Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01168/06
Data do Acordão:04/26/2007
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JORGE LINO
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL.
TIPICIDADE.
ILICITUDE.
CULPA.
OMISSÃO DE PRONÚNCIA.
NULIDADE DE SENTENÇA.
Sumário:I - A culpa é, por força da lei, um elemento constitutivo da contra-ordenação, diferenciado da tipicidade e da ilicitude.
II - A culpa analisa-se na possibilidade de um juízo de censura ou de reprovação da conduta do agente, por, em face das circunstâncias, poder e dever agir de outro modo.
III - Em processo de contra-ordenação fiscal – e nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º, e n.º 2 do artigo 374.º, ambos do Código de Processo Penal [aplicáveis ao processo contra-ordenacional fiscal, por força da alínea b) do artigo 3.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, e artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (Lei Quadro das Contra-Ordenações)] –, é nula a sentença que labora em omissão de pronúncia quanto à questão de que «Resulta de tudo o acima exposto que a ilicitude, culpa e gravidade da conduta da Arguida foram nulas ou, pelo menos, de baixa intensidade».
Nº Convencional:JSTA0007806
Nº do Documento:SA22007042601168
Recorrente:A...
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO E FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: 1.1 “A…” vem interpor recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, de 23-3-2006, que, nos presentes autos de recurso de contra-ordenação, julgou improcedente o recurso, «mantendo-se a decisão que aplicou a coima, nos seus precisos termos» – cf. fls. 62 e seguintes.
1.2 Em alegação, a recorrente formula as seguintes conclusões – cf. fls. 74 a 78.
1. De acordo como artigo 8° do Regime Geral das Contra-Ordenações (adiante RGCO), aplicável ao caso em apreço ex vi artigo 3° do RGIT, só é punível o facto praticado com culpa;
2. O mesmo resulta, aliás, do disposto nos artigos 1° do RGCO e 2° do RGIT, que definem, respectivamente, os conceitos de contra-ordenação e de infracção tributária;
3. A culpa objectiva não é admissível no nosso ordenamento jurídico contra-ordenacional, bem como não poderá ser admitida a culpa presumida nesta mesma área de direito;
4. O que realmente define a punição do acto serão os elementos subjectivos do tipo contra-ordenacional, ou seja, o dolo, a negligência e também a culpa, que, no caso, não foram sequer abordados na sentença;
5. Para que a Recorrente pudesse ser condenada, teria a sentença recorrida de conter a fundamentação da punição, sendo essencial apreciar a ilicitude e culpabilidade do facto;
6. Nos termos do disposto no artigo 379° do Código de Processo Penal (adiante CPP), aplicável ex vi artigos 3° al. b) do RGIT e 41° n.º 1 do RGCO, é nula a sentença que não contiver os elementos do artigo 374° n.º 2 do CPP;
7. O n.º 2 do artigo 374° determina a necessidade de fundamentação da sentença, expondo os motivos de facto e de direito que levam à condenação;
8. No caso em apreço, a sentença recorrida não contém qualquer fundamento de direito, mormente apreciação e valoração da culpa, dolo ou negligência, que fundamente a condenação;
9. Nestes termos, deve a sentença recorrida ser considerada nula, por ausência de fundamentação, devendo a mesma baixar ao Tribunal a quo, para aí se proferir nova e mui douta sentença;
10. Não pode a Recorrida concordar com a sentença recorrida no que se refere à não aplicação do disposto no artigo 32° do RGIT, pois considera que a interpretação a ser efectuada do mencionado artigo não foi a correcta;
11. A doutrina e a jurisprudência referem por vezes que a exigência cumulativa de que a prática da infracção não ocasione prejuízo efectivo à receita tributária não terá em vista referenciar os casos em que a regularização veio a ocorrer, com pagamento integral da quantia em dívida, mas antes reportar-se às situações em que não chegou a produzir-se prejuízo, antes da regularização;
12. Contudo, fontes igualmente autorizadas também têm vindo a considerar que a interpretação a dar da mencionada expressão não será exactamente a acima referida, pois não se aceita que o artigo 32° do RGIT não se aplique devido a um prejuízo hipotético ou potencial consubstanciado numa presumida não disponibilidade da receita por parte da Administração Fiscal;
13. Não basta a aferição de um prejuízo hipotético, mas antes de um prejuízo concreto e verificado, pois o próprio teor literal da lei prende-se com o prejuízo efectivo para a receita;
14. Deve por isso considerar-se que o legislador quis incentivar o sujeito passivo faltoso a regularizar o pagamento do tributo prevendo exactamente a dispensa da coima, tendo em conta ainda o inexistente ou diminuto grau de culpa inerente à generalidade dessas situações;
15. Sendo esse o sentido que a Recorrente interpreta o artigo 32° n.º 1 do RGIT, considera a mesma que a sentença recorrida deve ser anulada e substituída por douto Acórdão em que seja dispensada a aplicação da coima nos termos do artigo 32° do RGIT, ou, pelo menos, aplicada uma atenuação especial da mesma, de acordo com o n.º 2 do referido preceito legal.
Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, seguindo-se os demais tramites legais.
1.3 O Ministério Público no Tribunal recorrido contra-alegou do modo que segue – cf. fls. 87 e 88.
Entende a recorrente A…, que a douta sentença condenatória deve ser considerada nula, por ausência de fundamentação no que concerne à apreciação e valoração da culpa, dolo ou negligência, que fundamente a condenação.
Entende ainda que, por ter regularizado o pagamento do tributo, não houve um prejuízo concreto para a Ad. Fiscal, razão pela qual deveria ter sido dispensada a aplicação da coima ou ter sido ela atenuada especialmente, tudo de acordo com o art.º 32.º do RGIT.
Não parece ter razão.
Com efeito, e quanto ao primeiro ponto, a recorrente não abordou a questão da valoração da culpa no recurso que interpôs da decisão administrativa condenatória.
Ora, sendo assim, não tinha o Mm.º Juiz que se pronunciar, na decisão que versa sobre o recurso apresentado, sobre tal questão.
Razão pela qual, a esse respeito, nenhum vício afecta a douta sentença dos autos.
Quanto ao segundo ponto, apenas se acrescentará, ao que já se encontra na decisão recorrida, que é manifesto que o facto de ter havido posterior pagamento do tributo, em nada afecta o facto de a Ad. Fiscal ter tido um prejuízo efectivo com o seu não pagamento atempado. A única alteração a essa situação, com tal pagamento, é que esse prejuízo foi ressarcido, o que não afasta a ocorrência efectiva do mesmo para os efeitos da al. a) do art.º 32.º do RGIT, e para afastar a possibilidade de dispensa da coima.
Não afasta, é certo, a possibilidade de atenuação especial da mesma coima, de acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, mas a esse respeito, e sobre a faculdade que é dada ao julgador de atenuar, ou não, especialmente a coima, não se julga necessário algo acrescentar, ao que doutamente se disse a esse respeito na sentença questionada.
Deve pois improceder o recurso apresentado.
1.4 Não houve contra-alegação da Fazenda Pública.
1.5 O Ministério Público neste Tribunal veio dizer o que segue – cf. fls. 102 verso.
Sobre o mérito do recurso pronunciou-se já a fls. 87 o Ministério Público, que, aliás, figura nos autos como recorrido.
Como assim, ao abrigo do disposto no artigo 146.º do CPTA, afigura-se-nos não haver lugar a intervenção do Ministério Público no Tribunal de recurso, pelo que não emite parecer.
1.6 Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência.
Em face do teor das conclusões da alegação, bem como da posição do Ministério Público, a primeira questão que aqui se coloca – ficando prejudicado o conhecimento de qualquer outra, em caso de resposta afirmativa a esta – é a de saber se, nos termos do artigo 379.º do Código de Processo Penal, é nula, ou não, a sentença recorrida.
2.1 Em matéria de facto, a sentença recorrida exarou o que se destaca a seguir.
A. No dia 03/08/2004, na Direcção de Serviços de Cobrança do IVA (DSCIVA), o Director de Serviços, verificou que o arguido A…., não entregou simultaneamente com a declaração periódica referente ao período de 0405, a prestação tributária necessária a satisfazer totalmente o montante de imposto exigível, no valor de € 13.569,37 (doc. a folhas 2 dos autos);
B. A declaração periódica foi apresentada em 06/07/2004 (doc. a folhas 2);
C. O auto de notícia mencionado em A., deu origem ao presente processo de contra-ordenação fiscal, cuja parte administrativa correu seus termos no Serviço de Finanças de Almeirim, e foi autuado em 20/08/2004 (cfr. capa do processo - fls. 1 dos autos);
D. O final do prazo para cumprimento da obrigação ocorreu em 12/07/2004;
E. Em 14/09/2004, foi enviada ao arguido carta registada com aviso de recepção, que assinou em 20/09/2004 (cfr. fls. 4 e 4v dos autos), dando-lhe a conta da instauração do processo de contra-ordenação supra referido e em simultâneo prazo para, querendo, apresentar defesa.
F. Conforme documento de fls. 21 dos autos a situação foi regularizada em 11/02/2005.
G. Em 09/08/2004, por despacho do Sr. Director de Finanças, por delegação, o Chefe de Divisão, que se dá aqui por integralmente reproduzido, foi aplicada coima ao arguido no montante de € 4.000,00, conf. fls. 23 e 24 dos autos;
H. Da decisão referida no nº anterior foi dado conta ao arguido por carta registada e aviso de recepção que assinou em 11/05/2005, (cfr. fls. 25 e 25v dos autos);
I. Em 25/05/2005, deu entrada no Serviço de Finanças de Almeirim o recurso da decisão de aplicação de coimas interposto pelo arguido (cfr. fls. 4 a 6 dos autos);
J. O Director de Finanças, por delegação o Chefe de Divisão decidiu manter o despacho e remeteu os autos ao Tribunal Tributário, conf. fls. 37 dos autos.
Dos factos, com interesse para a decisão da causa, constantes da acusação do Digno Magistrado do Ministério Público e dos alegados pelo recorrente, todos objecto de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita.
A decisão da matéria de facto tem por base a convicção formada em audiência de julgamento e os documentos e informações, não impugnados, que dos autos constam e tudo conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.
2.2 O artigo 2.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho) preceitua que «Constitui infracção tributária todo o facto típico, ilícito e culposo declarado punível por lei tributária anterior.».
De resto, contra-ordenação é «todo o facto ilícito e censurável que preenche um tipo legal no qual se comina uma coima»; e «só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência» – cf. o artigo 1.º, n.º 1, e o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (Lei Quadro das Contra-Ordenações), aplicável subsidiariamente às contra-ordenações tributárias, por força da alínea b) do artigo 3.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Assim, segundo a lei, para que exista infracção tem de haver, desde logo, um facto típico, como tal previsto na lei. O facto típico é composto pela conduta (acção ou omissão), pelo resultado (inerente à maioria das infracções), e por uma relação de causalidade (adequada) entre essa conduta e este resultado.
A lei faz ainda menção muito clara a um elemento constitutivo da contra-ordenação fiscal, bem diferenciado da tipicidade e da ilicitude, que é a culpa.
A lei não se basta com que uma conduta seja tipicamente antijurídica; é preciso também que ela possa ser reprovada ao seu agente, isto é, que seja culposa.
Muito embora possa depreender-se da prática voluntária de certos factos, a culpa, constituindo um elemento subjectivo da infracção, não é necessariamente imanente ao facto ilícito, típico e objectivo. Não fazendo parte do tipo da infracção, a culpa implica sempre uma individualização precisa, com aferição do grau de violação dos deveres impostos ao agente, para a qual é absolutamente imprescindível o conhecimento das circunstâncias do caso que deponham a favor e contra o arguido. Na verdade, a culpa analisa-se na censura dum certo facto típico à pessoa do seu agente por ter agido como agiu.
A culpa, como é sabido, pode revestir a forma de dolo, ou de negligência, e traduz-se sempre num juízo de censura em relação à actuação do agente, que, pela sua capacidade, e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo.
E não há qualquer razão para renunciar, em processo contra-ordenacional, ao princípio de exigência de culpa – cf. Eduardo Correia, e Figueiredo Dias, em Direito Criminal, I, especialmente a pp. 22 (a respeito do chamado ilícito administrativo, ou de mera ordenação social).
Não existem razões, nem legais, nem constitucionais, inerentes à menor gravidade do ilícito, que tornem inadequada ou injustificada (bem ao invés) a aplicação do princípio legal da culpa ao processo contra-ordenacional, até por que esse princípio exprime uma acentuação das garantias do arguido – cf., a este respeito, entre muitos outros, o acórdão do Tribunal Constitucional, de 9-1-2007, proferido no recurso n.º 254/06.
E, quanto à prova da modalidade de culpa (dolo, ou mera negligência) que concorra no caso concreto, como, de resto, relativamente a qualquer outro facto ou elemento relevante para a decisão de aplicação e graduação da coima, vale o princípio de in dubio pro reo. Com efeito, em processo de natureza penal (como é o de contra-ordenação fiscal) em último termo compete oficiosamente ao juiz o dever de instruir e de esclarecer o facto sujeito a julgamento: não existe aqui, por conseguinte, qualquer verdadeiro ónus da prova que recaia sobre o acusador ou o arguido. À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto ilícito, quer à culpa, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E, se, por outro lado, aquele mesmo princípio, obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo – cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1994, 1.º vol., pp. 211 a 213.
De acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 40.º do Código do IVA [redacção do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 418/99, de 21 de Outubro], a declaração periódica respectiva deve ser enviada por via postal ao Serviço de Administração do IVA, por forma a que dê entrada até ao dia 10 do 2.º mês seguinte àquele a que respeitam as operações, no caso de sujeitos passivos com um volume de negócios igual ou superior a 100.000.000$00 no ano civil anterior [nos termos do ofício circulado n.º 30044/02, de 9/01, da Direcção de Serviços do IVA, a partir de 1 de Janeiro de 2002, as referências feitas a escudos na diversa legislação relativa ao imposto sobre o valor acrescentado, são convertidas em euros, de acordo com as regras de conversão estabelecidas na legislação comunitária aplicável, designadamente nos Regulamentos (CE) n.ºs 2866/98 e 1478/2000].
Sob a epígrafe “Pagamento do imposto apurado”, o n.º 1 do artigo 26.º do Código do IVA [redacção da Lei n.º 30-C/2000, de 29 de Dezembro], dispõe que, sem prejuízo do disposto no regime especial referido nos artigos 60.º e seguintes, os sujeitos passivos são obrigados a entregar o montante do imposto exigível, apurado nos termos dos artigos 19.º a 25.º e 71.º, na Direcção de Serviços de Cobrança do IVA, simultaneamente com as declarações a que se refere o artigo 40.º, ou noutros locais de cobrança legalmente autorizados.
Nos termos do n.º 2 do artigo 114.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), se a conduta (…) for imputável a título de negligência, e ainda que o período da não entrega ultrapasse os 90 dias, será aplicável coima variável entre 10% e metade do imposto em falta, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
E, de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 26.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, os limites mínimo e máximo das coimas previstas nos diferentes tipos legais de contra-ordenação, são elevados para o dobro sempre que sejam aplicadas a uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou outra entidade fiscalmente equiparada.
De outra banda, sob a epígrafe “direito subsidiário”, o artigo 3.º, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho) dispõe que são aplicáveis subsidiariamente, quanto às contra-ordenações e respectivo processamento, o regime geral do ilícito de mera ordenação social.
Este regime geral do ilícito de mera ordenação social, com demarcação no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (Lei Quadro das Contra-Ordenações), no seu artigo 41.º, intitulado de “Direito subsidiário”, e subordinado aos “Princípios e disposições gerais” constantes do capítulo II, estabelece que, sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal (n.º 1); e que no processo de aplicação da coima, as autoridades administrativas competentes gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para instrução criminal, sempre que o contrário não resulte desta lei (n.º 2).
O Código de Processo Penal, no seu artigo 379.º, sob a epígrafe “nulidade da sentença”, preceitua como segue.
1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no artigo 374.º, n.ºs 2 e 3, alínea b);
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 414.º, n.º 4.
O apontado artigo 374.º do Código de Processo Penal, sob o título de “Requisitos da sentença”, dispõe o seguinte.
1 - A sentença começa por um relatório, que contém:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;
c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;
d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.
2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
3 - A sentença termina pelo dispositivo que contém:
a) As disposições legais aplicáveis;
b) A decisão condenatória ou absolutória;
c) A indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime;
d) A ordem de remessa de boletins ao registo criminal;
e) A data e as assinaturas dos membros do tribunal.
4 - A sentença observa o disposto neste Código e no Código das Custas Judiciais em matéria de custas.
Ressalta imediatamente da alínea c) do n.º 1 do artigo 374.º do Código de Processo Penal que a sentença é nula, «quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
E, de igual modo, se retira dos termos do disposto no n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal que a fundamentação é, porventura, a parte mais complexa da sentença. Também por isso os vícios da fundamentação são causa de nulidade da sentença.
Na fundamentação há que distinguir três partes: a enumeração dos factos provados e não provados; a exposição dos motivos que fundamentam a decisão; e a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal. No que se refere à indicação dos factos provados e não provados não se suscitam dificuldades: eles são todos os constantes da acusação e da contestação, quer sejam substanciais quer instrumentais ou acidentais, e ainda os não substanciais que resultarem da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão e também os substanciais que resultarem da discussão da causa, quando aceites nos termos do artigo 359.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Também da fundamentação deve constar a indicação dos motivos que fundamentam a decisão. Os motivos que fundamentam a decisão são de facto e de direito. Os motivos de facto hão-de ser seleccionados de entre os factos provados e não provados; é em razão dos factos dados como provados e não provados que o Tribunal há-de tomar a decisão. Antes de mais a motivação factual da sentença há-de buscar-se nos factos provados, mas bem pode suceder ser necessário recorrer aos factos não provados para entender os factos provados. A decisão também se baseia em fundamentos de direito. As razões de direito que servem para fundamentar a decisão devem ser também especificadas na fundamentação da sentença – cf. o que vai dito em Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2000, p. 292.
2.3 No caso sub judicio, a ora recorrente conclui primeiramente (conclusões 5.ª a 9.ª) que «a sentença recorrida não contém qualquer fundamento de direito, mormente a apreciação e valoração da culpa, dolo ou negligência, que fundamente a condenação»; e que, «Nestes termos, deve a sentença recorrida ser considerada nula, por ausência de fundamentação, devendo a mesma baixar ao Tribunal a quo, para aí se proferir nova e mui douta sentença».
Como acima se deixou escrito, a fundamentação exigida, nos termos do, aqui aplicável, n.º 2 do artigo 734.º do Código de Processo Penal, é aquela que «consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
O Ministério Público defende que a ora recorrente não tem razão, porquanto «não abordou a questão da valoração da culpa no recurso que interpôs da decisão administrativa condenatória», pelo que «não tinha o Mm.º Juiz que se pronunciar, na decisão que versa sobre o recurso apresentado, sobre tal questão».
Mas julgamos que não será assim.
A ora recorrente, na realidade, abordou a questão da valoração da culpa no recurso que interpôs da decisão administrativa condenatória.
Com efeito, a ora recorrente, lança mormente a conclusão 7.ª ao fim da alegação do recurso judicial interposto da decisão administrativa de aplicação da coima aqui em causa, na qual se pode ler como segue – cf. fls. 26 a 31.
Resulta de tudo o acima exposto que a ilicitude, culpa e gravidade da conduta da Arguida foram nulas ou, pelo menos, de baixa intensidade, que a receita tributária não sofreu qualquer prejuízo efectivo, e que a situação tributária da arguida se encontra regularizada, pelo cumprimento da obrigação tributária subjacente à infracção que lhe é imputada, acompanhado do pagamento de todos os legais acréscimos, pelo que, não sendo absolvida, a Arguida deverá beneficiar da aplicação de uma dispensa ou, pelo menos, atenuação da coima (Cfr. art. 32° do RGIT).
A apontada conclusão 7.ª vem precedida e esteia-se, aliás, em alegações de recurso que se resumem do seguinte modo – cf. fls. 26 a 31.
· «a circunstância de a Arguida já ter regularizado a sua situação tributária é de primordial importância para a boa decisão do mérito do presente recurso»;
· «as circunstâncias de a Arguida ter um volume de negócios elevado e apresentar resultados fiscais positivos, não significam, infelizmente, que a mesma atravesse uma boa situação financeira»;
· «a Arguida muitas vezes não vê a sua facturação honrada pelos respectivos clientes, pelo menos em prazos razoáveis»;
· «Dos € 348.360,05 (trezentos e quarenta e oito mil trezentos e sessenta euros e cinco cêntimos) de facturação emitida pela Arguida com referência ao período tributário em causa (Maio de 2004), esta só recebeu dos seus clientes, até à data limite para entrega da declaração periódica com o meio de pagamento correspondente ao imposto auto-liquidado (10/07/2004), € 76.124,30 (setenta e seis mil cento e vinte e quatro euros e trinta cêntimos), apenas tendo recebido os restantes €272.236,20 (duzentos e setenta e dois mil duzentos e trinta e seis euros e vinte cêntimos) em momento posterior»;
· «Ora, é evidente que estes últimos €272.236,20 (duzentos e setenta e dois mil duzentos e trinta e seis euros e vinte cêntimos), por apenas terem sido recebidos pela Arguida em momento posterior ao termo do prazo para cumprimento da obrigação tributária subjacente à infracção que lhe é imputada nestes autos, não poderiam ter sido valorados pela Administração Fiscal, quer para efeitos de absolvição ou condenação da Arguida, quer neste último caso para efeitos de determinação da medida concreta da coima (Cfr. arts. 2°, n.º 1, e 27°, n.º 1, ambos do RGIT)».
Ora, o que de imediato se colhe dos autos, e iniludivelmente se retira da matéria de facto consignada supra no ponto 2.1, é que a sentença recorrida, na verdade, não faz a “exposição dos motivos” que fundamentam a decisão da matéria de facto; nem faz a “indicação e exame crítico das provas” que serviram para formar a convicção do Tribunal – pois que tal desiderato legal não se mostra cumprido pela comum e abstracta frase, de que «A decisão da matéria de facto tem por base a convicção formada em audiência de julgamento e os documentos e informações, não impugnados, que dos autos constam (…)».
Aliás, a sentença recorrida não faz sequer, como a lei exige, a “enumeração dos factos provados e não provados” – uma vez que desprezou a factualidade oposta à Administração Fiscal pela ora recorrente, em especial desconsiderou os factos acima resumidos e destacados, e que constam da alegação da ora recorrente no recurso judicial que interpôs para o Tribunal recorrido.
Em vez de lançar a expressão de que foram «todos objecto de análise concreta» (os factos constantes da acusação e os alegados pela recorrente), o que importaria verdadeiramente ver na sentença recorrida era levada a efeito uma análise concreta e circunstanciada dos tais factos que terão sido “objecto de análise concreta”, e não uma simplesmente declarada e dita “análise concreta”, cuja efectivação real realmente não está demonstrada.
Pelo que tem toda a razão a ora recorrente, quando vem aqui dizer que «a sentença recorrida não contém qualquer fundamento de direito, mormente a apreciação e valoração da culpa, dolo ou negligência, que fundamente a condenação».
Na verdade, o que se vê é que a sentença recorrida realmente não compreende sequer a factualidade necessária (provada e não provada) em vista de uma decisão de direito de «apreciação e valoração da culpa», como justamente pretende a ora recorrente.
Com efeito, a sentença recorrida – para além de não proceder à «enumeração dos factos provados e não provados», nem proceder a «uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão», nem fazer a «indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal» (nos termos do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal) –, manifestamente labora na mais completa omissão de pronúncia quanto à questão essencial inscrita na falada conclusão 7.ª: se sim, ou não, «Resulta de tudo o acima exposto que a ilicitude, culpa e gravidade da conduta da Arguida foram nulas ou, pelo menos, de baixa intensidade».
Sendo assim, como é, devemos concluir – em resposta à questão decidenda – que a sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 379.º do Código de Processo Penal.
E, então, havemos de concordar que a culpa é, por força da lei, um elemento constitutivo da contra-ordenação, diferenciado da tipicidade e da ilicitude.
A culpa analisa-se na possibilidade de um juízo de censura ou de reprovação da conduta do agente, por, em face das circunstâncias, poder e dever agir de outro modo.
Em processo de contra-ordenação fiscal – e nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º, e n.º 2 do artigo 374.º, ambos do Código de Processo Penal [aplicáveis ao processo contra-ordenacional fiscal, por força da alínea b) do artigo 3.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, e artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (Lei Quadro das Contra-Ordenações)] –, é nula a sentença que labora em omissão de pronúncia quanto à questão de que «Resulta de tudo o acima exposto que a ilicitude, culpa e gravidade da conduta da Arguida foram nulas ou, pelo menos, de baixa intensidade».
3. Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso e anular a sentença recorrida, remetendo-se os autos ao Tribunal a quo para nova decisão.
Sem custas.
Lisboa, 26 de Abril de 2007. – Jorge Lino (relator) - Lúcio Barbosa - António Calhau.