, assume indiscutível relevância jurídica, podendo vir a colocar-se num número indeterminado de casos futuros do mesmo género, tendo este STA em recente acórdão de 27.01.2022, Proc. n° 1665119.SBEBRGS2 decidido esta questão em sentido contrário ao do acórdão recorrido.
Assim, é de toda a conveniência que este Supremo Tribunal se debruce sobre tal questão, justificando-se a admissão da revista para a sua dilucidação».

5. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto deste STA, notificada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 146º nº 1 do CPTA, emitiu parecer (cfr. fls. 2013/2014 SITAF), no sentido de ser concedido provimento à revista.

Para tanto ponderou, designadamente:

«(…) a deliberação colegial da Junta Médica constituída nos termos do artigo 38º do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro (na redação da Lei nº 19/2021, de 8 de Abril), ainda que sindicável na presença de ostensivo erro grosseiro ou erro manifesto de apreciação, só pode ser posta em causa e, eventualmente, removida, nas condições previstas no artigo 39º, daquele diploma legal, ou seja, por deliberação colegial de outra Junta Médica, a Junta de Recurso, composta nos termos do nº 2 do mesmo preceito (o recurso a segunda perícia está igualmente previsto nos artigos 487º a 489º do CPC).
2. É este, de resto, o procedimento pacificamente instalado ao longo de décadas e aplicado a todos os sinistrados submetidos às perícias da Caixa Geral de Aposentações, IP, sujeitas ao regime especial do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro.
Mecanismo de recurso que a Autora não terá convocado – e cujo indeferimento pela Caixa Geral de Aposentações, IP, poderia assumir-se, esse sim, como ato contenciosamente impugnável.
No enfoque casuístico, na ausência do impulso da Autora para ser submetida a Junta de Recurso, as eventuais dúvidas colocadas ao Tribunal poderiam ser supridas maxime através do confronto dos autores da perícia da Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações, IP, consentida pelos artigos 486º, nº 2, do CPC, ex vi 90º do CPTA.
Acresce que a perícia ordenada pelo TAF de Penafiel, atribuída ao Instituto Nacional de Medicina L, cujas atribuições e funcionamento decorrem da Lei nº 45/2004, de 19 de Agosto (na redação do Decreto-Lei nº 53/2021, de 16 de Julho), realizada em forma singular – sic. – o que, desde logo, debilita a sua relevância e efeito útil no âmbito da valoração a operar pelo Tribunal ao abrigo do artigo 489º do Código do Processo Civil (CPC).
Tanto mais quanto as deliberações das Juntas Médicas da Caixa Geral de Aposentações, IP,
emergem sempre de formação colegial especializada. No mesmo sentido, cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de 27 de Janeiro de 2022, proferido no recurso nº 1665/19.5BEBRG-S2, que tomou por objeto questão em tudo idêntica».

6. Sem vistos prévios, atento o disposto nos arts. 36º nºs 1 e 2 e 147º do CPTA e 48º nº 1 do DL nº 503/99, de 20/11, o processo vem submetido à Conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II - DAS QUESTÕES A DECIDIR

7. Constitui objeto do presente recurso de revista, atentas as alegações da Recorrente “CGA” e, especificamente, as respetivas conclusões, apreciar e decidir se o Acórdão do TCAN recorrido procedeu a um correto julgamento do recurso de apelação, por aquela interposto, ao julgar, em confirmação da decisão de 1ª instância do TAF/Penafiel, admissível, nas circunstâncias dos autos, a prova pericial, por exame médico requisitado pelo tribunal ao INML, em face do regime legal estatuído no DL nº 503/99, de 20/11.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

III. A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

8. O Ac.TCAN recorrido estabeleceu os seguintes factos que entendeu relevantes para a decisão a proferir:

«A) O T.A.F. de Penafiel, no dia 29 de novembro de 2021, proferiu despacho com o seguinte teor:
(…)
Perícia:
No despacho saneador (fls. 320), foi suscitada oficiosamente a submissão da autora a perícia a realizar pelo INML.
Notificadas as partes para se pronunciarem, a autora apresentou requerimento afirmando nada ter a opor; e a entidade demandada apresentou requerimento demonstrando a sua oposição.
Vejamos.
Analisada a argumentação da entidade demandada, afigura-se manifesta a sua ausência de razão.
Em primeiro lugar, porque não há nenhuma norma legal que estabeleça a inadmissibilidade de realização de uma perícia médico-legal a realizar pelo INML com o objetivo de avaliar a eventual incapacidade que a autora pode padecer.
Bem pelo contrário.
Como resulta do disposto no artigo 467.º, n.º 3 do CPC, as perícias médico-legais, nas quais se inclui necessariamente perícia que vise a avaliação ou apuramento de dano/incapacidade de uma pessoa, são realizadas pelos serviços médico-legais ou peritos médicos contratados.
Por outro lado, como decorre do artigo 388.º do CC “quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial” deve ser determinada a realização de prova pericial.
Portanto, por força dos normativos referidos sempre que estejam em causa factos cuja perceção careça de conhecimentos especiais que os julgadores não possuem ou quanto estejam em causa factos relativos a pessoas que não possam ser objeto de inspeção judicial, deve ser determinada a realização de prova pericial.
No caso em apreço, como decorre do tema de prova fixado, a divergência das partes quanto à matéria de facto reside na divergência entre a alegada incapacidade da autora e o nexo causal entre esta alegada incapacidade e o acidente sofrido a 22.12.2004.
Afigura-se evidente que a nem os julgadores podem apreciar a incapacidade da autora nem o eventual nexo causal diretamente, já que tal avaliação carece de conhecimentos especiais da área da medicina que os julgadores não possuem.
Portanto, ao contrário do alegado, a realização da perícia no caso em apreço resulta expressamente delimitada como o meio de prova que o legislador estabelece para demonstrar os factos que estão em causa no tema da prova fixado.
Em segundo lugar, o “erro manifesto de apreciação” invocado pela entidade demandada, não obsta a que seja dada a possibilidade à autora de demonstrar, através dos meios de prova legalmente admissíveis, esse “erro manifesto”.
Seria, aliás, redutor, e violador da tutela jurisdicional efetiva que um particular perante uma decisão tomada com base em parecer da Junta Médica da entidade demandada apenas pudesse demonstrar um erro manifesto através da mera alegação, impossibilitando-se-lhe a possibilidade de lançar mão dos meios de prova admitidos em geral pelos Tribunais.
Não só não existe nenhuma norma legal nesse sentido, como também tal entendimento se afigura não respeitar o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP.
Num Estado de Direito Democrático não são admissíveis a prática de atos que afetem, restrinjam ou rejeitem pretensões dos particulares, sem que tais atos sejam juridicamente controlados pelos Tribunais.
Efetivamente, o artigo 266.º, n.º 1 da CRP impõe que na prossecução do interesse público, a Administração Pública respeite os direitos e interesses legalmente protegidos, sendo que cabe aos Tribunais tal tarefa, como decorre do estabelecido no artigo 202.º, n.º 2 da CRP.
Neste quadro, não pode admitir-se que uma entidade administrativa tenha o “exclusivo” ou “monopólio” da análise de factos jurídicos de que a lei faz depender a produção de efeitos jurídicos na esfera dos particulares, o que equivaleria a afirmar-se que essa entidade produz decisões que não são sindicáveis pelos Tribunais, que é o que aconteceria se ao Tribunal e aos particulares fosse vedada a possibilidade de através de prova pericial, ou seja, de uma análise tecnicamente fundada, se verificasse se a decisão da entidade demandada padece ou não de erro grosseiro.
Tal não significa que o Tribunal é chamado ou colocado na posição de se substituir à Administração, já que o Tribunal apenas controla precisamente o respeito pela Administração das imposições legais, que é o que ocorre quanto esta recusa atribuir efeitos jurídicos a determinados factos que a lei faz depender determinado direito para o particular – cfr. Muñoz, J. R.-A., “El Derecho Administrativo en el Siglo XXI”, in Anuario Da Faculdade de Dereito Da Universidade Da Coruña (Revista Jurídica Interdisciplinar Internacional), 2009, pág. 631.
Como refere a entidade demandada, a autora já foi submetida a junta médica. E de forma a que o Tribunal possa perceber se existe ou não erro manifesto, terá necessariamente que se socorrer de prova pericial. É que como a própria entidade demandada reconhece no artigo 5º do requerimento apresentado o Tribunal poderá anular os atos praticados quando seja detetada a existência de “erro manifesto de apreciação” ou “erro grosseiro ”, o que, no caso em apreço só pode acorrer quando tenha elementos de prova de natureza técnica.
Assim, determina-se a realização de prova pericial a realizar pelo ENML, conforme sugerido no final do despacho saneador proferido (…)” [cfr. fls. 341 dos autos – suporte digital – cujo teor se dá por integralmente por reproduzido].

B) A A. foi sujeita a Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações, em 17 de outubro de 2017, tendo sido deliberado, pela Junta Médica, que “do acidente/doença em serviço não resultaram sequelas passíveis de desvalorização” [cfr. fls. 4 dos autos de reclamação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].

C) A Recorrida foi notificada da deliberação da Junta Médica através de ofício datado de 26 de outubro de 2017 [cfr. fls. 4 dos autos de reclamação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido]».
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III. B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

9. Como resulta dos autos, o tribunal de 1ª instância, TAF/Penafiel, ordenou oficiosamente a realização de prova pericial, a realizar pelo INML, na sequência de a Autora sinistrada ter sido já submetido a exame efetuado por Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações nos termos do art. 38º do DL nº 503/99, de 20/11.

Fê-lo após ouvir as partes – a Autora referiu nada ter a opor e a Ré opôs-se –, justificando a necessidade da perícia, segundo o despacho que a ordenou, «de forma a que o tribunal possa perceber se existe ou não “erro manifesto de apreciação” ou “erro grosseiro”» no exame médico efetuado pela Junta Médica, com a finalidade de apreciar e decidir sobre a divergência das partes “entre a alegada incapacidade da Autora e o nexo causal entre esta alegada incapacidade e o acidente sofrido a 22.12.2004”».

No caso, a Junta Médica a que alude o art. 38º do DL 503/99, após examinar a Autora, deliberou que “do acidente/doença em serviço não resultaram sequelas passíveis de desvalorização” (cfr. ponto B do probatório).

E, tendo sido notificada desta deliberação da Junta Médica (cfr. ponto C do probatório), a Autora não solicitou a realização de Junta de Recurso, como lhe permitia o nº 1 do art. 39º do DL nº 503/99 («no prazo de 60 dias consecutivos a contar da notificação da decisão da Junta Médica»).

10. A “CGA” interpôs recurso de apelação para o TCAN alegando que a competência para avaliar a incapacidade permanente decorrente de acidentes de serviço é das Juntas Médicas previstas nos arts. 38º e 39º do DL nº 503/99, em vereditos dotados de discricionariedade técnica, os quais, como jurisprudencialmente admitido, apenas em casos de “erro manifesto de apreciação” ou “erro grosseiro” podem ser jurisdicionalmente questionados ou contrariados.

Mais nota que não foi apontado “erro manifesto ou grosseiro” à avaliação médica efetuada, no presente procedimento, pela Junta Médica ao abrigo do art. 38º do DL nº 503/99, composta por 3 médicos, sendo um deles indicado pelo INML, de cujo Auto não ficou a constar qualquer discordância (voto de vencido ou ressalva).

Conclui, pois, ser ilegal a realização de perícia por quaisquer outros médicos ou juntas “ad-hoc”, à margem do legalmente estipulado no DL nº 503/99.

11. Nessa apelação, a Autora contra-alegou sustentando a fundamentação do despacho recorrido, essencialmente com a argumentação de que: o decidido encontra arrimo nos arts. 467º nº 3 do CPC e 388º do CC, donde resulta que, sempre que sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, deve ser determinada a realização de prova pericial; se a própria Entidade Ré (CGA) admite que o tribunal pode anular os atos praticados pela Administração em caso de “erro manifesto de apreciação” ou “erro grosseiro”, deve ser dada oportunidade à Autora de demonstrar, e ao tribunal para perceber, a eventual existência de “erro grosseiro” na avaliação efetuada à Autora pela Junta Médica; não existindo norma legal que proíba o tribunal de determinar a perícia que ordenou, a sua não realização sempre violaria o princípio da tutela jurisdicional efetiva garantida pelos arts. 20º e 268º nº 4 da CRP.

12. O TCAN, pelo seu Acórdão ora recorrido, de 9/6/2022 (fls. 458 e segs. SITAF), negou provimento ao recurso de apelação da “CGA”, assim confirmando o despacho recorrido do TAF/Penafiel, com a fundamentação que o ordenado exame não visa substituir o juízo técnico da Administração, mas, diferentemente, esclarecê-lo.

E, a esse esclarecimento, disse nada dever obstar, uma vez que os tribunais administrativos dispõem de poderes de jurisdição e de cognição plena relativamente ao apuramento da correção ou incorreção da avaliação da Junta Médica da CGA; e, até, para aferição da existência de eventual “erro grosseiro”, sob pena de violação do “direito à prova”, o qual confere às partes o direito a utilizarem a prova em seu benefício e o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal.

Este Acórdão do TCAN foi, porém, tirado com um voto de vencido que considerou que a composição e competência das Juntas Médicas a quem está legalmente adstrita a função de avaliação médica nos casos de incapacidade permanente por acidentes de serviço sofridos por funcionários públicos, são reguladas nos arts. 38º e 39º do DL nº 503/99, notando que a Autora, no prazo de 60 dias a partir da notificação da avaliação médica efetuada pela Junta Médica, podia ter requerido Junta Médica de Recurso, como lhe permitia o nº 1 do citado art. 39º, mas não o fez. E, tal como resulta deste regime legal, o resultado da avaliação efetuada pela Junta Médica só podia ser posto em causa por deliberação colegial de outra Junta Médica, a Junta de Recurso prevista no mesmo diploma, como o STA já julgou no seu Acórdão de 27/1/2022 (proc. 1665/19.5BEBRG), sem prejuízo de, realizada esta, o seu resultado poder ser judicialmente posto em causa. Porém, não tendo a Autora requerido a Junta Médica de Recurso, não pode, agora, pretender ver sindicado o juízo técnico formado pela Junta Médica, com que se conformou.

13. Novamente inconformada com este julgamento, interpôs a “CGA” o presente recurso de revista, tendo feito uso, nas sua alegações, essencialmente, da argumentação já esgrimida contra o despacho do TAF/Penafiel, nas sua alegações do recurso de apelação (cfr. fls. 483 e segs. SITAF).

Neste recurso de revista, a Autora não contra-alegou.

14. Ponderadas as alegações da Recorrente, especificamente as suas conclusões (acima transcritas sob ponto 2), e os fundamentos explanados quer no despacho do TAF/Penafiel (que ordenou a perícia médica sob controvérsia) quer no Acórdão do TCAN ora recorrido, e cientes dos factos tidos por provados, é nosso entendimento que o decidido no Acórdão recorrido (no caso, por maioria) não é de manter.

É que, tal como referido no voto de vencido aposto no Acórdão recorrido, o procedimento de avaliação das consequências médico-legais, no caso de acidentes de serviço sofridos por funcionários públicos, encontra-se legalmente previsto no DL nº 503/99. E esta previsão legal determina que tais avaliações são da competência de Juntas Médicas – com a composição aí fixada -, incluindo Junta Médica de Recurso para o caso de o acidentado/interessado não se conformar com o resultado da primeira avaliação e pretender uma segunda avaliação (cfr. arts. 21º e 22º ou arts. 38º e 39º, consoante estejam em causa incapacidades temporárias ou incapacidades permanentes, sendo este último o caso dos presentes autos).

E, perante a forma como estão legalmente previstas a composição e a competência destas Juntas Médicas, não colhem os argumentos esgrimidos pela Autora ou pelas instâncias quanto à possibilidade do seu afastamento, fazendo intervir um médico ou uma Junta “ad-hoc” num exame médico pericial ordenado fora do regime legalmente fixado.

Desde logo, argumentar, como fez a Autora, no seguimento do TAF/Penafiel, que «sempre que sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, deve ser determinada a realização de prova pericial», nada adianta, visto que é precisamente isso o que determina a lei nestes casos, e foi cumprido: a avaliação pericial, não pelo julgador, mas pelos peritos médicos que integraram a Junta Médica que, no caso, examinaram e avaliaram a Autora. Por outro lado, não colhe o argumento de que, para detetar eventuais “erros grosseiros” de avaliação era necessária a perícia ordenada, pois que esse terá sido, precisamente, o objetivo do legislador ao prever a possibilidade de solicitação de nova avaliação por uma Junta Médica de Recurso, que a Autora não quis requerer. E, nesta circunstância, resulta também incompreensível a sua queixa relativa a alegada violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva (garantida nos arts. 20º e 268º nº 4 da CRP) quando foi a Autora que voluntariamente prescindiu dos meios, para tanto, legalmente previstos.

15. Também entendemos que a argumentação do Acórdão do TCAN recorrido, na tese que fez vencimento, não é de acolher.

Não está em causa a competência jurisdicional dos tribunais administrativos e os seus poderes de jurisdição e de cognição plena relativamente ao apuramento da correção ou incorreção da avaliação da Junta Médica da CGA. Nem o seu poder inquisitório de ordenar as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (cfr. art. 411º do CPC).

Mas tais poderes devem ser exercidos de acordo com a lei – isto é, tendo em conta os procedimentos legalmente previstos (a não ser, como é evidente, em caso de o tribunal resolver desaplicar a lei por a julgar inconstitucional, devendo então declará-lo) – e tendo também em conta os ditames e princípios processuais, como, v.g., o princípio da disponibilidade das partes na sua atuação, comportamento e estratégias processuais.

Ora, no caso dos presentes autos, o legislador estabeleceu uma via para eventual confirmação ou contestação da avaliação efetuada por uma primeira Junta Médica através da possibilidade de requerimento de uma Junta Médica de Recurso. Porém, a Autora, interessada, dispensou essa possibilidade legalmente prevista, não requerendo a intervenção desta Junta Médica de Recurso.

Assim, não podia o tribunal (TAF/Penafiel) substituir-se à Autora, contrariando mesmo a opção desta de não contestar a avaliação efetuada pela Junta Médica, e ordenar uma perícia fora do regime legalmente previsto, tanto mais que, segundo resulta da fundamentação explanada pelo tribunal (cfr. facto provado A), tal perícia destinava-se a esclarecer «a divergência das partes entre a alegada incapacidade da Autora e o nexo causal entre essa alegada incapacidade e o acidente sofrido».

Ou seja, o exame ordenado não se impunha, sequer, por resultar qualquer erro manifesto, sentido pelo tribunal, da avaliação efetuada pela Junta Médica – como bem nota a Recorrente “CGA” -, mas sim em mero resultado de divergência da Autora face àquela avaliação. Ora, precisamente para ultrapassar a divergência que acaso a Autora tivesse face ao resultado da avaliação efetuada pela Junta Médica (nos termos do art. 38º do DL nº 503/99) é que o legislador previu e lhe concedia a oportunidade de contestar aquele resultado através da solicitação de uma nova avaliação por parte da Junta Médica de recurso (prevista no art. 39º daquele diploma). Desta forma, a invocação dessa divergência é processualmente incongruente com a circunstância de a Autora se ter conformado – podendo não o ter feito - com a avaliação da Junta Médica.

Diz, também, o TCAN, no Acórdão recorrido, em confirmação da fundamentação do despacho do TAF/Penafiel, que o exame pericial se justifica até para aferição da existência de eventual “erro grosseiro” na primeira avaliação, sob pena de violação do “direito à prova”, o qual confere às partes o direito a utilizarem a prova em seu benefício e o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal.

Mas parece-nos evidente que, tendo a Autora renunciado à possibilidade legal de contestar ou contradizer a avaliação efetuada pela Junta Médica, tendo dispensado uma nova avaliação pela Junta Médica de Recurso, não parece ter cabimento falar de violações do “direito à prova” ou do “direito a contradizer as provas apresentadas”, pois foi este direito que foi oferecido, por previsão legal, à Autora, que dele resolveu prescindir.

Argumentaram, ainda, as instâncias, que «não pode admitir-se que uma entidade administrativa tenha o “exclusivo” ou “monopólio” da análise dos factos jurídicos de que a lei faz depender a produção de efeitos jurídicos na esfera dos particulares». Entendemos, porém, que esta análise é desajustada ao caso.

É que, ponderando o sistema previsto no DL nº 503/99 para fixação das consequências médico-legais de acidentes de serviço – isto é, a referida “análise dos factos jurídicos de que”, no caso, “a lei faz depender a produção de efeitos jurídicos na esfera dos particulares” -, não vislumbramos qualquer “exclusivo” ou “monopólio” de que goze a Entidade Ré “CGA”: a avaliação é da competência de uma Junta Médica tripartida, formada por um médico da “CGA”, outro médico da escolha do sinistrado, e um terceiro médico do INML - art. 38º nº 1 a) do DL nº 503/99; e, no caso de o sinistrado requerer nova avaliação, por eventualmente não se ter conformado com o resultado da primeira avaliação, a segunda avaliação é efetuada por uma nova Junta Médica (de Recurso), também tripartida, com diferentes médicos da “CGA” e do INML, podendo apenas manter-se, ou não, o médico da escolha do sinistrado – art. 39º nºs 1 e 2 do DL nº 503/99.

Assim, verifica-se que este regime legal respeita e garante adequadamente os interesses em jogo (interesse público e interesse dos acidentados), sem “exclusivos” ou “monopólios”, não se mostrando violador dos direitos das partes “à prova” ou “a contradizer a prova apresentada”, dada a possibilidade de dupla avaliação por parte de duas diferentes Juntas, tripartidas, de peritos médicos.

E, para além de tudo o que fica dito, não deixa de mostrar-se incongruente que o exame pericial ordenado no despacho (sob controvérsia) colocasse a cargo do INML o controlo da avaliação efetuada pela Junta Médica prevista no art. 38º do DL nº 503/99, quando o INML foi, por determinação legal, a entidade indicadora de (apenas) um dos três médicos que a compuseram (e de apenas um dos três médicos que haveriam de compor a Junta Médica de Recurso se esta tivesse sido requerida pela Autora – cfr. art. 39º do mesmo diploma).

16. Em resultado de tudo o que fica dito, não vemos razão para alterar o que já foi decidido por este STA no Acórdão de 27/1/2022 (proc. 01665/19), citado no voto de vencido aposto no Acórdão recorrido, e que julgou que:
«A deliberação colegial da Junta Médica constituída nos termos do artigo 38º, do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro, ainda que sindicável não só na presença de ostensivo erro grosseiro, mas nos termos mais abrangentes aceites na doutrina e jurisprudência vertidas no voto de vencido que acompanha o acórdão recorrido, só pode ser posta em causa e, eventualmente, removida, nas condições previstas no artigo 39º, do mesmo diploma legal, ou seja, por deliberação colegial de outra Junta Médica, a Junta de Recurso, composta nos termos do nº 2 do mesmo preceito».

Nestes termos, merece provimento o presente recurso de revista interposto pela Recorrente Ré “CGA”, devendo revogar-se o Acórdão do TCAN recorrido e, consequentemente, o despacho do TAF/Penafiel por ele mantido, baixando os autos à 1ª instância para prosseguimento da sua tramitação, em conformidade.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202º da Constituição da República Portuguesa, em:

Conceder provimento ao presente recurso de revista interposto pela Recorrente/Ré “Caixa Geral de Aposentações”, revogando-se, assim, o Acórdão do TCAN recorrido, baixando os autos à 1ª instância para prosseguimento da sua tramitação, em conformidade.

Custas a cargo da Autora (sem prejuízo do disposto no art. 7º nº 2 do RCP – não apresentação de contra-alegações – e do apoio judiciário concedido).

D.N.

Lisboa, 24 de novembro de 2022 – Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha (relator) – José Augusto Araújo Veloso – Maria do Céu Dias Rosa das Neves.