Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0565/12
Data do Acordão:10/09/2012
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:POLÍBIO HENRIQUES
Descritores:ACÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
SENTENÇA
RECURSO
DECISÃO
MATÉRIA DE FACTO
ILICITUDE
CULPA
ACTO ADMINISTRATIVO ILEGAL
Sumário:I - No âmbito do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, não cabe despacho de convite ao aperfeiçoamento das respectivas alegações.
II - No regime fixado pelo DL nº 48051 de 21 de Novembro de 1967, na prática de actos administrativos ilegais, anulados por violação de normas legais ou regulamentares o elemento culpa dilui-se na ilicitude, assumindo a culpa o aspecto subjectivo da ilicitude.
Nº Convencional:JSTA000P14636
Nº do Documento:SA1201210090565
Data de Entrada:05/22/2012
Recorrente:ESTADO E ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DE SAÚDE DO NORTE, I.P.
Recorrido 1:A... E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo

1. RELATÓRIO
O Estado Português e a Administração Regional de Saúde do Norte, IP recorrem para este Supremo Tribunal da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, a fls. 938-969, que julgando parcialmente procedente a acção intentada contra eles por A…… e B……, os condenou, solidariamente, a pagar:
- à autora A.….. a quantia de € 231 816,34,a título de danos patrimoniais e a quantia de € 22 500,00, a título de danos não patrimoniais, e nos juros de mora vincendos, a contar desta data, à taxa legal de 4% ao ano;
- ao autor B……. a quantia de € 61 512,80, a título de danos não patrimoniais, e a de € 15 000,00, a título de danos não patrimoniais, e nos juros de mora vincendos, a contar desta data, à taxa legal de 4% ao ano.

1.1. O Estado apresenta alegações com as seguintes conclusões:
1- Vem o presente recurso interposto da, aliás, douta sentença que julgou parcialmente procedente, por provada a presente acção, instaurada por A……e B……, e que condenou este, solidariamente, por danos patrimoniais e por danos morais.
2 - Tais montantes resultariam da alegada efectiva responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito e teriam na sua génese a prolação de dois despachos, pela então Ministra da Saúde, através dos quais aplicou a pena de demissão da função pública, aos AA.
3- Tendo o 2° A. optado por não ser reintegrado na função pública, numa manifestação de vontade que só ao mesmo respeita, nunca poderá ser tal atitude assacada ao R. — Estado Português, obrigando-o ao cumprimento de um dever de indemnizar.
4- Nunca ao R. - Estado Português poderá ser imputada a responsabilidade pela divulgação pela comunicação social de noticias que alegadamente terão causados danos morais aos AA..
5- Inexiste qualquer nexo de causalidade entre uma decisão de demissão da função pública dos AA., datada de 27.02.1987, e o facto de os AA., não terem tido filhos, ou se terem divorciado, divórcio esse decretado por sentença, em 07.02.2000.
6- Estando assim excluída toda a responsabilidade do R. — Estado Português que, supostamente, pudesse dar origem a obrigação de indemnizar, por danos morais.
7- Só há responsabilidade civil por factos ilícitos quando se encontrem provados os pressupostos dessa responsabilidade, quais sejam o facto, a ilicitude, a culpa, a existência de um dano, e o nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
8- Para que haja responsabilização da Administração por danos materiais e morais resultantes de actos culposos dos seus agentes impõe-se que haja negligência destes, traduzida em acção ou omissão imputável ao exercício da função pública.
9 - Tal, não acontecendo, não se mostra preenchido o pressuposto relativo à ilicitude.
10- Nos termos do n° 1 do art° 4° do D.L. n°48 051, de 21.11.1967, a culpa dos titulares do órgão ou dos agentes é apreciada nos termos do art° 487° do C.C..
11 - Para que o facto ilícito gere responsabilidade, é necessário que o autor tenha agido com culpa, não bastando reconhecer que ele procedeu objectivamente mal.
12 - Na tramitação do processo disciplinar, que culminou com a aplicação da pena de demissão aos aqui AA., inexiste qualquer elemento fáctico que nos permita concluir pela existência do elemento culpa.
3 - E, não ocorrendo culpa - nem ilicitude - e só existindo responsabilidade civil por factos ilícitos quando se encontrem provados os pressupostos dessa responsabilidade, cumulativos, inexistindo um requisito que seja, inexiste responsabilidade civil, por parte do R. — Estado Português.
14- A douta sentença recorrida é nula, padecendo de erro de fundamentação, erro de julgamento e absoluta falta de motivação, violando, por isso, o disposto no artigo 668.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
15 - Pelo que não deve o R. - Estado Português ser condenado ao pagamento seja de que importância for, a titulo de indemnização aos ora AA..
16 - Pelo exposto, deverão V. Exas., Colendos Conselheiros, substituir a aliás douta sentença ora em crise, por outra que absolva o R. — Estado Português do pedido.
1.2. Por sua vez, a Administração de Saúde do Norte, apresentou alegações com as seguintes conclusões:

1- A ilicitude e a culpa são dois pressupostos autónomos da responsabilidade civil extracontratual e à verificação de um, a ilicitude (que pode bastar para anular um acto administrativo e, em consequência, implicar vários efeitos, bem como dar lugar a um processo de execução de sentença administrativa) não se segue necessariamente que se verifique o outro;
2 - Com efeito, «… a culpa comporta um juízo de censura e representa, por isso algo mais do que a mera constatação da ilegalidade. Ademais, sendo a culpa aferida pela diligência de um funcionário médio (por adaptação do conceito de bonus pater famílias), dificilmente se compreenderia que esse funcionário incorresse em conduta culposa sempre que se tivesse limitado a adoptar, na apreciação do caso concreto, uma das soluções plausíveis de direito» (in op. cit).
3- No caso dos autos não há qualquer elemento de facto que consubstancie o pressuposto culpa da Administração (e a factualidade praticada pelos lesados geradora de todo o processo seria, hoje, salvaguardo o anacronismo, gravemente ilegal e censurável);
4- E a anulação do acto, confirmada pelas instâncias legais, não estabelece um comportamento materialmente autónomo dos actos jurídicos invalidados que possa consubstanciar o pressuposto culpa;
5- Nos termos das normas do art 464º do Código Civil, a obrigação de indemnizar não pode abranger danos aleatórios e imprevisíveis, como o são a prestação por um médico de trabalho extraordinário e intervenção em Juntas Médicas; nem podem ser considerados danos inelutáveis, que devam ser ressarcidos independentemente de qualquer prestação material;
6- Não podem relevar danos que tenham sido causados por factos pessoais do próprio lesado, sendo de desatender os danos inerentes a uma promoção profissional que o lesado desistiu de alcançar, quando era alcançável, como sucedeu no caso análogo da outra lesada;
7 - Com efeito, porque o lesado não concorreu ao concurso habilitacional - concurso autónomo por relação à relação de emprego e a que poderia concorrer para obtenção do grau de consultor - para assim aceder como sucedia ao tempo, automaticamente, à categoria seguinte, de assistente graduado, unicamente porque não quis, em acto voluntário, não pode integrar na sua esfera jurídica o direito a ser indemnizado como se tivesse acedido a essa categoria profissional:
8 - Não podia o Tribunal a quo deixar de atender ao contributo dos lesados para a causação da lesão, que pela forma como se comportaram, «justificando» as faltas um do outro, em intervenção recíproca, se puserem incursos num comportamento hoje eticamente censurável.
9- E não pode haver danos morais quando a situação de constrangimento criada teve contributo dos próprios lesados; e muito menos em valores que constituem um claro favorecimento dos próprios lesados;
10- A presente acção ser julgada improcedente, por falta do elemento ‘culpa’ da Administração, indispensável à verificação da responsabilidade civil extracontratual», por errada consideração da extensão dos danos indemnizáveis, por errada consideração de um pressuposto, pessoal, de evolução da carreira de um dos lesados, e por inconsideração do contributo dos lesados para a causação do dano.
11- Ao julgar como o fez, violou a couta sentença recorrida as normas dos arts 483°/1 e 487° do Código Civil e art 4° do Decreto-Lei n°48051, de 21-11-1967, então aplicável, bem como as normas dos arts 564° e 570º do Código Civil;
12 - Com efeito, o Tribunal não pode condenar a Administração sem o estabelecimento claro de factos que consubstanciem a culpa dos agentes intervenientes, nem estender os danos a domínios do imprevisível e do indeterminável para a obrigação de indemnizar.
Termos em que, e nos melhores da douta ponderação de V. Exas, na atendibilidade das enunciadas conclusões, e no seu objecto, deve proferir-se acórdão que revogue a decisão recorrida, com as legais consequências.
Assim se fazendo JUSTIÇA!
1.3. Os autores, ora recorridos, contra - alegaram, concluindo:
I. Importa apenas apurar a responsabilidade das Recorrentes pelos seus actos ilícitos, culposos e danosos e quantificar o valor dos danos a ressarcir aos Recorridos.
II. Os factos dados como provados são todos os constantes dos Factos Assentes (Factos Assentes de A a AJ) e as respostas dadas pelo Tribunal aos Quesitos 1 a 26, designadamente os factos considerados provados constantes dos Quesitos 3, 6 e 7, 9 e 10, 11 a 13 (na redacção do tribunal), 14, 15 (na redacção do tribunal), 16 a 18, 19 (na redacção do tribunal), 20 a 26 — Factos Provados n.°s 1 a 54;
III. Os Recorridos lograram fazer toda a prova dos factos cujo ónus recaía sobre si: os factos que estão na base dos vários pressupostos da responsabilidade extracontratual da Administração por actos ilícitos: o acto ilícito e culposo, os danos e o nexo de causalidade entre os actos e os danos, naqueles se incluindo os danos materiais e os morais.
IV. Alguns factos não se conseguiram provar por evidente falta do dever de colaboração da Administração, pois foram pedidas as informações e elas não chegaram, apesar de várias insistências do próprio Tribunal, o que deve ser tido em consideração;
V. Estamos no âmbito da responsabilidade extracontratual da Administração por actos ilícitos, pelo que devemos ter em conta o artigo 22° da Constituição os artigos 1° a 7° do DL 48.051, os artigos 483° e seguintes do Código Civil, aplicados com as necessárias adaptações, e a jurisprudência pacifica e continuada dos nossos tribunais em aplicação desses normativos, considerando que os factos ocorreram entre Abril 1987 e Dezembro 1996, razão porque não será aqui aplicável a legislação que entretanto foi publicada e que veio substituir aquela;
VI. Encontra-se suficientemente provado nos autos que os Recorrentes praticaram actos administrativos e que estes foram considerados inválidos pelos Tribunais administrativos, o TACL e o STA, todos por decisões transitadas em julgado, assim os actos foram anulados por vicio substantivo de violação de lei e declarados nulos, tendo todos afectado direitos subjectivos dos Recorridos;
VII. Sendo ilícitos, fica provada a culpa, por os funcionários terem de respeitar o seu dever de zelo, isto é de se comportar com zelo e com respeito pelas leis (cfr. art. 3°16. DL nº 24/84, de 16-01), o que não fizeram;
VIII. A questão essencial é a quantificação do dano, patrimonial e também moral, sendo esta admitida em direito, nos termos do artigo 496° CC;
IX. No dano patrimonial, está aqui em causa a teoria da indemnização: ou seja é necessário repor a situação que existira se os actos danosos não tivessem sido praticados, o que inclui indemnizar os Recorridos de todos os danos sofridos, incluindo os materiais e os morais, aliás, a teoria da indemnização impõe que todos os danos sofridos sejam ressarcidos e não apenas que o lesado (funcionário demitido) tenha desde logo direito aos vencimentos que deixou de auferir, mas só a estes, vejam-se os artigos 562° e seguintes CC, aqui também aplicáveis e ainda nos termos do disposto no artigo 83°, n.° 6 do DL 24/84, aqui aplicável por analogia (relativo à reconstituição da carreira do funcionário que tenha obtido a revisão da pena disciplinar — cfr. Ac. STA 19/04/2005, citado);
X. Conforme se retira do Acórdão do STA de 19/04/2005 (Proc. n.° 046339), a indemnização pode até ser superior ao valor dos vencimentos que não foram auferidos, embora normalmente coincidam os respectivos valores, mas no caso do Recorrido B…… vemos como terá que ser forçosamente superior, por os danos sofridos ultrapassarem esse valor, o que tem de ser feito é dar cumprimento ao dever de reconstituição da situação actual hipotética, isto é, a que existiria se a ilegalidade não tivesse sido cometida;
XI. No caso presente há pois que reconstituir a carreira dos Recorridos, de forma a que se encontre a situação que deveria existir como se os actos de despedimento não tivessem sido praticados;
XII. Em relação aos danos materiais, os Recorridos pedem a diferença de valor entre o que auferiram na realidade entre Abril de 1987 (despedimento) e Janeiro de 1997 (trânsito em julgado do Acórdão) e o que deveriam ter auferido no mesmo período se tivessem continuado na função pública, progredindo normalmente nas suas carreiras médicas, a que acresce o facto de o Recorrido B…… não ter podido ter acesso ao grau de consultor e a consequente promoção a assistente graduado, por se encontrar fora de uma carreira clínica, essencial para a obtenção daquele grau, devendo também ser indemnizado por esse facto, que foi também um dano material efectivo que teve, para além dos vencimentos que deixou de obter (cfr. Facto Assente AA e resposta positiva ao Quesito 26);
XIII. Há valores que foi possível identificar com precisão (embora sofram nos montantes das omissões da colaboração dos Recorrentes...), há, no entanto, outros cujo valor apenas se pode fixar por equidade, nos termos do artigo 566°, n.° 3 CC — é o caso do valor das juntas médicas e dos suplementos — por clara omissão dos Recorrentes - admitindo a fixação do valor por equidade, o Acórdão do STA de 16/03/2004, referido;
XIV. Estes valores têm de ser actualizados a Janeiro de 1997 por correcção monetária (taxa de inflação) e acrescidos de juros de mora civis desde a citação das Recorrentes até integral pagamento, como consta do pedido;
XV. Em relação à correcção monetária, importa ter presente que tal actualização do quantum indemnizatório pode ser feita oficiosamente pelo Tribunal, ao abrigo do artigo 566°, n.° 2, CC, caso tal se mostre necessário para colocar o lesado na situação que existiria se o dano não tivesse existido, e assim é, por a obrigação de indemnizar não ser uma obrigação pecuniária, mas uma dívida de valor, subtraída ao princípio nominalista (cfr. art. 550° CC — Ac. STA de 16/03/2004, Proc. n.° 01611/02), o que evidentemente acontece, dado o tempo entretanto decorrido;
XVI. A correcção monetária faz-se por aplicação da taxa de inflação constante dos índices dos preços no consumidor, publicados pelo INE, em cada ano (cfr. Ac. STA de 16/03/2004 — cfr. tb arts. 551° e 566°/2 CC);
XVII. A esta indemnização por danos patrimoniais, acresce a indemnização por danos morais, tendo ficado provada a gravidade objectiva dos danos, especialmente para a Recorrida A…… os danos morais tiveram especial gravidade, com depressão profunda e necessidade de consultas psiquiátricas, impossibilidade de trabalhar durante vários anos (até 1991), mas também para o Recorrido B……., que à sua maneira, mais reservado, sofreu igualmente, em especial, o fim de um sonho de ser médico, pois teve de abandonar a sua carreira promissora — todos o diziam - na medicina, em altura em que nenhumas alternativas existiam a uma carreira de médico no Estado;
XVIII Não tiveram filhos e divorciaram-se, acabando assim uma vida em família conjunta, ainda hoje lhes custando falar do assunto, de tal forma ficaram marcados pela injustiça dos actos dos Recorrentes e os familiares e amigos demonstraram, ainda em audiência de julgamento, passados estes anos todos, que a situação foi muito dura e humilhante para os Recorridos e para eles próprios, não se encontrando de forma alguma esquecida! 24 anos depois;
XIX. Os Recorrentes merecem uma censura efectiva, de forma a não repetirem a sua actuação — além de que a sua actuação no processo também é de molde a reafirmar a necessidade de reprovação social, apelando-se aqui ao “prudente arbítrio” do Juiz, à subordinação “às regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”, sendo medida de forma objectiva, mas tendo em conta o caso concreto (cfr. Ac. STA de 18/01/2005, Proc. n.° 01703/02).
XX. Em relação ao nexo de causalidade, na modalidade reconhecida de causalidade adequada negativa de ENNECERUS/LEHMANN, verifica-se nos autos, pois com efeito, foi dado como provado que os danos só ocorreram em virtude dos actos ilícitos e culposos dos Recorrentes, sem os actos ilícitos e culposos dos Recorrentes, os danos não se teriam verificado, é o que basta para se dar por verificado o nexo de causalidade, pressuposto da responsabilidade;
XXI. Em suma, todos os pressupostos da responsabilidade dos Recorrentes estão provados, pelo que deve ser confirmada integralmente a condenação dos Recorrentes integralmente no pedido.
XXII. Já não é a altura de voltar a pôr em causa os actos das Recorrentes ou a actuação dos Recorridos, pois os tribunais já se pronunciaram, com decisões transitadas em julgado, sobre ambos, concluindo pela invalidade dos actos das Recorrentes e pela razão total dos Recorridos.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas deve o recurso da ARSNorte ser indeferido in totum, como é de Lei e de Justiça.
Cumpre decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. OS FACTOS
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1) Em 3.7. 1986 a Comissão Instaladora da Administração Regional de Saúde de Vila Real deliberou:
- rever o seu despacho de 3.6.1986 por ter sido tomado com erro sobre os pressupostos de direito, e, assim,
- manter como injustificadas as faltas dadas a partir de 14 de Abril de 1986 pelos autores.
2) Em 7 de Outubro de 1987 os autores interpuseram no TAC de Lisboa recurso contencioso de anulação da deliberação descrita em 1), que deu origem ao proc. n.° 7136/87
3)
Nesse processo, e por sentença de 5.8.1989, foi anulada a deliberação descrita em 1), com fundamento em vício de violação de lei, consubstanciado na infracção ao disposto no art.° 8°, do Decreto 19.478, de 18 de Março de 1931, art.° 18.°, n.° 2, da LOSTA, e art.° 71°, n.° 2, do ED.
4) Por acórdão do STA de 17.1.1995, transitado em julgado em 3.2.1995, foi negado provimento ao recurso que a autoridade recorrida interpusera dessa sentença.
5) Foi instaurado processo disciplinar contra os autores, com base em auto de notícia por falta de assiduidade.
6) No relatório final dos processos disciplinares, o instrutor propôs a aplicação da pena de demissão a ambos os autores, concluindo que (no feminino o respeitante ao processo da autora):
“… ficou provado nos autos que o(a) arguido(a) faltou injustificadamente ao serviço durante oito dias seguidos e correspondentes ao período de tempo compreendido entre os dias 14 e 21 de Abril de 1986, violando assim o dever de assiduidade previsto na alínea g) do n.° 4 do art. 3° do Estatuto disciplinar, constituindo infracção disciplinar prevista no n.° 3 do art. 72° do mesmo diploma e punível com a pena de demissão consignada nesta disposição”.
7) Submetidos os processos a apreciação da Ministra da Saúde, foi proferido, em cada um deles e em 27.2.1987, o seguinte despacho: “Concordo”.
8) Os processos disciplinares referidos de 5) a 7) arrastaram-se de Novembro de 1986 a Fevereiro de 1987.
9) Na pendência dos mesmos os autores continuaram a trabalhar no Centro de Saúde de ……, terra pequena e onde todos se conhecem.
10) Os autores requereram a suspensão de eficácia dos actos referidos em 7).
11) Os pedidos formulados pelo autor e pela autora de suspensão da eficácia, mencionados em 10), foram indeferidos por acórdãos do STA proferidos em 9.6.1987 (proc. n° 24.985) e 11.6.1987 (proc. nº 24.984), respectivamente.
12) Em 25 de Maio de 1987 a autora e o autor interpuseram no STA recurso contencioso dos despachos referidas em 7), que deram origem aos procs. n.°s 25.039 e 25.038, respectivamente, tendo aquele sido apenso a este último.
13) Por acórdão de 5.12.1996, transitado em 7.1.1997, foram declarados nulos os actos impugnados, por se considerar que os mesmos são actos consequentes daquele outro que considerou as faltas injustificadas, o qual foi anulado,
14) Os autores requereram perante o STA a execução do acórdão referido em 13), tendo aquele Tribunal, por acórdão de 1142002, transitado em 29.4,2002, proferido a seguinte decisão, pelos fundamentos constantes de fls. 329 e ss., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido:
“Pelo exposto, ao abrigo do art. 9°/2 do DL 256-A/77, de 17 de Junho, além do já reconhecido (reintegração na função pública desde a data em que produziu efeitos o acto declarado nulo e atribuição da categoria de assistente da carreira médica de clínica geral com efeitos reportados a 16/2/94), especificam-se os seguintes actos e operações que a autoridade requerida deve praticar ou fazer praticar para execução do acórdão exequendo:
I. Reabertura do concurso de habilitação ao grau de consultor de clínica geral a que se refere o Aviso publicado no Diário da República, II série, de 2/7/94, para os estritos efeitos de sujeição dos requerentes ao concurso, mediante a nomeação do júri e a notificação dos requerentes para formularem e instruírem a sua candidatura, não lhes sendo exigíveis os documentos referidos nas alíneas a), b), c) e d) do n.° 5.1 do referido Aviso,
II. Se, em resultado desse concurso, os requerentes obtiverem o grau de consultor de clínica geral, deverá ser-lhes atribuída a categoria de assistente graduado da carreira médica de clínica geral, com efeitos reportados a 6/7/95.
III. Em qualquer caso, a reconstituição da carreira deve ser objecto de despacho expresso, notificado aos requerentes.
IV. Para cumprimento do que antecede fixa-se o prazo de seis meses, a contar do trânsito em julgado do presente acórdão.
Sem custas”.
15) Na sequência do acórdão referido em 14), foi atribuída à autora a categoria de assistente graduada reportada a 6.7.1995.
16) O autor prescindiu da promoção a assistente graduado e ao grau de consultor.
17) O referido em 16) só ocorreu porque o afastamento do autor da carreira médica o impossibilitou de obter essa progressão por falta de conhecimentos médicos e experiência profissional necessários para a progressão.
18) Os autores foram sujeitos a um processo crime que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de ……, com base na alegação de que os atestados médicos por eles passados seriam falsos.
19) Por sentença de 25.3.1987 do Tribunal Judicial da Comarca de …… foram considerados culpados e, em consequência, condenados, como autores materiais, pela prática de um crime de emissão de atestado falso na forma continuada e de um crime de uso de atestado falso.
20) A sentença referida em 19) foi revogada por acórdão de 29.7.1987, do Tribunal da Relação do Porto, aí se considerando que a sentença do Tribunal de …… não tinha base legal.
21) Os autores foram sujeitos a processo disciplinar na Ordem dos Médicos,
22) Que veio a ser arquivado em Junho de 1991,
23) A autora, entre Janeiro e Março de 1987, auferiu de remuneração o montante global de 349 705$00, nos termos em que se encontram discriminados a fls, 515, dos autos — com exclusão da quantia indicada para quilómetros -, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo procedido ao reembolso da quantia de 28363$00 referente a sete dias do mês de Março, por a decisão de demissão ter produzido efeitos após 24.3.1987.
24) O autor, entre Janeiro e Março de 1987, auferiu de remuneração o montante global de 342 766$00, nos termos em que se encontram discriminados a fls. 516, dos autos — com exclusão da quantia indicada para quilómetros -, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo procedido ao reembolso da quantia de 28 363$00 referente a sete dias do mês de Março, por a decisão de demissão ter produzido efeitos após 24.3.1987.
25) Sem correcções monetárias, a autora teria direito na função pública, de Abril de 1987 a 31.12.1996, aos seguintes montantes, excluindo a realização de horas suplementares e juntas médicas;
1987—1 356410$00
1988—2082 500$00
1989—2462 120$00
1990 — 3 985 300$00
1991 —5077400$00
1992 —5579200$00
1993 —5854664$00
1994—6 519 316$00
1995 —7534224$00
1996 —8 588 800 $00,
nos termos em que se encontram discriminados a fls. 489 a 501 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido,
26) Sem correcções monetárias, o autor teria direito na função pública, de Abril de 1987 a 31.12.1996, e tendo em conta o retendo em 16), aos seguintes montantes, excluindo a realização de horas suplementares e juntas médicas:
1987—1 356410$00
1988 —2 082500$00
1989—2 462 120$00
1990 —3 985300$00
1991 —5 077400$00
1992 — 5 579 200$00
1993 —5 854 664$00
1994 —6 519 316$00
1995 —6 869 240$00
1996—7 159 400$00,
nos termos em que se encontram discriminados a fls. 502 a 511 (até Junho de 1995, inclusive) e 578- 579, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
27)
Se tivesse obtido a progressão referida em 16), o autor teria auferido na função pública as mesmas quantias que a autora, indicadas em 25).
28) Entre Agosto de 1985 e Março de 1987 foram pagas à autora 486 horas suplementares, correspondendo:
- 7 horas a horas suplementares nocturnas:

479 horas a horas suplementares prestadas ou em período nocturno (20 às 7) em dias úteis ou aos Sábados das 13 às 20 e Domingo das 7 às 20, com os valores, entre Janeiro de 1986 e Março de 1987, constantes de fls. 515 e de fls. 517 a fls. 520, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (acordo).
29) Entre Agosto de 1985 e Março de 1987 foram pagas ao autor 494 horas suplementares, correspondendo:
- 11 horas a horas suplementares nocturnas;

483 horas a horas suplementares prestadas ou em período nocturno (20 às 7) em dias úteis ou aos Sábados das 13 às 20 e Domingo das 7 às 20, com os valores, entre Janeiro de 1986 e Março de 1987, constantes de fls. 516 e de fls. 521 a fls. 524, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (acordo)
30) A autora auferiu a título de juntas médicas, em 1986, a quantia de 9 920$00 e, entre Janeiro e Março de 1987, a quantia de 12 075$00, nos termos em que se encontram discriminados a fls. 517 a 520 e 515, dos autos, respectivamente, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
31) O autor auferiu a título de juntas médicas, em 1986, a quantia de 18.195$00 e, entre Janeiro e Março de 1987, a quantia de 9 965$00, nos termos em que se encontram discriminados a fls, 521 a 524 e 516, dos autos, respectivamente, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
32) A autora entre Janeiro de 1987 e Dezembro de 1996, inclusive auferiu, pelo menos, 29.433.745$00, conforme declarações de IRS constantes de fls, 109 a fls. 142, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (acordo).
33) O autor entre Janeiro de 1987 e Dezembro de 1996, inclusive, auferiu, pelo menos, 44.590.373$00, conforme declarações de IRS constantes de fls. 109 a fls. 142, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (acordo).
34) A autora nasceu em 1.2.1956.
35) O autor nasceu em 24.5.1956.
36) A autora casou-se com o autor em 8.8.1981, tendo tal casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença de 7.2.2000, transitada em 21.2.2000.
37) O Centro de Saúde de …… era o primeiro lugar que os AA. ocupavam na categoria de clínico geral.
38) Os autores viram os seus nomes ser vilipendiados na comunicação social, acusados de crimes e procedimentos deontologicamente incorrectos.
39) Nunca o bom nome dos autores foi reposto.
40) As pessoas do círculo de conhecidos dos AA. ficaram com a ideia dos “horrores” cometidos por eles, tal como a comunicação social o fez crer.
41) O mencionado em 7), 8), 9) e 38) abalou profundamente a moral dos autores, tendo - lhes provocado danos psicológicos irreparáveis.
42) O referido em 41) verificou-se apenas como única e exclusiva consequência dos actos de demissão descritos em 7).
43) Os AA. viram-se privados dos seus empregos e seus únicos meios de subsistência, por única causa dos actos de demissão descritos em 7).
44) Foram forçados a recorrer a familiares para poderem subsistir.
45) Os AA. não tiveram filhos, tendo-se mesmo divorciado, em consequência de todo o drama familiar resultante das demissões,
46) O referido de 43) a 45) provocou nos AA. um enorme desgosto, nervosismo, angústia, humilhação e depressão.
47) Os AA. tiveram a necessidade de tentar encontrar no sector privado uma nova oportunidade de trabalho.
48) O Autor teve de encontrar no sector privado uma nova oportunidade de trabalho longe da clínica médica e sem possibilidade de se desenvolver ou de se aperfeiçoar no contacto diário com os doentes e com as novas tecnologias e ambos os AA. tiveram de encontrar no sector privado uma nova oportunidade de trabalho sem a segurança, na altura, da carreira da função pública.
49) Esta situação de procura de novo trabalho no sector privado foi extremamente dolorosa para os AA.
50) Os AA. temiam e sofriam enorme angústia e vergonha que alguém nas entrevistas para emprego soubesse da situação de demissão da função pública, o que os obrigava a explicar toda a situação e a reviver todos os pormenores trágicos da mesma, das suas falsidades, impossibilitando o encontrar de um novo emprego de acordo com as suas habilitações e experiência,
51) A autora, fruto dos danos psicológicos causados, só conseguiu voltar a trabalhar em 1991.
52) Tendo mesmo tido que recorrer a consultas da especialidade para conseguir superar a fase traumática que atravessou.
53) O A. B…… optou por não procurar emprego na medicina, tendo tido de reestruturar toda a sua vida profissional, com enorme dor, sofrimento e desgosto, pois a medicina era a sua vocação e era considerado um excelente profissional.
54) O referido em 47), 49), 50) e 53) foi ocasionado pelos actos de demissão descritos em 7).
2.2. O DIREITO
2.2.1. Na economia do presente recurso jurisdicional, por precedência logicamente justificada, importa conhecer, em primeiro lugar, da questão da nulidade da sentença, por falta de fundamentação [art. 668º/1/b) do CPC], suscitada pelo recorrente Estado.
Neste ponto diremos apenas que, primeiro, como é comum entender-se, só a absoluta carência de motivação produz a nulidade prevista no art. 668º/1/ b) do CPC (Vide Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil”, Anotado, V, p. 140 e, entre muitos outros, o acórdão do Pleno STA de 2000.05.14 – rec. nº 41 390) e, segundo, que, assim sendo, basta ler a sentença recorrida e as 29 páginas – fls. 940 a 969 - que gastou a enunciar os factos relevantes e as razões de direito pertinentes que determinaram o sentido e o conteúdo da decisão para concluir que não se verifica a alegada nulidade.
2.2.2. O recorrente Estado, na sua alegação, afirma a discordância “da matéria de facto dada como assente”. Dito de outra maneira, impugna a decisão da matéria de facto.
Ora, de acordo com a lei adjectiva – nº1, alíneas a) e b) do art. 690º-A do CPC, na redacção aplicável, introduzida pelo DL nº 39/95 de 15.2 – quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, impende sobre o recorrente, sob pena de rejeição, o ónus de especificar:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
No caso em apreço, o recorrente, no corpo da alegação, mencionou os factos que considera incorrectamente julgados, dizendo que são os constantes dos pontos 38. a 40 e 45 da discriminação dos “factos provados da Fundamentação”.
Todavia, não cumpriu a outra vertente do ónus legal. Não especificou, fazendo a respectiva apreciação crítica, qualquer concreto meio de prova que conste do processo ou nele tenha sido registado, determinante de uma decisão diversa relativamente a cada um dos factos impugnados. E sem o cumprimento desse dever, face à cominação contida no texto (parte final) do corpo do nº 1 do art. 690º- A do CPC, impõe-se a rejeição imediata do recurso na parte respeitante à decisão da matéria de facto, pois que, de acordo com a jurisprudência maioritária do STJ com a qual concordamos (remetendo para o discurso justificativo do acórdão do STJ de 2012.02.09 – proc. 1858/06.5TBMFR.L1.S1, que contém o resumo do estado actual da discussão do problema naquela instância), a melhor leitura da lei processual civil é a de que “no âmbito do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, não cabe despacho de convite ao aperfeiçoamento das respectivas alegações”.
Deste modo, o Tribunal não conhece do recurso, nesta parte.

2.2.2. O réu Estado diz, também, que a sentença recorrida enferma de erro de julgamento por ter considerado que, no caso concreto, não está verificada a ilicitude, pressuposto da responsabilidade civil extracontratual.
A respeito, o tribunal a quo, depois de invocar a norma do art. 6º do DL nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, segundo a qual “ … consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica ou de prudência comum que devam ser tidas em consideração”, passou ao caso concreto e disse, no essencial, o seguinte:

“(…) Como resulta da factualidade assente, o acto através do qual as faltas dadas ao serviço pelos AA., nos dias 14 a 21 de Abril de 1986, foram consideradas injustificadas, foi anulado, com fundamento em vício de violação de lei, consubstanciado na infracção ao disposto no art. 8º do Decreto 19 478, de 18 de Março de 1931, art. 18º, nº 1 da LOSTA e art. 71º, nº 2, do ED, sendo que tal anulação comportou a nulidade dos despachos de demissão.
A ilegalidade dos autos em causa decorre, desde logo, das decisões, transitadas em julgado, já referidas.
No entanto, ilegalidade e ilicitude não se confundem, “exigindo-se para o efeito [de verificação do pressuposto da ilicitude] que a ilegalidade consista em violação de norma que vise directamente tutelar direitos subjectivos ou outras posições jurídicas subjectivas do autor (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27 de Janeiro de 2010 – Processo: 0513/09).
Ora, in casu, atentando nas próprias decisões proferidas, entendeu-se que os acto em causa padeciam de vício de violação de lei:
- Por violação do art. 8º, do Decreto 19 478, de 18 de Março de 1931, diploma que estabelecia as condições reguladoras da comparência dos funcionários e das suas faltas ao serviço, determinando, no referido art. 8º, o procedimento atinente à justificação de faltas;
- Por violação do art. 18º, nº 2 da LOSTA, em virtude de o ato em causa ter revogado um acto constitutivo de direitos, fora do prazo previsto par tal;
- Por violação do art. 71º, nº 2 do ED, que previa que o dirigente máximo de um serviço considerasse, do ponto de vista disciplinar, justificada a ausência, se o funcionário ou agente fizesse prova de motivos atendíveis.
Ou seja, os vícios de violação de lei, assacados ao acto que considerou injustificadas as faltas dadas pelos AA. e que comportaram a nulidade dos despachos de demissão, foram vícios substantivos, na medida em que os direitos constituídos na esfera jurídica dos AA., atinentes à justificação das suas faltas, foram violados.
Na esteira do sumariado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 24 de Fevereiro de 2010 (Processo: 0560/09): “ I – Para que se verifique o elemento ilicitude, enquanto pressuposto da obrigação de indemnizar, é necessário que o interessado demonstre que o acto ilegal o atingiu num direito ou posição juridicamente tutelada de natureza substantiva;
II – O que é o caso do acto que puniu disciplinarmente o A. com pena disciplinar de demissão, posteriormente anulado com fundamento em erro nos pressupostos…”
Assim, os actos em causa são actos ilícitos, para os efeitos do disposto no art. 6º do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, porquanto envolvem a violação de normas que tutelavam direitos constituídos na esfera jurídica dos AA.”

Contra este discurso jurídico, bem elaborado e fundamentado, que se louva na jurisprudência deste Supremo Tribunal, com a qual concordamos, o recorrente Estado, limita-se a reproduzir o texto do art. 6º do DL nº 48051 e a argumentar, de forma genérica e conclusiva, que, no caso em apreço, não aconteceu qualquer das situações previstas neste preceito.
A alegação improcede, pois que, como decorre do probatório [pontos 1) a 13)] e a retórica argumentativa (não refutada) da sentença demonstra, é inequívoco que os actos jurídicos que são a causa de pedir na acção atingiram direitos dos autores e foram anulados por sentenças judiciais, com trânsito em julgado, por violarem as normas legais supra mencionadas que visavam tutelar os direitos ofendidos. O mesmo é dizer que está verificado o requisito da ilicitude.
2.2.3. Os recorrentes alegam, ambos, que no caso dos autos não há qualquer elemento de facto que consubstancie o pressuposto da culpa da Administração e que, por consequência, por ter entendido o contrário, a sentença errou no seu julgamento.
Neste ponto, o tribunal a quo justificou a sua decisão nos seguintes termos:
“Quanto ao requisito da culpa, como já referido, o art. 4º do DL nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, remetia para o art. 487º do Código Civil que, desde logo, no seu nº 2 determina como critério para aferir da mesma o critério abstracto do bom pai de família.
Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29 de Maio de 2008 (Processo: 0947/07), “a culpa é um conceito que exprime um juízo de censura ou reprovação sobre um determinado comportamento que parte do pressuposto de que o agente, nas concretas circunstâncias em eu se encontrava, podia e devia fazer melhor. “Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo”. A. Varela, “Das Obrigações em Geral, I, pg. 571. A qual – por força do disposto no art. 4º do DL nº 48 051 – “e apreciada nos termos do art. 487º do Código Civil” o que quer dizer que, na falta de outro critério legal, será apreciada “pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso” (art. 487º/2 do CC).
O juízo de culpa pressupõe, assim, a existência de um comportamento padrão – definido por lei ou estabelecido de acordo com o comportamento diligente, responsável, ponderado próprio de um bonus pater famílias - sobre o qual se há-de aferir a conduta do agente, traduzindo-se esse juízo na desconformidade ente essa conduta padrão que o agente podia e devia realizar e aquilo que efectivamente realizou. E, por isso, afirmar a existência de culpa numa conduta ilícita – seja por violação das prescrições legais estabelecidas, seja por violação das regras de ordem técnica ou de prudência comum que deviam ser adoptadas – implica a formulação de um juízo de reprovação por se considerar que o agente tinha obrigação de agir de modo a não violar (…) aquelas regras e que o não fez – Vd. Acórdãos deste Tribunal de 28/6/95 (rec. nº 19 014) e de 4/04/2006 (rec. 1116/05) e a diversa doutrina e jurisprudência neles citadas”.

Ora, ainda que os autores dos actos possam não os ter praticado com a convicção da sua ilegalidade, a verdade é que a prática de tais actos (ilegais) tem subjacente um grau de culpa relevante, para efeitos de aferição dos pressupostos da responsabilidade extracontratual, a título de negligência. Independentemente da convicção de quem os praticou, o cumprimento das normas legais a que estavam vinculados implicaria a não prática de tais actos, pelo que a sua prática implica que não tenham actuado com a diligencia exigível, atendendo ao critério do bom pai e família.

Como tal, encontra-se igualmente preenchido o pressuposto da culpa, nos termos e para os efeitos do disposto no Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967.”

Os recorrentes discordam deste entendimento.
O Estado limita-se a alegar que “na tramitação do processo disciplinar, que culminou com a aplicação da pena de demissão aos aqui AA. inexiste qualquer elemento fáctico que nos permita concluir pela existência do elemento culpa”, “apreciada com base na diligência relevante, isto é, que um homem normal, um bom pai de família teria em face do condicionalismo próprio do caso concreto, arts. 483, 487 CC.”
Por sua vez, a Administração Regional de Saúde do Norte, IP., defende que, na interpretação do regime de responsabilidade por factos ilícitos fixado no DL nº 48 051 (diploma aplicável ao caso sub judice) devia afastar-se a ideia simplista de equivalência entre ilicitude e culpa e que, relativamente ao ilícito derivado de actos administrativos ilegais, o juiz, para reconhecer, por presunção judicial, um comportamento culposo, não podia limitar-se a constatar a ilegalidade. Deveria formular um juízo crítico sobre o condicionalismo concreto em que ocorreu a violação de normas legais, não sendo “sequer difícil conceber algumas circunstâncias desculpabilizantes da ilegalidade: sistema legislativo imperfeito; proliferação de legislação extravagante; prolixidade das disposições legais aplicáveis; divergência da jurisprudência sobre a mesma questão jurídica; inflexão do entendimento jurisprudencial após a prolação do acto administrativo impugnado”
Nesta linha, defende, que, no caso concreto, a conduta ilegal dos réus não foi culposa, segundo o critério operativo do art. 487º/2 do C. Civil e que, por consequência, não havia porque indemnizar os autores.

Ora, partindo da ideia, por outros partilhada, de que a anulação de um acto administrativo é, em si mesmo, “um índice de anormalidade de funcionamento do serviço”, já que “o primeiro dever da Administração é conhecer e respeitar o Direito” (Vide Mário Aroso de Almeida, “ Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes”, p. 827 e demais Doutrina aí citada), este Supremo Tribunal, em relação ao regime do DL nº 48 051, consolidou, há muito, jurisprudência inclinada a considerar que toda a ilegalidade da Administração é de considerar culposa, sem necessidade de outras indagações, dado que “quando é violado o dever de boa administração pela prática de um acto administrativo ilegal, o elemento culpa dilui-se na ilicitude, assumindo a culpa o aspecto subjectivo da ilicitude” (Cfr., entre outros, os acórdãos de 1996.03.21 – rec. nº 35 909 e de 1996.12.03 – rec. nº 39 020), e que “quando os factos alegados são ilícitos, por violação de normas legais e regulamentares, desde logo arrastam uma presunção judicial de negligência.”
E não vemos razões para divergir desta jurisprudência firme, relativamente à velha lei da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, sendo que a argumentação dos réus não persuade que, no caso dos actos jurídicos ilegais, o abandono da ideia de equivalência entre a ilicitude e a culpa seja a melhor solução à luz da lei antiga.
Na verdade, também não é difícil antever que, na tese dos réus, no plano das relações externas, o sugerido afinamento do rigor dos critérios do juízo presuntivo, levado ao ponto de, nos actos jurídicos ilegais, poder afastar, por completo, a presunção natural de culpa, em razão da imperfeição do sistema jurídico, da prolixidade das disposições legais aplicáveis de divergências jurisprudenciais ou de qualquer outro motivo de desculpabilização, mas a que o lesado seja estranho, poderia desembocar no resultado iníquo, de as vítimas de actos jurídicos ilegais (por exemplo, um acto de demissão), que em nada tenham contribuído para as ilegalidades cometidas, ficarem, com denegação da justiça, privadas do ressarcimento dos danos provocados por actos judicialmente anulados, comprovadamente ilícitos, que ofenderam os seus direitos.

Deste modo, nesta outra parte, também não procede a crítica feita à sentença que, neste ponto, segue a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal.

2.2.4. O tribunal a quo, condenou os réus a pagarem aos autores, para reparação da perda das remunerações que teriam auferido por participarem em juntas médicas e realizarem horas suplementares, os valores de, respectivamente, 171 561$00 e 608 096$00, para a autora e 219 648$00 e 591 263$00 para o autor.
A Administração Regional de Saúde do Norte não se conforma por entender, em síntese, passando a citar, que:
“ (…) Não há uma relação de causalidade adequada entre o facto ilícito e estes danos em concreto e, essencialmente, por entender que estes direitos apresentam uma natureza avulsa invulgar, não regular ou aleatória na relação de emprego, não integrando a esfera jurídica do lesado, além de dependerem de uma prestação efectiva, que não pode ser relevada num contexto destes.
Na verdade, a obrigação de indemnizar não pode abranger danos imprevisíveis, como o são sem qualquer dúvida a prestação de trabalho extraordinário e a intervenção em Juntas Médicas”.

Mas não tem razão, pelas razões que, de seguida, se expõem.
De acordo com o princípio geral enunciado no art. 483º/1 do C. Civil, para haver obrigação de indemnizar é condição essencial que haja dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém. Por isso, diz bem a recorrente que “ a obrigação de indemnizar não pode abranger danos imprevisíveis” se com isso quer significar que não há responsabilidade por danos incertos, meramente hipotéticos ou conjecturais, de verificação duvidosa. (Vide Pessoa Jorge, “Ensaios Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, p. 386)
Porém, não podem confundir-se danos eventuais, de verificação duvidosa, com danos certos mas de montante indeterminado. Só os primeiros não são indemnizáveis. Os segundos, carecendo embora de quantificação, são passíveis de indemnização sendo que se não puder ser averiguado o seu valor exacto “o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados” (art. 566º/3 do C. Civil).”
Ora, no caso concreto, o tribunal a quo, nesta parte, começou por anunciar que “quanto aos valores relativos a juntas médicas e a horas suplementares, sendo valores variáveis, não resulta demonstrado, concretamente, o valor que os AA teriam auferido, no mesmo período, caso se tivessem mantido ao serviço”. De seguida disse que, por isso, julgaria por critérios de equidade e, passando a aplicá-los, determinou o valor médio mensal recebido no ano de 1986 e entre Janeiro e Março de 1987 e multiplicando essa remuneração média por 117, número de meses em que aqueles estiveram ilegalmente demitidos, determinou o quantum indemnizatório a arbitrar a cada um dos autores, equivalente aos valores que teriam ganho por juntas médicas e horas suplementares.
Assim, fica claro que o tribunal de 1ª instância não incluiu na indemnização qualquer dano meramente hipotético. A sua decisão tem ínsito o juízo – de facto e de certeza - de que, de acordo com o fluir normal das coisas, não fora o acto expulsivo anulado, os autores teriam continuado a prestar serviço remunerado em juntas médicas e em horário suplementar.
Certeza entendida, como na lição de Alberto dos Reis, (in Código do Processo Civil Anotado, III, p. 246), citando:
“(…) não de certeza lógica, absoluta, material, na maior parte dos casos, mas de certeza bastante para as necessidades práticas da vida, de certeza chamada histórico-empírica. Quer dizer, o que se forma sobre a base da prova suficiente é, normalmente, um juízo de probabilidade, mas de probabilidade elevada a grau tão elevado, que é quanto basta para as exigências razoáveis da segurança social (…)”.
E foi esse dano futuro certo, cujo valor era indeterminado, que quantificou equitativamente e englobou na obrigação de indemnizar, por parte dos réus.
No juízo de facto, obtido por presunção judicial, sobre a certeza do dano, a convicção do julgador tem apoio seguro e bastante nos factos provados nos pontos 28) a 31) do probatório e nas folhas de vencimentos de fls. 577 a 622 que mostram que, depois do afastamento dos autores, os demais clínicos, mormente a médica contratada para os substituir, continuaram a ser remunerados, com periodicidade semelhante, por realizarem horas suplementares e participarem em juntas médicas.

Assim, consideramos que a sentença não enferma do erro de julgamento que lhe vem assacado neste ponto.

2.2.5. A recorrente Administração Regional de Saúde do Norte insurge-se, ainda, contra a sentença, dizendo, em síntese, que:
“Por outro lado, inconsidera a douta sentença, não podendo fazê-lo, quanto ao Autor B……. um facto pessoal, qual seja o de não ter concorrido à obtenção de grau de “consultor” para assim aceder a categoria superior, reputando-o indevidamente como integrado em categoria superior da carreira – de assistente graduado – para efeitos de cálculo das remunerações a considerar no cômputo da indemnização”
Mas a crítica não procede.
A sentença, no probatório – ponto 16) - deu como assente que “o autor prescindiu da promoção a assistente graduado e ao grau de consultor”.
Na “análise jurídica dos factos”, no ponto III.A, na página 16, consignou, além do mais, que, transcrevendo:
“Considerando a factualidade assente, por outro lado, ficou provado que os AA teriam auferido, na função pública, sem actualizações e excluindo horas suplementares e juntas médicas, os seguintes valores globais, entre Abril de 1987 e Dezembro de 1996:
a) A A. A……, o valor de 49 039 934$00;
b) O A. B……, o valor de 46 945 550$00
Ficou ainda provado que a diferença entre estes dois montantes, ou seja, 2 094 384$00, tem a ver com o facto de o A. ter prescindido da promoção a assistente graduado e ao grau de consultor [factos 16) e 27)], tendo ainda ficado provado que tal circunstância se deveu ao facto de o A, se ter afastado da carreira médica, o que o impossibilitou de obter essa progressão, por falta de conhecimentos médicos e experiência profissional necessários para a progressão [facto 17)]. (negrito nosso)
E, na pág. 19, vê-se que o tribunal a quo, ao realizar o cálculo da diferença entre o que os autores teriam auferido, na função pública durante o tempo em que estiveram ilegalmente afastados do serviço e o que, no mesmo período, ganharam, no exterior, em exercício de actividades privadas, foi considerada aquela quantia de 46 945 550$ que, como resulta, sem espaço para dúvidas, do transcrito segmento do discurso justificativo da sentença, não teve em conta qualquer remuneração reportada à categoria de assistente graduado.

Não é, pois, exacto, que a sentença, para efeitos do cômputo da indemnização, tenha considerado o autor B…… como integrado na categoria de assistente graduado.

2.2.6. Noutra frente, alega a recorrente Administração Regional de Saúde do Norte que “não podia o Tribunal a quo deixar de atender ao contributo dos lesados para a causação da lesão, que pela forma como se comportaram, «justificando» as faltas um do outro, em intervenção recíproca, se puseram incursos num comportamento eticamente censurável”.
Também esta alegação não colhe.
Estamos no domínio do Direito e, neste campo, quem cometeu a ilegalidade do acto punitivo anulado foi a Administração e só ela, sem que os autores em nada tenham contribuído para a violação da lei. O comportamento que esteve na base do procedimento disciplinar e antecedeu a prática da pena de demissão aos autores, ainda que eticamente censurável, não foi julgado juridicamente desvalioso, nem teve qualquer influência nos danos posteriores sofridos pelos autores em consequência da deficiente aplicação da lei por parte da Administração. Por consequência não é relevante como factor de redução ou mesmo de exclusão da indemnização, ao abrigo do previsto no art. 570º/1 do C. Civil.

2.2.7. Resta, na economia do presente acórdão, apreciar os erros de julgamento que o recorrente Estado, em II. da sua alegação assaca à sentença, de permeio com a anunciada discordância “da matéria de facto dada como assente”.

Diz este réu, em primeiro lugar, que se o STA, por acórdão de 07.01.1997, determinou a reintegração do autor B…… na função pública e se este optou pela não reintegração e por não apresentação ao concurso para obtenção do grau de consultor, então, o Estado não pode ser condenado “em qualquer montante a partir desta data”.
A alegação soçobra, pela simples razão de que, na verdade, como a sentença mostra, o Estado não foi condenado em qualquer montante a partir daquela data. A indemnização foi calculada com referência ao período de Abril de 1987 a 31.12 1996 [ vide pontos 25), 26), 32) e 33) do probatório e III. A e III.B. da “análise jurídica dos factos].

No mais, ataca a sentença na parte em que o condenou por danos morais, alegando que, por inexistência de nexo de causalidade, não pode ser-lhe assacada responsabilidade, pelos danos com origem na divulgação do processo na comunicação social, nem, tão-pouco, pelos que derivam do divórcio dos autores e da circunstância de não terem tido filhos.
Entende este Tribunal no seu critério, que os valores arbitrados, a título de danos morais, de € 22 500,00 para a autora A…… e de € 15 000 para o autor B……., se mostram equitativos mesmo sem a consideração daqueles danos não patrimoniais, apenas em razão dos demais que estão provados [vide pontos 43) a 54) do probatório].
Sendo assim, a haver erro o mesmo será irrelevante e, por consequência, é inútil conhecer do suposto vício que, neste ponto, vem assacado à sentença.

3. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em negar provimento aos recursos.
Sem custas nesta instância.

Lisboa, 9 de Outubro de 2012. – António Políbio Ferreira Henriques (relator) – Fernanda Martins Xavier e Nunes – Américo Joaquim Pires Esteves.