Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0272/12
Data do Acordão:06/28/2012
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:ALBERTO AUGUSTO OLIVEIRA
Descritores:ORÇAMENTO GERAL DO ESTADO
REGIÕES AUTÓNOMAS
FINANÇAS LOCAIS
Sumário:I - A Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro (Lei das Finanças Locais), enquanto prevê a participação dos municípios em IRS, não retira às Regiões Autónomas receitas que lhes estão constitucionalmente destinadas;
II - Por força do disposto no artigo 63.º, n.º 3, da LFL, as Regiões Autónomas só verão escapar essas receitas se essa for a vontade expressa dos competentes órgãos regionais, plasmada em decreto legislativo regional;
III - O artigo 42.º da Lei do Orçamento do Estado para 2009, Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, não derrogou a Lei das Finanças Locais;
IV - Aquele artigo justifica as transferências quantificadas no Mapa XIX com a pretensão de cumprimento da LFL mas não estabelece qualquer nova norma, não adita ou altera qualquer norma à LFL, nem sequer a interpreta;
V - A omissão na lei do orçamento de transferências ou de dotações que nela devem estar inscritas, em resultado de vinculação legal, permitirá concluir pela sua ilegalidade;
VI - Já se fica prevista uma dotação ou transferência na convicção da sua exigência legal mas se conclui que, afinal, tal exigência não existe, aquela dotação ou transferência não perde o seu carácter de mera previsão, não decorrendo dela, directamente, o dever de transferência.
Nº Convencional:JSTA00067710
Nº do Documento:SA1201206280272
Data de Entrada:03/13/2012
Recorrente:MINISTÉRIO DAS FINANÇAS E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Recorrido 1:MUNICÍPIO DO FUNCHAL
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF FUNCHAL PER SALTUM
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR ADM CONT
Legislação Nacional:L 2/2007 DE 2007/01/15 ART19 N1 C ART20 ART63 N3 ART29 ART59
L 64-A/2008 DE 2008/12/31 ART1 ART12 ART42
CONST76 ART199 B ART105 N2
Jurisprudência Nacional:AC TC PROC717/07 N499/08 DE 2008/10/14
Referência a Doutrina:SOUSA FRANCO FINANÇAS PÚBLICAS E DIREITO FINANCEIRO I II 4ED PAG338 PAG339 PAG407 PAG408
GOMES CANOTILHO A LEI DO ORÇAMENTO NA TEORIA DA LEI UNIVERSIDADE DE COIMBRA BOLETIM DA FACULDADE DE DIREITO ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROF DOUTOR JJ TEIXEIRA RIBEIRO II PAG581
GOMES CANOTILHO VITAL MOREIRA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA I COIMBRA EDITORA 2007
LOBO XAVIER O ORÇAMENTO COMO LEI SEPARATA DO BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS COIMBRA 2000 PAG170
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

1.

1.1. O Município do Funchal instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal acção administrativa comum contra o Ministério das Finanças e da Administração Pública pedindo a sua condenação no pagamento de 4.570.533,33 Euros, correspondentes às transferências de verbas respeitantes a IRS, que devia ter efectuado, de Março/2009 a Dezembro/2009, verbas previstas no Mapa XIX da LOE para 2009 (Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro), e juros de mora à taxa legal.

1.2. O Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal julgou a acção procedente (saneador-sentença fls. 139-146).

1.3. Inconformado, recorre o MFAP para este Tribunal, per saltum, concluindo nas suas alegações:
«Nos presentes autos, o Tribunal a quo condenou o R. Ministério das Finanças e da Administração Pública a pagar ao Recorrido Município do Funchal o montante de 4.570.533,33 Euros, previsto no O.E. de 2009, ao que acrescem juros de mora à taxa legal anual de 4% sobre cada parcela mensal desde a data referida no art. 20°, n° 7 da LFL até integral e efectivo pagamento, fixando, para tal, o prazo de 60 dias.
II. Verba essa devida ao Recorrido nos termos do mapa XIX anexo à Lei nº 64-A/2008, a título de participação variável de 5% no IRS pago pelos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição territorial.
III. O Recorrido Município do Funchal insere-se numa Região Autónoma, o que impõe a necessidade de compatibilizar e coordenar o sistema legal de receitas a que as Regiões Autónomas têm direito relativamente ao IRS, previsto na Lei das Finanças das Regiões Autónomas (Lei Orgânica nº 1/2007, de 19 de Fevereiro), com o sistema legal de receitas relativo à participação variável das Autarquias Locais nas receitas do IRS, previsto nos arts. 19°, nº 1, aI. c) e 20° da Lei das Finanças Locais (Lei n° 2/2007, de 15 de Janeiro).
IV. Com efeito, esses dois sistemas sobrepõem-se no que tange às receitas derivadas do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
V. Nos termos do art. 5°, nº 1 da LFL, as finanças dos municípios devem ser coordenadas com as finanças do Estado, tendo especialmente em conta o desenvolvimento equilibrado de todo o país e a necessidade de atingir os objectivos e metas orçamentais traçados no âmbito das políticas de convergência a que Portugal se obrigou no seio da União Europeia.
VI. Para além das receitas previstas nos arts. 10° e 14° da LFL, as Autarquias Locais têm ainda direito a participar nos recursos públicos, nos termos e segundo os critérios definidos naquela lei, com vista ao respectivo equilíbrio financeiro vertical e horizontal, o que se realiza através das três formas de participação previstas no art. 19°, nº 1 da LFL.
VII. Uma dessas formas é através da participação variável de (até) 5% no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição territorial, prevista na aI. c) do nº 1 do art. 19° e regulada no art. 20° da LFL.
VIII. Essa regulação visa apenas os municípios do Continente.
IX. Já que as especificidades dos municípios localizados nas Regiões Autónomas, bem como a necessidade de tomar o sistema mais eficiente e ajustado àquela realidade própria, justificaram a necessidade de adaptação dos preceitos contidos na LFL àqueles municípios.
Essa adaptação é efectuada nos termos do art. 63° da LFL, que preceitua que a "transferência de competências para os municípios das Regiões Autónomas bem como o seu financiamento, designadamente mediante o ajustamento do montante e critérios de repartição do FSM, efectuam-se nos termos a prever em decreto-Iegislativo da respectiva assembleia legislativa." (nº 2 do citado artigo).
XI. Podendo ainda as assembleias legislativas regionais definir as formas de cooperação técnica e financeira entre as Regiões e as respectivas autarquias locais, a fim de tornar o sistema mais eficiente e ajustado às especificidades das Regiões Autónomas e das autarquias regionais (art. 63°, nº 4).
XII. Com esse objectivo e no que toca especificamente à participação nas receitas do IRS, prevê-se que a aplicação do disposto na aI. c) do n° 1 do art. 19° e no art. 20º da LFL às Regiões Autónomas se efectua mediante decreto-legislativo regional (art. 63°, nº 3).
XIII. A Lei Orgânica nº 1/2007, de 19 de Fevereiro (LFRA) visa, entre outros aspectos, a regulação das relações financeiras entre as Regiões Autónomas e as autarquias locais nelas sedeadas (art. 2°).
XIV. O Estado e as Regiões Autónomas estão vinculados ao princípio da solidariedade nacional (art. 7°), segundo o qual as últimas devem contribuir para o desenvolvimento equilibrado do país e para o cumprimento dos objectivos de política económica a que o primeiro esteja adstrito, e o Estado, por seu turno, deve, designadamente, assegurar as transferências do Orçamento de Estado previstas nos arts. 37° e 38° da LFRA.
XV. As receitas do IRS devido ou retido nos termos do disposto no art. 16° da LFRA, constituem receita de cada Região Autónoma.
XVI. Ao abrigo do regime do autonomia político-financeira, cabe às Regiões Autónomas afectar as respectivas receitas às suas despesas (art. 227°, n° 1, aI. j) da CRP).
XVII. Aplicando literalmente e sem qualquer preocupação de coordenação os preceitos contidos na LFL e na LFRA, no que concerne às receitas do IRS devido/retido, o Estado acabaria por transferir para cada Região a totalidade do IRS nela cobrado (art. 16° da LFRA) e uma participação variável de 5% no IRS cobrado na mesma Região (arts. 19°, n° 1, aI. c) e 20° da LFL), o que se traduziria numa transferência total de 105%, relativamente ao IRS.
XVIII. Em comparação, aos municípios sedeados no Continente caberá apenas o direito a uma participação variável de (até) 5% no IRS cobrado na respectiva circunscrição autárquica.
XIX. Com a necessária diminuição do montante global (nacional) das receitas do IRS a que o Estado tem direito, sem qualquer correspondência com a área territorial onde o imposto é gerado, ou seja, de forma manifestamente contrária à prevista na LFL.
XX. O que, ao invés de assegurar o equilíbrio (a igualdade e a solidariedade) entre todas as partes, geraria um desequilíbrio a favor das RA e dos seus municípios e em desfavor do Estado e dos municípios do Continente.
XXI. Tal traduz-se numa situação de desigualdade injustificada/injustificável entre os municípios integrados num todo nacional.
XXII. O que, manifestamente, viola o princípio da igualdade, na sua vertente territorial (art. 13°, nº 2 da CRP).
XXIII. Apesar de o regime das finanças locais dever contribuir, designadamente, para a promoção do desenvolvimento económico e para o bem-estar social das populações respectivas (art. 6°, nº 1 da LFL), e para a necessária correcção das desigualdades entre autarquias do mesmo grau, resultantes, v. g., de diferentes capacidades na arrecadação de receitas ou de diferentes necessidades de despesa (arts. 238°, nº 2 da CRP e 7°, nº 3 da LFL), tal não justifica que os municípios sitos na Região Autónoma da Madeira (e também na dos Açores) possam ser beneficiados extraordinariamente relativamente aos municípios do Continente, sendo-lhes entregue 100% de todo o IRS pago pelos residentes na região e, ainda, mais 5% do IRS cobrado na mesma.
XXIV. Tal situação implica um tratamento desigual relativamente aos municípios sitos no Continente, desproporcionalmente desfavorável para os residentes/domiciliados fiscais respectivos e, em contrapartida, traduzindo-se num benefício desproporcional para os residentes/domiciliados nos municípios sitos na RA da Madeira, sem que esteja demonstrada qualquer necessidade extraordinária que fundamente tal desigualdade.
XXV. Deste modo, a solução, prevista na lei, de o Estado transferir para as regiões a totalidade (100%) da receita global do IRS e de serem depois as RA a aplicar, mediante decreto-Iegislativo regional, a participação de até 5% dos municípios regionais nas receitas do IRS geradas nas suas circunscrições territoriais, é a que melhor salvaguarda a eficiência do sistema de receitas, permitindo às Regiões que adoptem as melhores formas de cooperação técnica e financeira entre elas e os municípios regionais.
XXVI. Solução essa que não traduz sequer um abdicar pelo Estado das suas competências (reserva de lei) em matéria tributária, nem uma invasão inaceitável da esfera de competência legislativa prevista na CRP, pois a LFL é clara ao estabelecer que a aplicação da participação dos municípios regionais se efectua mediante decreto-Iegislativo regional.
XXVII. A aplicação das normas que prevêem a participação de (até) 5% no IRS é prevista, pela primeira vez, na Lei do Orçamento de Estado para 2009 (Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro).
XXVIII. Nos anos de 2007 e 2008, aplicou-se o regime previsto no art. 59° da LFL, o qual previa uma situação transitória com uma participação fixa no valor de 5%, calculado sobre a última colecta líquida de IRS disponível.
XXIX. Assim, só ano de 2009 se constatou a sobreposição de regimes legislativos no tocante à participação nas receitas do IRS por parte das Regiões Autónomas e dos municípios nestas integrados territorialmente.
XXX. Tendo sido necessário alterar a metodologia concernente aos municípios das Regiões Autónomas quanto ao recebimento dos adiantamentos relativos à participação variável no IRS, de modo a conciliar os dois regimes de participação, evitando desigualdades entre os municípios do Continente e os das Regiões Autónomas.
XXXI. A LFRA, enquanto lei orgânica tem valor reforçado nos termos da Constituição da República Portuguesa (arts. 112°, nº 3, 166°, nº 2 e 168°, nº 5 da CRP).
XXXII. Sendo, inerentemente, revestida de uma força específica de prevalência que lhe confere a capacidade activa de proceder, designadamente, à supressão não substitutiva de normas legais anteriores.
XXXIII. O produto do IRS que constitui receita da RA da Madeira integra todos os elementos de conexão espacial relativamente à afectação territorial desse tipo de rendimentos.
XXXIV. A RA da Madeira tem, inequivocamente, direito a 100% da receita do IRS nela cobrada (art. 16° da LFRA).
XXXV. Cabe à região, substituindo-se ao Estado, proceder à entrega dos respectivos 5% da receita do IRS a favor dos seus municípios, relativa aos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição territorial (art. 19°, nº 1, aI. c) da LFL).
XXXVI. O Estado não poderá substituir-se às Regiões Autónomas num acto que a LFL expressamente enuncia como sendo da sua competência (arts. 19°, nº 1, aI. c), 20° e 63° da LFL).
XXXVII. Assim, dado que desde o ano de 2009 se procedeu à aplicação plena do art. 20° da LFL, e uma vez que a RA da Madeira, durante esse mesmo ano, recebeu a totalidade do IRS a que tinha direito nos termos legais, caber-lhe-ia fazer a devida afectação aos municípios da Região, designadamente ao Município do Funchal da parcela variável a que têm direito, através do decreto-Iegislativo regional previsto no art. 63° da LFL.
XXXVIII. Sendo certo que a Direcção-Geral das Autarquias Locais (DGAL) procedeu à devida transferência para o Governo Regional da RA da Madeira.
XXXIX. Pelo que o Recorrente nada deve ao Recorrido Município do Funchal.
XL. A conceder-se razão ao Tribunal a quo, estar-se-á a defender a repetição da entrega pelo Estado de quantias cobradas uma única vez a título de IRS aos residentes na circunscrição territorial do município do Funchal (uma cobrança, entrega em dobro).
XLI. À posição do Recorrente não obsta sequer a jurisprudência do Tribunal Constitucional expendida nos Acórdãos nºs 82/86 e 711/2006, mencionados saneador-sentença.
XLII. Pois embora versando sobre a matéria das Finanças Locais, acórdãos não abordam a matéria específica controvertida na presente lide, nem do teor dos mesmos se pode retirar conclusões relativamente ao caso sub judicio por interpretação analógica.
XLIII. Por tudo o exposto, deve a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo ser revogada, porquanto violadora dos arts. 13°, nº 2, 227°, nº 1, alíneas i) e j) e 238°, nº 2, todos da Constituição da República Portuguesa, bem como dos preceitos conjugados ínsitos nos arts. 1°, nº 1, alínea c), 20° e 63° da Lei das Finanças Locais e art. 16° da Lei das Finanças das Regiões Autónomas.
XLIV. Sendo substituída por douto acórdão proferida pelo Venerando Tribunal ad quem, que absolva o Recorrente do peticionado nos autos pelo Município do Funchal, em conformidade com a fundamentação de Direito formulada nas presentes motivações».

1.4. O Município do Funchal contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
«A. Ao presente recurso deve ser atribuído efeito meramente devolutivo nos termos e para os efeitos do artigo 143.°/3 do CPTA.
B. A tese sustentada pelo MFAP nas suas alegações - segundo a qual incumbe à RAM, substituindo-se ao Estado, transferir para os municípios da sua área de circunscrição as verbas a que estes têm direito por conta da sua participação no IRS - não tem apoio legal, nem na LFR, nem na LFL.
C. Sem incumbência legal, as RA não estão obrigadas, nem podem, sob pena de ilegalidade, por falta de lei habilitante, transferir para os municípios da sua área de circunscrição as verbas por conta da sua participação no IRS, muito menos, têm estes direito a isso.
D. A matéria das finanças locais – designadamente, a propósito da participação no IRS – é, actualmente, um assunto exclusivo das relações entre o Estado e os municípios, a que as RA são estranhas.
E. A solução que resulta hoje da lei é a solução imposta pela CRP no seu art. 227°/1, alínea j), do qual resulta que as regiões autónomas têm direito a dispor de todas as receitas fiscais cobradas no respectivo arquipélago, o que abrange todos os impostos independentemente da sua natureza específica, pelo que não há cobertura constitucional actual para consagrar a solução proposta pelo MFAP.
F. O artigo 63°/3 da LFL – nos termos do qual "a aplicação às Regiões Autónomas do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º e no artigo 20.º da presente lei efectua-se mediante decreto legislativo regional" – não tem a intenção que lhe imputa o MFAP, nem teria a virtualidade para, se porventura fosse esse o caso, de relevar para o bom julgamento da presente causa.
G. Diga-se, aliás, que seria estranho que tivesse essa intenção, pois tratar-se-ia então de uma norma profundamente inovatória no sistema jurídico das finanças locais sem qualquer repercussão ou reflexo depois tanto na LFL como na LFR.
H. A intenção do legislador com o tal art. 63°/3 não foi condicionar a atribuição das verbas aos municípios das regiões autónomas à emanação de um decreto legislativo regional, mas apenas fazer depender o exercício da faculdade prevista no n.º 4 do artigo 20.º da LFL (de prescindir de parte da percentagem cuja transferência lhes é legalmente conferida) aos termos que vierem (ou viessem) a ser determinados em tal diploma – tal, como de resto, asseverou o Secretário de Estado Adjunto e da Administração Local, em carta datada de Abril de 2008 (cf. doc. junto à PI com n." 2).
I. Mesmo que houvesse – e não há – essa intenção, o art. 63°/3 da LFL não teria a virtualidade de sustentar a tese do MFAP, desde logo, porque então esse preceito seria inconstitucional por violação do art. 227/1, alínea j), da CRP, pois estaria ele a dizer que os impostos gerados ou cobrados nas RA não seriam integralmente delas, cabendo 5% aos municípios regionais, contrariando a disposição constitucional.
J. Segundo, porque a verdade é que a LOE para 2009 consignou, de forma expressa e clara, a favor do Município do Funchal a verba em causa e a LOE (da competência exclusiva da Assembleia da República) é uma lei, que, por ser posterior, prevalece sobre a LFL, que é também uma lei (da competência relativa da Assembleia da República).
K. Assim, mesmo se se entendesse que tal preceito exigia realmente um decreto legislativo regional para efeitos da transferência das verbas ou, mais ainda, que seria intenção sua fazer recair sobre as RA a responsabilidade de procederem, à custa do seu património, às transferências a que os municípios regionais têm direito a título de participação no IRS, essa exigência ou solução teria sido revogada ou derrogada pela LOE para 2009.
L. As soluções (medidas, opções, transferências, etc.) constantes da LOE são, para o Governo, juridicamente indisputáveis, não lhe cabendo ajuizar, nesse plano – no político, a coisa é diferente – se são boas ou más, correctas ou incorrectas.
M. Enquanto órgão legislador, o Governo não tem poderes para alterar, revogar ou derrogar a LOE, na medida em que esta é da competência exclusiva da Assembleia da República, nos termos do artigo 161°, alínea g) – em termos tais que qualquer decreto-lei que pretendesse revogar, alterar ou suspender a LOE para 2009 seria orgânica e formalmente inconstitucional.
N. Enquanto órgão da Administração Pública, enquanto órgão administrativo, Governo também não tem poderes para alterar, revogar ou derrogar a Lei do Orçamento de Estado, porque esta tem a força de lei e qualquer acto da Administração (concreto ou normativo, jurídico ou material) deve, por força do princípio da legalidade, obediência à lei – por isso que qualquer acto de qualquer estrutura ou departamento governamental que contrarie o disposto na LOE para 2009 é ilegal.
O. Aliás, se dúvidas houvesse, a CRP é, neste ponto, muito clara, dispondo no artigo 199°, alínea b), que "compete ao Governo, no exercício de funções administrativas, fazer executar o Orçamento de Estado" – e executar, aqui, significa proceder à transferência das verbas estabelecidas no Mapa XIX anexo à Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro (LOE para 2009).
P. A construção jurídica proposta pelo MFAP é igualmente incorrecta pois o seu resultado – o de evitar que os municípios das RA recebessem, em dobro, a parte a que teriam direito –, além de estar garantido à partida (na medida em que os municípios regionais não recebem em dobro, mas em singelo, como qualquer outro município continental, pois as RA não transferem para eles o que quer que seja), desvirtuaria a lógica dos "municípios integrados num todo nacional".
Q. Como bem salientou o Mmo. Juiz na Sentença recorrida, o resultado da tese do MFAP seria contrário "aos princípios constitucionais da autonomia local (face ao Estado e às Regiões) e da autonomia administrativa e financeira local, bem como do princípio do tratamento igualitário dos municípios pelo Estado, que não pode "criar" a figura do município de região autónoma face à figura do município do Continente ou do Estado Português".
R. Em suma, a Lei nº 64-A/2008 – que aprovou o OE para 2009 – atribuiu ao Município do Funchal o direito legal de lhe serem transferidos, a título de participação no IRS, €5.484.640,00 (cinco milhões quatrocentos e oitenta e quatro mil seiscentos e quarenta euros).
S. Se na LOE para 2009 se inscreveu o direito certo e líquido do Município do Funchal em receber tal quantia por conta da participação no IRS, o seu pagamento corresponde a uma operação material juridicamente devida para o Estado, sem lugar a quaisquer juízos de oportunidade ou conveniência.
T. Só os tribunais podem questionar a legitimidade das prescrições contidas na lei, no caso, na LOE para 2009, e com fundamento em inconstitucionalidade – mas não se vê que este diploma padeça, nesta parte, de mazela, quanto mais de mal tão grave, sobretudo atendendo a que já passou sob o crivo do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização preventiva.
U. De resto, como se disse, solução contrária é que seria inconstitucional, por violar, como aqui se sustenta, o art. 227°/1, alínea j).
Nestes termos, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., Venerandos Conselheiros, deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a Sentença recorrida.
Requer-se, desde já, o efeito meramente devolutivo, nos termos e para os efeitos do artigo 143.º/3 do CPTA».

Cumpre apreciar e decidir.

2.

2.1. A decisão recorrida assentou na seguinte matéria de facto:
«1. O ora R. deixou de fazer, desde Março de 2009, as transferências para o ora A. das verbas previstas na LOE de 2009, art. 42° e Mapa XIX do OE de 2009, ao abrigo dos arts. 19°-1-c e 20° da LFL (Lei 2/2007), isto é, da participação variável de 5 % no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal no município do Funchal, calculada sobre a respectiva colecta líquida das deduções previstas no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS.
2. Tais verbas não transferidas em 2009 são no montante de 4.570.533,33 Euros.
3. Antes em Janeiro e Fevereiro de 2009 e em 2008, o ora R. fizera as transferências do tipo citado.
4. Dou aqui por reproduzida a carta do Sr. Sec. de Estado Adjunto e da Adm. Local, de Abril de 2008, junta aos autos como doc. 2 da p.i.»

2.2. Está aqui em causa saber se o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal julgou bem ao decidir, como lhe havia sido pedido pelo Município do Funchal, que o Estado, através do Ministério das Finanças e da Administração Pública, tinha o dever de transferir para aquele município, a título de participação nas receitas do IRS, a verba constante do mapa XIX do Orçamento do Estado para 2009, aprovado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro.
Em rigor, o pedido e a decisão ativeram-se ao dever de transferência respeitante aos meses de Março a Dezembro de 2009, já que houve transferência no que respeita aos meses de Janeiro e Fevereiro.

2.2.1. Vejamos da Lei 64-A/2008, de 31.12, os preceitos essenciais para a compreensão do problema.
«Artigo 1.º
Aprovação
1 - É aprovado pela presente lei o Orçamento do Estado para o ano de 2009, constante dos mapas seguintes:
[…]
g) Mapa XVIII, com as transferências para as regiões autónomas;
h) Mapa XIX, com as transferências para os municípios;
i) Mapa XX, com as transferências para as freguesias;
[…]»

«Artigo 12.º
Retenção de montantes nas transferências
1 - As transferências correntes e de capital do Orçamento do Estado para os organismos autónomos da administração central, para as regiões autónomas e para as autarquias locais podem ser retidas para satisfazer débitos, vencidos e exigíveis, constituídos a favor da CGA, I. P., da Direcção-Geral de Protecção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública (ADSE), do SNS, da segurança social e da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças, e ainda em matéria de contribuições e impostos, bem como dos resultantes da não utilização ou utilização indevida de fundos comunitários.
2 - A retenção a que se refere o número anterior, no que respeita a débitos das regiões autónomas, não pode ultrapassar 5 % do montante de transferência anual.
3 - As transferências referidas no n.º 1, no que respeita a débitos das autarquias locais, salvaguardando o regime especial previsto no Código das Expropriações, só podem ser retidas nos termos previstos na Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, alterada pelas Leis n.os 22-A/2007, de 29 de Junho, e 67-A/2007, de 31 de Dezembro.
4 - Quando não seja tempestivamente prestada ao Ministério das Finanças e da Administração Pública, pelos órgãos competentes e por motivo que lhes seja imputável, a informação tipificada na lei de enquadramento orçamental, bem como a que venha a ser anualmente definida no decreto-lei de execução orçamental ou outra disposição legal aplicável, podem ser retidas as transferências e recusadas as antecipações de duodécimos, nos termos a fixar no decreto-lei de execução orçamental e até que a situação seja devidamente sanada».

«CAPÍTULO IV
Finanças locais
Artigo 42.º
Montantes da participação das autarquias locais nos impostos do Estado
1 - Em 2009, o montante global da participação dos municípios nos impostos do Estado é fixado em (euro) 2 521 351 422, sendo o montante a atribuir a cada município o que consta do mapa XIX em anexo.
2 - A participação prevista no número anterior é distribuída nos termos do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, da seguinte forma:
a) Uma subvenção geral fixada em (euro) 1 955 308 873 para o Fundo de Equilíbrio Financeiro (FEF);
b) Uma subvenção específica fixada em (euro) 166 633 738 para o Fundo Social Municipal (FSM);
c) Uma participação de 5 % no imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição territorial, calculada em (euro) 399 408 811, para efeitos de repartição de recursos públicos entre o Estado e os municípios, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro.
3 - A participação variável no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição territorial, incluída na coluna (7) do mapa XIX em anexo, resulta da aplicação da percentagem deliberada pelo município aos rendimentos de 2007, nos termos previstos no n.os 2 e 3 do artigo 20.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, correspondendo a diferença, face ao valor da coluna (5) do mesmo mapa, à dedução à colecta em sede de IRS, nos termos do n.º 4 do artigo 20.º do mesmo diploma.
4 - A repartição final entre municípios assegura o cumprimento do previsto no artigo 29.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de Fevereiro.
5 - Em 2009, o montante do FSM indicado na alínea b) do n.º 2 destina-se exclusivamente ao financiamento de competências exercidas pelos municípios no domínio da educação pré-escolar e do 1.º ciclo do ensino básico, a distribuir de acordo com os indicadores identificados na alínea a) do n.º 1 do artigo 28.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro.
6 - No ano de 2009, o montante global do Fundo de Financiamento das Freguesias (FFF) é fixado em (euro) 208 128 907, sendo o montante a atribuir a cada freguesia o que consta do mapa XX em anexo.
7 - O montante global do FFF referido no número anterior integra, nos termos do n.º 5 do artigo 32.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, as verbas necessárias para o pagamento das despesas relativas à compensação por encargos dos membros do órgão executivo da freguesia, bem como as senhas de presença dos membros do órgão deliberativo para a realização do número de reuniões obrigatórias, nos termos da lei.
8 - O montante referido no número anterior engloba o pagamento de todos os montantes devidos aos membros dos órgãos das juntas de freguesia pelo exercício das suas funções, designadamente os devidos a título de remuneração.
9 - Nas situações em que os encargos referidos no número anterior, respeitadas as condições previstas no artigo 27.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, alterada pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de Janeiro, pelo Decreto-Lei n.º 268/2003, de 28 de Outubro, e pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, ultrapassem as receitas totais da freguesia, pode esta requerer, junto da Direcção-Geral das Autarquias Locais, o financiamento do montante em excesso.
10 - É retida do FFF, de forma proporcional à dotação prevista no mapa XX, a verba necessária para fazer face à despesa referida no número anterior.
11 - Para efeitos do disposto nos n.os 1 e 4 do artigo 29.º, 4 do artigo 32.º, 2 do artigo 57.º e 2 do artigo 60.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, o apuramento da capitação nestes referida é feito tendo em conta a soma do imposto municipal sobre imóveis (IMI), do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT), do imposto municipal sobre veículos (IMV), da parcela do produto de imposto único de circulação (IUC) que constitui receita dos municípios e da participação municipal no IRS indicada na coluna (5) do mapa XIX em anexo».

No «MAPA XIX – TRANSFERÊNCIAS PARA OS MUNICÍPIOS PARTICIPAÇÃO DOS MUNICÍPIOS NOS IMPOSTOS DO ESTADO – 2009» consta
« […


Municípios
FEF Final
FSM
IRS
Total Transferências
Madeira
Corrente
Capital
Total
IRS PIE
%IRS
IRS a Transferir
Funchal
5264761
3509840
8774601
2008002
5484640
5,0%
5484640
16267243

...]»

2.2.2. O IRS a transferir para o município do Funchal era assim de 5484640 euros.
Esse montante correspondia a uma quantia mensal de 457053,33 euros. E havia sido transferida a quantia dos meses de Janeiro e Fevereiro, por isso que o Autor formulou o pedido de condenação no pagamento de 4570533,33 euros.

Observada a Lei do Orçamento, verifica-se que aprova as transferências para os municípios e fixa logo o seu montante.

Como decorre do texto do artigo 42.º, as transferências quantificadas no mapa XIX têm a sua justificação na pretensão de cumprimento do disposto na Lei de Finanças Locais sobre a repartição de recursos públicos entre o Estado e as Autarquias locais.
Na circunstância, o Ministério das Finanças e da Administração Pública deixou, a partir de Março de 2009, de executar a transferência, porque a partir dessa altura considerou que aquela transferência, afinal, não lhe era imposta pela Lei n.º 2/2007, e não lhe era imposta directamente pela lei do orçamento.
Entende o MFAP que «o Estado não poderá substituir-se às Regiões Autónomas num acto que a LFL expressamente enuncia como sendo da sua competência (arts. 19°, nº 1, aI. c), 20° e 63° da LFL). / XXXVII. Assim, dado que desde o ano de 2009 se procedeu à aplicação plena do art. 20° da LFL, e uma vez que a RA da Madeira, durante esse mesmo ano, recebeu a totalidade do IRS a que tinha direito nos termos legais, caber-lhe-ia fazer a devida afectação aos municípios da Região, designadamente ao Município do Funchal da parcela variável a que têm direito, através do decreto-Iegislativo regional previsto no art. 63° da LFL.

2.2.3. Recordem-se, agora também da Lei n.º 2/2007, outros preceitos importantes para a compreensão do problema.
«TÍTULO III
Repartição de recursos públicos entre o Estado e as autarquias locais
Artigo 19.º
Repartição de recursos públicos entre o Estado e os municípios
1 - A repartição dos recursos públicos entre o Estado e os municípios, tendo em vista atingir os objectivos de equilíbrio financeiro horizontal e vertical, é obtida através das seguintes formas de participação:
a) Uma subvenção geral determinada a partir do Fundo de Equilíbrio Financeiro (FEF) cujo valor é igual a 25,3% da média aritmética simples da receita proveniente dos impostos sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), IRC e sobre o valor acrescentado (IVA);
b) Uma subvenção específica determinada a partir do Fundo Social Municipal (FSM) cujo valor corresponde às despesas relativas às atribuições e competências transferidas da administração central para os municípios;
c) Uma participação variável de 5% no IRS, determinada nos termos do artigo 20.º, dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição territorial, calculada sobre a respectiva colecta líquida das deduções previstas no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS.
2 - A receita dos impostos a que se refere a alínea a) do número anterior é a que corresponde à receita líquida destes impostos no penúltimo ano relativamente àquele a que o Orçamento do Estado se refere, excluindo:
a) A participação referida na alínea c) do número anterior;
b) No que respeita ao IVA, a receita consignada, de carácter excepcional ou temporário, a outros subsectores das administrações públicas.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por receita líquida o valor inscrito no mapa de execução orçamental, segundo a classificação económica, respeitante aos serviços integrados.
4 - Para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1, considera-se como domicílio fiscal o do sujeito passivo identificado em primeiro lugar na respectiva declaração de rendimentos».

«Artigo 20.º
Participação variável no IRS
1 - Os municípios têm direito, em cada ano, a uma participação variável até 5% no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição territorial, relativa aos rendimentos do ano imediatamente anterior, calculada sobre a respectiva colecta líquida das deduções previstas no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS.
2 - A participação referida no número anterior depende de deliberação sobre a percentagem de IRS pretendida pelo município, a qual deve ser comunicada por via electrónica pela respectiva câmara municipal à Direcção-Geral dos Impostos, até 31 de Dezembro do ano anterior àquele a que respeitam os rendimentos.
3 - A ausência da comunicação a que se refere o número anterior ou a recepção da comunicação para além do prazo aí estabelecido equivale à falta de deliberação.
4 - Caso a percentagem deliberada pelo município seja inferior à taxa máxima definida no n.º 1, o produto da diferença de taxas e a colecta líquida é considerado como dedução à colecta do IRS, a favor do sujeito passivo, relativo aos rendimentos do ano imediatamente anterior àquele a que respeita a participação variável referida no n.º 1, desde que a respectiva liquidação tenha sido feita com base em declaração apresentada dentro do prazo legal e com os elementos nela constantes.
5 - A inexistência da dedução à colecta a que se refere o número anterior não determina, em caso algum, um acréscimo ao montante da participação variável apurada com base na percentagem deliberada pelo município.
6 - Para efeitos do disposto no presente artigo, considera-se como domicílio fiscal o do sujeito passivo identificado em primeiro lugar na respectiva declaração de rendimentos.
7 - O produto da participação variável no IRS é transferido para os municípios até ao último dia útil do mês seguinte ao do respectivo apuramento pela Direcção-Geral dos Impostos».

«Artigo 29.º
Variações máximas
1 - A participação de cada município nos impostos do Estado, incluindo os montantes do FEF, FSM e da participação no IRS referida na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º, não pode sofrer uma diminuição superior a 5% da participação nas transferências financeiras do ano anterior para os municípios com capitação de impostos locais superior a 1,25 da média nacional, nem uma diminuição superior a 2,5% da referida participação, para os municípios com capitação inferior a 1,25 vezes aquela média.
2 - A participação de cada município nos impostos do Estado, incluindo os montantes do FEF, FSM e da participação no IRS referida na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º, não pode sofrer um acréscimo superior a 5% da participação relativa às transferências financeiras do ano anterior.
3 - A compensação necessária para assegurar os montantes mínimos previstos no n.º 1 efectua-se pelos excedentes que advenham da aplicação do número anterior, bem como, se necessário, mediante dedução proporcional à diferença entre as transferências previstas e os montantes mínimos garantidos para os municípios que tenham transferências superiores aos montantes mínimos a que teriam direito.
4 - O excedente resultante do disposto nos n.os 2 e 3 é distribuído de forma proporcional pelos municípios com uma capitação de impostos locais inferior a 1,25 vezes a capitação média nacional daqueles impostos».

«Artigo 63.º
Adaptação às Regiões Autónomas
1 - A presente lei é directamente aplicável aos municípios e freguesias das Regiões Autónomas, com as adaptações previstas nos números seguintes.
2 - A transferência de competências para os municípios das Regiões Autónomas bem como o seu financiamento, designadamente mediante o ajustamento do montante e critérios de repartição do FSM, efectuam-se nos termos a prever em decreto legislativo da respectiva assembleia legislativa.
3 - A aplicação às Regiões Autónomas do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º e no artigo 20.º da presente lei efectua-se mediante decreto legislativo regional.
4 - Tendo em conta as especificidades das Regiões Autónomas, as assembleias legislativas das Regiões Autónomas podem definir as formas de cooperação técnica e financeira entre as Regiões e as suas autarquias locais».

Na tese do recorrente, em contrário da sentença e do recorrido, os municípios das regiões autónomas não têm direito à repartição dos recursos entre o Estado e os municípios, no que respeita à participação no IRS. Têm é direito a uma repartição de recursos, em IRS, entre as regiões autónomas e eles, municípios. E tudo porque nos termos do artigo 63.º, 3, da LFL, «A aplicação às Regiões Autónomas do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º e no artigo 20.º da presente lei efectua-se mediante decreto legislativo regional».

Vejamos.

2.2.4. O Tribunal Constitucional teve oportunidade de discutir a constitucionalidade e legalidade do disposto nos artigos 19.º, n.º 1, c), 20.º e 59.º da Lei n.º 2/2007, na sua aplicação aos municípios da Região Autónoma da Madeira, no processo n.º 717/07, pelo acórdão n.º 499/08, de 14.10.2008, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol 73.º, pág. 33 e seguintes, também disponível na base de dados deste Tribunal (www.tribunalconstitucional.pt).
Como decorre do acórdão, o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira formulara pedido de fiscalização abstracta sucessiva porque, nomeadamente, entendia que aqueles preceitos subtraíam à Região Autómoma uma parcela da totalidade do IRS a que têm direito.
Ora, o Tribunal Constitucional veio a decidir:
«b) não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 19º, nº 1, al. c), 20º e 59º da Lei nº 2/2007, na sua aplicação aos Municípios da Região Autónoma da Madeira».
Da sua fundamentação interessa recordar, principalmente, o seguinte segmento:
«8.3. Assim delimitado o exacto alcance da reserva regional das receitas geradas e cobradas nas Regiões Autónomas, acolhendo-se a interpretação segundo a qual as receitas aí geradas e cobradas são, na sua íntegra, receitas dos orçamentos regionais, nem por isso se pode concluir que os artigos 19.º, n.º 1, al. c), 20.º e 59.º da actual Lei das Finanças Locais, que consagram a nova fórmula de cálculo das transferências do Estado para os municípios (que, como se viu, prevê uma participação variável dos mesmos no IRS, ou seja, que permite uma ‘municipalização’ de uma pequena parcela das transferências estaduais relativas ao IRS, podendo os municípios abdicar de uma parte dessa transferência ou tão só modular ou diferenciar localmente o IRS, as respectivas prestações), vieram chocar com a ‘localização’ dos impostos nas Regiões Autónomas. Isto porque aqueles preceitos, per se, são inoperantes em relação às Regiões Autónomas. Com efeito, a aplicação do regime neles contido efectuar-se-á, nos termos do n.º 3 do artigo 63.º daquele diploma legal, através de um decreto legislativo regional. Esta última disposição introduziu um mecanismo que não permite acolher o raciocínio do Requerente quanto à inconstitucionalidade dos preceitos que constituem o objecto do seu pedido de fiscalização. Pela simples razão de que o mesmo apenas questiona a aplicação do regime neles previsto (e não o regime em si) às Regiões Autónomas, e esta não decorre dos artigos 19.º, n.º 1, al. c), 20.º e 59.º da Lei n.º 2/2007, mas de um decreto legislativo regional que venha a ser criado pelas competentes assembleias legislativas regionais com vista a torná-lo operativo nas respectivas regiões. Isto decorre de forma clara do n.º 3 do artigo 63.º, o qual abre uma excepção, quanto a este específico aspecto, à aplicabilidade directa do diploma das finanças locais às Regiões Autónomas prevista no nº 1 da mesma disposição.
Assim sendo, não é possível sustentar a violação, pelos artigos 19.º, n.º 1, 20.º e 59.º da Lei nº 2/2007, de uma norma constitucional, mais concretamente do artigo 227.º, n.º 1, al. j), pois os orçamentos das Regiões Autónomas apenas verão escapar receitas que lhes estavam originariamente – de acordo com o texto constitucional – destinadas, se essa for a vontade expressa dos competentes órgãos regionais, plasmada num decreto legislativo regional. Como bem refere o recente Acórdão n.º 551/2007, que, por sua vez, cita o Acórdão n.º 403/89, no qual se afirma o seguinte: “(…) o exercício pelos órgãos regionais da faculdade de impugnação da constitucionalidade de normas dimanadas de órgãos de soberania pressupõe uma legitimidade qualificada pela violação de direitos das regiões. É precisamente a circunstância de ser accionado, por esta via, um poder de garantia dos poderes das regiões, que fornece o critério de determinação do âmbito do pedido. Só têm (devem) ser consideradas as normas que (…) violem direitos constitucionalmente conferidos às regiões e na medida em que essas normas se destinem a nelas ser aplicadas (…)”.
Não decorrendo uma tal violação, nos termos referidos, dos artigos cuja constitucionalidade vem impugnada, há assim que negar procedência ao pedido do Requerente.
8.4. Aqui chegados, importa notar que não faz sentido tratar autonomamente a alegada ilegalidade por violação do artigo 112º do EPA-RAM.
Com efeito, do confronto entre o artigo 227.º, n.º 1, al. j), da CRP e o artigo 112º do EPA-RAM não resulta qualquer discrepância significativa de sentido normativo, sendo que a norma constitucional já assegura expressamente que as Regiões Autónomas gozam do direito de dispor das receitas fiscais cobradas nos respectivos territórios arquipelágicos, pelo que se decide não conhecer do pedido de ilegalidade que se funda na violação do artigo 112º, nº 1, do EPA-RAM».

No quadro da interpretação do Tribunal Constitucional, portanto, os municípios das regiões autónomas não obtêm directamente dos preceitos da Lei de Finanças Locais o reconhecimento do direito a montantes de IRS. Apenas através de decreto-legislativo regional obterão esse reconhecimento.
No quadro daquela mesma interpretação, que aqui se acompanha, não pode obter acolhimento a tese da sentença recorrida de que o artigo 63.º, n.º 3, da LFL é uma norma inútil e de que entendida como a recorrente entende seria inconstitucional. E também não obtém acolhimento a tese do município quanto à interpretação da mesma norma. É que é o próprio Tribunal Constitucional que contraria essa tese.

Deste modo, não cabia ao Estado proceder directamente a transferência para os municípios das regiões autónomas a título de participação em IRS cobrado nessas regiões.

2.2.5. Mas será que se pode afirmar, em qualquer caso, que uma coisa será não decorrer da Lei das Finanças Locais o direito a montantes de IRS, outra coisa será decorrer esse direito directamente da Lei do Orçamento ou, pelo menos, decorrer da Lei do Orçamento uma vinculação de transferência.
Esta é ainda, de algum modo, a tese da sentença, e é a tese do município recorrido, «porque a verdade é que a LOE para 2009 consignou, de forma expressa e clara, a favor do Município do Funchal a verba em causa e a LOE (da competência exclusiva da Assembleia da República) é uma lei, que, por ser posterior, prevalece sobre a LFL, que é também uma lei (da competência relativa da Assembleia da República)./ K. Assim, mesmo se se entendesse que tal preceito exigia realmente um decreto legislativo regional para efeitos da transferência das verbas ou, mais ainda, que seria intenção sua fazer recair sobre as RA a responsabilidade de procederem, à custa do seu património, às transferências a que os municípios regionais têm direito a título de participação no IRS, essa exigência ou solução teria sido revogada ou derrogada pela LOE para 2009.»

Afigura-se, em primeiro lugar, que deve afastar-se a ideia de que a LOE revogou ou derrogou a LFL.
É que o que apenas resulta da LOE é que pretende cumprir a LFL.
E na verdade, se no domínio económico o Orçamento é uma previsão (plano) e no domínio político é uma autorização política (vd. António L de Sousa FrancoFinanças Públicas e Direito Financeiro Vol. I e II, 4ª edição, 14ª reimpressão, Almedina 2012, pp 338, 339), não se contesta que ele tem que ter «em conta as obrigações decorrentes de lei ou de contrato», inscrevendo obrigatoriamente as dotações necessárias para o seu cumprimento (artigo 105.º, n.º 2, da CRP, artigo 16.º, n.º 1, a), da lei de enquadramento orçamental, Lei n.º 91/2001, de 20.8, com sucessivas alterações).
Ora, o artigo 42.º da Lei n.º 64-A/2008 justifica a transferência quantificada no Mapa XIX com aquela pretensão de cumprimento, mas não estabelece qualquer nova norma, não adita ou altera qualquer norma à LFL, nem sequer a interpreta (este problema pode vir a suscitar-se, com exigência de outra discussão, perante as leis do orçamento do Estado para 2011 e para 2012, com as normas interpretativas que aí ficaram a constar).
Por isso, não se trata de enquanto lei posterior prevalecer sobre lei anterior, pois que as duas se situam em planos diferentes.
A lei de 2008 pretende, simplesmente, cumprir a LFL, funda-se nela e é ela que lhe dá o suporte.

2.2.6. Em geral, a omissão na lei do orçamento de transferências ou de dotações que nela devem estar inscritas, em resultado de vinculação legal, permitirá concluir pela ilegalidade da lei do orçamento, situação em que, por isso, se «exigirá, como é óbvio que se abandone a reiterada ideia de que a lei do orçamento é um simples cálculo ou previsão» (José Joaquim Gomes Canotilho, “A Lei do Orçamento na Teoria da Lei”, em Universidade de Coimbra, Boletim da Faculdade de Direito Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, II, pág. 581.

Diversamente, se fica prevista uma dotação ou transferência na convicção da sua exigência legal, quando se concluir que, afinal, tal exigência não existe.
Nesse caso, aquela dotação ou transferência não perderá o seu carácter de mera previsão, não decorrendo dela directamente o dever de transferência (outra coisa, ainda, será hipotética consequência a nível de responsabilidade, perante as autarquias que não vêm ser-lhes entregues as quantias constantes dos respectivos mapas).
Poder-se-ia contrapor, como de certa maneira fazem a sentença e o recorrido, que o Governo se deve limitar a executar o Orçamento. E sem dúvida que lei do orçamento «tem eficácia vinculante em primeiro lugar em relação ao Governo, obrigando-o a executar o orçamento» (em nota IX art. 106, JJ Gomes Canotilho Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada” Vol I, Coimbra Editora 2007).
Mas deve ponderar-se essa incumbência.
Que é competência do Governo fazer executar o Orçamento do Estado, é cristalino, por textualizado no artigo 199.º, b), da Constituição.
Mas precisamente porque lhe cumpre executar, é que deve executar bem. Não se trata de uma actividade mecânica.
Com efeito, há um conjunto vasto de determinações do Orçamento respeitante, por exemplo, a cativações, a retenções, a acertos, sistema de pagamento duodecimal, que têm de ser respeitadas. E se têm de ser respeitadas também o deverão ser, afinal, as disposições em que se fundam as transferências.
Não teria sentido que o Governo procedesse a transferências que implicassem desrespeito da lei que se intentava cumprir ao contemplar-se no Orçamento.
E na verdade, «seria confundir as coisas dizer que as obrigações de gastar são determinadas pela inscrição orçamental de rubricas de despesa, ainda que assinaladas por uma designação que evidencie o fim a que se destinam: só uma lei – incluída ou não no Orçamento – será susceptível de originar a obrigatoriedade de gastar certas quantias» (António Lobo Xavier, “O Orçamento Como Lei”, em Separata do Boletim de Ciências Económicas, Coimbra 2000, pag. 170. Embora o Autor defenda, depois, a necessidade de um acto normativo para a anulação ou redução dos créditos orçamentais).
Note-se que se estaria votada ao fracasso acção baseada em omissão na lei do orçamento de alegada dotação obrigatória, que, afinal, se concluía não ser obrigatória, também tem de estar votada ao fracasso acção tendente a obter efectiva transferência de quantia inscrita na suposição de que era obrigatória a transferência, quando igualmente se conclui que nem era obrigatória nem era devida.
Sublinhe-se que não se trata, aqui, de se permitir que o Governo suspenda restrinja ou cancele dotações orçamentais ou transferências que correspondam à execução financeira de obrigações legais (ainda António L de Sousa Franco, ob. cit., págs. 407, 408).
Do que se trata é de se verificar, no quadro da execução da autorização de transferência que ela, afinal, não tem justificação legal para ser feita.

E logo se vê, tal como defende o recorrente, que não pode ter cobertura a transferência a título de participação em imposto do Estado de mais do que o próprio imposto.
Não se pode transferir o que não há.
Com efeito, se pertencem às regiões autónomas as receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, incluindo o respectivo IRS, conforme considerou o Tribunal Constitucional, o Estado não pode transferir o que não tem.
Por isso se entende a linguagem do recorrente no sentido de que a transferência para os municípios das regiões autónomas equivaleria, afinal, a transferir 105%, isto é, a ficar na região autónoma mais do que o próprio imposto - 100% para as regiões autónomas, mais 5% para as autarquias dessas regiões.
Então, não seria, já, transferência a título de participação em impostos do Estado, poderia ser, quando muito, uma subvenção ou subsídio. Mas não é de subvenção ou subsídio que se trata na transferência aqui em discussão.

2.2.7. Nos termos da solução a que se chega fica desprovida de interesse para o recorrido a discussão sobre a alteração do efeito atribuído ao recurso.

3. Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a sentença e julga-se improcedente a acção. Custas pelo Autor, ora recorrido.

Lisboa, 28 de Junho de 2012. – Alberto Augusto Andrade de Oliveira (relator) – António Bento São Pedro - Rosendo Dias José.